julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


Outros textos relacionados,
A Ciência por detrás da Arte, in Virtual Illusion
Empatia, colaboração e cooperação, in Virtual Illusion

Pensar é muito incómodo. Cientistas tentam saber porquê, in iOnline
Just think: The challenges of the disengaged mind, in Science

julho 20, 2014

"Assassin’s Creed III" (2012)

A série “Assassin’s Creed” (AC) da Ubisoft representa um feito inestimável no campo da representação histórica audiovisual. Com base num fio de história suportado por uma ficção templária, o primeiro da série, “Assassin’s Creed” (2007), aborda a Terceira Cruzada, a luta entre o cristianismo e islamismo no início do primeiro milénio. O segundo volume, "Assassin’s Creed II" (2009), inicia-se passados 400 anos, na Renascença Italiana, período nobre de emergência da razão e arte, mas também do início da decadência da igreja. Neste terceiro volume, mudamos de continente, passaram-se mais 250 anos, a América prepara-se para lutar pela Independência. Cada um destes jogos permite-nos viajar e experienciar, de forma participativa, momentos fascinantes da história fazendo uso de níveis de realismo audiovisual extremamente gratificantes.



Dos três, e porque não só as tecnologias evoluem mas os artistas vão passando a deter melhor conhecimento dos motores de jogo, o terceiro é o que apresenta um nível visual mais elaborado e rico em detalhe. Desde a animação dos personagens, ponto alto de toda a série e que se destaca no mundo dos videojogos, aos ambientes e cenários, a perfeição gráfica, sonora e de movimento abunda. Jogar AC3 é um constante deleite, a contemplação constante de um mundo que já não existe que parece emergir de cada vez que ligamos a consola. Viajar por Boston ou Nova Iorque entre 1700 e 1800, interagir com os seus habitantes, encarar os seus costumes, é uma delícia. O director de arte, Chinh Ngo, referencia a inspiração na técnica de pintura chiaroscuro, na qual Caravaggio foi exímio, como central no desenvolvimento visual de AC3,
“I was inspired by the chiaroscuro style of painting. They are filled with contrasts, saturate colors, light and dark. Very early on in the production I knew I wanted to bring these visual contrasts, these colors, into the art direction for all the night shots. That may differ a bit from the end result but that’s a part of the challenge for the art direction.” [fonte]
Em termos de design de jogo temos do melhor, mas também temos do pior. AC3 tem uma curva de entrada baixa, ao fim de 5 horas estamos ambientados, e percebemos as possibilidades do jogo, sentimos a mestria emergir, e a partir daí começamos a viver a experiência participatória. Por outro lado, muito do que descobrimos, do potencial de jogo, acaba tendo pouca relevância para a história principal. Ao contrário de AC2 em que muitos dos elementos que apanhávamos (ex. páginas do codex, etc.) ou do dinheiro que conseguíamos, contribuíam para melhorar as nossas competências no mundo de jogo, aqui é tudo muito secundarizado. AC3 deixa para trás o foco no personagem, e diria mesmo a relação entre jogo e narrativa, para se focar na acção e história, procurando sempre que possível potencializar a fluidez, evitar as pausas e as demoras.

Mas o pior do design surge nas falhas de implementação. Das corridas aos saltos e ataques que falham, à minuciosidade de execução de alguns segmentos de missões. De modo a tornar AC3 verdadeiramente deslumbrante visualmente, grande parte das nossas acções no jogo são profundamente trabalhadas em termos de animação. Esta abordagem dificulta imenso a gestão da interacção, acção e uso de animação pré-gravada. Uma das cenas mais fantásticas que se pode apreciar quase desde início é o atravessar do interior de casas, quando entramos em casas nas quais não é suposto existir interacção, somos levados por meio de uma animação até ao outro extremo da casa, ou por exemplo quando matamos alguém, ao movimento normal de uma acção do braço, pode suceder-se uma animação com uma vista de câmara de cima que enfatiza o assassinato. Tudo isto torna a gestão técnica destes momentos por parte do jogo muito mais complexa. Deste modo, ao longo do jogo vão acontecendo falhas que nos obrigam a repetir sequências, criando irritação porque o personagem não reage como esperado, porque o mundo não se dá. Estes problemas não estão sempre presentes, mas são pouco admissíveis ao nível de um jogo deste porte.

