maio 31, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI

E ao sexto volume senti a força do romance irromper por entre todo aquele manto constituído por camadas e camadas de análise e auto-análise. Proust surpreende-nos, mas se me surpreendi com a reviravolta no enredo, mais ainda me surpreendi, por só agora me ter apercebido de um traço central em toda a escrita da ‘Recherche’, a tentativa deliberada para evitar a emoção estética. Proust cita por duas vezes Descartes ao longo da obra, mas só aqui me dei conta do quão contaminado por ele estava Proust, buscando aqui claramente realizar um trabalho de análise da vida, cingindo-se apenas, e só (pelo menos assim o desejava ele), à razão.


Ou seja, seguindo a crença no dualismo cartesiano, Proust trabalha com enorme profundidade a descrição de cada ação, evento e novo facto, evitando por todos os meios contaminar as suas descrições com sentimento, acreditando que a razão é a base da consciência, do conhecimento. Isto tornou-se-me mais claro aqui, porque ao fim de todos estes volumes a reviravolta que acontece é forte, intensa, mas Proust apesar de dar conta dela, fá-lo sem se dar aos sentires do seu personagem que facilmente poderiam resvalar para uma emocionalidade excruciante. Toda a emocionalidade é analisada e descrita num detalhe tal, tornando-se em si explicação, desprovida de sensação. Claro que tudo isto é impossível, não é possível escrever de forma apenas racional, porque enquanto seres humanos, somos incapazes de racionalizar sem emoção (Damásio).

Deste modo o que acaba por acontecer em Proust, é que ele nos arrebata sim, mas pela forma brilhante como escreve e analisa, e menos, ou mesmo nada, pela forma como recria experiências emocionais. As experiências emocionais estão lá, mas ele não as recria para que nós as experiencemos, ele abre todo um acesso especial à experiência profundamente racional. Proust procurava assim a elevação discursiva, ele sabia que era fácil agarrar o leitor pela emocionalidade, pela força do enredo, pelas suas reviravoltas amorosas, mas não era isso que o movia, ele estava mais interessado em dar a conhecer o mundo nas suas essências constituintes, porque muito provavelmente acreditava estar aí o cerne da consciência, da nossa capacidade para apreender o mundo.

Entrando na questão da consciência, neste volume Proust trabalha uma nova abordagem desta, defendendo a existência de diversos 'Eu's, consoante o momento, a memória, ou a resposta necessária à realidade. Fez-me lembrar os “subselves” do recente livro “Rational Animal” de Kenrick e Griskevicius, que defendem, tal como Proust aqui defende, que somos várias pessoas diferentes, e assumimos identidades distintas em função das necessidades do real circundante. A este mesmo ponto vem agora ligar-se um outro conceito muito importante para Proust, o “hábito”, como o fundamento social que suporta, tal concha protectora, cada um dos nossos Eus. Pois em função de cada necessidade social, automaticamente reportamos ao hábito, e desse ao Eu que necessitamos para reagir.
Assim decorria na nossa sala de jantar, à luz do candeeiro que tanto as estimula, uma daquelas conversas a que a sabedoria, não a das nações, mas a das famílias, apoderando-se de um acontecimento qualquer - morte, noivado, herança, ruína - e colocando-o sob a lente de aumentar da memória, confere todo o seu relevo, um relevo que dissocia, recua e situa em perspectiva em diversos pontos do espaço do tempo aquilo que, para os que não viveram, parece amalgamado numa mesma superfície: os nomes dos falecidos, os sucessivos endereços, as origens da fortuna e as suas alterações, as mutações de propriedade. Esta sabedoria é inspirada pela Musa que convém ignorar durante tanto tempo quanto possível se quisermos conservar alguma frescura de impressões (..) a Musa que recolheu tudo o que as musas mais elevadas da Filosofia e da Arte rejeitaram, tudo o que não está assente em verdade, tudo que é apenas contigente mas igualmente revela outras leis: a História!” p. 264
Este é o volume mais pequeno, todos os outros aquando do lançamento foram editados em 2 ou 3 volumes (15), este foi o único que foi lançado num único apenas. Tem a particularidade, tal como o anterior, de ter saído depois da morte de Proust, e não ter tido a sua revisão final, o que por vezes se nota, embora se sinta mais no volume anterior. Como livro, a primeira e a última parte são novamente as mais intensas, embora pela primeira vez Proust não deixe um gancho final. Não sinto que faça falta, estamos no penúltimo volume, e o texto que encerra o livro, está claramente a apontar para o encerramento da narrativa, de modo que a ânsia por passar ao volume seguinte é mais forte que nunca, queremos saber o que ainda nos reserva um volume inteiro, uma vez que o climax parece ter já surgido aqui, e os Lados, de Guermantes e de Swann, foram completamente unidos.


