outubro 15, 2013

memórias das luzes da noite

Viajando de carro no banco de trás, antes de fazer seis anos, fiz vários milhares de kilómetros entre Portugal e o centro da Europa, com os meus pais. Ainda hoje guardo memórias dessas viagens, não são imagens claras, são movimentos de luz, de luz alaranjada dos candeeiros da noite, que atravessava por entre reflexos, as janelas do carro. A entrada em Portugal era mais triste, porque nessa altura os candeeiros nacionais eram de luz branca, uma luz fria, que contrastava com o aconchego quente do laranja. De madrugada começava a entrar pelas janelas do carro o clarear, ainda azulado do início da alvorada, e eu abria os olhos, despertando com a sensação de estarmos mais perto do nosso destino.


Boulet, ilustrador francês, pegou também nas suas memórias de infância, e resolveu externalizá-las na obra "Our Toyota was Fantastic" (2013), através do formato de banda desenhada com movimento, ou motion-comic. O resultado é estrondoso, porque Boulet desenha todo o universo, e depois anima apenas a luz, dando uma maior vida e presença a essa mesma luz, destacando-a das nossas memórias. Pode-se dizer que este trabalho é um hino de nostalgia para muitos dos que tiveram estas experiências em pequenos.

Tecnicamente foi desenvolvido num formato bastante simples, o GIF animado, um formato que ganhou toda uma segunda vida recentemente com os cinemagraphs. Apesar disso o formato acabou por suscitar toda uma discussão com alguns colegas no Facebook, especialistas no campo das tecnologias digitais - Luis Frias, Pedro Monteiro e João Gonçalves - a propósito da sua razoabilidade técnica. Segundo o João, o GIF Animado apesar da atractividade retro e low-tech, não é propriamente aconselhável para uso em plataformas móveis. O que se confirmou depois de testar a leitura da prancha de BD em plataformas móveis. Nesse sentido seria antes aconselhável utilizar o PNG, um formato muito mais recente, com as mesmas capacidades do GIF mas muito mais optimizado. Fora os problemas técnicos, fica sempre aquela ideia de que apenas fazendo uso de simples tecnologias como os gifs animados, se podem criar obras com este poder evocativo, o que só por si é motivo de um enorme regozijo.


outubro 11, 2013

a Ciência por detrás da Arte

“The Art Instinct” de Denis Dutton é um livro de grande relevância, pela forma revolucionária como discute o complexo conceito de arte. Para dar uma ideia da extensão do interesse que este livro gerou, posso dizer que extraí doze páginas de excertos e notas do mesmo. O livro saiu em 2009, e apenas um ano depois, Denis Dutton deixava-nos, vítima de cancro, com apenas 66 anos.


Começando pelo título, Dutton assume que este é uma espécie de homenagem ao trabalho de Steven Pinker, e ao sua obra The Language Instinct (1994). As referências ao longo do livro a Pinker são muitas, diria quase na mesma proporção em que se cita Darwin. Por isso não é de estranhar que Pinker se apresente como um dos mais fervorosos adeptos da teorização da arte apresentada por Dutton, sendo citado na contracapa dizendo,
"This book marks out the future of the humanities - connecting aesthetics and criticism to an understanding of human nature from the cognitive and biological sciences."
Não posso deixar de estar em acordo com Pinker. O trabalho levado a cabo por Dutton é de uma relevância enorme, quando vivemos tempo complexos no seio das humanidades. Quando as humanidades lutam pela sua afirmação, e até manutenção no mundo académico. É chegado o tempo das humanidades avançarem e abraçarem o pensamento científico. Nada me tem incomodado mais ao longo da minha investigação científica, do que a frustração vivida com a impossibilidade de aproximar o discurso académico das artes ao discurso científico. Sempre acreditei, e temos aqui um trabalho que vem suportar esta ideia em toda a linha, que as artes, assim como as humanidades em geral, precisavam de se suportar num forte discurso científico. Que não era sustentável a simples ideia de se apresentar como uma abordagem diferente ao pensamento. Porque na verdade, um investigador, ou desenvolve ciência, ou limita-se ao discurso popular, sem necessidades de evidência, lógicas dedutiva ou indutiva, empirismo quantitativo ou qualitativo... Para quem estiver interessado nesta discussão de fundo sobre as Humanidades e a Ciência, aconselho vivamente o artigo "Science is not your Enemy" (2013) de Steven Pinker no New Republic.