Sendo um jogo tão focado na narrativa, no conteúdo, aquilo que tem para dizer é bem trabalhado e suficientemente detalhado e suportado. Por outro lado o design do storytelling acaba por falhar no momento crucial, o fechamento. Ou seja, estamos ali para contribuir para a independência dos EUA e para salvar o nosso povo, mas tudo isso passa e acontece, sem que se sinta um clímax. Não existe o desenho de uma curva emocional que nos estimule, nos suspenda, para que depois queiramos acreditar no seu desvelamento e sentir a recompensa. No final parece mais que se buscou um discurso documental, de descrição daquela época, em que nos deixaram participar, mas posto isso, continua tudo igual a si próprio, antes e depois da nossa actuação ali.

Por outro lado, julgo que o problema talvez assente também no facto de terem procurado estabelecer uma relação muito mais forte entre a história do passado (dentro do Animus) e o presente. Isto foi um erro, porque AC vale o que vale pelas histórias dentro do Animus, a corrente ficcional do presente, assente nas guerras entre sucessões de templários é demasiado frágil, sem coerência, e totalmente incapaz de motivar, seja o jogador seja o espectador. Não joguei ainda o 4, mas espero ansiosamente pelo 5, e aquilo que me move é a Revolução Francesa, não os templários.




No cômputo geral AC3 é uma experiência bastante rica para quem se interesse pela componente histórica. Poder dialogar com George Washington ou Benjamin Franklin, participar em momentos históricos como - a Boston Tea Party, o Great Fire of New York, as Battles of Lexington and Concord, ou a Declaration of Independence - é entusiasmante e envolvente. Tudo isto suportado por uma obra de qualidade estética ímpar, porque mesmo quando a jogabilidade não acerta a atmosfera nunca se esvai por completo, mantendo-nos interessados no continuar do desvelamento da narrativa.

julho 18, 2014

Processos de escolha em Mass Effect

Já era para aqui ter analisado a trilogia Mass Effect mas como tenho andado a mastigar a mesma para um texto académico, acabei por não o fazer. Entretanto, como tinha de fazer uma apresentação no Retiro do Programa Doutoral em Média-Arte Digital da Universidade Aberta e Universidade do Algarve sobre narrativas interactivas, acabei por aproveitar uma parte desse trabalho que andei a fazer.


O essencial das minhas preocupações com Mass Effect centram-se sobre o modo como o receptor é incluído na construção do universo narrativa, desde a representação (mundo e personagens) à mensagem (eventos apresentados), e ainda sobre o modo como são trabalhados alguns momentos de decisão mais complexos. Deixo abaixo os slides da apresentação, espero em breve produzir o texto completo.

julho 10, 2014

Daqui a 30 anos, segundo Negroponte

Nicholas Negroponte é um dos principais responsáveis por eu fazer o que faço hoje. Nesta sua TED de 2014 diz a certo ponto que quando a Wired saiu, os miúdos deixaram de comprar a Sports Illustrated para passar a comprar a Wired, no meu caso deixei de comprar a Cahiers du Cinema, mudando claramente os meus interesses. Mas provavelmente o mais importante tenha sido o seu livro "Being Digital" (1995) que me fez despertar para todo um novo mundo da tecnologia no qual o computador passava a assumir o lugar de extensão expressiva do humano.



Nesta TED Negroponte passa em revista as 14 TED talks que deu, um número que dá bem conta da sua importância na arena dos desenvolvimentos das tecnologias da comunicação. Ao mesmo tempo aproveita para enfatizar o facto de ter sido responsável por alguns projectos e algumas afirmações visionárias que em tempos foram motivo de chacota ou refutação mas que hoje são amplamente usadas ou aceites.

Nesse sentido, e respondendo à questão que Chris Anderson (director da TED) lhe tinha lançado, “qual é a sua previsão para daqui a 30 anos?”, Negroponte responde com uma ideia simples, mas ao mesmo tempo tão ficção-científica, que nos parece tão impossível como ter um carro nas estradas sem condutor!
“one of the things about learning how to read, we have been doing a lot of consuming of information going through our eyes, and so that may be a very inefficient channel. So my prediction is that we are going to ingest information You're going to swallow a pill and know English. You're going to swallow a pill and know Shakespeare. And the way to do it is through the bloodstream. So once it's in your bloodstream, it basically goes through it and gets into the brain, and when it knows that it's in the brain in the different pieces, it deposits it in the right places. So it's ingesting.”


Acredito nesta previsão, só não sou tão optimista como Negroponte, talvez porque como ele diz, daqui a 30 anos já cá não estará, mas eu talvez ainda cá esteja. Por isso acredito antes que isto possa vir a ser possível dentro de 50 anos. Mas tenho de acrescentar aqui uma variação ao que é dito por Negroponte, eu não acredito que esta ingestão venha substituir a leitura, pela simples razão que aquilo que vamos ingerir não serão comprimidos de texto. Aquilo que vamos ingerir são os filmes e videojogos do futuro, realidade virtuais que simularão no nosso cérebro histórias, acções e experiências. Aliás falei disto quando aqui discuti o último filme de Ari Folman, "The Congress" (2012).

julho 06, 2014

Torna-te artista, agora!