[Marcel Proust, (1925), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume VI - A Fugitiva”, Relógio D'Água, ISBN 9727088023, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 288]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

maio 29, 2015

Conhecimento Tácito e Declarativo: o caso da bicicleta

Destin Sandin criou mais um episódio memorável, “The Backwards Brain Bicycle” (2015), para a sua série YouTube “Smarter Every Day”. Neste episódio Destin  demonstra como é impossível (não é, mas requer centenas de tentativas até se conseguir) conduzir uma bicicleta com o volante em modo reverso, depois de ter aprendido a conduzir uma bicicleta normal. Destin retira duas conclusões desta sua experiência:



1 - Conhecimento ≠ Compreensão

2 - Que vemos o mundo através de um viés, uma formatação do nosso cérebro.
Concordo com ambas, mas podemos ir mais longe na explicação do que acontece aqui, e a partir deste exemplo tecer alguns comentários mais gerais nomeadamente sobre nós próprios e sobre processos Educação. Assim adicionaria aqui, dois pontos que o próprio Destin toca, mas não elabora:
3 - Que a neuroplasticidade do cérebro é realmente muito diferente entre um cérebro jovem e um adulto. Por mais que nos últimos anos nos queiram fazer crer que podemos facilmente desaprender e voltar a aprender (neste caso temos 8 meses vs. 2 semanas).

4 - Que as nossas acções físicas são fruto de algoritmos (processos) de interação entre mente e corpo, e não meramente ordenadas pela vontade um raciocínio mental (por isso ele diz que se deixar de “pensar” consegue mais facilmente conduzir).

"The Backwards Brain Bicycle", (2015), Smarter Every Day 133

Mas nada disto é novo, e era aqui que queria chegar. O que é muito bom, é a demonstração audiovisual e empírica destes quatro pontos, porque em teoria sabemos disto há muito tempo, embora muitas vezes parece que não nos lembramos, ou queremos acreditar que não é assim, como aliás se pode ver nas reacções das pessoas que vão guiar a bicicleta. Ou seja, o que temos presente neste exemplo é um caso de Conhecimento Tácito, que pode ser designado também de Implícito ou Experimental. É um tipo de conhecimento que só pode ser construído pela experiência, e no tempo. O caso clássico deste tipo de conhecimento é exactamente o de andar de bicicleta, mas pode ser aplicado a muitas outras acções humanas, tal como qualquer desporto ou qualquer arte.

Mas este não é o único tipo de conhecimento que podemos construir, existe um outro, normalmente dado em oposição ao tácito, e que chamamos de Conhecimento Declarativo, ou explícito. Este é aquele em que mais se fundamenta a escola tradicional. Ou seja, estamos a falar de todo o conhecimento que pode ser descrito, sendo suficiente a descrição para que o possamos apreender. Acontece com a Biologia, a Geografia, a História, etc.

Este tem sido um domínio que me tem interessado imenso nos últimos anos por causa do Design de Interação, e que à medida que fui investigando sobre os modos como agimos sobre a realidade, fui-me apercebendo da relevância da Experiência. Daí que tenha começado a defender o ensino técnico-profissional, uma vez que o ensino tradicional sem base de experiência é manifestamente insuficiente para formar pessoas.

