novembro 04, 2013

Amadeo de Souza-Cardoso - À Velocidade da Inquietação

 Velocidade da Inquietação" (2012) é o nome do documentário biográfico sobre o pintor português Amadeo de Souza-Cardoso. Realizado por António José de Almeida e produzido pela Panavideo para RTP2, o trabalho de 58 minutos pode ser visto na íntegra online.

"Nasceu em Manhufe, Amarante. Estudou em Paris. Foi amigo de Modigliani e vizinho de Picasso. Participou ativamente na revolução artística do início do século XX. Expôs ao lado dos maiores pintores vanguardistas do Modernismo, em Paris, Nova Iorque, Londres, Berlim. Foi o primeiro modernista português. Causou escândalo em Portugal. Teve uma vida relâmpago. Viveu e criou à velocidade da inquietação. Foi Amadeo de Souza-Cardoso."
O documentário apesar de por vezes um pouco pretensioso, em termos de impacto e ritmo é um belíssimo trabalho de documentação e divulgação sobre um dos mais importantes artistas que Portugal já teve. São múltiplas as entrevistas apresentadas que dão suporte à pesquisa de arquivo realizada e apresentada. Toda a informação é tratada numa linearidade cronológica temporal e estética, o que dá sentido ao que vamos apreendendo sobre o personagem, permitindo-nos conhecer melhor quem era Amadeo, assim como perceber porque o seu nome acabaria por ficar arredado tantos anos do circuito internacional de arte.

Os galgos, 1911

Avant la Corrida, 1912

Cozinha da Casa de Manhufe, 1913

Dom Quixote, 1914

Ao longo dos mais de cinquenta minutos, acompanhamos o desenvolvimento da arte e estética de Amadeo, o documentário é bastante rico em imagens alusivas à cronologia, desde fotografias, a documentos oficiais, a filmagens dos locais, entrevistas e críticas visuais com especialistas. O documentário trabalha literalmente para dar a ver a vida e obra de Amadeo de Souza-Cardoso. No campo sonoro, diga-se que a música e efeitos estão muito bem trabalhados obedecendo ao título escolhido para sintetizar a vida de Amadeo, "À velocidade da Inquietação". No final do documentário, quase que podemos sentir essa sua inquietação, e é com alguma melancolia que aceitamos que alguém com tanta garra, tanta vontade, tanto ainda para dar, nos deixaria tão cedo.

Amadeu de Souza-Cardoso está para pintura portuguesa do século XX, como Fernando Pessoa está para literatura portuguesa do século XX. Ambos foram expoentes máximos do nosso modernismo, juntamente com Mário Sá Carneiro. Pessoa acabaria por ficar como uma espécie de orfão na representação desse modernismo nacional, ao perder Mário Sá Carneiro em 1916, e Amadeu de Souza-Cardoso em 1918.

Amadeo de Souza-Cardoso - À Velocidade da Inquietação (2012)

novembro 01, 2013

Filmes de Outubro 2013

Há algum tempo que não dava uma nota máxima, este mês foi para Gravity. Uma experiência poderosa capaz de nos transportar para o reino do puro espetáculo sensorial, sem nunca deixar de procurar construir um sentido coerente e completo. A prova disso é o espectáculo visual ser acompanhado por uma performance soberba de Sandra Bullock. No patamar abaixo vi muitos bons filmes, alguns falei já deles aqui, a série Before..., Room237, e Chugyeogja. Além desses vi A Gaiola Dourada, que não sendo um filme brilhante, é tecnicamente muito bom e muito interessante tematicamente. Existem várias nuances da cultura portuguesa aqui tratadas, diria de uma forma quase brilhante, e muito raramente vistas no cinema, nomeadamente no cinema feito por nós próprios. Fiquei algo desiludido com A Night Train to Lisbon, apesar de ter gostado, de ter uma trama e atmosfera que nos agarra até meio do filme, depois disso e aos poucos vai-se desmoranando. A mesma coisa acontece com Pacific Rim mas com um efeito final ainda pior, já que ao contrário de Gravity despeja sobre nós uma torrente de efeitos visuais sem contudo nunca lhes atribuir qualquer sentido ou necessidade, é o espectáculo pelo espectáculo.

