Mostrar mensagens com a etiqueta tecnologia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta tecnologia. Mostrar todas as mensagens

março 07, 2015

Sistemas de Ensino Distribuído por James Paul Gee

A talk “Language, the World, and Video Games: Teaching & Learning in an Imperiled World” que o James Paul Gee proferiu hoje no encerramento da SITE 2015, foi tão inspiradora quanto demolidora, o que já se adivinhava pelo próprio título da conferência. Gee é um académico extremamente respeitado no meio, juntando-lhe a senioridade, faz com que não se preocupe muito com o politicamente correcto. Sem papas na língua, e com um sentido de humor imensamente refinado, polvilhou o seu discurso com ataques à política económica reinante, apontando o dedo ao racional de Milton Friedman que tem servido o declínio da sociedade ocidental nestes últimos anos. A razão pela qual Gee, um académico que se preocupa com a aprendizagem e os videojogos, entrou por este tema adentro é simples, e fica totalmente explícito quando este afirma,

“You can’t make students care, alone, the system needs to care. We have a society that don’t want people to be all educated at high level! So please stop talking about school reform and talk about society reform. All empirical evidence has shown that home base factors swamp completely school base factors.”
A outra parte da conferência foi mais inspiradora para todos aqueles que se preocupam com os processos de aprendizagem na escola, em ambientes informais ou nos videojogos. Gee apresentou tudo um novo modelo sobre a aprendizagem, “Distributed Teaching Systems”, algo inspirado em processos de aprendizagem que já existem no terreno. Falo em concreto dos processos que ocorrem nos jogos multiplayer online como “Dota 2” ou comunidades online como “Galaxy Zoo”, ou ainda os jogos físicos de cartas com acesso online, como “Yu-Gi-Oh!”. Modelar os processos de aprendizagem que acontecem subterraneamente nestes ambientes multiplayer e transmedia era algo que já me tinha questionando várias vezes, mas antes de entrar no detalhe dessa proposta, dou conta do que a precede.

Gee abordou a aprendizagem, tal como tenho vindo a fazer quando me pedem para falar sobre jogos e educação, pelo lado do Design. Ou seja, o relevante de um processo de aprendizagem não está nas atividades e conteúdos que se querem ensinar, mas no modo como se desenha experiência de aprendizagem, e Gee passou todo o tempo a falar exactamente disto, do design e da experiência. Tanto que todo seu discurso começou exactamente por aí, pela experiência e pela leitura, realizando a total apologia do “situtated learning”, dando como exemplo um excerto de um texto do manual do videojogo “Deus Ex” (2000),
Your internal nano-processors keep a very detailed record of your condition, equipment and recent history. You can access this data at any time during play by hitting 1 to get to the Inventory screen or 2 to get to the Goals/Notes screen. Once you have accessed your information screens, you can move between the screens by clicking on the tabs at the top of the screen. You can map other information screens to hotkeys using Settings, Keyboard/Mouse.” (Deus Ex Manual, p.5)
Gee deu-nos a ler este texto, dizendo que ao tentar jogar Deus Ex, e vendo que era muito complexo, tentou ler o manual. O manual tem apenas 20 páginas, mas ao fim da 5ª desistiu. O inglês ali apresentado era bastante lúcido, mas ele não conseguia compreender absolutamente nada do que ali era dito. No entanto depois de ter investido várias semanas no jogo, todo aquele manual passou a fazer sentido, a ser claro e evidente. O mesmo costuma acontecer com a grande maioria dos textos académicos. Gee refere que estes textos relatam apenas os factos e os eventos, e por isso só podemos compreender o que ali está escrito depois de termos jogado, depois de termos experienciado o que neles se relata. Daqui Gee extrapolou para aquilo que se tenta fazer com as crianças nas salas de aulas, ao dar-lhes textos que lhes falam de experiências que estes desconhecem por completo, como ele disse “In schools, we give people manuals for "games" they never get to play and wonder why they get the results they do".

Como pode uma criança aprender algo sobre uma experiência apenas lendo sobre ela? Para Gee pedir isto a uma criança “é imoral”. A grande questão que se coloca então é “What experiences do you need to understand my text?”, ou seja que tipo de experiências são essas que nos permitem aprender à posteriori. A resposta está no slide abaixo,

Slide da talk de Paul Gee

Daqui Gee desenvolveu então um circuito exploratório para o desenho destas experiências em escolas, como se pode ver no slide abaixo,

Slide da talk de Paul Gee

No final questionei Gee dizendo-lhe que não me parecia um circuito muito distinto do design de storytelling, com o qual ele concordou abertamente, reconhecendo a literatura como um dos maiores laboratórios de simulação, ou seja de experiências futuras. O que me levou até à ideia de que um dos maiores problemas destes textos, manuais escolares ou de jogos, ou textos simplesmente informativos, é que são completamente rasos em termos da construção da relação com o leitor. Ou seja, existe apenas uma preocupação com a descrição dos eventos, esquecendo que do outro lado existe um leitor que precisa de primeiro compreender o mundo de quem narra (autor ou personagem), para depois poder compreender aquilo que este quer contar.

Mas este processo de desenho das experiências para aprendizagem futura ganha ainda maior relevo quando pensamos no modo como as crianças, e adultos, constroem o conhecimento que precisam para lidar com experiências imensamente complexas como são os jogos online. Gee apresentou um modelo de aprendizagem desenhado a partir das experiências dos jogadores de "Dota 2", intitulado “Distributed Teaching Systems”, de um seu aluno de doutoramento. Este modelo implica então pensar as experiências de aprendizagem, seguindo uma abordagem “teaching as designing”. Este modelo como se pode ver na imagem abaixo, assenta em 3 pilares: "Designed"; "Design for emergent"; e "Emergent".

Slide da talk de Paul Gee

No fundo falamos aqui dos processos a que as crianças, adolescentes e adultos recorrem quando estão online para aprender a lidar com experiências complexas. Assim quando Gee diz “Most of the action in a game is not in the software — it's in other sites and affinity spaces”, está a dizer que o jogo tem de ser semeado, ele é apenas a "semente", o resto provém dos jogadores, da cultura participativa, colaborativa e cocriativa. Os jogadores criam guias escritos, tutoriais em vídeo, guias em áudio, dão suporte uns aos outros por IM ou fóruns, dão sentido ao que acontece no jogo criando teorias e novas leituras para o que se ali está a fazer, envolvem e protegem-se uns aos outros. No fundo estamos a falar de inteligência colectiva, da partilha de saberes.

E daqui chegamos aos famigerados testes e exames. Se uma criança consegue jogar o jogo, porque lhe hei-de fazer um teste? O teste é exactamente ter conseguido aprender a jogar, conseguir compreender o que se espera dele, se não tivesse compreendido nunca teria chegado ao final do jogo. Segundo Gee os testes só interessam quando a experiência de aprendizagem foi mal desenhada, o que explica a outra conclusão de Gee sobre a razão dos testes, “the reason we’ve created tests, is because we don’t trust the professor”. No fundo os testes servem apenas para examinar os professores, não para garantir que as crianças verdadeiramente aprenderam algo. Porque se aquilo que querem é uma tabela de notas, e não que aprendam efectivamente, então,
“If you want to test someone for what is in the game, to have a bell curve (curva da média realizada a partir de uma tabela de notas), the only way is to test people who have not played it.”
O problema dos testes e das notas é que se focam no acessório. Ou seja, quando uma criança está a aprender a ler, quero mesmo fazer-lhe um teste para saber se aprendeu a ler? Ou quero antes que ele seja capaz de situar o significado nas experiências? Depois admiram-se que tenhamos hoje em dia os chamados “alfabetos funcionais”, pessoas que sabem ler mas não conseguem compreender o que leem. Mas este acaba sendo o efeito quando a escola está mais preocupada com as ferramentas do que com as experiências que estas podem proporcionar ao ser-humano.

Mas voltando aos “Distributed Teaching Systems”, deixo os 10 pontos que Gee considera serem os mais relevantes quando pensamos no desenho da aprendizagem, ou do ensino, numa abordagem “Distributed Teaching and Learning Systems” (DTLSs)? Como podem reparar é um sistema que segue a lógica do Experience Future Learning, acima identificado, mas estende-o em função da distribuição da aprendizagem.