Kim Young-ha (1968) é um dos escritores mais respeitados da Coreia do Sul. Depois de vários anos como professor na Korean National University of Arts resolveu deixar tudo para trás, ir morar para NY e viver apenas da escrita. Nesta TED, “Be an artist, right now!” dada em Seoul em 2010, Kim Young-ha fala sobre os dilemas que nos impedem de nos tornarmos artistas, as amarras que nos prendem, e aquilo que podemos fazer para as quebrar.



Uma frase vai ficar marcada para mim depois de ver esta palestra “The moment kids start to lie is the moment storytelling begins.”. Se nada mais fosse dito de relevo, esta frase teria sido suficiente para justificar o tempo que investi a ver a comunicação. É algo pelo qual já passei em casa, e já me interroguei, não neste sentido, mas nas razões do seu surgimento. Esta explicação apresentada por Kim Young-ha diz muito, se não tudo, sobre aquilo que somos e porque a arte é tão importante, mesmo quando sabemos, e como ele defende no final, respondendo à questão, “Para que serve a arte?”, “But art is not for anything. Art is the ultimate goal. It saves our souls and makes us live happily. It helps us express ourselves…". Isto porque criar arte é acima de tudo um acto que nos permite depurar aquilo que somos, porque o fazemos pela espontaneidade do nosso devir, emergindo do largar das amarras do dever, envolvido por actos de puro brincar. Como diz Young-ha, "just for the fun of it. Sorry for having fun without you”.

julho 05, 2014

Asghar Farhadi e os dilemas

Asghar Farhadi iniciou-se nas longa-metragens em 2003 e desde então realizou seis filmes. Hoje acabei de ver a sua filmografia, e se a procurei ver foi porque considero Asghar Farhadi o mais relevante realizador da atualidade. Farhadi não é apenas realizador das suas obras, é também o escritor destas, ainda que por vezes em parceria. Tal como com outros grandes realizadores, o facto de se escrever o texto de suporte à obra audiovisual faz diferença, no momento em que se procura dizer algo, em que se procura dar forma audiovisual a um sentir, a expressividade ganha com a fusão entre a mensagem e a forma. Farhadi fez a sua licenciatura e mestrado em cinema na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de Teerão, Irão.

Asghar Farhadi (1972)

Em 2003 realizou a sua primeira longa-metragem, “Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust), que tive o prazer de visionar na semana passada. É um primeiro filme, nota-se que existe ali algo pronto a emergir, mas isso nunca chega verdadeiramente a acontecer na tela. É uma obra inicial em que Farhadi está claramente mais preocupado em ser capaz de dar conta da história em termos audiovisuais, do que propriamente em inovar ou aprofundar o meio. Apesar de tudo, o filme indicia desde logo os temas de fundo que movem a escrita de Farhadi, o amor e as divisões sociais, os sacrifícios que este impõe e o modo como a cultura islâmica o aprisiona.

Raghs dar ghobar” (Dancing in the Dust) (2003)

O cerne do trabalho de Farhadi está centrado sobre a moral, essencialmente sobre os seus dilemas, capazes de levar os seus personagens ao extremo de si próprios, colocando-os à prova e obrigando-os a reagir. Neste sentido Asghar Farhadi aproxima-se bastante de Krzysztof Kieslowski, sendo que aquilo que os diferencia é apenas a camisa moral que vestem, uma de fundo cristã, a outra de fundo islâmica.

"Shah-re Ziba" (Beautiful City) (2004)

Se em 2003 Farhadi procurava apenas pôr-se à prova enquanto realizador, em 2004 a sua segunda longa-metragem, “Shah-re Ziba” (Beautiful City), surge já com toda a força da sua veia narrativa e exposição audiovisual. “Shah-re Ziba” põe em cena personagens que começam por parecer tão simples, discretos e fáceis de compreender, mas à medida que progridem com a narrativa vão-se densificando, enfrentando questões que parecem abrir-se para outras ainda mais complexas. Os personagens vão-se abrindo, como camadas de uma cebola em direcção centro, sentimos com o evoluir da história que estamos cada vez mais próximos dos seus âmagos, até que deixam de ser meros personagens e passam a ser pessoas de carne e osso na nossa frente, com as quais não conseguimos deixar de empatizar.