xxxxx Gravity 2013 Alfonso Cuarón USA


xxxx Before Midnight 2013 Richard Linklater USA [Análise]

xxxx La Cage Dorée 2013 Ruben Alves France

xxxx Room 237 2012 Rodney Ascher USA [Análise]

xxxx Chugyeogja 2008 Hong-jin Na South Korea [Análise]

xxxx Le chiavi di casa 2004 Gianni Amelio Italy


xxx Night Train to Lisbon 2013 Bille August European

xxx Iron Man 3 2013 Shane Black USA

xxx The Fountainhead 1949 King Vidor USA


xx Pacific Rim 2013 Guillermo del Toro USA

xx Film socialisme 2010 Jean Luc Godard France

outubro 31, 2013

Símbolos e ultra-interpretação no Cinema

Room 237 (2012) de Rodney Ascher é um documentário belíssimo, não pelo que aparentemente parece querer dizer, mas antes pelo que diz enquanto representação de um fenómeno humano. Ou seja, Room 237 apresenta-se como um documentário em que se discute e desmontam possíveis simbologias presentes no filme The Shining (1980) de Stanley Kubrick. Mas no fundo, o que podemos verdadeira ver neste documentário são relatos de uma das maiores obsessões humanas, a avidez por padrões, ou a aversão ao acaso. Ao longo de cem minutos somos presenteados com algumas das maiores ultra-interpretações jamais realizadas sobre um filme.


Em parte, este filme apresenta as razões pelas quais ao longo dos últimos 20 anos me fui afastando da análise semiótica do cinema (já para não falar da análise psicanalítica - Freud, Lacan, etc -) e passei a defender quase exclusivamente as análises cognitivistas. Porque o que se pretendia nessas abordagens de investigação estava totalmente concentrado sobre o artefacto apenas e as suas simbologias. Ainda admitindo que a semiótica é uma ciência, e nada tem que ver com a psicanálise e as ultra-interpretações, as suas abordagens aproximam-se perigosamente destas. Ou seja, não há lugar para a intenção do criador, nem há lugar para o receptor enquanto sujeito natural, apenas cultural. Não é aceitável que se conceba que uma obra existe sem um autor, sem uma vontade de comunicar.


Aliás nesse sentido, as primeiras grandes refutações ao que é dito em Room 237 podem ser encontradas no The Elstree Project da University of Hertfordshire com o apoio do The Kubrick Estate, da Warner Brothers e ainda do British Film Institute e da Academy of Motion Picture Arts and Sciences. Ao longo de três anos, foram entrevistados para memória futura, nove membros da equipa que trabalhou em The Shinning. Estas entrevistas podem ser todas vistas num documentário, Staircases to Nowhere: Making Stanley Kubrick's 'The Shining' (2013).

Staircases to Nowhere: Making Stanley Kubrick's 'The Shining' (2013)

Assim, confrontando Room 237 e Staircases to Nowhere, a primeira evidência que podemos constatar é a alucinação completa de quem se dedica a estas ultra-interpretações, que tem como único parente, as conhecidas teorias de conspiração política. Kubrick era obcecado, era perfeccionista, e talvez por isso mesmo tenha levado muitas pessoas a acreditar, que nada nos seus filmes pode ser fruto do acaso. Cada erro de continuidade encontrado é imediatamente identificado, não como erro mas como símbolo de uma qualquer obscura ideia de Kubrick. Algumas das mais discutidas questões têm que ver com o espaço interior do hotel, a forma como este não é realista. Ora ouvindo os seus criadores falar, percebe-se porquê, percebe-se que não estamos a falar de um hotel real, mas de um espaço reconstruído em estúdio. Além disso, dada a impossibilidade de reproduzir integralmente o hotel, as várias salas da simulação do hotel, iam servido diferentes simulações de salas em função das necessidades de gravação. Ora assim sendo, é natural que por mais perfeccionista que fossem, que muitos detalhes acabariam por escapar ao real espacial do hotel.

O mais evidente problema de tudo isto, é de certo modo explicado por muita da mais recente teoria da psicologia sobre a nossa obsessão com padrões e simbolismos, e acima de tudo incapacidade para aceitar o acaso da natureza, e das nossas vidas. Para quem estiver interessado em aprofundar isto, aconselho vivamente a leitura de Thinking, Fast and Slow (2011) de Daniel Kahneman, na minha análise podem encontrar outras referências sobre este mesmo assunto.