Quando analisamos muito do trabalho académico nas artes, nomeadamente no estudos de cinema, fotografia, pintura ou videojogos o que vemos são meras discussões tópicas carregadas de subjetivismo, sem qualquer suporte de base científica que possa aferir o que se vai dizendo. A escrita académica nestas áreas, só se separa da escrita popular sobre os mesmos temas, na quantidade de texto e erudição apresentada. É verdade que alguns destes textos se destacam por apresentar pensamento, por digerirem ideias e assunções sobre o mundo em muito maior profundidade, e por vezes com um carácter profundamente pedagógico. Mas a sua validade deixa sempre muito a desejar, porque quase tudo se baseia no ínfimo ponto de vista, que é o de quem analisa, que se limita a apresentar a sua visão, e a dizer aos outros, ‘acreditem em mim, porque eu consigo ver o que os outros não conseguem’.

Foi exatamente contra isto que se moveram os estudos fílmicos nos últimos 20 anos, fartos de tanta diarreia mental e orgasmos em prosa. Um dos seus maiores impulsionadores, David Bordwell trouxe a psicologia e as ciências cognitivas para o estudo do cinema, e desde então estes nunca mais foram os mesmos. Hoje podemos estudar o cinema, analisar um filme, estudar a carreira de um realizador, seguindo abordagens e metodologias de base científica, apresentando evidências muito objectivas daquilo que queremos demonstrar na obra.

Ora Dutton vai neste livro muito mais longe que Bordwell. Dutton não se limita à psicologia tal como a discutimos hoje, mas arrisca a entrar numa das áreas da psicologia mais controversas das últimas duas décadas, a Psicologia Evolucionária. Este ramo da psicologia preocupa-se essencialmente em encontrar evidências que suportem os comportamentos humanos na biologia. Ou seja, estuda-se de que forma aquilo que somos mentalmente, é o resultado de adaptações ao longo do processo evolucionário, baseado na teorização da Selecção Natural e Sexual de Darwin. No fundo, começámos a perceber que tudo aquilo que somos é fruto de uma necessidade adaptativa ao mundo que nos rodeia, no sentido de garantir a nossa sobrevivência como espécie. Daí os instintos básicos de comer para manter vivo, de reproduzir para impedir a extinção da espécie, e das emoções que nos alertam para os perigos e dão cola aos laços sociais que são essenciais para uma espécie mamífera que só consegue sobreviver em grupo. O que se pensa é que todo o nosso comportamento instintivo foi moldado tendo por base estas necessidades. Mas porque é controversa esta abordagem?

Porque não pode demonstrar experimentalmente a evidência daquilo que afirma. Não podemos regressar ao tempo em que a espécie humana foi gerada, nem podemos mostrar com provas físicas os processos. Aliás, este problema é o mesmo de que padece a teoria da Selecção Natural, e por isso vai sendo atacada aqui e ali, nomeadamente por interesses mais ligados à religião. Apesar disso, esta abordagem da psicologia é respeitada por muitos de nós, porque apesar de não possuirmos evidência empírica, as teorias apresentadas são fruto de todo um raciocínio lógico de base dedutivo. Além disso, não se limitam a um mero exercício de dedução, estes exercícios são depois ainda validados em confronto com os casos inter-culturais. Ou seja, cada evidência de adaptatividade de comportamento humano na espécie é sempre confrontado com a universalidade do comportamento no planeta, para poder aferir se este tem uma base biológica ou não. Esta abordagem fica desde logo explícita na abertura do livro de Dutton quando este diz,
“The universality of art and artistic behaviors, their spontaneous appearance everywhere across the globe and through recorded human history, and the fact that in most cases they can be easily recognized as artistic across cultures suggest that they derive from a natural, innate source: a universal human psychology.”
Esta universalidade do fenómeno da arte na espécie humana, é algo a que Dutton dedica os primeiros dois capítulos. No primeiro começa por introduzir-nos à ideia do "gosto universal" através do estudo de Alexander Melamid, "Painting by Numbers". No segundo realiza uma colagem ao trabalho de Pinker sobre a linguagem, mas não se limita a colar os discursos, porque pega na linguagem como gramática instintiva e desenvolve-a para um sentido artístico instintivo. Depois Dutton dedica uma boa parte a encontrar também evidências desta universalidade no discurso de alguns dos maiores estetas da história, como Aristóteles e David Hume.