Depois da talk de 45 minutos, tivemos direito a uma nova sessão completa, de 45 minutos, de perguntas que foi imensamente rica. Deixo alguns dos apontamentos dessa sessão,

Will teachers disappear?
Gee: “Artificial tutors will substitute teachers, we need to become game designers (..) Who would design the games for kids? (..) Design to unleash kids creativity, put them to make culture (..) have kids teaching each other”.

How to implement a good policy in the Ministry of Education?
Gee: “The top-down approaches have always been beat by bottom-up ones. Policy making, as imposing doesn’t work. Good policy is designed to be customized. The powerful thing, is not to obligate people to do, but to take them to want to do it. The “No Child behind” was a top-down imposition, with no intention to apply it to the context, and it failed as was recognised by politicians on the right and left.”

How do you make students care?
Gee: “Status correlate with health. The richer, the better your health (..) The broadest status hierarchy the worst the healthiest will be (..) Then if you feel you count, you’re healthier (..) To make people care, let people participate.”

What can we do about media literacy?
Gee: “Put people in production (..) Literacy is completely transformed when you learn to produce (..) The book or game does no magic, the more you read the textbook the less you know (..) Let’s not change the book by the game (..) We need deep situated meaning.”

What should we do about the contents to be taught?
Gee: "In the past we had all these standards, but then when you ask american about something he learned at school, he can't really remember any. You need to diversify, and give space and time for people to find their own needs." E aqui interveio o colega Sébastien Hock-Koon que lançou uma frase de um professor seu de licenciatura, e que Gee aproveitou para aprovar e seguir, e com a qual eu próprio não poderia estar mais de acordo, respondendo por sua vez a muitos dos dramas que muitas pessoas vivem, na indecisão entre ser generalista ou especialista.

"Knowing one thing about everything, and know everything about one thing"

What do you think about using Twitter all the time in schools?
Gee: “No tool should be used all the time (..) No tool is useful until you get its affordances, and get it linked to the rest of the design of the teaching (..) Face to face communication is essential because it's old, it's primordial.”

março 06, 2015

Como a tecnologia nos muda, ou não...

As neurociências trouxeram imensos benefícios a praticamente todos os domínios do conhecimento, da psicologia à medicina, desde que o objecto de estudo se relacione com o ser-humano, elas estão no centro. Contudo precisamos de ter algum cuidado quando transferimos o conhecimento do meio académico para o meio geral, já que pelo meio se dão sempre amplificações e reduções que acabam, por vezes, por redundar em distorções. Um desses temas é o da plasticidade do cérebro, que tem sofrido um hype tremendo, nomeadamente quando associado às tecnologias de comunicação, como a internet (ver mais em Nicholas Carr, a internet e o nosso cérebro). Neste sentido, trago hoje dois pequenos filmes à discussão.



O primeiro, “Has Technology Changed Us? Rewiring the Brain” (2015), criado pela BBC e Open University, que vai de encontro exactamente ao problema que refiro acima. O filme, escrito por Nigel Warburton um filósofo britânico (e narrado por Gillian Anderson), pega no conhecimento entretanto desenvolvido no campo das neurociências e especula abertamente sobre o alcance desse novo conhecimento. Assim quem veja este filme, sem qualquer informação adicional, ficará com a ideia que o nosso cérebro, independentemente da idade, se adapta e modela ao sabor dos dias, que podemos mudar os nossos hábitos e personalidades, e que por isso mesmo o nosso cérebro se está a adaptar à velocidade e multitasking das tecnologias de comunicação, com todos os benefícios e problemas daí decorrentes. Ora, isto tudo é muito interessante enquanto especulação filosófica, mas tem pouco ou nenhum assento em ciência. O nosso cérebro muda sim, mas não muda à velocidade da nossa vida. Para determinadas mudanças são precisas gerações, para outras é preciso bem mais, entramos num processo de selecção natural que pode demorar milénios a efectuar-se.

Has Technology Changed Us? Rewiring the Brain” (2015) de Nigel Warburton

E é aqui que aproveito para introduzir o novo ensaio-audiovisual de Adam Westbrook, “A Briefer History of Time: How technology changes us in unexpected ways” (2015). Tenho apresentado aqui os filmes que Westbrook tem feito para o Delve (ver os vídeo-ensaios anteriores), desta vez trago um trabalho seu para o Fusion, feito como encomenda, e por isso feito de forma bastante mais rápida, segundo o próprio num terço do tempo, logo sem o amadurecimento que nos habituámos a ver no Delve. Contudo continua a ser um bom trabalho. E se o junto ao filme da BBC é porque ele dá conta do impacto das tecnologias, do modo como elas nos modificam, alteram aquilo que somos, sem precisar de entrar em teorias especulativas, apenas apresentando factos históricos e seus efeitos. A diferença, entre estas abordagens, está no tempo, mas não o das horas, o das gerações. Como a tecnologia imprime novos hábitos e comportamentos e como estes, com o passar dos tempos, se vão afirmando como parte de nós, ainda que não percamos nunca a percepção daquilo que somos. Ou seja, podemos mudar e aceitar mudar aquilo que somos, mas em essência mantemos aquilo que somos, continuando a sentir o apelo para retornar a essa forma que faz de nós seres humanos, e não outra coisa qualquer.

A Briefer History of Time: How technology changes us in unexpected ways” (2015) de Adam Westbrook

fevereiro 01, 2015

"Creativity Inc." (2014)

É um livro impressionantemente honesto e extremamente relevante, uma leitura inebriante da primeira à última página. As principais razões para tal: 1) é um dos livros mais importantes já escritos sobre gestão de criatividade, tendo-se já tornado um clássico obrigatório; 2) é um livro construído com base numa premissa fruto de validação científica; 3) é um livro sobre tecnologias CGI e Animação, sobre a Pixar e a Disney; 4) é um livro sobre a realização de um sonho, fruto de grande ambição, visão e muita humildade. Para que se compreenda a relevância deste livro é preciso compreender quem é o autor, e o que fez. O livro foi escrito por Ed Catmull, fundador da Pixar e seu actual presidente, a única empresa na história do Cinema a ter criado mais de uma dezena de filmes (14), sem nunca ter conhecido o falhanço, com todos os filmes a atingirem o 1º lugar do Box Office, metade conseguiu o Oscar de Melhor Animação (7). Não existe nenhuma outra empresa no ramo do cinema, dentro ou fora da animação, que se compare com a Pixar, e é por isso que se torna tão importante compreender o que constitui a estrutura desta empresa.


Catmull começa o livro discutindo a origem da sua paixão, nos anos 1950 quando via os desenhos animados da Disney na televisão percebeu que era aquilo que queria fazer na sua vida. Sinto aqui alguma sintonia, mas no meu caso não foi a Disney, foi a Pixar. Tal como “Snow White” tinha sido a primeira longa de animação em 1937, “Toy Story” tornou-se na primeira longa de animação 3d em 1995. Ambas estas duas conquistas estão ao nível do primeiro passo da humanidade na Lua, por tudo aquilo que exigiram do ser humano em duas frentes: arte e tecnologia.

Para termos “Toy Story” foi preciso juntar três pessoas - Ed Catmull, John Lasseter e Steve Jobs. Como Catmull frisa várias vezes ao longo do livro, não basta talento, muito esforço e dedicação, muito daquilo que fazemos nas nossas vidas é fruto de vários acasos. Neste caso, se Jobs não tivesse sido despedido da Apple, ou se Lasseter não tivesse sido despedido da Disney, nunca teria existido a Pixar, mas estas são apenas duas das imensas bifurcações que possibilitaram que algo que começou como um sonho na cabeça de Catmull se tivesse tornado em algo real.

Uma das dimensões que mais me interessou neste livro foi perceber de que era feito Catmull, e como é que alguém com formação tão tecnológica foi capaz de desenvolver tanta sensibilidade pelos aspectos criativos. A minha conclusão depois da leitura do livro, e é algo que o próprio refere, embora não o afirme, é que o seu modelo de gestão de criatividade é baseado no modelo de peer-reviewing académico. Catmull antes de ser empresário, licenciou-se e doutorou-se em Ciências da Computação na Universidade do Utah, onde teve mais uma vez a sorte de trabalhar num dos momentos, e com uma das equipas, mais importantes da Computação Gráfica e Interacção Humano-Computador, na qual se encontravam Ivan Sutherland e Alan Kay. A sua tese de doutoramento (“A subdivision algorithm for computer display of curved surfaces”, 1974) daria origem a um algoritmo de render. Aliás ainda hoje, para mim, Catmull soa a render porque foi dos primeiros que me recordo de usar na modelação e rendering 3d.