Isto explica porque ensinar Arte nas nossas escolas é tão complicado, porque uma coisa é ensinar Teoria e Crítica de Arte, outra bem diferente é ensinar a criar arte, isso só pode acontecer com a experiência. E aqui incluo naturalmente o Português, que não é mais do que o ensino da arte da língua. Não faz muito sentido passar anos e anos a ensinar conceitos e regras de uma língua, quando a verdadeira aprendizagem da mesma, só se pode efetuar através da repetição de Leitura e Escrita, como ainda aqui dizia a propósito de Proust ou Afonso Cabral.

Aliás, o caso do Português acaba por não ser distinto do da Matemática, já que ambos requerem a experiência, mas por o fazerem num domínio somente mental, porque laboram sobre abstrações do real, julga-se erradamente que o que é importante é a aprendizagem da componente declarativa, quando esta na maior parte das vezes só perturba a aprendizagem, que só se consegue efetuar verdadeiramente pela repetição da experiência. Neste caso, conhecer não chega, é preciso chegar à compreensão.

maio 26, 2015

Edição alucinante de memórias

Danny Madden (do coletivo Ornana) voltou a surpreender com uma nova curta que mistura animação com imagens reais de dezenas de filmes. Depois de no ano passado ter criado o brilhante “Confusion Through Sand” (2014), financiado no Kickstarter, traz-nos agora "All Your Favorite Shows" (2015) com financiamento da The Knight Foundation e do Borscht Film Festival. Este novo filme acaba demonstrando mais uma vez a sua enorme mestria da linguagem audiovisual.




"All Your Favorite Shows" é um filme impactante pela grande expressividade e velocidade que imprime no contar da sua história. Os personagens animados 'gritam' graficamente, através de grandes planos faciais e de rápidas transformações de expressão, apelando à nossa atenção, por sua vez toda a montagem (Mari Walker) se sucede num ritmo tão frenético que nos impossibilita virar os olhos por um segundo que seja. São apenas 5 minutos, mas tão intensos como um dos nossos preferidos bombons num momento de ansiedade, porque não se limita a bater-nos com a plástica, as imagens reais retiradas de dezenas de filmes e facilmente reconhecíveis, garantem o acender de um rastilho de memórias que nos conduzem ao escapismo imediato.

E são estas imagens que também impressionam, porque Madden conseguiu, com a ajuda de Walker, reunir blocos inteiros de tropos cinematográficos, ou padrões fílmicos (corridas de carro, corridas a pé, quedas, saltos, etc.), que depois mistura de forma ágil com trechos de animação, por meio de brilhantes raccords, criando um todo extremamente coerente e que nos conta uma história. Foi muito interessante ler numa entrevista Madden descrever como procederam para reunir os excertos de filmes:
"I called Mari because along with one of the walls of her apartment being filled floor to ceiling with DVDs, she’s got a remarkable (and sometimes frightening) ability to recall shots from almost any genre of film from almost any time period.
I would say something like, “Ya know how the hero will turn around and look over his shoulder all badass-like?” Then Mari would close her eyes for a minute, almost trancelike, and draft up a mental list of films and scenes where that sort of thing happens."

"All Your Favorite Shows" (2015) de Ornana

maio 25, 2015

Outros Lugares (virtuais)

Depois de Duncan Harris ter lançado a moda da Fotografia de mundos virtuais de videojogos, com o seu Dead End Thrills, agora Andy Kelly apresenta uma nova ideia, criar Video a partir desses mundos, com o seu Other Places. Assim, além das imagens estáticas de Harris temos agora também movimento e música a contribuírem para o aspeto narrativo dos excertos. É interessante como estes vídeos nos vêm permitir fazer algo para o qual, enquanto jogamos, nos parece nunca haver tempo, que é contemplar o espaço, o mundo que nos circunda, que apesar de virtual o sentimos tão real.




Confesso que fiquei um pouco desiludido com os trabalhos finais, esperava mais dos enquadramentos, montagem e até do som, principalmente quando comparamos com o magnífico trabalho fotográfico de Harris. Ainda assim são filmes que nos permitem reviver momentos, memórias, e até criar novas, com novos significados. Deixo abaixo um filme que resume o primeiro ano de trabalho de Kelly, ao longo de 2014.

