novembro 25, 2012

teoria da relatividade em jogo

A Slower Speed of Light não se assume como um serious game mas bem podia. Slower é um pequeno jogo desenvolvido por uma equipa do MIT Game Lab, em Unity, que pretende transformar conceitos de física complexos em simples simulações visuais e interactivas de modo a permitir a fácil apreensão por parte de leigos.


Através de um modelo de simples simulação na primeira pessoa do espaço tridimensional, e socorrendo-se de um gameplay básico que passa por encontrar esferas espalhadas pelo mundo, somos levados a experienciar, no tempo e em função das esferas encontradas, cinco distintos conceitos da física sobre a relatividade, a saber:
"the Doppler effect (red- and blue-shifting of visible light, and the shifting of infrared and ultraviolet light into the visible spectrum); the searchlight effect (increased brightness in the direction of travel); time dilation (differences in the perceived passage of time from the player and the outside world); Lorentz transformation (warping of space at near-light speeds); and the runtime effect (the ability to see objects as they were in the past, due to the travel time of light)"



À entrada do jogo existe um alerta de saúde que deve ser levado em consideração. Posso dizer da minha experiência, que durou sete minutos, nos quais cheguei quase ao meu limite de mau-estar. O principal problema é a variação de cores que ocorre quando andamos (para evitar o mau-estar podemos desligar a saturação nas opções do jogo). À medida que vamos apanhando as esferas a velocidade da luz vai-se reduzindo, vamos começando a ver o mundo a velocidades mais elevadas, saindo da área da luz visível para o campo dos infravermelhos e ultravioletas. Mas o melhor está reservado para o final do jogo, depois de conseguirmos capturar todas as esferas, os efeitos da luz são desligados e passamos a percepcionar o espaço como um contínuo espaço-tempo, em que os objectos assumem distorções causadas pela velocidade próxima da luz a que viajamos pelo espaço.


A Slower Speed of Light tem tudo para impulsionar a aprendizagem dos conceitos da Teoria da Relatividade no ensino secundário. Embora os físicos considerem a teoria de fácil assimilação, não o é, e por isso mesmo se tem mantido de fora do ensino pré-universitário. Mas com um jogo deste tipo, enquadrado e complementado pelo professor, acredito que o nível de abstracção que era exigido até agora baixa imenso facilitando o acesso aos alunos destes níveis de ensino.

Entrevistas com os autores e trailer

Link para fazer download e jogar (PC e Mac).

novembro 24, 2012

Brandon Generator, animação interactiva online

The Random Adventures of Brandon Generator (2012) é um trabalho de ficção colaborativa produzido pela Microsoft para promover o Internet Explorer 9 e o HTML5. A Microsoft juntou talentos incontornáveis em várias áreas, Edgar Wright na escrita, Tommy Lee Edwards na ilustração, Scott Benson na animação, Julian Barratt na narração e David Holmes na música e criaram um artefacto online memorável.


É difícil definir exactamente o que é Brandon Generator. Wright define-o como um "crowd sourced animated film", enquanto Tommy o define como "interactive online animated graphic story". Julgo que ambas as designações estão correctas. Em termos de trabalho audiovisual temos uma animação com sabor a motion comics, mas mais elaborada do que isso. Ao contrário dos motion comics, em que o trabalho provém de ilustração previamente impressa, aqui tudo foi desenvolvido para este formato final. Como diz Tommy o objectivo passou por "elevar o modo como as histórias são contadas online".


O que posso dizer é que esse objectivo foi conseguido em toda a linha, nomeadamente no campo estético. A ilustração de Tommy com toque Marvel é de todos o que mais se evidência, e controla grande parte da nossa relação com o artefacto, por outro lado a animação simples de Benson cria um ritmo específico para o universo narrativo que é depois fortemente suportada pela belíssima narração de Barrat e a música de Holmes. Ou seja, se o artefacto funciona é porque nada foi deixado ao acaso, a Microsoft não se ficou pela simples vontade de criar um trabalho demonstrativo da tecnologia, mas quis investir na criação de algo capaz de ficar na história da ficção online.