A experiência académica de Catmull revelou-se crucial no modo como este iria passar a lidar com o conhecimento e com os seus colegas de trabalho. O conhecimento é fruto da partilha, da humildade, do reconhecimento dos demais, de ouvir e construir sempre com os outros, sempre pela via da experimentação e validação junto dos pares. O mundo académico é um ambiente descentralizado, em que cada investigador tem grande autonomia, o que tem o seu lado bom, mas obriga a que este tenha de ser proativo, capaz de se orientar, de encontrar o seu caminho, ainda que o seu trabalho só possa evoluir com o reconhecimento dos seus pares. Foi exactamente este tipo de cultura que Catmull implementou na Pixar, é este o fundamento do "BrainTrust", a equipa, rotativa, que na Pixar analisa e discute regularmente as produções em curso (mais detalhe nos pontos 5 e 6 da análise de "Imagine").

Catmull professa assim uma gestão baseada na frontalidade e abertura, na descentralização e desierarquização, na autonomia e responsabilização de cada ser individual, tudo fundamentado em dois elementos centrais, a honestidade e a humildade. Se dúvidas houvesse quanto a estes dois elementos, basta pensar, quem seria o presidente de duas multinacionais envolvidas em milhões, que faria um livro abrindo e revelando todos os detalhes da sua forma de trabalho, dos seus sucessos, mas também dos seus falhanços? Mas este livro não é apenas uma confissão, ou diário, é muito mais do que isso e Catmull vai frisá-lo a meio do livro. A razão principal porque escreveu este livro foi porque teve hipótese de validar o método de gestão criado na Pixar. Em 2006, depois de se tornar presidente da Disney, implementou aí o mesmo método de gestão de cultura criativa, seguindo uma abordagem experimental científica, procurando evitar contaminar variáveis, e o método emergiu, com nuances mas com os resultados que hoje conhecemos (veja-se nomeadamente os filmes "Wreck-It Ralph" (2012) e "Big Hero 6" (2014)). A Disney mudou radicalmente o seu modelo de gestão ao bom estilo Fordiano, e tem hoje o seu próprio BrainTrust, batizado "StoryTrust".

Diga-se que o método não emerge apenas de Catmull, ele é fruto de um projecto a três cabeças - Catmull, Lasseter e Jobs. Catmull o especialista em computação gráfica, Lasseter o especialista em storytelling e Jobs o especialista em inovação pela arte e criatividade.  Foi a obsessão deste trio por cada um dos seus domínios que permitiu o surgimento de uma Pixar. À gestão criativa em modo de peer-reviewing de Catmull, juntou-se o brilhantismo do storytelling em animação de Lasseter (vejam ou revejam “Luxo Jr” (1986), já perdi a conta ao número de vezes que mostrei este filme em aulas), a estes juntou-se a obsessão de Jobs pela fusão entre arte e tecnologia, e pela qualidade, sendo capaz de preferir perder milhões cancelando um produto ou filme, a ter um fracasso comercial.

Da esq. para a dir.: Ed Catmull, Steve Jobs e John Lasseter

Existe muito mais que gostaria de dizer sobre este livro, sobre a Pixar, sobre os “três mosqueteiros”, mas isso também estragaria o interesse da leitura para quem ainda não leu. É verdade que me deixei inebriar com o livro, dado o meu amor pela Disney e Pixar e claro todo o reconhecimento que tenho pelo legado tecnológico de várias pessoas que são aqui centrais, o Steve Jobs e a Apple, mas também Ivan Sutherland e Alan Kay, e claro Catmull, que além de se ter tornado num gestor de topo, é antes de tudo um cientista da computação. E talvez mais importante ainda, nada disto existiria sem o fruto principal, o legado artístico de Walt Disney, Ollie Johnston e Frank Thomas, e do que ficará de criadores como John Lasseter, Andrew Stanton e Brad Bird.

Deixo aqui no final apenas algumas indicações do modelo de Catmull, mas são apenas isso, indicações. Leiam o livro, absorvam-no e tentem aplicar os seus ideais pelas empresas por onde passarem.
  1. As pessoas e os seus talentos, são mais importantes que as ideias.
  2. Contratem pessoas pelo seu potencial, não pelo seu passado.
  3. Contratem pessoas que sejam mais inteligentes que vocês.
  4. Todos devem sentir-se livres para contribuir com ideias. Todos.
  5. Eliminem o medo. 
  6. Não escondam os problemas, é o primeiro passo para o falhanço
  7. As primeiras conclusões, estão quase sempre erradas.
Para que estes princípios possam ser aplicados, é necessário seguir algumas lógicas de acção no seio da empresa:
  1. Honestidade e Candura. Centrais, sem honestidade a candura não emerge, e sem ela a crítica construtiva não surge.
  2. Medo e Falhanço. Preciso falhar para avançar, sendo que o medo de falhar é central, é preciso atacá-lo desde a raíz.
  3. A Mudança. Um ponto, que julgo muito relevante nestes tempos conturbados de crise, sobre a mudança, a sua necessidade, e formas de o fazer sem criar demasiados atritos, desconfiança e medo.
:: Why change?
“Many of the rules that people find onerous and bureaucratic were put in place to deal with real abuses, problems, or inconsistencies or as a way of managing complex environments. But while each rule may have been instituted for good reason, after a while a thicket of rules develops that may not make sense in the aggregate. The danger is that your company becomes overwhelmed by well-intended rules that only accomplish one thing: draining the creative impulse.”

:: How to approach change?

“Pete has a few methods he uses to help manage people through the fears brought on by pre-production chaos. “Sometimes in meetings, I sense people seizing up, not wanting to even talk about changes,” he says. “So I try to trick them. I’ll say, ‘This would be a big change if we were really going to do it, but just as a thought exercise, what if …’ Or, ‘I’m not actually suggesting this, but go with me for a minute …’ If people anticipate the production pressures, they’ll close the door to new ideas—so you have to pretend you’re not actually going to do anything, we’re just talking, just playing around. Then if you hit upon some new idea that clearly works, people are excited about it and are happier to act on the change.”
Por fim, fecho com o aspecto central de toda esta leitura, uma reiteração que vai surgindo ao longo do livro por Catmull:
To reiterate, it is the focus on people—their work habits, their talents, their values—that is absolutely central to any creative venture.


Ler também
O primeiro filme CGI, criado por Catmull há 40 anos
Como funciona a Criatividade, baseado no modelo da Pixar,
O storytelling por Andrew Stanton
O legado de Steve Jobs

Nota quantitativa no Goodreads.

Actualização 2.2.2015:
Descobri que o livro foi entretanto traduzido para português e lançado por estes dias, tendo mantido a mesma capa, mas com o título simplificado, "Criatividade" apenas.

dezembro 08, 2014

A Hora do Código

Começa hoje a Computer Science Education Week 2014 que tem como principal objectivo fomentar a aprendizagem da programação de computadores junto de todos os estratos etários, sociais e económicos. A actividade principal da Semana assenta na "Hora do Código" que passa por convencer pessoas que nunca programaram, a investirem uma hora das suas vidas a programar. O objectivo é simples, lançar as pessoas sobre os carris da programação e assim criar o "bichinho".


Em Portugal a "Hora do Código" está a ser coordenada pela ANPRI (Associação Nacional de Professores de Informática) que disponibiliza um conjunto de ferramentas na sua página e na página no Facebook. Para a promoção da "Hora do Código" a ANPRI convidou várias pessoas nacionais ligadas ao mundo das tecnologias e educação para participar de um conjunto de flyers online com frases de incentivo à programação. Deixo aqui a frase que enviei à ANPRI,

A criatividade é a competência chave dos próximos anos, mas esta não se resume a ter ideias, precisa de se realizar num concreto, algo que a programação pode potenciar pelo modo como estabelece a ligação entre o pensar e o fazer.
Nelson Zagalo
A linguagem de eleição para a Hora do Código é o Blockly, uma linguagem visual desenvolvida pela Google, decalcada do Scratch do MIT, mas muito mais poderosa, pela simples razão de poder traduzir toda a programação em Blockly automaticamente para Javascript ou Python. Deste modo o Blockly serve não apenas os iniciantes na programação, mas pode acompanhar-nos mesmo depois de dominarmos os básicos, através da flexibilidade do Javascript ou Python.