"Other Places: Year One" (2014) de Andy Kelly

maio 24, 2015

Em Busca do Tempo Perdido - Volume V

Depois de no volume anterior Proust nos ter torrado a paciência com a 'snoberia' social, neste volume afunda totalmente em si, arrastando-nos para o interior de si. Por um fluxo de consciência escrito, abre-nos um acesso directo até à sua não-consciência. Temos quase todo o livro dedicado às interrogações de Marcel, a propósito do seu amor/ciúme (chegando ao sadismo) por Albertine, que passa todo o livro "prisioneira" em casa deste. Contudo, Proust consegue fazer deste quinto volume o mais agitado, criando mesmo verdadeiras sequências de suspense — gerando expectativa sobre o futuro de Charlus, ou sobre o futuro de Albertine — houve várias partes do livro em que não o conseguia pousar, as páginas sucediam-se e eu sentia a ânsia por saber o que ia acontecer aos personagens.

Em Busca do Tempo Perdido - Volume V - "A Prisioneira"

Uma das coisas mais relevantes em Proust, e que faz dele um dos mais importantes escritores de sempre, está no modo como ele produz essa ligação entre o não-consciente e o consciente, externalizando o pensamento por via do texto, para se dar a nós (para compreender melhor a ideia de consciência recomendo a leitura de um texto anterior). Não se trata de simplesmente descrever minuciosamente os estados de alma e os sentires, é verdade que Proust perscruta dentro de si de forma profunda e hábil, mas mais hábil e dotado é ainda na arte de transformar ideias mentais em palavras e frases.
What compels my admiration for M. Proust’s work is that it is great art based on analysis. . . . I don’t think there is in [all] creative literature an example of power of analysis such as this.” — Joseph Conrad
Na semana passada lia num blog, um comentário a propósito da nova geração, incapaz de descrever o real sem recorrer a expressões “tipo isto“, “tipo aquilo”, “a coisa”. Lia também, numa abordagem distinta, algumas ideias sobre a eliminação de palavras supérfluas para uma comunicação de ideias mais concreta. E lendo Proust, está ali tudo, uma enorme riqueza de vocabulário aliada a um virtuosismo na composição de ideias.

Sobre este ponto, que não se diga que as crianças não aprendem porque não se lhes explica, porque não se fala com elas. Esta capacidade de Proust, é verdade que desenvolvida a um ponto extremo, difícil de igualar, se existe, foi trabalhada por si, por duas formas apenas, a leitura e a escrita. Acredito que ajudou, como com muitos outros escritores, o facto de estar doente e recluso em casa que acabaria por lhe dar todo o tempo necessário à leitura. Não existe outra forma de desenvolver a externalização do pensamento que não seja  através da leitura e escrita. Ler para construir uma bagagem de vocabulário, de composição e potencial gramatical. Escrever para se construir o veio que conduz o pensamento do não-consciente ao consciente.
"Foi efectivamente uma morta que vi quando depois entrei no quarto dela. Adormecera logo que se deitara; os lençóis enrolados no corpo como um sudário haviam tomado, nas suas belas pregas, uma rigidez de pedra. Dir-se-ia que, como em certos Juízos Finais da Idade Média, apenas a cabeça surgia fora do túmulo, esperando no seu sono pela trombeta do Arcanjo. Aquela cabeça fora surpreendida pelo sono quase caída para trás, com o cabelo hirsuto. E ao ver aquele corpo insignificante ali deitado, perguntava a mim mesmo que tábua de logaritmos constituiria ele para que todas as acções em que pudesse ter estado envolvido, desde um gesto do cotovelo até um roçagar de vestido, pudessem, prolongadas até ao infinito de todos os pontos que ocupara no espaço e no tempo, e de vez em quando bruscamente revivificadas na minha memória, causar-me angústias tão dolorosas, e que porém eu sabia serem determinadas por movimentos, por desejos dela que, cinco anos antes, ou cinco anos depois, numa outra qualquer, ou nela própria, tão indiferentes me teriam sido. Era uma mentira, mas para a qual eu não tinha a coragem de procurar outra solução que não fosse a minha morte." (p.352)
Neste livro, e como já vem sendo hábito nos livros anteriores, o melhor fica guardado para a última parte, momento em que Marcel 'estica a corda' no relacionamento com Albertine, para descobrir mentiras que até aqui tinham feito parte da paisagem do livro como verdades. Já nas derradeiras linhas, também mais uma vez, Proust abre o motivo para o livro seguinte, deixando-nos ansiosos por prosseguir a leitura, ainda mais agora que já só faltam 2 volumes.