Mas é depois no capítulo seguinte (3) que vamos poder encontrar o cerne do livro. Depois de defender a universalidade do ímpeto criador artístico, Dutton lança-se na sua definição da arte, sem antes disso convocar e criticar as definições de grandes nomes da estética como Kant, Tolstoi e Clive Bell. Para dar resposta às suas críticas e objeções às definições da arte, Dutton apresenta uma definição pouco usual, mas provavelmente a mais completa que podemos encontrar. A sua definição é espartilhada por 12 critérios que permitem aferir se uma obra é arte, ou não é. Com isto procura tornar o discurso mais sustentado e objectivo possível. E como ele diz, o importante de qualquer definição filosófica de arte, não deve ser procurar responder às grandes obras, mais difíceis, esotéricas ou inqualificáveis (como os readymades de Duchamps ou o 4'33” de John Cage), mas antes se deve centrar sobre uma “abordagem que trate a arte como um campo de atividades, objetos e experiências que aparecem de forma natural na vida humana”. Dutton, defende claramente a arte de um ponto de vista naturalista, destituído de preâmbulos que procuram justificar o aparente inexplicável. Assim os 12 critérios apresentados por Dutton, são,
"1. Direct pleasure.The art object - narrative story, crafted artifact, or visual and aural performance - is valued as a source of immediate experiential pleasure in itself, and not essentially for its utility in producing something else that is either useful or pleasurable.

2. Skill and virtuosity.The making of the object or the performance requires and demonstrates the exercise of specialized skills. These skills learned in an apprentice tradition in some societies or in others picked up by anyone who finds that she or he “has a knack” for them.

3. Style.Objects and performances in all art forms are made in recognizable styles, according to rules of form, composition, or expression. Style provides a stable, predictable, “normal” background against which artists may create elements of novelty and expressive surprise.

4. Novelty and creativity.Art is valued, and praised, for its novelty, creativity, originality, and capacity to surprise its audience. Creativity includes both the attention-grabbing function of art (a major component its entertainment value) and the artist’s perhaps less jolting capacity explore the deeper possibilities of a medium or theme.

5. Criticism.Wherever artistic forms are found, they exist alongside some kind of critical language of judgment and appreciation, simple more likely, elaborate.

6. Representation.In widely varying degrees of naturalism, art objects, including sculptures, paintings, and oral and written narratives, and sometimes even music, represent or imitate real and imaginary of the world.

7. Special focus.Works of art and artistic performances tend to bracketed off from ordinary life, made a separate and dramatic focus experience.

8. Expressive individuality.The potential to express individual personality is generally latent in art practices, whether or not it is fully achieved. Where what counts as achievement in a productive activity is vague and open-ended, as in the arts, the demand expressive individuality seems inevitably to arise.

9. Emotional saturation.In varying degrees, the experience of works of art is shot through with emotion. 

10. Intellectual challenge. Works of art tend to be designed to utilize combined variety of human perceptual and intellectual capacities to the full extent; indeed, the best works stretch them beyond ordinary limits. 

11. Art traditions and institutions.Art objects and per for mances, as much in small-scale oral cultures as in literate civilizations, are created and to a degree given significance by their place in the history and traditions of their art.