Uma das teorias que não quero deixar de rebater, e não é a loucura de The Shining ser um filme sobre o holocausto, mas antes a ideia de que The Shining seria o filme-confissão de Stantely Kubrick do seu envolvimento na criação da encenação da aterragem na lua em 1969 da missão Apollo 11. É verdade que Kubrick depois depois de fazer 2001, poderia ter sido o génio a contratar para o fazer. Mas também é verdade que as condições para o fazer não se coadunam em nada com aquilo que foi possível ser visto pelas pessoas na televisão em todo o planeta. E isso já foi extensamente explicado por S.G. Collins no seu pequeno documento, Moon Hoax Not (2012).

Moon Hoax Not (2012) de S.G. Collins 

Para terminar, Room 237 é um projecto que serviu para dar voz a alguns dos mais obsessivos descobridores de teorias da conspiração na internet. Mas serviu para bem mais do que isso, para nos questionarmos sempre que entramos numa espiral de ultra-interpretação, não apenas cinematográfica mas em tudo o resto, que nos rodeia na vida. Além disso, serviu para nos abrir o apetite para voltar a ver The Shining!

outubro 30, 2013

a natureza da narrativa

"Red Dead Redemption" foi jogo do ano em 2010, tendo ganho os mais diversos prémios da indústria e crítica. Na altura não me senti propriamente atraído, confesso que para isso contribuiu a fraca experiência de “Gun” (2005) e a minha saturação com o género cinematográfico de western. Passados 3 anos, reconheço o meu erro, e confesso que Red Dead Redemption (RDR) é tudo aquilo que poderíamos esperar do tema western explorado pelo media dos videojogos. Mais ainda, RDR tem potencial para demover quem nunca gostou, ou como eu se cansou, do tema no cinema.


O mais interessante de RDR no campo do tema é a forma como atualiza o western, como consegue casar os mundos clássicos do western americano de John Ford e Howard Hawks, com os mundos do anti-herói enigmático e emocional do “spaghetti western” de Sergio Leone e Sergio Corbucci. As enormes pradarias e a longa busca em equipa pela vingança, acaba por dar lugar a uma busca solitária e desinteressada, totalmente anti-heróica. Mas ao mesmo tempo que John Marston ganha densidade, as referencias cinematográficas vão-se descolando, e este vai ganhando o seu lugar na galeria do género.

The Searchers (1956) de John Ford

Django (1966) de Sergio Corbucci

Red Dead Redemption (2010) da Rockstar

RDR é um videojogo, mas antes disso é um western, e para todos os efeitos será como tal que ficará preservado nas nossas memórias. A Rockstar prova com RDR mais uma vez que os videojogos são um excelente meio de comunicação e expressão artística, extremamente eficazes na capacidade de construção de universos ficcionais. Poderia ter sido um filme, um livro, ou uma banda desenhada. Mas então o que o distingue desses outros meios? Chegados aqui, esta é a grande questão que me coloco.

O que é que eu prezo mais, o modo como chego até ao universo ficcional e o apreendo, ou o modo como ele gera uma experiência memorável e inesquecível dentro de mim? Eu poderia dissertar aqui sobre todas as diferenças formais, entre jogar, ler e ver. Mas isso será mesmo relevante? Vou mais longe ainda, será mesmo relevante escolher o melhor medium, como venho defendendo nos últimos anos, para a história que se quer contar?

Serão mesmo diferentes, para nós, seres-humanos dotados de um poder de imaginação admirável, a teia de ideias gerada a partir do rádio-drama “The War of the Worlds” (1938) de Orson Welles, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) de Robert Kirkman, do filme “The Shawshank Redemption” (1994) de Frank Darabont, do livro “Perfume” (1985) de Patrick Süskind, do videojogo “The Last of Us” (2013) de Neil Druckmann? A resposta, talvez seja que não. Não existe diferença, porque essa teia, não é mais do que o modo como criamos sentido a partir do mundo que nos rodeia. Essa teia de ideias, é o modelo narrativo, que fomos obrigados a imprimir em todos os media que fomos criando com as tecnologias que fomos desenvolvendo.

