Esta semana andei a reler
Informer n'est pas Communiquer (2009) de Dominique Wolton por causa de algumas reflexões que tenho andado a fazer sobre os conceitos de
copyright e
open access. Entretanto aproveitei para escrever algumas linhas como pequena síntese do livro. Sobre os conceitos que me trouxeram até ele, em breve publicarei aqui um texto sobre o assunto.
Dominique Wolton é um dos gurus internacionais das ciências da comunicação, destacando-se por tratar o tema da comunicação a partir de uma perspectiva optimista. Para Wolton o fundamento da comunicação assenta na criação de relação entre diferentes. Em
Pensar a Comunicação (1997) Wolton apresentava a sua teorização sobre o processo de comunicação em duas dimensões: a) o funcional, que se concretiza em meros processos de transmissão e difusão, em que a preocupação é apenas garantir a emissão e recepção; b) o normativo que se define por uma codificação da mensagem em função do meio e em função do receptor de modo a garantir a compreensão e compartilha. Ou seja, o funcional é aquilo que temos na grande maioria da comunicação tecnológica, em que existe uma emissão de informação e uma preocupação com a garantia dessa recepção. Já o normativo está preocupado em desenhar todo um processo capaz de garantir que a informação veiculada, não só chega ao outro, como é compreendida, e acima de tudo é partilhada também pelo outro.
Ora neste seu livro mais recente,
Informar não é Comunicar de 2009, apresenta uma divisão destas duas dimensões em dois processos distintos, os quais já não se colocam sob o chapéu da Comunicação. Embora Wolton não reconheça que o faz, e reconhecendo eu que estou a forçar os seus pressupostos, com o objetivo de simplificar a análise dos processos. Assim Wolton passa a definir a Comunicação Funcional como apenas Informação, e só a Comunicação Normativa como verdadeira Comunicação. Esta sua redefinição vem no sentido de acompanhar as transformações tecnológicas, que se têm vindo desenvolver a um ritmo galopante, conduzindo a uma aceleração dos processos de transmissão que superam largamente a capacidade de recepção humana. Nesse sentido todo o livro acaba por funcionar como uma crítica às evoluções operadas pelas tecnologias de comunicação, nomeadamente a internet, ou melhor, os modos informativos da internet.
Aliás esta é uma crítica que já vem detrás, e que começa no
Elogio do Público (1990) em que Wolton discutia a problemática da segmentação dos canais de televisão, no sentido em que a perda de discussão de diversidade, diminuia as pontes de contacto, promovendo a guetização cultural da sociedade, conduzindo à incomunicação, criando a desconfiança e a violência. Por sua vez a internet é um ainda maior exacerbamento de toda esta individualização, provocando uma destruição dos laços entre as pessoas. Um pensamento em toda a linha seguido por Sherry Turkle no seu livro
Alone Together: Why We Expect More from Technology and Less from Each Other (2012). Para Wolton o processo de comunicação é algo muito sensível, frágil, e em negociação permanente, ao contrário da informação que para além de poder ser à prova da tecnologia, é capaz de evoluir ao seu ritmo. Como diz Wolton logo no início do livro, "
nós sonhámos com a Aldeia Global, e agora redescobrimos a Torre de Babel" (2009:17).
Em vez da simplicidade e facilidade de comunicar prometida pela Aldeia Global, encontrámos a complexidade e a confusão da Torre de Babel.
Ao criar uma discussão permanente 'todos para todos', assume-se um carácter profundamente funcional, já que na impossibilidade da partilha se assume como denominador a transmissão da informação. Além disso, todos assumem a posição de emissor, enquanto o papel de receptor praticamente desaparece, pondo fim à partilha e compreensão. Wolton diz,
"onde estão os lugares e espaços de legitimação quando todo o mundo intervém?". Porque sem a legitimação, passamos mais tempo a tentar verificar a veracidade da informação que nos chega do que a tentar compreender o seu significado. E eu digo mesmo, não só passamos mais tempo a confirmar, como passamos mais tempo a "descascar" a informação para a conseguir compreender. Este é o grande problema de dar a todos a mesma legitimidade de falar sobre assuntos sem distinção. Daí a velha noção da comunicação social de basear as suas fontes em especialistas, algo que tem vindo a ser distorcido com o tempo.