12. Imaginative experience. Finally, and perhaps the most important characteristics on this list, objects of art essentially provide an imaginative experience for both producers and audiences. Kant insisted that a work of art is a “presentation” offered up to an imagination that appreciates it irrespective of the existence of a represented object: for Kant, works of art are imaginative objects subject to disinterested contemplation."
Ao longo do livro Dutton vai insistir na primazia do último critério. Porque para ele, a arte só pode existir enquanto capacitadora de experiências. Algo que não é alheio a um grande grupo de estetas, como Kant, mas como ainda esta semana tivemos oportunidade de ver numa frase que circulou na web, de Brian Eno, e que deixo aqui a imagem como referência:

“Stop thinking about art works as objects, and start thinking about them as triggers for experiences.” 
UPDATE: Esta frase foi originalmente proferida por Roy Ascott.

Mas Dutton não nos fala do mero prazer que a experiência reproduz em nós, das descargas de dopamina despejadas sobre os nossos neurónios que nos satisfazem a felicidade. Dutton afirma o valor da experiência, como um processo que se constrói, não como um mero momento resultante.
“The arts intensify experience, enhance it, extend it in time, and make it coherent. Even when they replace it, they do not jump to a pleasure-moment of the human organism and provide that as a surrogate everything else (..) Every great work of art is, like climbing a mountain, about specific process of experiencing it - it is not about inducing some momentary pleasure experience that results from experiencing it. Were the case, pills really would do the trick.”
Para suportar esta ideia de experiência imaginada, Dutton suporta grandemente a sua conceptualização nos mais recentes trabalhos que se têm desenvolvido à volta do storytelling, e dos estudos evolucionários sobre a importância deste para a nossa espécie. Neste sentido faz um resenha muito interessante do valor da ficção para o humano, que acaba suportando o valor da própria arte para a espécie.
"1. Stories provide low-cost, low-risk surrogate experience. They satisfy a need to experiment with answers to “what if?” questions that focus on the problems, threats, and opportunities life might have thrown before our ancestors, or might throw before us, both as individuals and as collectives. Fictions are preparations for life and its surprises.

2. Stories - whether overtly fictional, mythological, or representing real events - can be richly instructive sources of factual putatively factual) information. The didactic purpose of storytelling is diminished in literate cultures, but by providing vivid and memorable way of communicating information, likely had actual survival benefits in the Pleistocene.

3. Stories encourage us to explore the points of view, beliefs, and values of other human minds, inculcating potentially adaptive interpersonal and social capacities. They extend mind-reading capabilities that begin in infancy and come full flower in adult sociality. Stories provide regulation for behavior."
Mas o mais interessante, acaba sendo a forma como Dutton, seguindo Pinker, vai juntar à Selecção Natural de Darwin, uma das teorias mais contestadas de Darwin, a Selecção Sexual enunciada num dos seus últimos livros, “The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex” (1871). Darwin acreditava que a mente não passava de um ornamento sexual, no sentido em que ela vai sendo selecionada num processo evolutivo, através das suas capacidades para exercer charme, fascínio e sedução. Pinker também realiza este trabalho sobre a evolução do instinto da linguagem, percebendo a sua evolução como fruto de um processo de seleção sexual, em que o mais hábil e capaz no exercício da linguagem acaba sendo preferido para acasalar. Mas é Dutton quem acaba a dar uma espécie de remate final para a sustentação desta teorização, quando centra sobre este ponto as razões pelas quais a beleza remete constantemente para o opulento e para o desperdício,
“• Works of art will frequently be made of rare or expensive materials: silver and gold, clear jade, marble that is difficult to transport, jewels, fine hardwoods, unusual pigments, and rare dyes, such as the Tyrian purple of classical antiquity.

• Works of art should be very time-consuming to create. In that sense, they may demonstrate that the maker has leisure — conspicuous leisure — in a way that indirectly indicates that possesses wealth or status.

• Even if a work of art is quickly executed, the skills to make it should have been time-consuming or difficult to acquire. (skills are often manual, showing fine motor control or dexterity: “He’d painted every hair” or “She never missed a note.”)

• The created work of art may be more impressive if it is remote from any possible use. Expensive and useful can be very pleasant, but expensive and useless might well be much better.” 