Isto acaba resumindo o modo de trabalho de Farhadi que se propaga através de todas as suas obras seguintes, "Fireworks Wednesday" (2006), "About Elly" (2009), "A Separation" (2011) e "Le Passé" (2013). Sobre este último e como já tinha dito antes, acredito que o facto de ter sido a primeira experiência de Farhadi fora do Irão, não tenha resultado tão instigante. Aliás basta ler as suas entrevistas para compreender o quanto do que está nos seus filmes está ligado à cultura do local que habita. Em certa medida, nota-se, tal como se notou na sua primeira longa “Raghs dar ghobar”, alguma preocupação maior em fazer bem e perfeito, e com isso acaba-se perdendo alguma arte e mestria. Mas estas duas obras denotam ainda mais toda a sua qualidade enquanto artista, como alguém que precisa primeiro de respirar o mundo que quer verbalizar, de o sentir na sua essência para então dar conta dele em imagens, sons e textos. Farhadi está assim bem distante do mero realizador de serviço, do técnico que marcha em função do predeterminado.

Julgo que aquilo que esta sua forma de trabalhar - viver, escrever e realizar - permite-lhe chegar a níveis que dificilmente se poderiam atingir de outra forma. O que podemos sentir nas suas obras é algo extremamente impregnado no todo, numa narrativa sempre densa com personagens sempre bastante complexos, tudo envolvido por uma realização muito próxima das questões, preocupada em transmitir os dilemas, secundarizando totalmente o acessório, encaminhando o espectador para o interior das suas personagens. Farhadi cria em cada uma das suas obras, momentos de profunda análise do que é ser-se humano, do que é viver-se com o outro, depender-se do outro, formar um todo com o outro.

Cada um dos seus filmes tem sido bastante fértil em prémios nos vários festivais internacionais de topo - Cannes, Veneza, Berlin - incluindo o primeiro oscar para o Irão em 2011. Fico agora ansiosamente a aguardar pelo seu próximo trabalho.

julho 04, 2014

Filmes e jogos de Junho 2014

Em junho tive oportunidade ver mais uma obra-prima do cinema francês, assim como assistir ao derradeiro trabalho de Miyazaki, tendo conseguido ainda ver o primeiro filme realizado por Farhadi que não me surpreendeu, embora para primeiro filme funcione bastante bem. Algo que não foi desilusão, mas antes surpresa, dado o excesso de violência foi "300 Rise of an Empire", para quem como eu se tem sentido chocado com a ultraviolência nos videojogos, "300..." vai muito além do que se tem visto por aí, e no entanto a classificação em vários países situa-se nos 16 anos.

xxxxx Blue Is the Warmest Color 2013 Abdellatif Kechiche France [Análise]


xxxx The Wind Rises 2013 Hayao Miyazaki Japan

xxxx Enemy 2013 Denis Villeneuve USA

xxxx The Quatermass Xperiment 1955 Val Guest UK


xxx Non-Stop 2014 Jaume Collet-Serra USA
xxx Layer Cake 2004 Matthew Vaughn UK
xxx Dancing in the Dust 2002 Asghar Farhadi Iran


xx 300 Rise of an Empire 2014 Noam Murro USA
xx The Monuments Men 2014 George Clooney USA


No mundo dos videojogos não consegui tempo para ir além de terminar a trilogia de Mass Effect. Tenho vários jogos abertos, mas não tenho conseguido sentar-me e dedicar-lhes tempo.

xxxx Mass Effect 3 2012 BioWare Action USA [análise brevemente]

julho 03, 2014

Problemas do marketing digital

Hoffman é autor de "101 Contrarian Ideas About Advertising" (2011) e do blog Ad Contrarian, é ainda CEO da agência americana Hoffman/Lewis, tendo desenvolvido campanhas para a McDonald's, Toyota, Shell, Nestle, etc. Com formação de base em ciências e sendo assistente especial da California Academy of Sciences, parte do seu discurso move-se no sentido da obtenção de fundamento e evidência científica. E é por isso que esta palestra dada em Março na Advertising Week Europe 2014, intitulada, “The Golden Age of Bullshit” é extremamente interessante.

Bob Hoffman

Bob Hoffman procura ao longo de uma hora de palestra desmontar alguns mitos do mundo da publicidade e do marketing digital, com base num estudo comparado entre aquilo que os Marketeers e Publicitários foram dizendo ao longo dos anos e aquilo que verdadeiramente foi acontecendo no mundo real. Um dos maiores criadores desses mitos tem sido Seth Godin, um dos grandes gurus dos novos paradigmas de marketing, e em quem eu tenho vindo a confiar cada vez menos, nomeadamente desde que resolveu começar a aplicar as suas ideias sobre marketing, como grande martelo para tudo, como é o caso do livro autopublicado “Stop Stealing Dreams: What is School For?”. Esta crença nos gurus não acontece por acaso, mas porque como diz Hoffman no final da palestra, e citando Daniel Kahneman, "People don't believe in facts, they believe in experts."