A cada novo medium, entramos em devaneios sobre as suas novas possibilidades formais, sobre o modo como pode contribuir para mudar o modo como vemos o mundo. Mas quando a tecnologia, e o conhecimento sobre o seu uso estabiliza, percebemos, que não passámos de crianças deslumbradas com o novo. Inevitavelmente voltamos sempre ao mesmo modo de fazer, porque é só através desse modo de contar, que conseguimos fazer explodir ideias na imaginação de quem nos ouve, lê, vê ou joga. Isto são ideias que me perseguem há vários anos, para o qual os avanços na neurociência muito contribuíram, e aos poucos me foram convencendo da sua veracidade. Sobre isto aconselho vivamente a leitura do texto de Pedro Monteiro “On Defense Of A Biological Link Between The Human Brain And The Narrative Form” (2013) no qual ele realiza um exercício de demonstração da biologia da teia narrativa.
“most universal human cultural creations are made as a reflection of the way human minds work – what this concept represents is that brains don’t have to evolve to accommodate new cultural creations, since those creations are but a mirror of the old brain way of working.”
Tudo isto para dizer que de certo modo estamos na recta final da busca por um modo próprio de contar histórias nos videojogos. Ao longo dos últimos 10 anos, já nos dedicámos mais a criar os artifícios da gramática narrativa do meio, do que a tentar inovar o modelo de contar histórias. A estabilização epistemológica deste aparelho não é uma coisa má, em si. Se é verdade que perde algum encanto científico, porque o lado exploratório aproxima-se da total desvelação, também é verdade que o meio amadureceu, e é hoje capaz de expressar-se de uma forma muito mais completa.


***SPOILER******
Voltando a RDR em concreto, não posso deixar de discutir uma sequência relevante em termos do design de interactividade. O modo como está desenhada a morte do personagem principal deixa algo a desejar. A razão para o meu descontentamento prende-se com o facto de terem desenhado a sua morte como qualquer uma das outras mortes que experienciámos ao longo de todo o jogo. Ou seja, quando morro o impacto que sofro, não é aquele de uma narrativa com toda a carga já construída por RDR, mas antes, a morte normal dos videojogos, em que em vez de nos deixarmos levar pela perda, nos começamos a questionar “como é que tenho de sair do celeiro, para evitar ser morto?” Até que percebemos que não há segunda chance, que estamos mesmo mortos. Se senti algum impacto maior foi mais porque já estava de pré-aviso para algo de grande impacto no final do jogo. Mas o Dan Houser perdeu aqui a oportunidade de criar uma das cenas mais memoráveis de toda a história dos videojogos. A interactividade tem um potencial estético enorme em termos de responsabilização quando agimos, e de impotência quando nos é retirada. Esta cena final merecia mais, muito mais em termos de design de interacção.
*******************

Para fechar, apenas dizer que RDR é uma experiência inesquecível, os personagens, o ambiente e os eventos formam um todo muito completo, coerente e esteticamente muito aprazível. RDR será uma referência não apenas na cultura dos videojogos, mas do western, durante muitos anos.



Nota: Muitas das ideias que lanço neste texto sobre a narrativa e os aspectos formais do videojogo, são ideias com que venho trabalhando, mas estão longe de se apresentar num forma definitiva. Agradeço todos os comentários que queiram partilhar sobre o assunto. E para adensar a discussão vejam a média-metragem feita por John Hillcoat fazendo uso do mundo do jogo, Red Dead Redemption: The Man From Blackwater (2010) .

outubro 29, 2013

efeitos da multidisciplinaridade entre ciência e arte

Faz-nos falta esta visão americana do ensino, em que a multidisciplinaridade é verdadeiramente aceite, e vista como uma mais valia para o sujeito. Xiangjun Shi acaba de se licenciar no Programa Dual Brown-RISD (parceria entre a Brown University e o Rhode Island School of Design) em Física e em Animação. Ou seja, foi possível combinar aqui uma ciência dura com uma arte que ainda nem sequer aparece no panteão das Belas Artes. Isto seria impensável na Europa, menos ainda em Portugal. Os resultados, estão à vista, vejam abaixo Why Do I Study Physics? (2013).