• A sense of waste, and therefore handicap, can be emphasized channeling resources into work that is this fleeting: the perfect centerpiece for an expensive dinner party may be a poignantly lovely ice sculpture. Marble is fine, but ice can be even better from the standpoint of signal theory. 

• In addition to time, works of art will have required special intellectual or creative effort to create. The sheer brains and energy needed to produce Picasso’s or Wagner’s oeuvre is bound, the Pyramids, to impress us. “
Dutton não fecha esta abordagem sem antes aprofundar mais o tema e ir ainda mais longe na base de todo o processo para o qual contribui a selecção sexual, defendendo que no processo da arte, não está apenas em causa um contributo para o acasalamento e reprodução, mas acima de tudo um processo de comunhão, e de selecção do mais capaz, não apenas fisicamente mas também mentalmente.
“We find beautiful artifacts - carvings, poems, stories, arias - captivating because at a profound level we sense that they take us into the minds that made them. This sense of communion, even of intimacy, with other personalities may be erroneous - even systematically delusional - but the self-domestication of sexual selection was not about truth; it was about living the richer sociality that would carry on the human species and allow it to flourish. That too defines success, for the survival not just of the physically strongest but of the cleverest, wittiest, and wisest. If along the way this amazing process has given us Lascaux, Homer, Cervantes, Chopin, Stravinsky, and The Simpsons, as well as minds to appreciate and take pleasure in them, then so much the better."
Quase no final do livro Dutton volta ao tema, que é para mim muito caro, o da comunhão e comunicação, afirmando algo com o qual não poderia estar mais de acordo,
“Extending Darwin’s original suggestion, I believe that this intense interest in art as emotional expression derives from wanting to see through art into another human personality: it springs from a desire for knowledge of another person.”
A Arte é assim fruto de um processo evolutivo, que se originou lá atrás no processo de desenvolvimento da nossa espécie. A arte, tal como todas as outras tecnologias que fomos desenvolvendo, serve assim de elemento essencial na sobrevivência da espécie. A arte não é dispensável, a arte não é uma perda de tempo, a arte é um bem da humanidade, capaz de nos elevar mentalmente e levar aonde nenhum outro processo mental consegue. Aliás, não é por acaso, este mais recente interesse das academias de ciências pela arte. A necessidade de juntar a arte à tecnologia, revela que é na arte que reside a nossa capacidade para nos transcendermos intelectualmente.
We remain like our ancestors in admiring high skill and virtuosity. We find stylish personal expression arresting, well as the sheer wonder of seeing the creation of something new. Art’s imaginary worlds are still vivid in the theater of the mind, saturated with most affecting emotions, the focus of rapt attention, offering intellectual challenges that give pleasure in being mastered. And over all this, we still share with our ancestors a feeling of recognition and communion with other human beings through the medium of art.

Notas finais:
O livro apresenta ainda mais alguns pontos interessantes, mas que me parecem de algum modo colaterais ao centro da discussão. Apesar disso julgo que podem interessar a quem estuda cada um dos temas.
  • Autenticidade, e o falso na obra de arte. Este assunto é tratado em profundidade, porque pelo que percebi foi um dos assuntos em que Dutton investiu bastante do ponto de vista académico.
  • Análise do sentido do Olfacto. Um assunto muito interessante, nomeadamente para quem se move no campo do multimédia. Sinto que Dutton tem alguma razão na maior parte da sua argumentação sobre as impossibilidades estéticas dos aromas e cheiro. Nomeadamente quando compara este sentido aos demais, destacando a dificuldade em discernir escalas de valor, e em separar experiências.

Mais informação sobre o livro na página www.theartinstinct.com.

Para esta análise foi utilizada a edição da Oxford, mas entretanto o livro foi traduzido e lançado em Portugal pela Temas e Debates, sob o título "Arte e Instinto".

outubro 10, 2013

impressionismo poligonal

La Nuit de l'Ours (2011) foi apresentada já há três anos em Annecy, no Anima Mundi e na Monstra, mas como só agora a vi, aqui a trago para quem ainda não conhece. O filme foi criado num workshop de animação na Bélgica por três alunos - Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard.