Tutorial de Blockly com Angry Birds

Para este ano, um grupo de engenheiros da Google, Microsoft, Facebook e Twitter com o apoio da Rovio e da EA, desenvolveram um tutorial de Blockly absolutamente fantástico. Fazendo uso dos personagens de Angry Birds, Plants vs. Zombies e ainda o esquilo Scrat do filme Ice Age criaram um tutorial linear em 20 passos que permite a qualquer pessoa, sem qualquer noção de programação, dar os primeiros passos na arte de forma extremamente divertida. Aconselho vivamente a realização deste tutorial, e se houver crianças por perto incentivem-nas, apesar de estar em inglês. Se ainda faltar motivação vejam o vídeo novo da "Hora do Código", abaixo!

julho 23, 2014

Porque criámos a Escola, a Arte ou o Entretenimento

Este mês a Science publicou o artigo “Just think: The Challenges of the Disengaged Mindcoordenado por Timothy D. Wilson do Departamento de Psicologia da Universidade da Virginia. A abordagem escolhida para problematizar a questão é provocatória, no sentido em que aborda o problema pelo lado de uma alegada incapacidade para pensar. A provocação premiou o texto e fez com que este se espalhasse pelos media rapidamente. Mas do que se fala aqui é essencialmente dos efeitos da hipoestimulação externa sobre a nossa mente.

"The Thinker" (1882) de Auguste Rodin
Sumário do estudo: “Era pedido às cobaias - estudantes universitários e posteriormente pessoas recrutadas num mercado e numa igreja local - que estivessem períodos entre seis e 15 minutos sentados numa sala sem decoração e sem ter por perto objectos pessoais. Durante esse tempo poderiam pensar no que quisessem. Numa primeira fase, mais de metade dos participantes informou ter sido difícil concentrar-se, mesmo sem haver nada a distraí-los. Quase cinco em dez (49,3%) considerou a experiência desagradável.” [fonte]
Foram feitos ainda vários testes para despistar potenciais hipóteses para o surgimento do desprazer no alegado acto de pensar, entre as quais: "ruminar sobre os seus defeitos”; “pensar no próprio momento em como iriam ocupar a cabeça”; “usar mais ou menos o telemóvel no dia-a-dia”; ou ainda “a personalidade dos participantes”. Nenhuma destas demonstrou ser verdadeiramente responsável por estes efeitos. Deste modo o artigo publicado levanta o véu e deixa o caminho livre para mais estudos que expliquem o problema. Do meu lado resolvi fazer algumas reflexões a propósito e que partilho aqui a seguir.

Quando falei em hipoestimulação estava a falar em algo que está intimamente ligado à nossa biologia. No século XXI é inevitável realizar estes cruzamentos entre a psicologia e a biologia para procurarmos compreender porque somos aquilo que somos. Assim, devemos começar por perguntar porque sofremos quando em ambientes de hipoestimulação, quais as suas causas, os seus efeitos e como lidar com o problema?

A hipoestimulação representa uma condição de ausência de estimulação externa, e os seres-humanos lidam mal com essa condição. Surgimos enquanto espécie a partir de um caldeirão de elementos e variáveis que potencializaram a nossa emergência neste planeta. Somos parte do sistema natural como um todo, que é um sistema contínuo no tempo e no espaço. Assim sendo, aquilo que somos é praticamente impossível de ser desconectado desse contínuo. Esse contínuo é toda a natureza, mas são todos os outros nossos semelhantes, assim como toda a produção cultural que desenvolvemos e que vai servindo em substituição desse natural.

Nos "tempos das cavernas" esta ligação ao contínuo circundante foi essencial para que pudéssemos elevar a acuidade das nossas capacidades perceptivas. Desenvolvemos assim mecanismos, entre os quais as emoções, que nos permitiram agir de modo instintivo sem necessidade de recorrer ao consciente (mais lento) para sobreviver. A nossa condição animal não nos dava propriamente grandes garantias à nascença, tendo em conta a força e mesmo inteligência, de alguns predadores que por cá andavam antes de nós. Nesse sentido fomos desenvolvendo e seleccionando aqueles que de entre nós tinham melhores sistemas de alerta, ou seja que conseguiam estabelecer a melhor sintonia com a realidade circundante externa. Durante todo esse tempo a virtualidade interna das nossas mentes foi muito pouco relevante. Os nossos mais hábeis funcionavam quase exclusivamente em função da acção sobre o exterior, mantendo os aspectos interiores a um canto, o que terá dado origem a ditados como “um homem não chora”.

Com o passar do tempo a componente social mamífera foi-nos empurrando para a socialização e permitiu o surgimento da protecção e sobrevivência pelo efeito de grupo (ver The Age of Empathy). Isto veio permitir que alguns de nós, com menores instintos de sobrevivência, pudessem também sobreviver. Estes por sua vez, e por agirem menos sobre o exterior, passaram a poder dar azo à pessoa interior, que liberta das amarras da sobrevivência podia deambular mentalmente. A baixa sintonia com o mundo externo, fez aumentar a percepção do mundo interno, fez ganhar consciência de si, e do seu posicionamento no contínuo natural.

Deste modo seriam conduzidos a uma hiperestimulação interna da mente que por sua vez os iria conduzir à exteriorização e materialização dessas suas internalidades. Temos assim as primeiras imagens da nossa espécie nas paredes de Lascaux e Altamira a surgirem há 20 mil anos atrás. Esta exteriorização surge como uma necessidade fundamental para comunicar aos outros as suas estimulações internas, ou seja camadas de ideias sem objecto material concreto. Ideias suportadas por camadas de abstracções que precisavam de ser tornadas em algo material a que os outros pudessem também aceder. Assim a arte acaba por surgir como a recriação de mundos internos, fundindo-os com as condições do mundo externo.

Pinturas das caves de Lascaux, datadas de há 20 mil anos

A necessidade de estar em sintonia com esse mundo exterior, os perigos e a fome, foi decrescendo já que a nossa sobrevivência passou a estar assegurada pelo esforço de comunidades cada vez maiores. Nesse sentido havia cada vez mais pessoas que se podiam dedicar a reflectir e a produzir pensamento cada vez mais complexo. Esta reflexão interna daria origem ao desenvolvimento das capacidades de elaboração mental, e por sua vez isso levaria à criação de tecnologias de suporte à sua externalização como por exemplo o surgimento da escrita. Com o passar do tempo fomos enriquecendo o natural, complementando-o com o cultural tornando-o cada vez mais complexo e elaborado.

Assim a realidade que passou a rodear-nos era composta de uma camada de abstracção completamente diferente daquela que o mundo natural apresentava, e para a qual tínhamos desenvolvido toda a nossa máquina sensorial. E é aqui que vai entrar a escola, porque nessa altura começa a deixar de ser possível viver apenas confinado às propriedades do mundo natural. As ferramentas com que nascemos, que nos apetrecham para lidar com a natureza, já não são suficientes para lidar com o novo mundo, criado a partir do interior das mentes de cada um de nós. Isto acaba por estar reflectido na frase que fecha o artigo na Science,
“The untutored mind does not like to be alone with itself”
Precisamos então de desenvolver esquemas mentais capazes de suportar o pensamento interno, que nos conduzam à produção de novo pensamento em territórios de abstracção. E é isso que a escola se dedica a fazer, fornecendo instrumentos para que cada um de nós possa ser capaz de enfrentar o seu próprio ser pensante. Ao mesmo tempo a escola ajuda-nos a construir a ponte entre o nosso interior e o exterior, fazendo uso dos canais de abstracção não naturais, seja a escrita, seja a imagem, a música, o cinema, os videojogos ou a ciência, a engenharia, etc. Por isso a escola acaba sendo difícil para todos nós, porque queiramos ou não, trata-se de um processo de modelação do nosso ser, de ajuste das nossas potencialidades naturais às novas potencialidades da cultura humana.