Assim algo concreto de que tenho desconfiado no marketing contemporâneo, é o hype em redor do storytelling e dos videojogos. Ideias que têm sido vendidas como uma necessidade para criar relações com os consumidores. Ora, se é verdade que estas duas formas de construir experiências trabalham sob o desígnio do engajamento e envolvimento, ligando as pessoas às obras, não é claro que isso seja facilmente trespassável para o mundo do marketing ou branding. Mais, se tem sido imensamente difícil passar estas abordagens para o mundo da educação, porque é que haveria de ser tudo fácil no mundo do consumo? Deste modo Hoffman abre a palestra dizendo, o seguinte,
“We’re so drunk on this stuff that we’re starting to believe our own bullshit.
There are people in our business who believe that consumers are in love with brands! They believe consumers want to have relationships with brands. They want to have brand experiences and be personally engaged with brands. This people actually believe in this. You go to their Twitter profiles,
- “I’m passionate about brands”
- “You’re what? Dude get a fucking girlfriend”
There are people in our business who believe that consumers are going on Facebook and Twitter and having conversations with each other about  brands. All you have to do is going to your Facebook page, and if you can read, you can see that people are having conversations about everything in the universe, except brands.
And yet the bullshit we tell ourselves is apparently so powerful that it supersedes the evidence of our own eyes.”
Esta é a dura realidade que o marketing digital ainda não quis encarar de frente. Ninguém online fala das marcas, nem sequer está importado com as páginas das marcas, a não ser quando elas fazem asneira, tendo assim uma espécie de canal directo para lançar algum fel. As pessoas procuram outros seres humanos, não procuram objectos, artefactos, e menos ainda marcas. Quem tem página online de uma empresa, associação ou blog de certeza que já percebeu a diferença entre publicar algo no facebook sob o nome da página ou sob nome individual. As pessoas clicam mais quando a partilha é feita por uma pessoa, do que por uma marca, uma identidade abstracta desprovida de sentir. As pessoas querem a garantia que do outro lado está alguém capaz de interpretar aquele clique, aquele like. Clicar num like não é uma mera acção abstracta, é um acto de comunicação, é um acto de aceitação do outro.

Bob Hoffman, "The Golden Age of Bullshit" na Advertising Week Europe 2014

Isto não quer dizer que o marketing não está a mudar, que o digital não lhe serve. Serve sim, mas serve essencialmente para compreender melhor para quem se fala, e como se deve falar. O Facebook é muito útil para conseguirem compreender melhor o que move as pessoas, e conseguirem assim criar e desenhar para as suas verdadeiras necessidades. Mas não esperem que porque têm um discurso mais próximo, até mais humano, as pessoas desatem a envolver-se com as marcas, ou como diz o Hoffman, “amem as marcas”, isso não vai acontecer.

Plágio Castello

Esta semana estalou a polémica em redor de uma campanha da Agua Castello, tendo na altura escrito sobre o assunto no facebook, aproveito apenas para colocar o texto aqui sem alterações, como forma de registo. O artigo do Dinheiro Vivo saiu no dia 30 Junho, por volta do meio-dia, eu publiquei o meu texto no facebook com o título "Não é Strat. É Charles Burns" por volta das 14h00, no final desse mesmo dia, por volta das 19h00, a Água Castello retirava a campanha. Apesar disso a Fantagraphics tinha exposto a campanha três dias antes, a 27 de Junho.


A Água Castello portuguesa foi exposta internacionalmente à vergonha do plágio. A culpa não é sua, mas da agência que contratou para criar a nova campanha baseada em quadros de banda desenhada. Quem acusa é a Fantagraphics editora do trabalho de Charles Burns, autor dos alegados desenhos originais.

Inicialmente tive dúvidas, mesmo depois de ver algumas imagens da editora, principalmente porque não gosto de embandeirar com ataques de plágio no mundo das artes visuais já que tenho visto demasiado trabalho ser atacado injustamente. Mas vista a composição de desmontagem visual realizada pela Fantagraphics (imagem acima) as minhas dúvidas desvaneceram-se por completo (a cara do topo da garrafa é composta a partir da parte inferior da cara de um desenho, e da parte superior da cara de outro desenho). Estamos perante um trabalho de remix muito bem feito, o que para mim não teria nenhum problema caso fosse para ser usado sem fins lucrativos. Mas a ser usado deste modo, é mau, é muito mau.