Existem vários elementos a destacar neste filme, mas o que mais me tocou foi, sem dúvida, os cenários criados por Pascal Giraud em Photoshop. São absolutamente soberbos na forma como trabalham uma espécie de impressionismo no digital, no sentido em que constroem o esbatimento ou desfocagem do real a partir da manutenção de um aspecto poligonal das formas. Ao ponto de por vezes ficar a dúvida se o filme tem, ou não, alguma base 3d. Depois sobre a camada da forma escorre toda uma luz e um brilho que quase nos ofusca, e cria um deslumbre perante a atmosfera que se gera ali. Por outro lado este brilhantismo perde no lado dos personagens, que são claramente criados por um outro elemento do trio, e seguem uma outra estética, muito mais recortada e delineada.

A animação em si é bastante fluída, contribuindo com um ritmo pausado para a melancolia própria que o filme procura imprimir. A animação foi trabalhada no TVPaint, com algum suporte de After Effects, e ainda algum Cinema 4d para agilização das câmaras.

No campo narrativo, o filme apresenta um história forte, uma espécie de parábola sobre o confronto entre espécies, denotando os efeitos das diferenças e semelhanças, e os seus territórios.

La Nuit de l'Ours (2011) de Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard

outubro 09, 2013

como ser criativo

O último episódio da OffBook fala-nos sobre a criatividade, um tema que diga-se começa a apresentar alguma saturação. Ainda assim, e para quem trabalha na área, é importante estar atento ao que se vai dizendo, pois encontram-se se sempre pequenos apontamentos relevantes. Neste episódio procura-se definir a criatividade, e perceber o que torna um sujeito criativo.


Nas definições lançadas podemos encontrar atualidade nas afirmações realizadas que procuram desfazer alguns mitos como: a funcionalidade dos lados direito e esquerdo do cérebro; o artista excêntrico; ou ainda o das ideias surgirem de um ponto desconhecido no interior do nosso cérebro. A criatividade é complexa, mas não cai do céu, como nos diz Kirby Ferguson,
"Creativity is a very messy affair, this notion that its coming from nowhere, I think is false." Kirby Ferguson
Essencialmente ser criativo, implica um trabalho continuado de absorção do mundo que nos rodeia, em paralelo com uma constante motivação para fazer, transformar e modificar esse mesmo mundo.

outubro 08, 2013

Catherine (2011), pecados do storytelling interactivo

Tinha demasiadas expectativas em relação a Catherine (2011). Li vários textos que apontavam este videojogo como capaz de elevar o nível do estado da arte do storytelling interativo. As razões apresentadas para a inovação, tinham que ver com o facto da obra trabalhar questões do nosso foro íntimo, e através destas conseguir atingir níveis emocionais pouco usuais no storytelling interactivo. No entanto, e apesar de apresentar alguns pontos interessantes, a experiência acabou por se fechar numa desilusão.


Começando pelo melhor do jogo, a sua estética. Aqui o jogo é um autêntico sopro de frescura no panorama atual. Catherine aparece em várias listas como um dos jogos mais esquisitos de sempre, mas não concordo. O que Catherine faz, é tão simples como colar-se completamente ao manga e anime, elaborando todo o seu universo temático, tanto visual como em termos de história, a partir desses outros dois universos bastante conhecidos. Ou seja, o mundo de Catherine não é estranho por ser novo, pode dizer-se que é estranho por no ocidente estarmos pouco habituados à estética japonesa, nada mais.

Depois no campo narrativo, Catherine segue alguns dos cânones tradicionais da anime. História semi-adulta, com personagens nos 30 anos ainda a enfrentar a vida com muita ingenuidade, típico de quem está ainda a acordar para a vida. A relação amorosa apresentada, e o modo como é trabalhada encaixaria na perfeição no meio da maioria das séries anime do género. Depois o universo dos sonhos, ou pesadelos, apresenta a componente mais estranha mas que vai totalmente de encontro também ao chamado universo anime, que busca sempre a introdução de um qualquer elemento estranho que induza ao desconforto da familiaridade dos personagens, apesar disso, continuando sempre sob um tom bastante humorístico.