É claro que esta multidisciplinaridade não é para todos. Só uma minoria pode almejar realizar este tipo de cruzamentos que apresenta exigências altamente diversas, com caminhos difusos, e ainda por trilhar. Isto requer não apenas uma enorme motivação, mas enorme proactividade e humildade por parte do aluno. Mas também é por aqui que podemos vir a criar novos caminhos, novo pensamento, e assim incrementar a nossa criatividade.

Aliás, o filme de Xiangjun Shi é um contributo essencial para sociedade em termos de dar a conhecer o mundo mais abstracto da Física. O que podemos experienciar neste filme, só muito dificilmente poderia ser feito por alguém sem estes dois backgrounds. Conseguir transformar em imagem, ideias e conceitos tão distantes das metáforas que facilmente reconhecemos, em algo tão acessível e facilmente compreensível por nós, leigos em Física. Vejam mais trabalhos de Xiangjun Shi na sua página.

Why Do I Study Physics? (2013) de Xiangjun Shi

outubro 28, 2013

singularidade e semelhança social

Before Midnight (2013) está longe de ser apenas uma sequela, menos ainda uma mera terceira parte. Para todos os que se encontram no limiar da idade do protagonista (40 anos), e viram os dois filmes anteriores também quando saíram no cinema, esta série é um universo quasi-real, que de tanto evoluir sincrónica e paralelamente connosco, passou a ser parte de nós próprios. Se já nos tínhamos identificado aquando do primeiro filme, a possibilidade de envelhecer com eles e voltar a descobrir os seus sentires, em intervalos de 9 anos, cola-nos inevitavelmente aos seus destinos. Não admira assim a "aclamação universal" da crítica, isto é um dos experimentos cinematográficos mais bem sucedidos na simulação do processo existencial.


Em síntese a trilogia Before… expressa ideias, externaliza sentires, emoções, dilemas, e dramas… Before… não tem um enredo, porque o enredo é a própria vida indefinida, nunca começada, nunca terminada, sem plano, nem previsões possíveis.


Quando em 1995 vi pela primeira vez Before Sunrise, lembro-me que andava a estudar na Universidade, vi o filme com alguns dos meus amigos mais próximos, e as nossas reações foram muito parecidas entre nós. Aquilo que ouvi ao longo dos 90 minutos marcou-me. As interrogações que aqueles dois personagens atiravam contra a tela, poderiam ter saído da minha própria boca. Eu sentira tudo aquilo de que eles ali discutiam, e as minhas conclusões sobre esses sentires eram estranhamente muito parecidas. É verdade que os nossos 20 anos são talvez os momentos mais marcados pelo existencialismo, e tanto aqueles personagens como nós, estávamos ali prontos a fazer render a dialéctica. 

Before… mereceria vários estudos em profundidade, são várias as perspectivas de análise aqui possíveis, desde as raízes filosóficas mais profundas, discutindo aquilo que nos torna humanos, até à discussão sobre a estética do próprio meio cinematográfico. Nesta última abordagem Before… atira uma pedra no charco daquilo que define a linguagem cinematográfica. Before… demonstra que o cinema pode ser tal como a literatura, a arte de contar, e não apenas de mostrar, sempre que o faça com um propósito capaz de captar a atenção dos seus espectadores. São três filmes, são quase 6 horas de cinema baseadas apenas em diálogo e monólogos. Os personagens aqui são exatamente aquilo que dizem, e não aquilo que fazem, porque nada fazem, para além de falar. 

Before… demonstra os problemas que temos sempre que no mundo das artes procuramos definir regras ou limites conceptuais. As artes não são ciências, como tal não são passíveis de se encerrar sob definições acordadas entre um qualquer grupo de eruditos. As perspectivas sobre os meios de expressão, desde os mais abstractos aos mais concretos, são obrigatoriamente múltiplas. Não existem formas corretas nem incorrectas, cada obra encerra em si mesmo, os seus limites e as suas regras. Os padrões ainda que existam, são sempre difusos, e não limitadores. Não é por acaso que uma das mais evidentes diferenças entre arte e ciência, é que a ciência não existe sem replicação, enquanto a arte não sobrevive à replicação.