Isto não quer dizer que tenhamos abolido a nossa ligação ao exterior, antes pelo contrário, com a expansão do natural pelo cultural e tecnológico, apenas acentuámos mais ainda a nossa ligação e dependência do exterior. O acto de pensar não se confina ao nosso interior, porque ele apenas se finaliza quando tornado material. Por outro lado o acto de pensar a complexidade não existe nunca sem estimulação externa, esta obviamente não precisa de ser contínua, mas precisa de acontecer. Para compreender esta condição basta parar e “observar” o que acontece no interior da nossa mente quando acabamos de ler um livro que nos apresentou ideias desconhecidas mas que fizeram sentido para nós. O pensamento entra em ebulição abstracta, procurando criar novos esquemas mentais para encaixar o conhecimento novo. Nesses momentos é fácil estar 10, 30 ou 60 minutos em hipoestimulação, porque o pensamento está totalmente “entretetido”.

Isto leva-nos à discussão do surgimento do entretenimento, da literatura, do cinema, dos videojogos. Se o seu surgimento consiste na externalização do pensamento dos seus autores, ele também surge e invade toda a nossa sociedade porque esta precisa de mais e mais estímulos para poder manter a mente entretida, agora habituada a pensamento mais elaborado. Já não é suficiente a estimulação simples natural. Para fechar e responder à provocação do artigo na Science, se se tivesse colocado as pessoas ler um livro, ver um filme, ou jogar um jogo que os engajasse em profundidade, e a seguir pedissem para realizar a experiência de estar só e sem estímulos, provavelmente as pessoas teriam conseguido sem grandes problemas.


Outros textos relacionados,
A Ciência por detrás da Arte, in Virtual Illusion
Empatia, colaboração e cooperação, in Virtual Illusion

Pensar é muito incómodo. Cientistas tentam saber porquê, in iOnline
Just think: The challenges of the disengaged mind, in Science

julho 10, 2014

Daqui a 30 anos, segundo Negroponte

Nicholas Negroponte é um dos principais responsáveis por eu fazer o que faço hoje. Nesta sua TED de 2014 diz a certo ponto que quando a Wired saiu, os miúdos deixaram de comprar a Sports Illustrated para passar a comprar a Wired, no meu caso deixei de comprar a Cahiers du Cinema, mudando claramente os meus interesses. Mas provavelmente o mais importante tenha sido o seu livro "Being Digital" (1995) que me fez despertar para todo um novo mundo da tecnologia no qual o computador passava a assumir o lugar de extensão expressiva do humano.



Nesta TED Negroponte passa em revista as 14 TED talks que deu, um número que dá bem conta da sua importância na arena dos desenvolvimentos das tecnologias da comunicação. Ao mesmo tempo aproveita para enfatizar o facto de ter sido responsável por alguns projectos e algumas afirmações visionárias que em tempos foram motivo de chacota ou refutação mas que hoje são amplamente usadas ou aceites.

Nesse sentido, e respondendo à questão que Chris Anderson (director da TED) lhe tinha lançado, “qual é a sua previsão para daqui a 30 anos?”, Negroponte responde com uma ideia simples, mas ao mesmo tempo tão ficção-científica, que nos parece tão impossível como ter um carro nas estradas sem condutor!
“one of the things about learning how to read, we have been doing a lot of consuming of information going through our eyes, and so that may be a very inefficient channel. So my prediction is that we are going to ingest information You're going to swallow a pill and know English. You're going to swallow a pill and know Shakespeare. And the way to do it is through the bloodstream. So once it's in your bloodstream, it basically goes through it and gets into the brain, and when it knows that it's in the brain in the different pieces, it deposits it in the right places. So it's ingesting.”


Acredito nesta previsão, só não sou tão optimista como Negroponte, talvez porque como ele diz, daqui a 30 anos já cá não estará, mas eu talvez ainda cá esteja. Por isso acredito antes que isto possa vir a ser possível dentro de 50 anos. Mas tenho de acrescentar aqui uma variação ao que é dito por Negroponte, eu não acredito que esta ingestão venha substituir a leitura, pela simples razão que aquilo que vamos ingerir não serão comprimidos de texto. Aquilo que vamos ingerir são os filmes e videojogos do futuro, realidade virtuais que simularão no nosso cérebro histórias, acções e experiências. Aliás falei disto quando aqui discuti o último filme de Ari Folman, "The Congress" (2012).

julho 01, 2014

Corrida contra a automação da informação

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee são dois académicos de economia do MIT que procuram perceber os impactos e efeitos das tecnologias de informação sobre o trabalho e a produtividade. “The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies” (2014) é o resultado de vários anos de investigação, e uma espécie de edição definitiva do livro que ambos auto-publicaram em 2011, “Race Against The Machine”.


O cerne da teorização apresentada assenta sobre a ideia de que a Primeira Era das Máquinas (revolução industrial) tratou da automação do trabalho manual, enquanto a Segunda Era das Máquinas trata da automação do trabalho com informação. Esta segunda era é motivada pela quantidade de informação acessível em tempo-real e os algoritmos de tratamento da mesma, sendo um dos grandes exemplos apontado pelos autores, o carro sem condutor da Google, algo que foi apenas possível graças ao manuseamento de massas de dados existentes combinados de forma contínua com a captura em tempo real de dados no carro.

Lexus da Google sem condutor

A primeira parte do livro centra-se sobre as alterações na paisagem tecnológica, sustentando-as com exemplos e demonstrações do que está acontecer no mundo em que nos movemos. Os autores trabalham sobre a exponenciação da capacidade tecnológica baseando-se no princípio de Moore, trabalham questões sobre a digitalização de cultura, sobre a inovação e os efeitos benéficos destas alterações. Nesta fase do livro o discurso é bastante optimista, o futuro será melhor e mais fácil graças ao desenvolvimento tecnológico, e essencialmente ao avanço das tecnologias de informação e de aprendizagem por parte das máquinas. É aqui que se introduz um dos conceitos chave do livro, BOUNTY (recompensa), que dá conta dos ganhos que a sociedade viveu nas últimas décadas graças ao avanço da computação. O facto de podermos aceder a cada vez mais e melhor tecnologia, e consequente conforto, pagando cada vez menos para tal, assim como o facto de termos cada vez mais tempo livre que nos permite gerar toda uma nova economia social.

No entanto o livro não se fica pelos ganhos, nem pelo avanço tecnológico, os autores especialistas em economia, passam a segunda metade do livro a trabalhar o assunto do ponto de vista das pessoas, dos seres humanos que se relacionam com a tecnologia, e os impactos que esta teve e terá sobre as suas vidas. Nesta segunda parte é introduzida o segundo conceito chave do livro SPREAD (distanciamento) que dá conta do aumento do fosso entre aqueles que conseguem aproveitar o que as tecnologias oferecem, e aqueles que por várias razões não as conseguem dominar, ou sequer aceder. Os impactos estão à vista com a mais recente crise de 2008 como se pode ver na obra “Capital” (2014) de Thomas Piketty, que se estende num conglomerado de problemáticas, algumas bem evidenciadas por Lanier em ”Who Owns the Future?” (2013). Como é dito a certa altura,
“Eventually, the economy will find a new equilibrium and full employment will be restored as entrepreneurs invent new businesses and the workforce adapts its human capital.
But what if this process takes a decade? And what if, by then, technology has changed again? This is the possibility that Wassily Leontief had in mind his 1983 article when he speculated that many workers could end up permanently unemployed, like horses unable to adjust to the invention of the tractors. Once one concedes that it takes time for workers and organizations to adjust to technical change, then it becomes apparent that accelerating technical change can lead to widening gaps and increasing possibilities for technological unemployment. Faster technological progress may ultimately bring greater wealth and longer lifespans, but it also requires faster adjustments by both people and institutions.”
Neste sentido o livro fecha as duas partes - Bounty e Spread - apresentando um conjunto de soluções para se atuar primeiro a um nível individual, e em seguida a um nível político. Deste modo podemos dizer que estamos perante um trabalho bastante abrangente, que procura identificar o bom e o mau da revolução de informação que vivemos no momento, refletindo e apresentando soluções plausíveis e exequíveis. É sobre essa parte que me irei deter um pouco mais aqui, não que o resto do livro não seja muito interessante também, mas porque é aquilo que me parece mais relevante discutir. Julgo que depende de todos nós, e cada um pode à sua maneira, e no limite das suas possibilidades procurar a mudança. Assim deixo alguns dos pontos que me parecem mais relevantes.