No campo interactivo, apesar de existirem algumas interacções possíveis com cada episódio, a interatividade joga-se quase toda no plano da comunicação assíncrona com a ficção. Ou seja, no final de cada episódio os espectadores eram convidados a participar, escrevendo trechos de continuidade para o episódio seguinte, desenhando elementos para fazerem parte do universo gráfico, ou deixando mensagens telefónicas para o personagem principal que depois poderiam entrar na banda sonora do episódio seguinte. Tudo isto era depois assimilado pelos criativos para fazer evoluir a história e a animação no sentido da participação deixada pelos milhares de espectadores. Consequentemente os espectadores sentem-se envolvidos na narrativa, a sua participação origina consequências reais sobre a narrativa. A participação contrói-se a partir de uma parceria real entre os criadores e os receptores, colocando-os num plano horizontal criativo, elevando fortemente o envolvimento de todos.





Imagens que mostram arte produzida pelos participantes, e na última imagem os nomes dos vários contribuintes só do episódio 3.

A história de Brandon Generator anda à volta do bloqueio criativo o qual leva um escritor a desmaiar de cansaço, quando este acorda descobre que todo o trabalho foi feito enquanto esteve inconsciente. E aqui começam as interrogações, quem terá feito as misteriosas contribuições, quem terá deixado as mensagens no gravador, quem terá desenhado no seu caderno de notas. A narrativa está brilhantemente desenhada no sentido em que a interacção do espectador está em sintonia total com o conteúdo da história, permitindo que cada elemento narrativo que nós acrescentamos enquanto espectadores possa fazer parte daquele universo sem propriamente o distorcer ou corromper. Wright conseguiu assim criar, nas suas palavras "an internet head trip where the users become co-writers, where they can help Brandon or punish him". Na minha interacção com o trabalho aconteceu algo interessante que me levantou algumas questões, sobre tudo isto. No final do ep1 deixei uma contribuição escrita para uma potencial continuação que não se revelaria muito distante daquilo que depois vi acontecer, em traços muito genéricos é claro. Aqui fica o escrevi,
"One day, the lack of coffee, made Brandon go out, in search for a coffee shop. In the walking he found a beautiful a girl. They took a coffee together, they laughed, and then he disappeared... "
Esta imagem aparece apenas no Episódio 3

Esta pouca diferença, levou-me a questionar sobre o poder do escritor e criadores para nos sugestionarem. Ou seja, até que ponto a nossa participação é de algum modo fortemente condicionada por aquilo que acabamos de ver. Somos enredados pela atmosfera, pelo personagem, e talvez dada a qualidade da imersão narrativa criada pelo trabalho somos como que conduzidos para um determinado universo ficcional do qual dificilmente nos conseguimos desprender. Continuamos a ter liberdade, mas somos sugestionados a pensar a dentro de um determinado quadro de convenções, o que homogeneíza os discursos!


Em termos de desenvolvimento, o trabalho web foi desenvolvido pela LBi, e no site de making of é possível obter mais informação técnica sobre o HTML5, CSS3 e Js usado. Mais interessante de tudo é a afirmação de Tommy a propósito de tudo isto quando ele diz "This whole thing would not exist without the internet." e suporta a afirmação referindo,
"Not only is Brandon Generator co-created by the online community's input, the whole process of creating the finished project is quite virtual. I live in rural North Carolina, where I storyboard, illustrate, design, and direct the animation for Brandon Generator. My CG modeling team (Don Cameron & Daryl Bartley) are in Los Angeles. Scott Benson handles all the animation and composite After Effects work up in Pittsburg. But through using skype, our smart phones, email, and various file-sharing methods, the four of us work hand-in-hand to create a seven or eight minute animated film. Edgar spends most of his time between Los Angeles and London. Same with composer David Holmes I think. Al the sound guy is British, but I'm actually not sure where he is at the moment. LBi builds the Brandon Generator website and handles all the tech from London. It's quite the little global effort." [link]
Impressiona. O mundo é cada vez mais global porque existe uma rede electrónica que suporta e mantém uma comunicação humana em modo contínuo. E daí que nos vejamos confrontados com a necessidade de repensar os modelos narrativos que temos, repensar não apenas os modelos de produção, mas também os modelos criativos. Não que eu acredite que estes possam transformar-se nos modelos dominantes. Como ainda há pouco tempo aqui referia num estudo de Zac, estamos muito formatados pelo modelo linear de contar histórias. Mas o que Brandon Generator nos mostra, é que a participação assíncrona pode ser um caminho muito interessante a explorar no storytelling interactivo (não que seja uma total novidade, mas está muito bem feito), porque mantemos a estrutura linear tradicional, adicionando uma camada participativa não disruptiva dessa linearidade.