Quando temos comentadores que falam sobre todo e qualquer assunto, sabemos de antemão, que o que nos está a ser oferecido, não tem como intenção informar, menos ainda comunicar, mas apenas e só entreter. A situação atual do excessivo número de comentadores políticos em televisões nacionais é em Portugal já um clássico, claramente que estes emissores não estão ali para informar, mas apenas e só para entreter. Porque a função de um político é tomar decisões informadas, não emitir pareceres ou opiniões, para isso existem os especialistas e técnicos de cada área. Como os espectadores não estão interessadas em especialidade política, os contornos dos processos de decisão, eles falam de tudo e de nada. É para isso que as cadeias de televisão os contratam, para servirem de entertainers.
Em 2013 o número de comentadores políticos com espaço próprio na TV atingiu proporções que não se conhecem em mais nenhum país. Os políticos portugueses, deixaram de agir e tomar decisões, para estar ao serviço do entretenimento.
Aliás isto é fruto de uma ideologia que evoluiu com a internet mas não só, a ideia de que o que conta é o que a pessoa diz, e não a sua formação ou origem, é uma tentativa clara de deturpação do processo de comunicação.
Porque se não tenho nenhuma forma de legitimar a origem da informação, como é que atribuo valor ao que é dito por ela? A alternativa seria verificar tudo o que ela diz, mas para isso não me adianta perder tempo a ouvi-la, já que terei de confirmar eu próprio a informação. Ou seja, temos um problema de desdobramento de emissores por um lado, em que todos falam para todos, e ao mesmo tempo um problema de concentração sobre os emissores, em que todos falam de tudo. Os dois processos conduzem a uma perda de qualidade da informação, ou seja a uma deterioração da comunicação.
Surgiu um comentador na televisão portuguesa em 2012 que legitimava aquilo que dizia com o "facto" de ser coordenador de um observatório de economia das Nações Unidas, e ainda como consultor do Banco Mundial, doutorado e docente numa universidade americana. Descobriu-se mais tarde que tudo o que o legitimava não existia. Com isto esvaziou-se o discurso, pois deixou de ser credível, já que aquilo que dizia, careceria de ser tudo confirmado, para aferir da veracidade. Ou seja, deixou se ser relevante ser ouvido, naquelas matérias em particular, em que se pretendia fazer ouvir.
Wolton define o processo geral da comunicação como sendo constituído por três componentes: o tecnológico, que diz respeito aos aspectos instrumentais da transmissão; o económico, ligado às técnicas de trocas de mensagens; e o cultural, que se refere ao espaço simbólico da comunicação. O tecnológico e o económico pertencem ao domínio do acto de informar, que por seu lado não revela preocupações de âmbito simbólico ou cultural, já que isso é relegado para a dimensão do processo de comunicação.
Enquanto no processo de informar o Receptor é algo menor, no processo de comunicação o Receptor torna-se "protagonista ao negociar, filtrar, hierarquizar, recusar ou aceitar as mensagens recebidas". Contudo isto não deve ser visto, e mais ainda em tempos de interactividade, como uma troca de papéis entre emissor/autor e receptor. Wolton frisa muito claramente que “o reconhecimento da alteridade no esquema da comunicação, só o poderá ser com a condição de não se tornar na referência última. O receptor pode tornar-se tirânico. Entre a alteridade e o imperialismo, as margens são muito estreitas (..)
sobrevalorizar o receptor pode implicar tanta tirania como tê-lo ‘ignorado’ em excesso” (2009:121). É isto que acaba por acontecer quando não se aceita a legitimidade de quem emite, em que as ações cognitivas do receptor passam da compreensão, à confirmação e questionação, e daí para a emissão, transformando a comunicação um-todos ou poucos-todos, num processo todos-todos. Isto é algo que tem vindo a afectar muito particularmente a indústria dos videojogos, leia-se
Controlling creativity: Eight developers discuss the dilemma of interactive art (2013).