. Trabalhar com as máquinas, não contra elas
“The teams of human plus machine dominated even the strongest computers. The chess machine Hydra, which is a chess-specific supercomputer like Deep Blue, was “no match for a strong human player using a relatively weak laptop. Human strategic guidance combined with the tactical acuity of a computer was overwhelming.The surprise came at the conclusion of the event. The winner was revealed to be not a grandmaster with a state-of-the-art PC but a pair of amateur American chess players using three computers at the same time. Their skill at manipulating and “coaching” their computers to look very deeply into positions effectively counteracted the superior chess understanding of their grandmaster opponents and the greater computational power of other participants. Weak human + machine + better process was superior to a strong computer alone and, more remarkably, superior to a strong human + machine + inferior process.” Kasparov citado no livro

. As áreas em que ainda fazemos a diferença
“Picasso’s quote [“But they (computers) are useless. They can only give you answers.”] is just about half right… Computers are not useless, but they’re still machines for generating answers, not posing interesting new questions. That ability still seems to be uniquely human, and still highly valuable. We predict that people who are good at idea creation will continue to have a comparative advantage over digital labor for some time to come, and will find themselves in demand.”
Os três conceitos chave em termos de competências humanas para o futuro serão - a ideação (ter ideias), a criatividade (fazer diferente) e a inovação (criar novo). As três abordagens estão ligadas ao pensamento “fora-da-caixa”, algo que os computadores apresentam muita dificuldade em fazer, uma vez que estão limitados ao framework que lhes é dado. Ou seja, os computadores são excelentes a reconhecer padrões, mas muito maus a irem além destes. Uma das razões pelas quais somos bons nisto, tem que ver com o facto de combinarmos os vários sentidos para absorver e analisar a realidade, o que acaba reflectindo-se na forma como depois nos expressamos face à realidade.
“The Spanish clothing company Zara exploits this advantage and uses humans instead of computers to decide which clothes to make. For most apparel retailers, forecasting and sales planning are largely statistical affairs… Zara takes a different approach… To answer the critical question “Which clothes should we make and ship to each store?” Zara relies on its store managers around the world to order exactly, and only, the merchandise that will sell in that location over the next few days. Managers figure this out not by consulting algorithms but instead by walking around the store, observing what shoppers (particularly cool ones) are wearing, talking to them about what they like and what they’re looking for, and generally doing many things at which people excel. Zara store managers do a lot of visual pattern recognition, engage in complex communication with customers, and use all of this information for two purposes: to order existing clothes using a broad frame of inputs, and to engage in ideation by telling headquarters what kinds of new clothes would be popular in their location.”
Outra razão em que eu tenho vindo a reflectir bastante nos últimos anos, tem que ver com o facto de como seres humanos errarmos, estarmos autorizados a errar, porque faz parte de nós. Enquanto a máquina não pode errar. Ora acredito que se a máquina não pode errar, não pode sair do caminho predeterminado, então muito dificilmente alguma vez poderá ser verdadeiramente criativa.


. A escola no meio de tudo isto

Para que estas competências se desenvolvam precisamos de uma escola diferente, capaz de estimular a autonomia, a automotivação e o envolvimento. Mas tudo isto não pode ser desligado de uma profunda capacidade de análise crítica da realidade, algo que tem vindo a ser descurado, essencialmente no ensino superior, fase em que esta competência deveria ser profundamente estimulada.
“Arum and Roksa made use of the Collegiate Learning Assessment (CLA), a recently developed test given to college students to assess their abilities in critical thinking, written communication, problem solving, and analytic reasoning. Although the CLA is administered via computer, it requires essays instead of multiple-choice answers. One of its main components is the ‘performance task,’ which presents students with a set of background documents and gives them ninety minutes to write an essay requiring them to extract information from the materials given and develop a point of view or recommendation. In short, the performance task is a good test of ideation, pattern recognition, and complex communication.
Arum, Roksa, and their colleagues tracked more than 2,300 students enrolled full-time in four-year degree programs at a range of American colleges and universities. Their findings are alarming: 45 percent of students demonstrate no significant improvement on the CLA after two years of college, and 36 percent did not improve at all even after four years. The average improvement on the test after four years was quite small. What accounts for these disappointing results? ”
Arum, Roksa, and their colleagues document that college students today spend only 9 percent of their time studying (compared to 51 percent on “socializing, recreating, and other”), much less than in previous decades, and that only 42 percent reported having taken a class the previous semester that required them to read at least forty pages a week and write at least twenty pages total."
No fundo não chega querer, menos ainda chega entrar na universidade pretendida, ou no curso pretendido, é preciso trabalhar, e muito, para construir as competências. A universidade e o professor são apenas a ponta do iceberg, os resultados só aparecem com o trabalho em profundidade individual do estudante. Não é por acaso que Bolonha impôs metas para o trabalho individual a realizar pelo aluno fora de aulas. Estudos como, “How College Affects Students: A Third Decade of Research”, de Ernest Pascarella e Patrick Terenzini concluíram que “the impact of college is largely determined by individual effort and involvement in the academic, interpersonal, and extracurricular offerings on a campus”.

Deste modo Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee acabam por concluir que apesar das máquinas estarem a automatizar e a tornar tudo mais fácil em nosso redor, nem por isso o mundo à nossa volta será mais fácil para a grande classe média. Conseguir emprego será cada vez mais difícil, e para se precaver só existe um caminho,
“our most fundamental recommendation to students and their parents: study hard, using technology and all other available resources to ‘fill up your toolkit’ and acquire skills and abilities that will be needed in the second machine age.”
Esta é uma realidade que por mais que queiramos escamotear nos bate à porta em todas as estatísticas e recomendações, como bem dá conta o relatório publicado no mês passado pela Comissão Europeia sobre o emprego na Europa,
“Low qualified workers encounter increasing difficulties to find a job, face lower job stability and are out-competed by medium-skilled workers even in elementary occupations.”

Por fim quero apenas deixar um ponto abordado a determinada altura no livro, e que tem que ver com a investigação que realizamos nos nossos laboratórios todos os dias. Nós que trabalhamos com tecnologias de informação e comunicação estamos constantemente preocupados em desenvolver novos sistemas que automatizem as atividades humanas. O que os autores dizem é, e se não fosse assim? E se em vez de procurarmos automatizar as tarefas, procurássemos antes novas formas de criar actividades, de tornar as pessoas, os seres humanos, mais ativos, mais criativos? (Isto é em parte algo que tenho vindo a trabalhar mais recentemente sob a designação de Tecnologias Criativas). No final, nenhum de nós procura verdadeiramente parar de trabalhar, o trabalho é essencial ao ser-humano por estranho que possa parecer! Esse é um ponto aqui defendido, e com o qual concordo particularmente,
“It’s tremendously important for people to work not just because that’s how they get their money, but also because it’s one of the principal ways they get many other important things: self-worth, community, engagement, healthy values, structure, and dignity, to name just a few. Whether the focus is on the individual or the community, the conclusion is the same: work is beneficial.”

“The Second Machine Age" é um livro carregado de ideias, questões, dúvidas, hipóteses e imensa reflexão sobre algo que nos preocupa a todos. De tudo isso dei aqui conta apenas de uma brevíssima síntese sobre algumas dessas ideias, o resto fica para lerem no próprio livro. Entretanto se quiserem saber mais, vale a pena ver as duas TED talks dos autores.

maio 08, 2014

O "regresso" do 2d

O regresso do 2d, e em força, graças à Ubisoft. Primeiro foram dois novos tomos de Rayman, que nos devolveram às origens do personagem e à essência da sua jogabilidade, agora chegou a vez de dar o salto e usar a base de trabalho não apenas para o gameplay mas também para o storytelling. Uma das críticas que tinha feito aqui a "Rayman: Origins" (2011) e "Rayman: Legends" (2013), tinha sido exactamente sobre a ausência de storytelling, algo em que as duas novas produções - "Child of Light" (2014) e “Valiant Hearts: The Great War” (TBD) - parecem agora querer deslumbrar.





