Prólogo
O vídeo que deu origem a este texto já não está disponivel no YouTube, no lugar do vídeo aparece a mensagem acima. O vídeo apresentava uma cena
machinima feita com recurso ao GTA IV, sobre sexo e violência, fazendo uso das possibilidades do jogo sem proceder a qualquer alteração do mesmo.
Procurando o vídeo em outros servidores encontrei mais uma pérola do jornalismo de videojogos. A
IGN achou que seria boa ideia fazer uma montagem vídeo de diferentes cenas de sexo e assassínio de GTA IV e colocá-la no site com o sugestivo nome,
The Ladies Of Liberty City. É óbvio que isto levantou problemas e a IGN foi obrigada a retirar o vídeo do site, com um pedido desculpas apresentado no
MTV Multiplayer "
In this case, we crossed a line in how we portrayed some aspects of the game and we’ve taken this video down". De qualquer modo este ainda pode ser visto no
Boinkology tal como reportado pelo
Kotaku. Mesmo o Boinkology não apresenta o vídeo sem referir "
Although we don’t think anyone should ever shoot or run over a sex worker. A tip is far more appropriate". Quanto ao YouTube e dada a sua natureza volátil podem ver-se vários vídeos parecidos pesquisando as palavras -
gta iv, hooker e afins.
Ainda em jeito de introdução foi o o facto de ter sido entrevistado no fim-de-semana por uma cadeia televisiva sobre o polémico jogo "
Miss Bimbo" que me fez relembrar um pequeno apontamento que tinha escrito nas minhas notas sobre violência e sexo em GTA IV.
Design de um real decadente
Antes de escrever este
post reflecti bastante sobre se o deveria fazer ou não. Por duas razões: por um lado julgo que é um assunto importante para o campo de estudos e da indústria dos jogos digitais e desse modo valerá a pena reflectirmos sobre o assunto. Do outro lado o facto de poder estar a alimentar uma veia crítica deste media que raramente se apresenta com argumentos credíveis e com estudos por vezes bastante enviesados. Deste modo interessava-me explorar o assunto sem entrar em fundamentalismos de parte a parte.
Grand Theft Auto IV é assim última versão da consagrada série da Take-Two Interactive e,
"foi já reconhecido pela Guiness World Records como a peça de entretenimento que mais vendeu nas primeiras 24 horas. Os seus 3,6 milhões de unidades vendidas arrecadaram 310 milhões de dólares contra os 220 milhões do livro "Harry Potter e os Talismãs da Morte", os 170 milhões de Halo 3 e os 60 milhões do filme "Spider-Man 3" [Hype 9, Junho 2008]
GTA IV tem sido constantemente analisado com nota 10/10 por quase todos os críticos da área, as suas características altamente elogiadas e os avanços no
state-of-the-art. Por outro lado os analistas externos à industria têm atacado fortemente o jogo pela sua violência e suposto incitamento à mesma.
Bans na Austrália, cartazes retirados das estradas de Chicago, etc. Ou seja é um tema verdadeiramente quente e na ordem do dia, espera-se que o jogo bata todos os recordes da indústria e está já na lista dos clássicos/best-sellers/revolucionários.