O pior vem mesmo quando chegamos ao chamado storytelling interactivo e à capacidade para entrosar história e jogo. Ao início sentimos que os pesadelos, ao serem apresentados sob a forma de um puzzle complexo (com a mesma mecânica de Boxxle (1989) mas em 3d) que temos de resolver para escapar ao pesadelo, fazem sentido. Cada vez que vamos dormir, entramos naquele mundo estranho cheio de decisões a tomar, e em que temos de escapar à pressão dos desafios e do tempo. Mas ao fim de algumas vezes, começamos a sentir o universo do sonho, ou de jogo, totalmente separado do universo de acordado, ou de história. Se conceptualmente a ideia é forte, no videojogo faltou engenho para dar vida à progressão do entrosamento. A meio do jogo já percebemos que tudo passa pelo jogo, e se queremos saber mais da história, temos de continuar a resolver puzzles, e que a única coisa que nos aguarda são mais puzzles, e cada vez mais complexos.

Acordado - História

A sonhar - Jogo

Esta falta que notamos na consequencialidade entre jogo e história, acaba por trespassar para o domínio do próprio storytelling interactivo. Catherine limita-se a fazer perguntas ao jogador, é verdade que sobre assuntos extremamente íntimos, mas não chega usar um tema impressivo. Precisamos de sentir que as questões, e as nossas respostas, estão também elas intimamente ligadas ao destino do jogo. Que tudo não passa de um mero questionário, com check-boxes, para que o algoritmo do jogo vá decidindo o caminho a seguir, vá escolhendo os trechos de animação a tocar de cada vez que respondemos a uma pergunta. E é isso que começamos a sentir, à medida que nos aproximamos do fim do jogo. Cheguei a sentir, que estava ligado naquelas linhas telefónicas de apoio à saúde, em que a pessoa que está do outro lado nos vai lendo um questionário, e nós vamos respondendo, e no final o computador emite um diagnóstico. Impessoalidade, foi o que acabei a sentir no final da experiência.

A uma determinada altura no videojogo começo a questionar-me sobre as respostas que vou dando. Será que devo responder aquilo que verdadeiramente sinto; será que devo responder aquilo que acredito que o jogo espera de mim; ou será que devo responder aquilo que quero que o jogo faça por mim? Como já falei aqui a propósito de The Last of Us, estamos já no reino do brincar, e não do jogar. Dou por mim a improvisar, a testar o sistema, a brincar com as ideias dos autores do jogo. E se inicialmente me dá algum gozo, ele esvai-se quando percebo que o algoritmo que regula as minhas respostas é demasiado retorcido, para eu conseguir fazer sentido dele, e por isso todas as minhas tentativas de jogar verdadeiramente com ele, saem goradas. Por isso desisto, e avanço respondendo ao que me é pedido, apenas com vontade de ver o final do jogo, de perceber o que me espera.

Mas aquilo que me espera, já não é aquilo por que eu anseio. Porque sei que aquilo que me aguarda no final do "meu" jogo, é apenas um dos múltiplos finais possíveis. Tudo o que investi no jogo, está longe de ter um sentido, de me oferecer uma visão do mundo, porque pretende apenas e só ir de encontro à minha visão pessoal do mundo. Ou seja, não me surpreende, não me emociona, porque não existe diferença suficiente entre o que eu sou, e aquilo que se me apresenta, não existe mundo novo a desbravar. E mesmo que o faça, sei que noutro final não o fará, se eu voltar a jogar e der respostas diferentes. O jogo cai então em pedaços, e transforma-se num brinquedo. Um brinquedo em que apenas interessa a interação constante, o processo de experimentar, e não o fim, o que ele tem para nos dizer, porque nada tem, não há verdadeiramente um objectivo, não há uma ideia que o autor tenha para nos comunicar.