[Marcel Proust, (1923), “Em Busca do Tempo Perdido - Volume V - A Prisioneira”, Relógio D'Água, ISBN 9789727087792, trad. Pedro Tamen, 2004, p. 418]

Ler também
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume I
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume II
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume III
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume IV
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume V
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VI
"Em Busca do Tempo Perdido"- Volume VII

maio 23, 2015

A visceralidade da imagem em movimento [adultos apenas]

O novo anúncio, "Coco de Mer: X" (2015), para salas de cinema, da marca de lingerie britânica, Coco de Mer, está nas bocas da imprensa pela ousadia, questionando a sociedade se a agência TBWA não terá ido longe demais no campo do eroticismo. Acabei de ver o anúncio de dois minutos e meio e ainda estou algo entorpecido, efeito do embate... podem ver abaixo.





Se resolvi falar aqui de "Coco de Mer: X", não foi pelo seu lado sexual, mas pelo seu lado audiovisual, emocional e experiencial. O fotógrafo Rankin, criativo por detrás deste trabalho, criou um objeto verdadeiramente portentoso. Usando de todo o seu know-how sobre o impacto da imagem, do seu movimento e velocidades, produziu um trabalho em toda linha sensorial. "Coco de Mer: X" não se destina a ser compreendido, apenas e só sentido. É de sexo que se fala, mas é por meio de imagem, som e movimento que se comunica. Aqui a palavra é irrelevante, porque apenas se procura atingir os sensores sensitivos. O filme não tem nada para dizer, antes busca gerar uma experiência capaz de produzir uma alteração do nosso estado emocional, e consegue-o.




Nas palavras do criador,
definitely the best thing that I have done in film. … It has layers of meaning, and to get that in advertising is rare. Doing something like this is about creating an experience. We’re putting it on a different level. Putting it on a level with enjoying a film. People call it content marketing, but it’s just about making something people want to watch.” Rankin, in AdWeek
É verdade que isto é o que busca muito cinema de Hollywood, mostrar, não contar, mas é algo que está longe de ser fácil de fazer. Muitas vezes podemos até procurar dar a ver, mas sem adicionar diálogo aqui ou ali, ou uma voz-off que contextualize a imagem, torna-se tudo muito difuso, perdendo-se antes de chegar à cognição do receptor. Rankin tem aqui bastante mais liberdade, é um filme curto, e o objecto de comunicação é apenas um conceito, nada mais há para dizer, por isso joga toda a força das imagens na exposição da ideia, criando redundâncias sobre redundâncias, até que se torne impossível ao espectador escapar do que lhe está a ser transmitido. Os nossos sensores são completamente anestesiados, não apenas pela 'inexpectabilidade' dos conteúdos das imagens, mas ainda mais pela velocidade estonteante a que se sucedem, não dando tempo para que se interprete o que se está a ver, limitando-nos a acolher o que nos está a atingir.

"Coco de Mer: X" (2015) de Rankin

maio 22, 2015

o engenho humano

Le Gouffre” (2015) é uma animação 3d criada por 3 jovens animadores de Montreal, ao longo de dois anos completos, suportados por um financiamento obtido no Kickstarter. O filme de 10 minutos segue toda a cartilha emocional do cinema de ação, conseguindo assim impor-se sobre as nossas ânsias enquanto explora momentos de verdadeira inspiração humana.