Trailer do primeiro episódio

Experienciem The Random Adventures of Brando Generator, depois percam-se na página do making of.

análise de videojogos

Michael Abbot do blog Brainy Gamer levantou recentemente uma discussão muito interessante à volta do modo como jornalisticamente se analisam, discutem e descrevem os videojogos, nomeadamente os mais recentes exemplos experimentais como Journey, Unfinished Swan e Papo & Yo. Realizou uma análise das palavras utilizadas nas várias críticas, e chegou à conclusão que o vocabulário utilizado é muito homogéneo e que descreve de forma muito genérica este género de jogos.

Nuvem de palavras utilizadas nas críticas ao jogo Journey

Nesse sentido resolvi analisar este assunto a partir de duas abordagens distintas: o quadro de análise e o medium de análise. Esta análise foi publicada na Eurogamer com o título, Crítica de Videojogos. Texto, Media e Experimentalismo.

novembro 19, 2012

Randobot, novo jogo e entrevista

Randobot (2012) é o ultimo jogo de Vasco Freitas, um dos mais interessantes game designers nacionais, que nos trouxe Farmer Jane (2008), G-Switch (2010) e Freeway Fury 2 (2011). Desta vez o Vasco criou um jogo que me parece ser mais interessante para análise do que propriamente para jogar. Um jogo que não sendo cerebral acaba funcionando como uma metanálise dos fundamentos de jogo e do gameplay de plataformas.


Conceptualmente a história do jogo é em si muito interessante porque serve de metáfora à própria grande indústria de videojogos. O engenheiro é pressionado pelo produtor a enviar para fabrico um robô que ainda não está terminado nem completamente operacional. O engenheiro estabelece como meta a possibilidade de poder ir fazendo updates ao sistema antes que o robô seja completamente colocado no mercado. Tal como os jogos nos chegam e por vezes não respondem como deveriam, tendo nós de ir aplicando patch atrás de patch. Quando assumimos o controlo do robô percebemos claramente que este tem falhas, e são essas as falhas que acabam por servir de essência ao gameplay do jogo. O movimento à esquerda ou à direita tem apenas 80% de hipóteses de bom funcionamento, o de salto apenas 55%, e os restantes tiro, andar agachado estão inactivos. As falhas surgem de modo random, daí o titulo do jogo Randobot. Precisamos de atingir os objectivos em cada nível para ir reparando o nosso robô por forma a que este funcione de modo menos aleatório.


O interesse do jogo surge exatamente aí, quando mesmo tendo 80% da funcionalidade dos movimentos esq/dir percebemos o quão fragilizada fica a nossa capacidade de agir sobre o gameplay. Sabemos o que temos de fazer, mas não sabemos se o nosso robô vai reagir no exato momento em que vamos precisar dele, e isso coloca uma tensão ainda maior sobre nós. Isso frustra as nossas expectativas quanto ao domínio da lógica do jogo, é como se o gameplay do jogo se tivesse especializado em tirar-nos o tapete. O random é algo problemático para quem joga videojogos, porque nos habituamos a estudar padrões, analisamos e voltamos a analisar, até conseguir detectar o padrão. Uma vez feito este trabalho passamos a dominar o jogo, e o prazer apodera-se de nós. Mas aqui isso não acontece, não conseguimos dominar o padrão, porque ele não existe, é totalmente aleatório, o que gera grandes doses de frustração. Nesse sentido pedi ao Vasco que nos respondesse a algumas questões,


- Qual é a história por detrás do jogo, como surgiu a ideia do engenheiro e do robô?
:: Estava a jogar um jogo em que as teclas por vezes não funcionavam, devido a um bug. E então pensei se teria piada um jogo em que o mau funcionamento das teclas fizesse mesmo parte do jogo. À primeira vista parecia uma ideia louca (o que me agrada!), destinada a "falhar", mas pensei que se fosse bem executada poderia funcionar...

Imaginei que a aleatoriedade pudesse ser um tipo de gameplay interessante para explorar, devido ao jogador ter de medir o risco das suas decisões e ter sempre em atenção que algo pode deixar de funcionar como esperado de um momento para o outro. Achei simplesmente piada à ideia do jogador nunca saber se um salto vai funcionar, e ter que se precaver para o caso de não funcionar. O tipo de estratégia e processo mental envolvido seria bem diferente do habitual.