Da análise do trabalho da Strat, a agência que criou a campanha, verifico que são muito bons em manipulação de fotografia. Ora é isso que temos nas garrafas da Castello, quadros de desenhos de Charles Burns manipulados (redimensionar ou rodar imagens, adicionar traços ou pontos, sobreposição de diferentes imagens para formar outras, etc.). Por isso vir dizer que meramente se “serviram de referências” é altamente abusivo, pois não estão cá referências, mas antes o trabalho em concreto de outro autor.

Sei bem porque a Strat diz isto, porque à partida não existe cobertura legal para que a Strat possa ser processada, uma vez que a manipulação deste tipo é muito usada exactamente para fugir aos direitos de autor. Ou seja em vez de pagar os direitos, alteram-se os trabalhos originais para ficarem ligeiramente diferentes, e assim passarem no crivo.

Mas se isto pode ser “aceitável” na faculdade ou em trabalhos sem componente comercial, desde que citadas as fontes, não é, nem pode ser, tolerado a uma empresa que quer trabalhar a este nível. Porque o que vemos aqui é simplesmente o cortar de custos. Não se contrata um ilustrador, nem se quer pagar quem desenhou o que se encontra online, mas pretende-se receber por um trabalho não realizado.

A Água Castello deve mandar retirar a campanha sem demoras, realizar um pedido de desculpas a Charles Burns, e pedir a total devolução da verba paga à Strat.


Fica a mensagem da Água Castello, deixada no Facebook, e que não me satisfaz, no sentido em que não realiza um claro pedido de desculpas ao autor e de certa forma quase protege a agência responsável pela campanha:
Declaração: A Água Castello enquanto marca portuguesa sempre se guiou por valores de responsabilidade, qualidade e transparência o que lhe grangeou a admiração e o respeito dos seus inúmeros consumidores.
A Água Castello quer acreditar que a Agência de Publicidade que desenvolveu a campanha “Não é Água. É Castello” se pautou pelos mesmos princípios como tem reiterado.
No entanto, para que nenhuma dúvida subsista e como prova de boa fé, a Água Castello vai dar por terminada esta campanha. A Água Castello quer continuar a merecer o respeito dos seus consumidores, dos criadores e de todos os que amam a verdade.
Água Castello

julho 01, 2014

Corrida contra a automação da informação

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee são dois académicos de economia do MIT que procuram perceber os impactos e efeitos das tecnologias de informação sobre o trabalho e a produtividade. “The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies” (2014) é o resultado de vários anos de investigação, e uma espécie de edição definitiva do livro que ambos auto-publicaram em 2011, “Race Against The Machine”.


O cerne da teorização apresentada assenta sobre a ideia de que a Primeira Era das Máquinas (revolução industrial) tratou da automação do trabalho manual, enquanto a Segunda Era das Máquinas trata da automação do trabalho com informação. Esta segunda era é motivada pela quantidade de informação acessível em tempo-real e os algoritmos de tratamento da mesma, sendo um dos grandes exemplos apontado pelos autores, o carro sem condutor da Google, algo que foi apenas possível graças ao manuseamento de massas de dados existentes combinados de forma contínua com a captura em tempo real de dados no carro.

Lexus da Google sem condutor

A primeira parte do livro centra-se sobre as alterações na paisagem tecnológica, sustentando-as com exemplos e demonstrações do que está acontecer no mundo em que nos movemos. Os autores trabalham sobre a exponenciação da capacidade tecnológica baseando-se no princípio de Moore, trabalham questões sobre a digitalização de cultura, sobre a inovação e os efeitos benéficos destas alterações. Nesta fase do livro o discurso é bastante optimista, o futuro será melhor e mais fácil graças ao desenvolvimento tecnológico, e essencialmente ao avanço das tecnologias de informação e de aprendizagem por parte das máquinas. É aqui que se introduz um dos conceitos chave do livro, BOUNTY (recompensa), que dá conta dos ganhos que a sociedade viveu nas últimas décadas graças ao avanço da computação. O facto de podermos aceder a cada vez mais e melhor tecnologia, e consequente conforto, pagando cada vez menos para tal, assim como o facto de termos cada vez mais tempo livre que nos permite gerar toda uma nova economia social.