Esta revolução operada pela Ubisoft está assente num motor de design de jogos proprietário, chamado UbiArt Framework, que não é mais do que um motor de jogos desenhado exclusivamente para criar jogos 2d. Pareceria anacrónico, não fossem os resultados que estão à vista com “Child of Light” (2014), acabado de sair, e “Valiant Hearts: The Great War” (TBD) que deverá sair em Junho. A ideia surge da equipa de Michel Ancel que trabalha a partir de Montpellier em França com uma equipa imensamente reduzida de pessoas (cerca de 10) quando comparado com as equipas que a Ubisoft tem no Canadá, acima das 2000, e noutras partes do globo, para desenvolver séries como “Assassins Creed”, “Far Cry”, “Tom Clancy’s” ou o tão aguardado “Watch Dogs”.

Trailer “Child of Light” (2014)


Trailer de “Valiant Hearts: The Great War” (TBD)

Este motor de jogos permite que se comece a desenvolver e a testar mecânicas de jogo imediatamente a partir de esboços de concept art [videos explicativos do funcionamento do motor 1 e 2 ]. Aliás quando olhamos para "Rayman" é isso que nos parece que temos ali, concept art ainda no seu estado puro, mas quando olhamos para "Child of Light" e “Valiant Hearts” toda a fasquia estética se eleva. Com "Child of Light" a operar numa base mais de aguarela, e “Valiant Hearts” recorrendo a composições de banda desenhada. Interessante ainda nestes dois novos jogos, é que não só se privilegiou o storytelling, como cada um destes o faz sob géneros de jogo distintos, sendo "Child of Light"orientado a RPG, e “Valiant Hearts” a aventura.
"The [UbiArt] pipeline for integrating art is really straightforward. An artist can draw concept art and integrate it directly in-game. It also allows level designers to create levels quickly and modify them on the fly. It’s the same for the animation system, which utilizes a puppet system that is very quick." [interview]
Mas esta revolução não se fica pela Ubisoft, basta olhar para o que a Unity tem andado a promover nos últimos tempos, acenando com ferramentas específicas para 2d, quando sempre se assumiu como um motor 3d. Os tutoriais e assets nesse campo não param de aumentar, e o interesse da comunidade é cada vez maior. De certa forma isto é também uma resposta ao colapso do Adobe Flash enquanto ferramenta de desenvolvimento de 2d interactivo.

Unity 2d Power

No meio de tudo isto não basta ter plataformas de desenvolvimento. Existe até um movimento na web para que a Ubisoft disponibilize o UbiArt em open source. Mas o essencial acaba por não estar aí, mas antes em toda a sensibilidade que a Ubisoft soube desenvolver para cativar os melhores artistas 2d, nas suas múltiplas variações, a trabalhar na Ubisoft.

março 27, 2014

“To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism” (2013)

Neste seu segundo livro Evgeny Morozov fala-nos do solucionismo tecnológico. Ainda sem ter completado 30 anos e nascido na Bielorússia, Morozov é detentor de um curto mas já bastante impressionante currículo na área dos Estudos da Internet. Além do primeiro livro “The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom” (2011), que tal como este foi muito bem recebido, Morozov já escreveu para quase todos os grande jornais de referência mundial, The New York Times, The Wall Street Journal, Financial Times, The Economist, The Guardian, The New Yorker, The New Republic, etc. Em termos académicos esteve na Stanford University, na Georgetown University e está agora fazer o seu doutoramento em Harvard. Em 2009 foi nomeado TED Fellow.


Morozov assenta a sua motivação num cepticismo quanto aos impactos positivos da internet nomeadamente no campo da democratização do poder. No seu primeiro livro procurou demonstrar porque razão devemos estar atentos ao lado negro da liberdade da internet (e.g: vigilância, destruição de privacidade, repressão política, propaganda extremista), alertando dois anos antes para aquilo que se tornaria uma preocupação de todos com as revelações de Snowden sobre a NSA. Neste segundo livro vai bastante mais longe, e trabalha uma abordagem que se estende às tecnologias em geral e ao posicionamento de Silicon Valley, abordando não apenas a atitude das pessoas em geral, mas apontando o dedo, e atacando sem rodeios, alguns evangelistas das tecnologias, como Jeff Jarvis, Clay Shirky, Kevin Kelly, Steven Johnson ou Jane McGonical.

Uma das coisas que mais impressiona na leitura de “To Save Everything…” é o lastro de bibliografia lida, digerida e discutida, que vai desde a política económica, à educação passando pela filosofia, tudo isto entremeado com muita tecnologia. Sendo um campo tão vasto e multidisciplinar é muito pouco comum ver alguém capaz de apresentar um lastro tão diverso, vasto, e discutido com tanta profundidade. Isto contribui para a enorme riqueza do trabalho apresentado, e para uma sustentação imensamente sólida das teses apresentadas. Por outro lado torna o livro um bocado denso, mais próximo de um tom académico do que livro de divulgação, o que acaba sendo inevitável dado aquilo que está em jogo.

O cerne da tese que Morozov apresenta ao longo deste segundo livro, defende que no momento atual nos encontramos à mercê de uma ideologia assente no "solucionismo". Morozov refere-se assim a um tipo de abordagem ao mundo que assenta numa constante procura de problemas e de soluções para os mesmos. No fundo estamos a falar da abordagem realizada pelas Engenharias e pelo Design, algo com que eu próprio trabalho no dia à dia na minha investigação. Aquilo que fazemos todos os dias no campo da investigação em tecnologia, é perceber que problemas são mais prementes e requerem soluções novas, acabamos chamando a isto também inovação. Deste modo reconheço facilmente muito do que é aqui dito, mas por estranho que pareça tendo a concordar com Morozov. Porque este não vê o contributo do solucionismo para a inovação de modo linear, ele analisa em detalhe como isso se processa, e acaba levantando vários problemas desta abordagem ao mundo. Desde logo com a citação de Gilles Paquet,
“‘Solutionism’ [interprets] issues as puzzles to which there is a solution, rather than problems to which there may be a response.”
É isto que preocupa, que deixemos de pensar os problemas em si, para apenas nos preocuparmos com as soluções. Uma questão filosófica que ainda há pouco tempo aqui trouxe através de um trabalho de banda desenhada, "A Day at the Park" (2013), em que Kostas Kiriakis discute a importância das Perguntas versus Respostas. Neste sentido Morozov ataca forte dizendo que o solucionismo acaba funcionando “como um martelo, para o qual tudo é um prego”. E isto leva-nos a uma das constatações mais perspicazes e relevantes do livro,
what many solutionists presume to be “problems” in need of solving are not “problems at all; a deeper investigation into the very nature of these “problems” would reveal that the inefficiency, ambiguity, and opacity—whether in politics or everyday life—that the newly empowered geeks and solutionists are rallying against are not in any sense problematic. Quite the opposite: these vices are often virtues in disguise. That, thanks to innovative technologies, the modern-day solutionist has an easy way to eliminate them does not make them any less virtuous.
Ou seja, aplicando esta abordagem da engenharia/design a todas as outras áreas, como a Educação, a Justiça, Política ou os Serviços Sociais pode parecer à primeira vista muito atractivo no sentido de permitir chegar a soluções para problemas complexos, que muitas vezes são até difíceis de enunciar enquanto problemas, dadas as complexidades do ser humano e seus aspectos sociais. Isto não é algo propriamente novo, Morozov refere vários académicos e trabalhos do passado que referiram este mesmo problema, ainda que não o tenham propriamente identificado como uma tendência ou efeito do progresso. Aliás isto configura uma discussão bastante atual sobre o lugar das humanidades na academia que parece cada vez mais apenas preocupada com as tecnologias e a engenharia, e que se resume nesta frase de Morozov,
“[solutionists] have a very poor grasp not just of human nature but also of the complex practices that this nature begets and thrives on. It’s as if the solutionists have never lived a life of their own but learned everything they know from books—and those books weren’t novels but manuals for refrigerators, vacuum cleaners, and washing machines.”
Ainda recentemente aqui trouxe Damásio que falava disto mesmo, no que toca às Neurociências e à necessidade de perspectivar o humano como algo mais do que um conjunto de processos. O Don Norman fala disto também na sua última revisão do livro "The Design of Everyday Thing, Revised and Expanded Editions" (2013) a propósito do modo como os engenheiros abordam o design de interacção e de experiência, colocando normalmente as culpas nas pessoas por não quererem aprender a lidar com os sistemas por si criados. E o Dan Ariely fala disto em "Predictably Irrational" (2008) a propósito do modo como os economistas abordam o mundo, como se os seres humanos fossem peças de um qualquer sistema lógico e racional.