Inicialmente o jogo era para ser mais simples, só mesmo para experimentar, mas depois, como costume, tive vontade de ir acrescentando mais coisas. A ideia do engenheiro e robô veio mais tarde, servindo para justificar o facto das teclas por vezes não funcionarem, e como história, o que acabou por também ser uma parte importante do jogo.


- Qual o objectivo por detrás de um gameplay aleatório?
:: Neste caso não houve um objectivo em particular, apenas segui o impulso de experimentar a ideia. Falando de "gameplays aleatórios" em geral, eles existem em quase todos os jogos, e podem servir vários propósitos (tornar o jogo mais interessante, variado, imprevisível, pseudo-realista, etc). Jogos de cartas ou de dados, por exemplo, são um bom exemplo em que a aleatoriedade é parte fundamental do jogo.

- O que pretendias testar? Atingiste a ideia que tinhas?
:: Não pretendi testar nada em particular, apenas concretizar a ideia e ver os resultados. Achei que valia a pena fazer o jogo, já que não existia nada semelhante. Penso que atingi a ideia que tinha, sim, no sentido em que concretizei a minha visão inicial.

- Como te parece que as pessoas estão a responder a essa aleatoridade no gameplay? O que lhes podes dizer em relação à sua frustração?
:: Achei as reacções das pessoas muito interessantes. Alguns dizem ter adorado o jogo do princípio ao fim, enquanto que outros acharam demasiado frustrante. Alguns acharam a ideia interessante, inovadora, e bem executada, enquanto que outros acharam que isto nunca se devia fazer. Sinto que as opiniões dividiram-se muito nos extremos, e é sempre interessante quando isso acontece.

A frustração que sentem é muito dependente do jogador, e para dizer a verdade nem estava à espera que essa fosse uma reacção tão comum, já que as pessoas a quem mostrei o jogo antes de lançar nem acharam muito frustrante. Não tenho muito a dizer a quem tenha achado frustrante, a não ser que podem sempre voltar a tentar noutro dia, e que acho que vale a pena jogar até ao fim, nem que seja para ver como a história acaba :)

Jogar Randobot.

novembro 18, 2012

Face de Spielberg, uma marca autoral

A propósito dos supercuts encontrei um vídeo-ensaio excepcional, criado por Kevin B. Lee, sobre aquilo que este considera ser uma marca autoral em Steven Spielberg, o "grande plano da cara de olhos bem abertos". Lee baseou este supercut/ensaio num trabalho apenas fotográfico de Matt Patches, The Spielberg Face: A Legacy.


O close-up facial é uma realidade que se tem acentuado imensamente nos últimos anos no cinema, nomeadamente no cinema de Hollywood em busca da estimulação de emoções fortes nos seus espectadores. Daí que o uso da cara seja uma obrigatoriedade, já que é através dela que grande parte da emocionalidade é transferida para o espectador. Desde as questões de mímica e de contágio emocional à simulação do sentir do outro, até à sincronia da linguagem verbal, todos os indicadores sobre o funcionamento do ser humano social indicam que nos agarramos desesperadamente aos sinais expressivos do outro para compreender o mundo que nos rodeia.


A face acaba por ser de todos os elementos do corpo, o mais rico em sinais expressivos, porque o mais provido de variedade muscular e consequentemente de potencial gramatical para a germinação conceptual de emoção. Para quem quiser aprofundar o estudo da face aconselho o Paul Ekman, estudioso da face nos últimos 40 anos. Ou um acesso mais simples, o brilhante documentário da BBC, The Human Face (2001), apresentado por John Cleese.




Neste pequeno trecho de Kevin B. Lee, somos levados por um passeio através de um supercut à volta das expressões faciais realizadas nos filmes de Spielberg ao longo dos últimos 40 anos e com dezenas de diferentes actores. Lee discute e fundamenta muito bem o fenómeno da Face de Spielberg, como marca de autor, mostrando plano atrás de plano de faces de personagens com os olhos bem abertos, em grande plano e com movimento de aproximação sobre dolly. Todas estas imagens, se convertem numa face única, a Face de Spielberg, que quer transmitir a ideia de que algo monumental, maravilhoso e épico está a acontecer em frente ao nosso personagem, e logo em frente a nós. Diria que a Face de Spielberg, é a face do verdadeiro Sonhador.