No entanto o livro não se fica pelos ganhos, nem pelo avanço tecnológico, os autores especialistas em economia, passam a segunda metade do livro a trabalhar o assunto do ponto de vista das pessoas, dos seres humanos que se relacionam com a tecnologia, e os impactos que esta teve e terá sobre as suas vidas. Nesta segunda parte é introduzida o segundo conceito chave do livro SPREAD (distanciamento) que dá conta do aumento do fosso entre aqueles que conseguem aproveitar o que as tecnologias oferecem, e aqueles que por várias razões não as conseguem dominar, ou sequer aceder. Os impactos estão à vista com a mais recente crise de 2008 como se pode ver na obra “Capital” (2014) de Thomas Piketty, que se estende num conglomerado de problemáticas, algumas bem evidenciadas por Lanier em ”Who Owns the Future?” (2013). Como é dito a certa altura,
“Eventually, the economy will find a new equilibrium and full employment will be restored as entrepreneurs invent new businesses and the workforce adapts its human capital.
But what if this process takes a decade? And what if, by then, technology has changed again? This is the possibility that Wassily Leontief had in mind his 1983 article when he speculated that many workers could end up permanently unemployed, like horses unable to adjust to the invention of the tractors. Once one concedes that it takes time for workers and organizations to adjust to technical change, then it becomes apparent that accelerating technical change can lead to widening gaps and increasing possibilities for technological unemployment. Faster technological progress may ultimately bring greater wealth and longer lifespans, but it also requires faster adjustments by both people and institutions.”
Neste sentido o livro fecha as duas partes - Bounty e Spread - apresentando um conjunto de soluções para se atuar primeiro a um nível individual, e em seguida a um nível político. Deste modo podemos dizer que estamos perante um trabalho bastante abrangente, que procura identificar o bom e o mau da revolução de informação que vivemos no momento, refletindo e apresentando soluções plausíveis e exequíveis. É sobre essa parte que me irei deter um pouco mais aqui, não que o resto do livro não seja muito interessante também, mas porque é aquilo que me parece mais relevante discutir. Julgo que depende de todos nós, e cada um pode à sua maneira, e no limite das suas possibilidades procurar a mudança. Assim deixo alguns dos pontos que me parecem mais relevantes.


. Trabalhar com as máquinas, não contra elas
“The teams of human plus machine dominated even the strongest computers. The chess machine Hydra, which is a chess-specific supercomputer like Deep Blue, was “no match for a strong human player using a relatively weak laptop. Human strategic guidance combined with the tactical acuity of a computer was overwhelming.The surprise came at the conclusion of the event. The winner was revealed to be not a grandmaster with a state-of-the-art PC but a pair of amateur American chess players using three computers at the same time. Their skill at manipulating and “coaching” their computers to look very deeply into positions effectively counteracted the superior chess understanding of their grandmaster opponents and the greater computational power of other participants. Weak human + machine + better process was superior to a strong computer alone and, more remarkably, superior to a strong human + machine + inferior process.” Kasparov citado no livro

. As áreas em que ainda fazemos a diferença
“Picasso’s quote [“But they (computers) are useless. They can only give you answers.”] is just about half right… Computers are not useless, but they’re still machines for generating answers, not posing interesting new questions. That ability still seems to be uniquely human, and still highly valuable. We predict that people who are good at idea creation will continue to have a comparative advantage over digital labor for some time to come, and will find themselves in demand.”
Os três conceitos chave em termos de competências humanas para o futuro serão - a ideação (ter ideias), a criatividade (fazer diferente) e a inovação (criar novo). As três abordagens estão ligadas ao pensamento “fora-da-caixa”, algo que os computadores apresentam muita dificuldade em fazer, uma vez que estão limitados ao framework que lhes é dado. Ou seja, os computadores são excelentes a reconhecer padrões, mas muito maus a irem além destes. Uma das razões pelas quais somos bons nisto, tem que ver com o facto de combinarmos os vários sentidos para absorver e analisar a realidade, o que acaba reflectindo-se na forma como depois nos expressamos face à realidade.
“The Spanish clothing company Zara exploits this advantage and uses humans instead of computers to decide which clothes to make. For most apparel retailers, forecasting and sales planning are largely statistical affairs… Zara takes a different approach… To answer the critical question “Which clothes should we make and ship to each store?” Zara relies on its store managers around the world to order exactly, and only, the merchandise that will sell in that location over the next few days. Managers figure this out not by consulting algorithms but instead by walking around the store, observing what shoppers (particularly cool ones) are wearing, talking to them about what they like and what they’re looking for, and generally doing many things at which people excel. Zara store managers do a lot of visual pattern recognition, engage in complex communication with customers, and use all of this information for two purposes: to order existing clothes using a broad frame of inputs, and to engage in ideation by telling headquarters what kinds of new clothes would be popular in their location.”
Outra razão em que eu tenho vindo a reflectir bastante nos últimos anos, tem que ver com o facto de como seres humanos errarmos, estarmos autorizados a errar, porque faz parte de nós. Enquanto a máquina não pode errar. Ora acredito que se a máquina não pode errar, não pode sair do caminho predeterminado, então muito dificilmente alguma vez poderá ser verdadeiramente criativa.