Dos três filmes, o que menos gostei foi o segundo, provavelmente porque surgiu numa fase desencontrada. As discussões nesse segundo filme aquando da estreia no cinema, já tinham sido ultrapassadas pelos eventos da minha vida. Tive dificuldade em aceitar que aqueles que eu tinha acompanhado ainda se encontravam numa encruzilhada, incapazes de se decidir, um pouco em fase de negação da passagem à vida adulta. Mas passados 10 anos, voltamos a reencontrar-nos, Jesse e Celine vivem vidas que pouco se distinguem da minha, os seus dilemas são os meus, as suas dúvidas são as nossas.

Apesar de todo o meu discurso sobre a multiplicidade discursiva das artes, não deixa de me surpreender que a série Before… consiga apresentar um discurso tão familiar. A indicação imediata desta homegeneidade discursiva sobre o mundo, é que aquilo que é dito aqui, é o mesmo que eu sinto e penso, assim como é o que sentem críticos e muitas outras pessoas por esse mundo fora. Na arte passamos todo o tempo a lutar por um rasgo de originalidade, por evitar seguir as pisadas do que veio antes de nós, mas quando nos sentamos para analisar o que fizemos neste mundo, o que sentimos e porque sentimos, acabamos concluindo que não somos assim tão diferentes dos demais colegas e amigos que nos rodeiam. Isso é mau? Não, de todo, é antes a constatação de que somos seres sociais, partilhamos sentires e contagiamo-nos uns aos outros a todo o instante, gostamos da diferença, mas amamos a semelhança.

outubro 24, 2013

Literatura Histérica

"Histerical Literature" (2012) de Clayton Cubitt é um trabalho de videoarte absolutamente fascinante. Eu diria que é uma intervenção artística com um potencial de leitura enorme, e que me interessou particularmente pelo que representa em termos das noções científicas de corpo, razão, emoção e consciência. Aliás o próprio nome dado à obra aparece intimamente ligado a um fenómeno médico, da época vitoriana, designado por Histeria Feminina.


Ver cada uma destas mulheres a realizar um esforço de golias para continuar a ler enquanto os seus corpos vibram e as hormonas do prazer procuram tomar conta de toda a esfera consciente, é extremamente impactante no que toca ao conhecimento de nós próprios. Cada uma das sessões coloca em evidência a nossa total incapacidade de controlo do corpo pela mente, e como o corpo consegue literalmente dirigir a nossa mente, subjugando-a às suas necessidades. Por breves momentos os corpos humanos parecem ali totalmente imbuídos de arbítrio próprio, incapazes de obedecer às ordens da mente, gesticulando através de espasmos e reações não planeadas. Dei-me conta entretanto que esta descrição que acabo de fazer, era a descrição usada para definir a pseudo-doença Histeria Feminina.

Noutros tempos diríamos que a emoção toma de assalto a razão, manietando-a e assumindo o total controlo da mente. Mas no século XXI este discurso é pouco correto, e diga-se que o novo conhecimento torna tudo isto ainda mais fascinante. Deste modo o que podemos ver aqui, são os processos não-conscientes que regulam o corpo e possuem acesso direto à nossa imaginação, a assumirem o controlo dos processos conscientes responsáveis por nos garantir o conhecimento da realidade que nos circunda a todo o momento. Ou melhor, assistimos a um desligar da consciência, uma espécie de blackout momentâneo, ou hi-jack, que assim impede o sujeito de continuar a atuar sobre as tarefas que estava a realizar.

Outra questão que se nos pode levantar ao ver estas sessões, é sobre o automatismo ou maquinismo do ser humano. A ideia de que o prazer sexual é ativado por meio de um mero botão físico! Como se não passássemos de marionetas, que podem ser controladas a partir desse tal botão apenas. Ora tudo isto seria assim, se desligássemos a emoção da razão. Mas a verdade, é que todo o processo do orgasmo é feito na maior intimidade entre mente e corpo. Na verdade o corpo não está sozinho no processo, mas entra antes num processo de pura simbiose com os processos mentais das áreas não-conscientes, criando assim as condições necessárias para que o processo atinja o seu objetivo final.

E é exatamente por toda esta ativação da imaginação que o orgasmo é tão importante. O orgasmo está longe de ser uma mera descarga de hormonas que dura breves segundos, mas antes atua sobre todo o nosso universo interior imaginativo. Julgo que esta performance para além de tudo o que disse acima, procura também colocar a sociedade a discutir o orgasmo feminino. Procura tornar a sociedade mais consciente do prazer sexual feminino.