Ao pensar neste assunto não consigo deixar de pensar no quão ridículo é a argumentação de
Espen Aarseth que afirmou num artigo do
First Person, que a narrativa nos jogos servia apenas de
window-dressing, ou seja, interessaria ao jogador apenas os factores formais, desmontar as regras e que tudo o resto não passaria de uma camada de maquilhagem incapaz de mover qualquer alma. E em defesa de Espen apresento até um excerto de Junot Diaz para o Wall Street Journal,
"GTA IV sucks you the hell in but its narrative doesn't move me in any way or shake me up or even piss me off. I get madder when I crash my car in the game than when Niko makes a stupid decision in the cut-scenes (the movie-like interludes that players don't control). GTA IV for all its awesomeness doesn't have the sordid bipolar humanity of "The Sopranos," and it certainly lacks the epic flawed protagonists that define "The Godfather" and its bloodier lesser brother "Scarface." Successful art tears away the veil and allows you to see the world with lapidary clarity; successful art pulls you apart and puts you back together again, often against your will, and in the process reminds you in a visceral way of your limitations, your vulnerabilities, makes you in effect more human. Does GTA IV do that? Not for me it doesn't, and heck, I love this damn game." [Wall Street Journal, 28.06.2008]
Ora pelo que se pode(ia) ver no pequeno filme (ver agora as imagens acima ou ver a montagem da IGN acima referenciada que contém cenas do mesmo teor), isto acontece aqui, não conseguimos ficar indiferentes ao evento narrativo e somos agitados visceralmente, concordo que não terá a profundidade de
The Godfather ou
Scarface no entanto tem capacidade para nos agitar, basta ver o post (e a centena de comentários) no
blog de Raph Koster sobre essa mesma montagem. Uma questão que se levantará é que o impacto difere entre quem está a jogar e quem está a ver jogar. Enquanto jogamos os nossos processos de atenção e cognição estão de tal forma alerta que o lado emocional que se activa é acima de tudo o de nivel básico ou seja o de manutenção das funções de sobrevivência (medo, alegria, tristeza, raiva, nojo) e desse modo o segundo nivel emocional correspondente às emoções mais complexas, ou seja permeadas pela cultura do individuo - vergonha, culpa ou moral - ficam em stand-by até que exista espaço de manobra cognitiva para serem activadas. No caso de quem vê jogar, e é isso que acontece na visualização da sequência referenciada, a nossa atenção está apenas dirigida à compreensão dos eventos e desse modo a sua racionalização tem em conta os nossos filtros culturais ou marcadores somáticos (emoções). Assim quem vê jogar sente-se próximo de quem vê um filme e por isso pode ser induzido emocionalmente pelas acções do personagem. É em virtude disto mesmo que o vídeo foi retirado do YouTube e a IGN foi obrigada a desculpar-se.
No caso do jogador, podemos até dizer, que depois da acção realizada uma primeira vez, já não se volta a fazer. Pode ser verdade, mas é feito em busca da possibilidade narrativa e não da desmontagem das mecânicas em favor de um melhor posicionamento quantificável ou melhores resultados ou performance no jogo. O mesmo se pode dizer do livro e do filme, espera-se que o assassino vá até ao fim como hipótese narrativa, não ficamos à espera de voltar à mesma cena de assassínio vezes sem conta, quando muito de formas diferentes que é o que temos neste vídeo, as varias possibilidades narrativas do acto sexual.
Do lado dos designers do jogo, não posso deixar de os apoiar. Se o objectivo é reflectir a natureza criminosa de Nico, não faria sentido passar ao lado desta natureza, para mais sabendo que ela seria apontada como uma grande fraqueza caso não existisse. E por mais violenta que me possa parecer, fica muito atrás da violência mostrada em filmes como
Human Trafficking ou
Eastern Promises onde a força da narrativa nos deixa estarrecidos ou mesmo em
Rambo IV onde temos desde corpos a estilhaçar no ar, violação em grupo, pedofilia, genocídio, destruição sem pudor. Mas se pensarmos na realidade ela é bem mais indigestível e mostrada às 20h00
em sinal aberto para todos, dos 0 aos 80. Apesar da condenação do caso
Fritzel, ele não deixa de comprovar a sua existência e em conjunto com as imagens que vão aparecendo da serenidade em tempos idos que parecem atribuir-lhe uma faceta de naturalidade e humana.
Julgo que podemos dizer que faltaria ao design do jogo a capacidade para comunicar a mensagem de imoralidade e esta poderia sê-lo através de efeitos sobre o desenvolvimento e progressão do personagem enquanto actor da narrativa (ex. perder a namorada, perder respeito dos colegas, ou perder auto-estima), no entanto isto requer um maior aprofundamento e chegará lá com o amadurecimento da representação na arte dos jogos digitais.
No final o que está aqui em causa é o facto de ser necessário avançar com o cumprimento das proibições etárias. Tal como é agora feito no caso do tabaco e álcool é tempo de as lojas começaram a apertar o cerco. E é tempo de os pais acordarem para uma realidade que está à sua frente, uma vez que os seus filhos passam mais horas a jogar do que a ver TV.
Mais sobre este assunto num post sobre a
Violência nos Media, comparação entre Cinema e Videojogos.