Mass Effect 3 (2012), o final do jogo gerou tanta pressão por parte dos receptores, que os criadores se viram obrigados a criar um novo final para satisfazer os seus receptores. Ou seja, foi colocado em causa a legitimidade dos criadores, e o processo de comunicação foi corrompido.
Neste sentido Wolton critica o tecnicismo, a ideologia que acredita que a essência do processo de comunicação assenta na tecnologia e nas suas economias. Um pouco como o médico que se foca na doença e no seu tratamento, esquecendo o ser humano que se encontra à sua frente. Assim fugir ao tecnicismo é vital para se poder providenciar uma comunicação efectiva, em que o centro não seja o processo de transmissão, mas o receptor. Deste modo torna-se algo irrelevante os avanços técnicos da tecnologia nos domínios da velocidade ou multiplicidade de acessos, já que estes avanços não podem mudar o tempo que os homens precisam para se compreender mutuamente.
Neste sentido a evolução tecnológica acaba por acentuar os processos de incomunicação, uma vez que o nosso cérebro não os consegue acompanhar. Daí que a informação em directo, ou as grandes ideias de 'democracia directa' percam validade, uma vez que não é pelo simples facto de ganhar acesso à informação que consigo ter tempo e capacidade para a 'digerir'. O problema é mesmo maior do que a velocidade e a quantidade de informação, já que para além de não se conseguir responder à velocidade exigida ou à quantidade apresentada, teremos sempre ainda a falta do conhecimento necessário para interpretar toda a informação, isto porque não nos poderemos especializar em tudo. Como dizia Gustavo Reis na sua palestra
TEDxUnisinos 2012,
"The infinite information that is offered by search engines, translates into zero knowledge.
If there is no selection of relevant information and the creation of links between the relevant parts of that information, the infinite information tends to zero knowledge."
Ou seja, se aquilo que é comunicado é-o feito de modo meramente funcional, ou informativo, então fica de lado a hipótese do receptor poder agir sobre essa informação. Liquida-se o processo de comunicação, apesar da informação continuar a ser transmitida.
Neste sentido, o intermediário – jornalista, professor, editor, curador, académico, etc. – continua a ser fundamental para triar, hierarquizar, verificar, comentar, legitimar, eliminar e criticar a informação de modo a guiar o receptor.
“Estas profissões intermediárias são indispensáveis para relativizar a ilusão de um mundo transparente, no qual cada um seria um ‘actor multiconectado’. Recordam-nos o papel dos conhecimentos que se devem transmitir. Existem competências específicas que justificam a transmissão” (2009:121). Neste sentido o intermediário terá maior ou menor capacidade para legitimar, quanto maior for o seu “capital simbólico” (Bourdieu), aquilo que permite ao receptor definir as hierarquias de credibilidade dos intervenientes na comunicação. Ou seja, não é indiferente para o receptor, a fonte que emite, o seu reconhecimento confere um determinado grau de credibilidade que facilita e incrementa a verdadeira ação de comunicação, ou seja de compreensão e compartilha.
No essencial esta obra resume o acto de comunicar como um ato de partilha, de sedução e de persuasão, mas como diz Wolton, “o desafio está menos no acto de partilhar o que é comum, e mais no facto de aprender a gerir as diferenças que nos separam” (2009:11). Wolton baseia todo o seu discurso no pressuposto antropológico da “alteridade”, que nos diz que todo o homem social interage e é interdependente do outro. Assim a comunicação tem como referente "a busca do outro e da relação", sendo um processo frágil, em negociação e legitimação constante.