If there is one recurring image that defines the cinema of Steven Spielberg, it is The Spielberg Face. Eyes open, staring in wordless wonder in a moment where time stands still. But above all, a child-like surrender in the act of watching, both theirs and ours. It’s as if their total submission to what they are seeing mirrors our own.

The face tells us that a monumental event is happening; in doing so, it also tells us how we should feel. If Spielberg deserves to be called a master of audience manipulation, then this is his signature stroke. You can’t think of the most iconic moments in Spielberg’s cinema without The Spielberg Face.
Esta análise em vídeo, e como já tinha dito no texto anterior sobre os supercuts, demonstra muito claramente a enorme vantagem de analisar um filme com recurso à sua própria linguagem. Mesmo quando analisamos o texto de Matt Patches, que é muito próximo daquilo que aqui discutimos, como o conteúdo é apresentado apenas por meio de imagem estática, não podemos ganhar uma noção completa da marca autoral de Spielberg. Perde-se o movimento, o que neste caso é essencial dada a aplicação do movimento da dolly que contém em si mesmo uma enorme intensificação da expressividade do objecto.

Keyframe: The Spielberg Face (2012) de Kevin B. Lee

Supercuts

Os supercuts (montagem acelerada de pequenos trechos audiovisuais que procura isolar elementos visuais ou sonoros de forma encadeada) massificaram-se com a distribuição facilitada pela internet, mas foi um processo que se iniciou com o processo de digitalização do cinema, que veio criar novos meios de acesso aos artefactos fílmicos. A facilidade com que hoje podemos aceder a dezenas de filmes, e rapidamente podemos cortar, colar, comparar, integrar, reinterpretar mudou radicalmente o modo como podemos atuar sobre a imagem em movimento. Além disto o conhecimento colectivo gerado pela rede facilita o processo de busca, identificação, e recordação. Assim como facilita os processos colaborativos de discussão e partilha dos trechos a trabalhar.


Tendo em conta a enorme quantidade de supercuts que foram aparecendo nos últimos anos, podemos dividir os mesmos em dois grandes tipos,  os informativos / educativos e os de forma / entretenimento. Sobre os segundos pode-se encontrar muita coisa no sítio supercuts.org, tal como The End, Apocalipse, Twin Towers. Sobre os primeiros discutirei agora em maior detalhe.

Supercut do IMDB Top 250

Alguns criadores têm surgido e têm captado a nossa atenção, não apenas pela minúcia e qualidade técnica do seu trabalho, mas também pelo lado conceptual do mesmo. De um lado temos supercuts informativos como aqueles que é hábito aparecerem no final de cada ano, que resumem em 5 ou 6 minutos um ano inteiro de cinema ou o recente exemplo do IMDB Top 250. No campo mais educativo temos trabalhos de muito maior alcance, como são os supercuts criados por Kogonada, que trabalham sobre um determinado aspecto estético cinematográfico, e o colocam em evidência, levando-nos a ver para além da mera crítica textual, realizando um trabalho verdadeiramente pedagógico. Kogonada é um ex-estudante de doutoramento, na área de estudos fílmicos mais em concreto sobre Yasujiro Ozu, mas que decidiu abandonar para se dedicar a fazer os seus próprios filmes. Numa entrevista dada ao Creators Project, Kogonada refere que aquilo que busca nos seus trechos, são as marcas autorais de cada criador,
Well, I’ve been a cinéphile for some time, and I still believe in the auteur. So I’ve noted tendencies in certain filmmakers for a while. The truth is, there are not a lot of filmmakers, certainly in the US, that have a particular aesthetic. I own a lot of the works from directors that, I think, have a distinct voice and style. For me, it’s been a matter of contemplating which particular technique from these directors would cut nicely together (with many of these auteurs, it’s not just one technique you could highlight, but a number of them). I’m less interested in documenting every example of a particular technique in the work of a director, then I am putting together something that is both attuning and visually interesting.
O que é relevante no trabalho de Kogonada é a forma como este consegue desenvolver um olhar clínico para extrair as semelhanças estéticas dentro das obras de cada autor, e dá-las a ver com tanta clareza. O trabalho sobre a perspectiva, One-point Perspective, em Kubrick é absolutamente magistral. Apesar daquilo que Kogonada nos traz não ser propriamente surpreendente, já que ainda recentemente aqui tínhamos falado sobre movimentos e espaços impossíveis na obra de Kubrick. Este supercut consegue ainda assim trazer nova luz sobre a obra de Kubrick, plasmando na nossa frente a realidade desconstruída do seu trabalho obsessivamente estilístico. Exatamente o mesmo podemos ver no trecho sobre design de som nas obras de Aronofky.