Apesar de ter gostado bastante do resultado final, não gostei da iluminação que acaba toldando demasiado o ambiente, falta-lhe vida expressiva, capacidade de trabalhar com aquilo que não se vê. O excesso de luz, em minha opinião, deve-se a uma certa vontade realista por parte dos autores, que acaba por ela própria reduzir a qualidade estética final. Porque se a luz sofre de um problema de excessiva vontade de tudo mostrar na perfeição, a animação dos personagens é ela própria demasiada realista e homogénea, faltando-lhe identidade, pessoalidade na linguagem não-verbal de cada personagem.

Contudo, não posso deixar de apontar o imenso trabalho realizado por apenas 3 pessoas, e na generalidade de elevada qualidade. Apesar dos problemas que aponto, temos muito boa ilustração e modelação. É tudo imensamente fluído, as acções dos personagens são credíveis, o ambiente é sumptuoso e a história acaba funcionando muito bem.

"Le Gouffre" (2015)

Por fim, referir que mais uma vez a amizade entre dois jovens serve de inspiração a uma produção de animação, um tema que já aqui tinha dado a conta a propósito de um conjunto de outros filmes de animação.

maio 21, 2015

Definições e exemplos do storytelling interativo

Mark Brown é autor da série Youtube "Game Maker's Toolkit", dedicada a dissecação do design de videojogos. O último episódio, "Telling Stories with Systems", foi dedicado ao modo como os videojogos mesclam jogo e narrativa, ou seja como introduzem interatividade nas histórias, ou criam o chamado storytelling interativo.




Ao longo de 7 minutos Brown disserta sobre as 4 grandes possibilidades do uso da narrativa - linear, árvore, multilinear e emergente - e apesar de não lhes atribuir estes nomes em concreto, acaba fazendo um belíssimo trabalho de levantamento de casos exemplo que demonstram cada uma destas possibilidades. Brown centra-se sobre aquilo que podemos designar por histórias-sistema, que não são mais do que as narrativas emergentes, que são aquelas que verdadeiramente maior potencial têm, contudo como ele acaba reportando, são também aquelas que maiores riscos, de serem incapazes de gerar envolvimento, correm.

Ainda que não mencionado, aproveito para apontar dentro da lógica emergente ou história-sistema, o videojogo "Papers, Please" (2012) como um dos melhores exemplos, nomeadamente por ser um caso em que tanto a produção como a jogabilidade são bastante simples, dando assim conta do facto de não ser necessário avançar para estruturas altamente elaboradas e complexas para se produzir uma experiência poderosa, capaz de se dar a cada jogador num ciclo de interatividade real.


Para descobrir mais sobre as narrativas interativas podem ler o meu livro "Emoções Interactivas" que está disponível gratuitamente em versão digital. Para ler especificamente sobre as várias estruturas de narrativa interativa, sigam para a página 217.

maio 19, 2015

Consciência, Multimedia e Inteligência Artificial

Consciousness and the Brain: Deciphering How the Brain Codes Our Thoughts” (2014) de Stanislas Dehaene oferece-nos um excelente trabalho de divulgação da investigação científica que se tem realizado nas últimas décadas à volta do conceito de 'consciência'. A abordagem escolhida por Dehaene é a de simplificar o domínio, libertando dos tabus a que a área foi votada pelos próprios investigadores. O domínio dos estudos da consciência foi sempre bastante frágil, à semelhança do estudo das emoções, por ser considerado não apenas complexo, mas impossível de vergar ao método experimental. Desta forma este livro de Dehaene funciona quase como uma lufada de ar fresco na desmistificação e facilitação de acesso àquilo que designamos de consciência.


Dividiria o livro em três grandes partes, a introdução ao conceito e sua sustenção evolucionária, que ocupam os primeiros capítulos, simples e cheios de metáforas que se percebem muito bem, e que nos garantem uma noção bastante concreta do que é a consciência. A segunda parte, um pouco mais densa, nomeadamente por se procurar sustentar as ideias com muitos estudos realizados no campo e que acabam dedicando demasiado tempo a tecnicismos do cérebro, perdendo por vezes a nossa atenção. E depois o capítulo final no qual se aponta ao futuro da área, com dados e especulações extremamente instigantes. Deste modo quero deixar apenas algumas notas sobre a definição do conceito, e depois dedicar algumas linhas à projecção para estudos futuros.