. A escola no meio de tudo isto

Para que estas competências se desenvolvam precisamos de uma escola diferente, capaz de estimular a autonomia, a automotivação e o envolvimento. Mas tudo isto não pode ser desligado de uma profunda capacidade de análise crítica da realidade, algo que tem vindo a ser descurado, essencialmente no ensino superior, fase em que esta competência deveria ser profundamente estimulada.
“Arum and Roksa made use of the Collegiate Learning Assessment (CLA), a recently developed test given to college students to assess their abilities in critical thinking, written communication, problem solving, and analytic reasoning. Although the CLA is administered via computer, it requires essays instead of multiple-choice answers. One of its main components is the ‘performance task,’ which presents students with a set of background documents and gives them ninety minutes to write an essay requiring them to extract information from the materials given and develop a point of view or recommendation. In short, the performance task is a good test of ideation, pattern recognition, and complex communication.
Arum, Roksa, and their colleagues tracked more than 2,300 students enrolled full-time in four-year degree programs at a range of American colleges and universities. Their findings are alarming: 45 percent of students demonstrate no significant improvement on the CLA after two years of college, and 36 percent did not improve at all even after four years. The average improvement on the test after four years was quite small. What accounts for these disappointing results? ”
Arum, Roksa, and their colleagues document that college students today spend only 9 percent of their time studying (compared to 51 percent on “socializing, recreating, and other”), much less than in previous decades, and that only 42 percent reported having taken a class the previous semester that required them to read at least forty pages a week and write at least twenty pages total."
No fundo não chega querer, menos ainda chega entrar na universidade pretendida, ou no curso pretendido, é preciso trabalhar, e muito, para construir as competências. A universidade e o professor são apenas a ponta do iceberg, os resultados só aparecem com o trabalho em profundidade individual do estudante. Não é por acaso que Bolonha impôs metas para o trabalho individual a realizar pelo aluno fora de aulas. Estudos como, “How College Affects Students: A Third Decade of Research”, de Ernest Pascarella e Patrick Terenzini concluíram que “the impact of college is largely determined by individual effort and involvement in the academic, interpersonal, and extracurricular offerings on a campus”.

Deste modo Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee acabam por concluir que apesar das máquinas estarem a automatizar e a tornar tudo mais fácil em nosso redor, nem por isso o mundo à nossa volta será mais fácil para a grande classe média. Conseguir emprego será cada vez mais difícil, e para se precaver só existe um caminho,
“our most fundamental recommendation to students and their parents: study hard, using technology and all other available resources to ‘fill up your toolkit’ and acquire skills and abilities that will be needed in the second machine age.”
Esta é uma realidade que por mais que queiramos escamotear nos bate à porta em todas as estatísticas e recomendações, como bem dá conta o relatório publicado no mês passado pela Comissão Europeia sobre o emprego na Europa,
“Low qualified workers encounter increasing difficulties to find a job, face lower job stability and are out-competed by medium-skilled workers even in elementary occupations.”

Por fim quero apenas deixar um ponto abordado a determinada altura no livro, e que tem que ver com a investigação que realizamos nos nossos laboratórios todos os dias. Nós que trabalhamos com tecnologias de informação e comunicação estamos constantemente preocupados em desenvolver novos sistemas que automatizem as atividades humanas. O que os autores dizem é, e se não fosse assim? E se em vez de procurarmos automatizar as tarefas, procurássemos antes novas formas de criar actividades, de tornar as pessoas, os seres humanos, mais ativos, mais criativos? (Isto é em parte algo que tenho vindo a trabalhar mais recentemente sob a designação de Tecnologias Criativas). No final, nenhum de nós procura verdadeiramente parar de trabalhar, o trabalho é essencial ao ser-humano por estranho que possa parecer! Esse é um ponto aqui defendido, e com o qual concordo particularmente,
“It’s tremendously important for people to work not just because that’s how they get their money, but also because it’s one of the principal ways they get many other important things: self-worth, community, engagement, healthy values, structure, and dignity, to name just a few. Whether the focus is on the individual or the community, the conclusion is the same: work is beneficial.”

“The Second Machine Age" é um livro carregado de ideias, questões, dúvidas, hipóteses e imensa reflexão sobre algo que nos preocupa a todos. De tudo isso dei aqui conta apenas de uma brevíssima síntese sobre algumas dessas ideias, o resto fica para lerem no próprio livro. Entretanto se quiserem saber mais, vale a pena ver as duas TED talks dos autores.