Kubrick // One-Point Perspective (2012) de Kogonada

O que estes vídeo-ensaios fazem é chamar a atenção para motivos e detalhes que só quem estuda os autores se apercebe. Alguns podem até nem passar completamente desapercebidos, mas a vantagem de um supercut é poder ver o elemento dissecado em vários obras do mesmo autor, e assim poder conceptualizar mais detalhadamente o alcance estilístico de um determinado efeito num autor. Isto permite-nos perceber melhor as obsessões e manias dos criadores, para assim conseguirmos compreender as suas motivações criativas.

Sounds of Aronofsky (2012) de Kogonada

Finalmente julgo que estes supercuts colocam a nu algumas questões que me incomodam desde sempre na academia no seio dos Estudo Fílmicos, e que passa por analisar o meio cinematográfico através do mero texto. Como podemos ver aqui, estes dois artefactos de Kogonada assumem um valor que supera intensamente qualquer texto que tenha até hoje procurado dissecar estas propriedades em ambos os criadores - Kubrick e Aronofsky - porque usa exatamente a mesma linguagem da obra analisada. Nesse sentido o seu discurso está muito mais próximo da “realidade” do artefacto analisado, cometendo muito menos “erros” de tradução na análise do audiovisual para o mero textual.

jogo musical com neve

O criador da banda sonora de Fez (2011) resolveu criar o seu próprio jogo, January (2012). Rich Vreeland licenciou-se em Music Synthesis pelo Berklee College of Music in Boston, depois disso trabalhou no GAMBIT Game Lab (Singapore MIT) e nos Demiurge Studios, entretanto em regime de freelancer criou além da música para Fez, a de Drawn to Life: The Next Chapter (2009) entre outras.


January é um jogo musical, de uma enorme simplicidade, mas ao mesmo tempo uma enorme beleza. A simplicidade está no gameplay visual, que por sua vez é acompanhado por um sistema musical generativo, que vai gratificando as nossas acções no jogo. Temos de apanhar flocos de neve com a língua, e à medida que o vamos fazendo algumas notas são tocadas, por forma a fazerem sentido musical entre elas e assim gerarem uma experiência musical. No final do jogo somos mesmo convidados a gravar e publicar o midi da música que criámos enquanto jogávamos.


Sobre o jogo em si, Rich Vreeland diz-nos que,
I wanted to capture the feeling of what it was like to be young and alone in the snow, which was always a fond memory of mine. I intentionally made the music somewhat ambiguous, by using a hexatonic scale. The game tracks the previous two notes that have played, and generates new musical decisions based on that. The player controls the rhythm of the music (by choosing when to lick snow), and can introduce chords and octaves by licking certain kinds of snowflakes.
Jogar

novembro 16, 2012

a ideologia vista pela inocência

Consegui finalmente ver The Boy in the Striped Pyjamas (2008), e ficar estarrecido pela história. Raramente aqui trago filmes pela história apenas, mas este é demasiado bom nesse campo para não o fazer. Tenho de começar por confessar que os filmes sobre Nazis e 2ª Grande Guerra já me dizem muito pouco, já tudo foi tão explorado... Porque é diferente The Boy in the Striped Pyjamas?


Essencialmente porque nos traz a guerra vista da perspectiva de uma criança totalmente inocente. Já tínhamos visto isso no belíssimo Life is Beautiful (1997), a diferença é que aqui a perspectiva não é dada por alguém dentro de um campo, mas antes por um miúdo de 8 anos filho de um importante comandante de um campo de concentração, e que está a tentar compreender o que se está a passar à sua volta. Por sua vez este tenta digerir a lógica do regime imposto pela ideologia vigente, enquanto a confronta com a amizade que estabeleceu com outra criança da mesma idade e que encontrou numa clareira de um campo de concentração.