Esteticamente o trabalho de Clayton Cubitt é perfeito. O minimalismo impera na imagem, vemos apenas a pessoa da cintura para cima, fora de plano encontra-se uma assistente que manuseia um vibrador. Por detrás tudo está escuro, e a fotografia opera sob um forte contraste preto e branco. Assim em cada vídeo somos levados a focar-nos completamente sobre a pessoa aí representada, não existindo dispersão com acessórios. Por outro lado o facto de se ter pedido às mulheres que assumissem o máximo de controlo da postura, impede que surjam imagens de pura lascívia que levaria toda a discussão em redor desta obra para outro campo. Aliás nesse sentido compare-se o que temos aqui com os cartazes de Nymphomaniac (2013) de Lars Von Trier.

Deixo-vos com a primeira sessão protagonizada por Stoya. Para ver as restantes e ler mais sobre a obra visite o site do trabalho.


"I hold out as long as I can. This section of the world that I’m inhabiting slows down, zooms in. Like a stretched rubber band it suddenly contracts, and I am lovingly punched with an orgasm…" Stoya


outubro 23, 2013

IA: "eles seremos nós"

Apenas um pequeno apontamento para deixar o último da série Shots of Awe em que Jason Silva entra pela discussão da problemática da Inteligência Artificial. Tenho a dizer que concordo com tudo o que ele aqui diz, porque é aquilo exatamente que já disse no primeiro post deste blog a propósito do filme Artificial Intelligence: AI (2001). Não há que ter medo, porque eles seremos nós.




"The human era we'll have ended, we'll have become our creations, they'll be our children, but they will be really us. There's no reason to fear this, this is just Evolution."

outubro 22, 2013

Entrevista com Nuno Plati, ilustrador da Marvel

Nuno Plati é mais um ilustrador nacional a obter reconhecimento internacional, trabalhando para empresas como a Marvel, a EA Games ou a Axis Animation. Frequentou Design Gráfico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e trabalhou entretanto como ilustrador no design de personagens, para storyboards, e livros de banda desenhada. Em 2012 desenvolveu para a Marvel a mini-série “Marvel Universe: Ultimate Spider-man” e foi aí que fiquei a conhecer o seu trabalho. Desde então tenho seguido o seu trabalho, através do deviantArt e do seu Plati's Blog, o que me levou a considerar lançar-lhe algumas questões aqui no Virtual Illusion.

Capa de "Amazing Spider-man Family" #8 (2009)

1 - Como é que se chega a ilustrador de um personagem principal da Marvel? De que depende mais? Tiveste de apresentar esboços ou fazer algum estágio?
:: Para se chegar à Marvel há várias maneiras. Podes apresentar o teu trabalho a editores indo a convenções, podes conseguir o contacto de algum editor e enviar-lhe um e-mail com um link para o teu trabalho, ou simplesmente ter uma presença forte na net em termos de portefólio, ou teres algum trabalho publicado que se destaque e que faça com que o editor te contacte a ti. Mas geralmente o processo mais habitual será apresentar o trabalho pessoalmente a um editor numa convenção, como mencionei anteriormente. Comecei a colaborar com a Marvel em 2007, 2008, e desde então tenho trabalhado esporadicamente com eles ao longo dos anos. No meu caso foi através da net e do meu portfolio online que comecei o contacto com Editores Marvel.

2 - Como é que funciona o processo, recebes um guião, desenhas as pranchas, pintas? E os balões?
:: Recebo o guião, que tem descrições painel a painel do que se passa na página, faço “roughs”, envio-os ao editor para aprovação, e a partir daí desenho sensivelmente uma prancha por dia, idealmente. Tive situações em que tive de desenhar mais do que uma por dia, mas também tive outras em que demorei 2 dois a desenhar algumas páginas. Até agora só tive um comic em que trabalhei pintado por outra pessoa. Não sou eu que faço os balões, é a Marvel.

Pranchas de "Marvel Universe: Ultimate Spider-man" #2 (2012)

3 - O que te dá mais gozo fazer em todo o processo e porquê?
:: Desenhar as páginas em si, talvez a fase do layout, que é onde defino o storytelling e o ritmo da prancha.