Comecemos pela definição de consciência que Dehaene apresenta :
“consciousness is brain-wide information sharing. The human brain has developed efficient long-distance networks, particularly in the prefrontal cortex, to select relevant information and disseminate it throughout the brain. Consciousness is an evolved device that allows us to attend to a piece of information and keep it active within this broadcasting system. Once the information is conscious, it can be flexibly routed to other areas according to our current goals. Thus we can name it, evaluate it, memorize it, or use it to plan the future.” (abertura do Capítulo 5)
Isto levaria-nos a questionar de que serve então a consciência, porque não funcionamos apenas por meio de processos não-conscientes? E é nesse sentido que se torna interessante analisar o processo em termos evolucionários, que Dehaene define assim:
“consciousness supports a number of specific operations that cannot unfold unconsciously. Subliminal information is evanescent, but conscious information is stable — we can hang on to it for as long as we wish. Consciousness also compresses the incoming information, reducing an immense stream of sense data to a small set of carefully selected bite-size symbols. The sampled information can then be routed to another processing stage, allowing us to perform carefully controlled chains of operations, much like a serial computer. This broadcasting function of consciousness is essential. In humans, it is greatly enhanced by language, which lets us distribute our conscious thoughts across the social network.”
Isto é um processo que me interessa particularmente, porque o conceito de hipertexto é fundamentalmente baseado no mesmo. Se Vannevar Bush procurava emular a nossa capacidade de pensamento associativo, ou seja de processamento de múltipla informação, em paralelo, que ocorre no não-consciente, fundamental em termos de agilidade cognitiva, pelo meio ficou esquecido o problema do consciente, ou seja, o modo como filtramos a informação do exterior, como consolidamos a informação e a transportamos para o não-consciente, via processos em série. Este problema agravar-se-ia depois ainda mais com o surgimento do hipermedia/multimedia, em que os documentos passavam não apenas a apresentar diversidade não-linear de informação, mas modelada por meios distintos.

Por isso aceder a um documento multimedia, em que o conteúdo que se pretende transmitir, é espartilhado em vários objectos distintos de media a tempos não-lineares, torna a compreensão mais difícil do que aceder a um documento linear e num único meio. A ideia de que os objectos distintos se reforçam mutuamente acaba por não funcionar já que os múltiplos meios obrigam de imediato a um consumo maior de consciência. Usando linguagem informática, poderemos descrever o processo da seguinte forma: quanto mais meios distintos utilizar numa mensagem, mais software tenho de fazer o receptor carregar para o consciente, para conseguir descodificar cada meio, sobrando menos capacidade para descodificar a essência do que se quer comunicar. Ou seja, não lemos um texto, uma foto, um vídeo ou sons da mesma forma, precisamos de usar recursos apreendidos em experiências anteriores, para descodificar cada um desses sinais. Nesse sentido - um texto, ou um vídeo, ou um áudio - permitem ao receptor concentrar-se quase exclusivamente na mensagem, assumindo o meio quase como transparente.


Daí que o enfoque comunicativo do multimédia não possa ser a multimedialidade mas antes a interatividade, como tenho defendido ("Media Criativos e Interactivos" (2010), Jornalismo 'Interactive Storytelling'? (2015)). Porque aquilo que diferencia os novos media dos tradicionais é apenas, e só, a interatividade, já que a união de diferentes media vem desde os anos 1930 sendo feita pelo cinema. E quando falo de interatividade, não falo de um processo aberto, ou rizomático, de acesso a múltiplas fontes de informação, mas antes de um processo cíclico de interacção - conversacional - entre o artefacto e o receptor. Daí que pensar, desenhar e construir um artefacto a partir do seu potencial de interatividade, seja totalmente distinto de o fazer a partir do potencial de junção de diferentes media.