Existem várias nuances de excelência na história, uma das mais importantes é exatamente fazer-nos perceber como foi possível um regime ideológico daquela natureza implantar-se. Como reagiram as pessoas, como foram treinadas as crianças. Ver que as pessoas se questionaram, mas que foram incapazes de fazer frente ao regime. Perceber que um regime destes pode voltar a acontecer, não haja qualquer dúvida que pode, porque aquilo que temos aqui, é um contorcionismo dos ideais humanos que de tanto se impor, converte as pessoas, e as leva a cometer atrocidades que estas seriam totalmente incapazes de realizar se tivessem verdadeira liberdade para pensar por si próprias. O que esta história mostra a nu, é que um sistema de valores distorcido pode tudo corroer, e não precisamos de Nazis, o sistema atual de crescimento e lucro contínuo que destruiu milhões de vidas com a crise de 2008 continua aí a dar cartas, agora pelas mãos da chamada austeridade. A ideologia implanta-se e quem é comandado, segue friamente, acreditando piamente que está a fazer o melhor pela sua nação...


Enquanto objecto cinematográfico o filme é satisfatório, mas fica muito aquém de tudo o que poderia ter sido. Temos um história fabulosa, que sai um pouco mal tratada em quase todas as dimensões fílmicas, exceptuando o casting dos rapazes (Bruno é Asa Butterfield que fez de Hugo Cabret em Hugo (2011) de Scorsese) e o seu tratamento narrativo. A relação entre Bruno e Shmuel é um verdadeiro pequeno tesouro, porque por momentos somos levados por caminhos de aventura, tal como nos livros que Bruno gosta tanto de ler. E ao longo do filme a sua relação fortalece-se e quando no final decidem levar a sua amizade mais longe, a aventura eleva-se e o drama acontece com uma força trágica muito forte.


Isto tudo é ajudado pela matriz narrativa, que nos conduz à empatização com Bruno, que nos consegue levar a ver e a sentir o mundo a partir dos seus inocentes olhos, mas a uma determinada altura, somos levados para o lado dos pais, e começamos a empatizar com estes, a compreender que estas pessoas são bem mais complexas piscologicamente do que inicialmente nos quiseram fazer parecer. Este jogo de empatização ora com o Bruno ora com os seus pais, carrega-nos ao longo do filme, e constrói o caminho para a tragédia se poder desfilar com toda a sua força e significância.

Um filme pedagógico, trágico, e que dificilmente se esquece.

um esboço da interacção humana

About Elly (2009) deveria ser um filme obrigatório em qualquer disciplina de narrativa cinematográfica, mas não só, também nas cadeiras de teoria de design de videojogos, no ponto sobre a narrativa. O filme foi realizado por Asghar Farhadi o realizador iraniano de A Separation (2011) ganhador do Oscar para melhor filme estrangeiro deste ano, e do Urso de Ouro em Berlim. Ainda não vi A Separation, mas a julgar por About Elly, promete. [Atualização: análise de A Separation entretanto visto]


About Elly é todo ele emoção, mas emoção criada pela matriz narrativa, não pela história, pelo que diz. Não depende dos núcleos nem catalisadores para forçar o sentimento no espectador, o espectador é antes enredado num conjunto de laços e redes sociais, que geram um puzzle humano poderoso capaz de nos deixar à deriva em busca de razões explicativas sobre aquilo que somos enquanto pessoas, enquanto parte de uma família, de um grupo, de uma comunidade.



Tenho visto algumas comparações com algum cinema Europeu, mas em termos comparativos, poderia dizer que About Elly, seria como pedir a Michael Haneke para fazer a sua versão de L’Avventura (1960) de Antonioni. O nó principal assemelha-se a L’Avventura e o modo como é contextualizado em parte também (o lugar isolado), mas a força dos dilemas humanos apresentados é trabalhado num sentido muito mais profundo em termos plásticos. Antonioni é minimal, gosta de sugerir, mas Farhadi é muito mais directo forçando o questionamento, mas não só sobre as relações humanas, é como se ele entrasse adentro delas, e as mostrasse de dentro para fora, algo que Haneke tão bem sabe fazer.


About Elly é um poderoso drama psicológico, um verdadeiro esboço das relações humanas. Mesmo que os costumes do Irão, nomeadamente no campo da relação homem-mulher, nos possam parecer algo distantes, tudo o resto é-nos tão familiar, tão próximo, tão sensível que nos impede de sentir indiferença. O intrincado jogo de interações humanas, parece quase um laboratório de análise social, à espera de ser desmontado e sentido pelo espectador.