4 – E como é definido esse ritmo e storytelling?
:: Explicar o processo de construção de uma prancha é um pouco complicado, porque tem muito de intuitivo e subjectivo. Ou seja, se tiver uma prancha com 5 vinhetas e esta consistir de um diálogo entre uma mãe e um filho numa cozinha, a escolha dos ângulos da "câmara", e a abertura dos mesmos dependerá de cada desenhador. É claro que como é um diálogo, provavelmente a maioria dos shots serão os chamados "talking heads", planos próximos em que geralmente se estabelece um jogo de campo e contracampo, de pergunta e resposta, digamos assim. Mas se não tivermos estabelecido anteriormente a cozinha, provavelmente um dos shots será mais aberto, um establishing shot, que nos mostrará o "set" da cena. E como não se quer que os shots sejam demasiado repetitivos, (apesar de haver ocasiões, onde se quererá que eles sejam repetitivos, por culpa do ritmo do diálogo, por exemplo), provavelmente poderá haver um shot médio, em que se afasta a câmara e se mostram os dois protagonistas, possivelmente da cintura para cima, e por aí adiante, vamos shot a shot adaptando o que o guião quer ao nosso estilo e mesmo às nossas limitações artísticas, para tentar criar algo que nos satisfaça minimamente e sirva bem o guião e os personagens.

Prancha de "Alpha", #3, p.14 (Abril, 2013)

5 - Tens tido feedback à tua arte dos fãs? Tem sido bom, como é que lidas com isso?
:: Sempre tive bom feedback dos fãs, apesar de fazer a ressalva que sou "um nobody" no mundo dos comics. Ou seja, isso vale o que vale. É claro que como em tudo há quem goste do meu trabalho e há quem deteste. No caso particular da mini-série que fiz mais recentemente do Alpha, o infame "sidekick" do Spider-man, e devido ao "ódio" que havia relativamente ao personagem e às suas aparições anteriores, e provavelmente porque o meu trabalho não os agradou, tive um feedback particularmente negativo. Quando estava a meio da série e vi que havia muitos fãs que estavam a detestar o que estava ser feito fiquei bastante desmoralizado, porque honestamente acho que estava a fazer algum do meu melhor trabalho, e como tal deitou-me abaixo um pouco. No geral o feedback dos sites de comics e dos editores foi muito positivo, mas a raiva dos fanboys de vez em quando é um pouco avassaladora. E obviamente não têm em conta que se trabalhas sozinho, a desenhar 12 ou mais horas por dia, e lês criticas sem o mínimo de critério, ou sensibilidade, isso pode ser difícil de gerir.

6 - Desenhavas em miúdo, consideras um talento natural a arte de desenhar? Quantas horas desenhas por dia?
:: Desenho desde que me lembro, e frequentei a Faculdade de Belas Artes de Lisboa durante uns anos. Provavelmente há pessoas que terão um "dom" natural, não sei, mas falando por mim, apenas continuei a desenhar quando muitos dos meus amigos pararam. Quando tenho um comic para fazer desenho o dia todo, desde as nove da manhã até às 9, 10 da noite. Não desenho à noite, e tenho por norma não fazer directas.

7 - Já trabalhaste com a EA e a Axis Animation, trabalho similar, muito diferente? O tipo de exigência era o mesmo, que diferenças notaste?
:: Geralmente o trabalho ou envolve “character design” ou ilustrações relacionadas com a temática do jogo em si, como tal pode variar muito. Acabei de trabalhar num jogo dos X-Men em que basicamente tive de desenhar personagens em dois modos diferentes, um de acção, e outro em pose relaxada.

Cena de Marvel Girl #1 (2010)

8 - A Marvel é o topo da carreira de um ilustrador de BD? Gostarias de continuar a trabalhar para a Marvel ou tens outros sonhos relacionados com a área?
:: Não sei se é o topo. Num certo sentido, sim, porque no campo especifico dos comics americanos mainstream, trabalhar com a Marvel ou a DC é capaz de ser o topo, agora isso não quer dizer que seja onde farás o teu melhor trabalho.

9 -  Para terminar o que é o projecto Mia?
:: É um projecto “creator owned” com um amigo meu, o João Lemos, e que eventualmente verá a luz do dia.

Mia, Tales from the Lost Islands


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