"A Day at the Park" (2013) de Kostas Kiriakis

Ou seja, Morozov toca em algo real e com profundas influências em todos os domínios da sociedade. Muitos preferem atacá-lo e apelidar de reaccionário ou conservador, mas a realidade é aquilo que temos à nossa volta, em que cada vez mais somos dominados por sistemas tecnológicos, que não levam em conta as necessidades do ser humano, mas apenas e só as necessidades dos próprios sistemas. Todo este solucionismo tem uma génese concreta, a necessidade de inovação a qualquer custo, provocada por uma competição despoletada pela globalização, que acaba conduzindo a sociedade para um abandono das práticas reflexivas em virtude das solucionistas.

Partindo daqui Morozov vai apresentar uma imensidade de situações e casos da contemporaneidade que correspondem a esta descrição desde os MOOCs ao Big Data, passando pela obsessão pela Quantificação e Transparência, ou dos ideais de Free, Openness, Democracia Directa, ou Gatekeeping Algorítmico. Daqui emerge a tentação de tudo resolver pelo digital desde o crime à corrupção, poluição, avaliação de docentes e da ciência e até da obesidade, através da quantificação digital, do tracking e da gamificação. Algumas destas mesmas discussões tenho-as feito aqui em textos como "Comunicação e as falácias da Sociedade de Informação (Copyright, MOOC, Democracia Directa, Open Access, Rankings)" ou ainda a minha crítica ao livro de McGonigal, "Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World" (2011)" ainda que Morozov seja bastante mais duro com McGonigal que eu.

Morozov aponta o dedo a Silicon Valley e as suas abordagens profundamente solutionistas, assim como a todos aqueles que professam a defesa do progresso tecnológico a qualquer custo, nomeadamente usando a desculpa da internet como o novo paradigma, a nova revolução. A tecnologia é sacrossanta, "a Internet" o seu deus, e a nós seres-humanos resta-nos aprender a viver com essa realidade, adaptar-nos ou morrer. Morozov fala de alguns dos impactos destes avanços tecnológicos, como a perda de privacidade, o abandono da ética e da moral  (self-tracking, lifelogging, nudges), o imperialismo dos números (quantification, gamification, digital preemption). Para Morozov existe uma causa aparente que sustenta toda esta viragem discursiva nas últimas décadas, e que não está apenas fundamentada na tecnologia ou inovação, vai mais fundo que isso em termos de produção de conhecimento, e tem que ver com aquilo que distingue uma abordagem científica de uma abordagem humanista,
“At great risk of oversimplifying things, we can say that one way to make design more self-conscious and more sensitive to critiques of solutionism is to replace its fetish for psychology (and, increasingly, neuroscience) with a fetish for philosophy—both moral and political… The triumph of psychology over philosophy is not limited to industrial design; policy designers and social engineers have succumbed to this trend as well—all in the name of science, for psychology and neuroscience are presumed to be more scientific than philosophy simply because they run experiments and tests. But the fact that matters of morality do not lend themselves to easy measurement does not mean we should disregard such concerns and recast them in neuroscientific and psychological terms.”
Contra a mim falo quando cito este excerto de Morozov, já que nos últimos anos tenho defendido sempre a abordagem psicológica, em detrimento da filosófica, no domínio do design de interação. É verdade que o faço no âmbito de um trabalho que procura inovar o produto, e nesse sentido recorro à psicologia para poder moldar o mesmo em função das necessidades do humano. Mas sempre vi esta abordagem como um caminho para colocar a tecnologia ao serviço do ser humano, nunca tive, nem tenho qualquer intenção de moldar o humano face à produto (ler mais sobre esta abordagem).

“Designers and social engineers don’t have to become unambitious bureaucrats scared of innovating, but perhaps they could practice innovation in a different key. The goal of their interventions - in both products and policies - should be not just to provide answers but also to make it easier to pose new questions.” Evgeny Morozov
Agora quando se aplica esta abordagem a outros domínios, nomeadamente quando se transfere estes modelos de produção de conhecimento tecnológico para sistemas em que os agentes de base são os seres humanos, aí corre-se o risco de se esquecer que o mundo é bem mais complexo do que um conjunto de parâmetros simplificados. Corre-se o risco de acreditar que se podem introduzir ou gerar mudanças sociais por meio de alguns cliques sobre uma tabela de excel. Sobre esse facilitismo, Morozov diz a certa altura algo que espelha bem todo essa abordagem do conhecimento,
“The world out there is a complex place, and those who want “easiness” can always gorge themselves on TED talks…”
Julgo que o maior problema de tudo aquilo que Morozov aponta ao longo do livro, assenta no problema de se ter deixado extravasar as abordagens aplicadas dos meios concretos da Engenharia e do Design para quase todas as outras áreas do conhecimento. São áreas de extrema relevância no momento atual, porque produzem impactos rápidos, o problema é que estamos a deixar-nos empurrar para a frente sem nos darmos conta sobre todos os reais impactos que tudo isto está a produzir na sociedade. Cada domínio de estudo, investigação e aplicação de conhecimento deve ser preservado no sentido de garantir a multiplicidade de que somos feitos. Tudo o que é reduzido e passado pelo mesmo filtro, cedo ou tarde acaba por nos trazer dissabores.

Isto leva-nos a uma outra questão que é amplamente discutida no livro, e que tem que ver com um dos resultados do solucionismo, que acaba por transbordar para uma espécie de fundamentalismo tecnológico. Ou seja, a assunção de que a tecnologia representa a inovação e o progresso, e que isso é sempre benéfico para o ser humano. Este fundamentalismo, sempre que é atacado por alguém, é rápido a reagir acusando os detractores da tecnologia de conservadores ou luditas, alheios à evolução e aversos à mudança. Para uma parte significativa, principalmente os promotores e investidores, não é a tecnologia que deve ser questionada, os seres humanos é que precisam de aprender a adaptar-se àquilo que a tecnologia lhes propõe.

Ora o que Morozov faz aqui é desmontar todo este discurso, defendendo que nada tem apenas uma solução, que a realidade é bem mais complexa, e que a reflexão sobre a mesma não deve ser vista como um impedimento do avanço, mas antes como uma preocupação com o aspecto central da equação, que é o ser humano. Uma das maiores discussões atuais em redor deste assunto diz respeito à não-regulação da internet, tendo por base a preservação da liberdade de expressão, mas acima de tudo da sua potenciação de inovação. Muitos defendem que as consequências desta não-regulação em áreas como os direitos de autor, a privacidade, o terrorismo, ou a pedofilia devem ser vistas como uma inevitabilidade do novo paradigma de comunicação que a tecnologia proporciona. Defendem que somos nós que temos de nos adaptar e aprender a lidar com a nova realidade tecnológica!

Isto é puro fundamentalismo, defende-se a tecnologia acima do ser humano. Defende-se que o acaso que produz determinadas tecnologias, e não outras, determine o modo como vivemos! Morozov usa e muito bem o exemplo do início do século passado em que a industrialização começou a produzir poluição sonora. Quem ousasse exigir regulamentação do ruído produzido pelas maquinarias, era visto como um inimigo do desenvolvimento e do progresso. O ruído era nessa altura visto como um sinal de progresso, de comunidades avançadas. Mas posso trazer aqui outros exemplos, o que dizer da produção de energia nuclear, o que dizer da clonagem reprodutiva de seres humanos, ou o que dizer das bombas nucleares, das bombas de fragmentação, etc. etc. Os avanços da tecnologia não podem de ser vistos de modo cego. Não ser fundamentalista, permite em cada caso tomar decisões em função daquilo que a sociedade decidir ser o melhor, independentemente do potencial de progresso que essa possa representar. Não ser fundamentalista, permite tomar decisões distintas que podem até ser do ponto vista da lógica argumentativa opostas, mas que podem fazer todo o sentido porque se apoiam na coerência das incoerências do ser humano, e não na mera coerência lógica da tecnologia.


Links a seguir...

Comunicação e as falácias da Sociedade de Informação (Copyright, MOOC, Democracia Directa, Open Access, Rankings), in Virtual Illusion
Damásio fala da Criatividade e do Social, in Virtual Illusion
"Reality Is Broken: Why Games Make Us Better and How They Can Change the World" (2011), in Virtual Illusion
Dicotomia em banda desenhada, in Virtual Illusion