Catherine apresenta 8 finais distintos (IGN)

Talvez este seja o maior pecado do storytelling interactivo, acreditar que por meio de bulas de questões pode gerar experiências personalizadas que dirão muito mais a cada um de nós. Quando na verdade aquilo que interessa ao receptor, não é a personalização, mas antes a crença num mundo ficcional, a empatia com os personagens desse mundo, e a ligação directa ao sentir do criador desse mundo...



Declaração de interesses: Joguei uma cópia do videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores ou editores do jogo.

outubro 07, 2013

a essência técnica

Finalmente Keloid foi lançado. Tinha aqui falado do teaser em 2011, esta semana a espanhola Big Lazy Robot publicou finalmente a curta terminada. Criada como modo de fugir às pressões comerciais, apresenta-se como o melhor cartão de visita que uma empresa de VFX pode apresentar.


Este é um daqueles trabalhos que fruímos pela sua essência técnica. Confesso que o teaser me tinha deixado com maiores expectativas e que três minutos eram manifestamente insuficientes para dar lastro a todas as ideias que pululavam no ecrã. Talvez por isso tenha revisto o filme duas vezes de seguida, para poder saborear mais deste trabalho assombroso.

Ao longo dos curtos três minutos sentimos o experimentalismo visual tocar o seu zénite. Foram dois anos de trabalho que a BLR condensou em técnica e arte. O visual e o movimento apresentam um ritmo por vezes cliché, mas é desse cliché que vemos sobressair a inovação. Keloid não depende da história, a narrativa é aqui mero adereço, porque a experimentação está apenas interessada em induzir um estado emocional no espectador, a alegria de presenciar uma obra visual tão perfeita quanto tecnicamente é hoje possível.

Keloid (2013) da Big Lazy Robot

outubro 04, 2013

Filmes de Setembro 2013

O cinema no mês de Setembro foi curto, mas valeu a pena. Dois belíssimos trabalhos de autores de quem não se espera nunca algo menor, Kiarostami e Malick. Um outro trabalho que me surpreendeu veio de  Bollywood. Udaan pertence a um restrito grupo de filmes da indústria indiana, que falam uma linguagem capaz de gerar empatia nos espectadores do ocidente. Na verdade se fosse um filme americano, o seu interesse seria muito mais reduzido. O que é relevante aqui é a forma como o filme nos permite entrar pela cultura da classe média da Índia adentro e ficar a conhecer modelos familiares e de educação muito distintos. Mais do que isso, que por mais que a cultura nos separe, as nossas emoções humanas continuarão a aproximar-se sempre muito. De resto duas desilusões, esperava muito mais de Le Capital de Costa-Gravas, um autor de que gosto particularmente. Le Capital é um filme interessante mas fica-se por isso mesmo. A desilusão mais gritante foi no entanto com Planes da Pixar. Uma manobra de marketing, sem conteúdo, sem força, sem ideias. Um trabalho 3d fraco a servir de fundo a uma história carregada de clichés piores que pastilha elástica mascada.

xxxx Like Someone in Love 2013 Abbas Kiarostami France

xxxx Udaan 2010 Vikramaditya Motwane India

xxxx Days Of Heaven 1978 Terrence Malick USA


xxx Le Capital 2013 Costa-Gravas France

xxx World War Z 2013 Marc Forster USA

xxx Confessions 2010 Tetsuya Nakashima Japan

xxx A Boy and His Dog 1975 L.Q. Jones USA


x Planes 2013 Klay Hall USA

outubro 03, 2013

os sonhos de Bergman

A Criterion Collection acaba de publicar no YouTube um ensaio audiovisual de Michael Koresky sobre a obra de Ingmar Bergman, intitulado "Bergman's Dreams" (2013). Como o próprio título indica, o documentário centra a sua análise sobre o modo como Bergman trabalhava a ideia de sonho nos seus filmes.


Na verdade, Bergman dizia que nenhuma outra arte conseguia capturar o sonho como o cinema. A sua capacidade para capturar sempre apenas uma fração da realidade, uma contínua ilusão sem qualquer ponta de realidade, levava-o a comparar o cinema com o sonho, e dizer que ambas as realidades eram impossíveis de suscitar confiança.

"we can't trust reality on film, anymore than we can trust in dreams"

outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.