No último capítulo são várias as questões e desafios apresentados para os quais ainda não temos respostas, e que se revelam de enorme importância, das quais escolho aqui discutir duas:

1: "Can we figure out whether a monkey, or a dog, or a dolphin is conscious of its surroundings?"

Neste ponto Dehaene discute os vários estágios do conhecimento científico porque passámos em termos do que separa o homem dos animais, sendo que no mais recente estágio se assumia que o que determinava esta diferença estava na capacidade do homem poder reflectir sobre si mesmo, algo que nos estudos mais recentes se tem demonstrado, com grande evidência, que vários animais são também capazes de fazer, ou seja, os animais possuem consciência. Deste modo Dehaene procura elaborar uma ideia que demonstre a linha que nos separa dos animais, e fá-lo usando uma abordagem cognitiva assente nos processos de linguagem, com a qual concordo inteiramente:
“although we share most if not all of our core brain systems with other animal species, the human brain may be unique in its ability to combine them using a sophisticated “language of thought.” René Descartes was certainly right about one thing: only Homo sapiens “use[s] words or other signs by composing them, as we do to declare our thoughts to others.” This capacity to compose our thoughts may be the crucial ingredient that boosts our inner thoughts. Human uniqueness resides in the peculiar way we explicitly formulate our ideas using nested or recursive structures of symbols (..) in agreement with Noam Chomsky, language evolved as a representational device rather than a communication system—the main advantage that it confers is the capacity to think new ideas, over and above the ability to share them with others. Our brain seems to have a special knack for assigning symbols to any mental representation and for entering these symbols into entire novel combinations (..) The recursive function of human language may serve as a vehicle for complex nested thoughts that remain inaccessible to other species. Without the syntax of language, it is unclear that we could even entertain nested conscious thoughts such as He thinks that I do not know that he lies. Such thoughts seem to be vastly beyond the competence of our primate cousins.”
2: "Could we ever duplicate them in a computer, thus giving rise to artificial consciousness?”

Para o o final Dehaene deixa um assunto, semelhante ao do ponto anterior, mas numa direcção diferente. Se no caso dos animais, estamos focados em tentar perceber o que nos coloca em planos diferentes, no caso da Inteligência Artificial, estamos interessados em perceber se será verdadeiramente possível criar um processo matemático que simule a consciência. Um tópico que me tem preocupado nos últimos anos, por causa da minha investigação na área de emoções, e que discuti aqui já a propósito de um livro de Oliver Sacks e de uma talk de António Damásio.
“I have no problem imagining an artificial device capable of willfully deciding on its course of action. Even if our brain architecture were fully deterministic, as a computer simulation might be, it would still be legitimate to say that it exercises a form of free will. Whenever a neuronal architecture exhibits autonomy and deliberation, we are right in calling it “a free mind” — and once we reverse-engineer it, we will learn to mimic it in artificial machines (..) Our neuronal states ceaselessly fluctuate in a partially autonomous manner, creating an inner world of personal thoughts. Even when confronted with identical sensory inputs, they react differently depending on our mood, goals, and memories. Our conscious neuronal codes also vary from brain to brain. Although we all share the same overall inventory of neurons coding for color, shape, or movement, their detailed organization results from a long developmental process that sculpts each of our brains differently, ceaselessly selecting and eliminating synapses to create our unique personalities. The neuronal code that results from this crossing of genetic rules, past experiences, and chance encounters is unique to each moment and to each person. Its immense number of states creates a rich world of inner representations, linked to the environment but not imposed by it. Subjective feelings of pain, beauty, lust, or regret correspond to stable neuronal attractors in this dynamic landscape. They are inherently subjective, because the dynamics of the brain embed its present inputs into a tapestry of past memories and future goals, thus adding a layer of personal experience to raw sensory inputs. What emerges is a “remembered present,” a personalized cipher of the here and now, thickened with lingering memories and anticipated forecasts, and constantly projecting a first-person perspective on its environment: a conscious inner world.”

Ler mais:
A consciência de Damásio, o Eu ou a Alma 
Musicophilia (2007), música e consciência