Klein traça uma linha que liga o desmantelamento de estados e da desregulação comercial a grandes desastres da contemporaneidade. Como que se esses desastres tornassem inevitável a mudança de políticas seguidas. Mesmo quando os desastres acontecem por meras causas naturais. A resposta de quem ajuda, parece ser sempre a mesma, abrir o mercado.
Só uma crise - verdadeira ou percepcionada - produz mudanças reais. Quando a crise ocorre, as acções que se tomam dependem das ideias à sua volta. Isto, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível, se torne no politicamente inevitável." Milton Friedman Capitalism and Freedom, 1962, p.IXLendo Klein sobre o pensamento de Friedman, a uma determinada altura senti que deixámos o fundamentalismo religioso mas as Cruzadas não morreram, só que agora vivem de um novo fundamentalismo, o do mercado-livre.
Salvador Allende, presidente do Chile que iniciou processos de nacionalizações e colectivizações foi retirado à força do poder por imposição americana, tendo a CIA servido Pinochet nas suas práticas de tortura, e os economistas de Chicago nas transformações do país numa chamada economia livre.
Os últimos 50 anos de caminho em frente na total desregulação, flexibilização e privatização trouxe-nos até aqui. Os efeitos para a Europa e o seu modelo social, estão aí. As palavras de ordem são, tornar privado e terminar com o estado. Teorias que defendem que o Estado tem custos insuportáveis, que tudo pode ser feito de forma melhor pelos privados, desde a Saúde à Educação. Na última guerra do Iraque como muito bem fica demonstrado por Klein, até as estruturas militares foram privatizadas. Porque segundo alguns é muito mais barato fazer outsourcing. Ter um estado que apenas dite leis, com meia dúzia de cabeças, um estado fantasma que deixe a sociedade auto-regular-se. Segundo Milton Friedman é preciso libertar as pessoas, maximizar a força do indivíduo e fazer definhar o colectivo, destruir o comunitário.Só esquecemos que deixamos de pagar os desperdícios em impostos necessários à regulação das estruturas colectivas, mas em troca passamos a pagar pela perda de qualidade, perda de responsabilidade, perda de solidariedade. Alguns enriquecem brutalmente, enquanto uma enorme franja é despojada de qualquer direito. E o livro de Klein está carregado de exemplos, sendo um dos mais gritantes, o desastre Katrina, por ser recente e no interior dos EUA, mas que demonstra claramente que o mundo voltou ao ter pessoas de primeira, e pessoas de segunda. Mas o que se está a passar neste momento pós crise financeira não é em nada diferente, apenas na escala, a destruição da classe média americana e europeia está à vista.
Estádio que albergou os desalojados do desastre Katrina, e que foram ali largados à sua sorte pelo governo americano.
Ler Doutrina do Choque é ver um mundo novo abrir-se em frente aos nossos olhos, começar a compreender os modos de funcionamento de uma sociedade assente nos princípios desenhados por economistas da Universidade de Chicago, que tiveram como grande maestro, Milton Friedman. Todos os grandes desastres descritos no livro foram seguidos por grandes operações de recuperação baseadas não na ajuda desinteressada, mas sempre em estruturas privadas que procuraram fazer dinheiro com o desastre dos outros. Quanto mais no fundo do poço, mais rentável se torna ajudar. É isto que podemos assistir neste momento na Europa, a crise das dívidas soberanas e o acosso constante dos mercados totalmente desregulados, para quem o Social deixou de existir.
Os oligarcas russos (na foto Abramovich) aproveitaram o desmantelamento da URSS para legalizar as suas práticas ilegais e apoderarem-se de todo o aparelho financeiro do Estado a custos irrisórios. Uma mão cheia de indivíduos tornou-se milionária à escala mundial, muitos milhões de russos e caíram na pobreza total, milhares de crianças foram abandonadas em instituições sem condições para os receber, a droga e a prostituição tornou-se nos únicos ganha-pão de milhões de pessoas. Tudo isto está à vista de todos.
Concordo com o nobel Stiglitz quando este diz que Klein exagerou com a metáfora dos procedimentos dos anos 1950 para a realização de lavagens cerebrais. Mas percebo a frustração activista de Klein, ao perceber que tudo se passa à nossa frente, mas continuamos sem nos dar conta. Ela precisava de uma metáfora forte que chamasse à atenção, mas julgo que em certo sentido acaba por perder alguns leitores. Porque na primeira parte do livro poderão sentir que se trata de mais um livro demagógico com teorias da conspiração. Por isso aconselho vivamente que mantenham a leitura, aquilo que este livro tem para revelar vale isso, e muito mais. Mas é o próprio Stiglitz a defender o discurso, nomeadamente a suportar toda a lógica económica descrita por Klein,Klein provides a rich description of the political machinations required to force unsavory economic policies on resisting countries, and of the human toll. She paints a disturbing portrait of hubris, not only on the part of Friedman but also of those who adopted his doctrines, sometimes to pursue more corporatist objectives (..)
Indeed, the case against these policies is even stronger than the one Klein makes. They were never based on solid empirical and theoretical foundations, and even as many of these policies were being pushed, academic economists were explaining the limitations of markets — for instance, whenever information is imperfect, which is to say always. [#]
A invasão do Iraque foi a última grande machadada do mercado privado contra o estado e as funções públicas. Rumsfeld, ministro da defesa americano, conseguiu despedir milhares de pessoas do Pentagono e das forças militares, e em sua vez foram contratadas empresas privadas de fornecimento aos militares. Empresas nas quais o próprio ministro da defesa tinha interesses e acções. No Iraque, o número de equipas mercenárias privadas a actuar é desconhecido. As empresas envolvidas no fornecimento ao exército americano viu os seus lucros aumentar exponencialmente durante toda a guerra. Assim esta não pode terminar, sem guerra não haverá fonte de receitas.
Klein não é economista, mas como jornalista fez um magnífico trabalho de investigação, realizando entrevistas in loco em muitas das partes do globo de que fala no livro. Não baseia o seu trabalho em meras teorias económicas, antes faz um levantamento e procura respostas, e actores que as possam confirmar ou não. Este seu trabalho ganhou imenso reconhecimento internacional, e acredito estar na base de muito daquilo que são os movimentos internacionais Occupy.
Muito dirão que isto são teorias da conspiração. Mas o que aqui temos foi descrito anteriormente por Althusser na sua conceptualização de ideologia. Ou seja o que aqui temos é fruto de empurrar as pessoas, as instituições, a sociedade para o pensamento único, do consumo como sinal de progresso. E assim, quando o desastre acontece, existe apenas uma resposta possível para manter o status quo da ilusão do progresso, que passa por tirar a muitos para manter alguns na redoma protegida. É tempo de nos levantarmos e dizer basta. A Europa e Portugal estão a saque, disso já não restam dúvidas.