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outubro 29, 2017

O Cérebro Narrativo

Damásio não se cansa de tentar fazer avançar o conhecimento no domínio da consciência, do conhecimento de si, em particular do modo como compreendemos o mundo e a nós mesmos. No estudo “Decoding the Neural Representation of Story Meanings across Languages” (2017), agora publicado na revista Human Brain Mapping, a sua equipa apresenta pela primeira vez, evidências empíricas da existência de estruturas narrativas no nosso cérebro, que se podem encontrar de modo universal nos seres humanos, operando indistintamente em múltiplas línguas, sendo ativadas tanto por meio de histórias orais como escritas, e à partida também audiovisuais.



Não é de agora que se suspeita que existe em nós uma predisposição para estruturar a informação em blocos narrativos, ou seja, criar pedaços de histórias para dar sentido à realidade e mais facilmente memorizar a mesma. Joseph Campbell (1949) apesar de trabalhar em Antropologia e se ter socorrido da Mitologia e da Psicanálise, chegou a afirmar algo como: as histórias estão interligadas com aquilo que somos e desejamos ser. No início dos anos 1980 Walter Fischer defendia a existência de um "paradigma narrativo" que estava na base de toda a comunicação humana, sem o qual não nos entenderíamos uns aos outros. Desde o aparecimento das neurociências que muitos estudos têm sido dedicados a estudar o modo como compreendemos a realidade, e a tentativa por entender o modo como contamos histórias tem sido um dos vetores dessas abordagens.

São múltiplos os estudos que têm sido realizados para compreender o poder do ato de contar histórias e que tem invadido o discurso em quase todas as áreas. [Infografia da OneSpot a partir de dados coligidos por Widrich (2016)].

Ora a estrutura que parece operar as histórias no nosso cérebro é designada como “default mode network” (DMN) tendo sido inicialmente identificada como “"resting state" network that shows high baseline activity when people are asked to rest without engaging in any specific externally-focused task [Raichle and Snyder, 2007; Raichle, 2015].”. Esta estrutura crê-se estar na base de “such cognitive processes as mind-wandering [Smallwood and Schooler, 2015], thinking about one’s self [Qin and Northoff, 2011], remembering the past and imagining the future [Østby et al., 2012], and in general to support stimulus-independent thought [Smallwood et al., 2013].” Por outro lado “the activity in the DMN is consistent when a story is presented in different modalities (spoken vs. written), or in different languages (Russian vs. English to native speakers of these languages), indicating highly abstracted representations of the stimuli in this network [Chen et al., 2017; Honey et al., 2012; Regev et al., 2013; Zadbood et al., 2016].” Num outro estudo realizado por Chen et al. (2017) foi possível encontrar também “evidence that there are shared patterns of activity in the DMN across participants when describing scenes from an audiovisual story”.

Ou seja, os vários trabalhos vêm demonstrando que vamos para além da mera operação sintática — forma das letras e palavras — assim como da mera análise semântica —  sentido das frases, sendo capazes de operar a um nível narrativo, ou “alto-nível semântico”. Isto é, “abstracted beyond the level of independent concepts and language units, the brain seems to systematically encode high-level narrative elements”. Ou seja, trabalhamos por meio do DMN as palavras e os seus sentidos para simular histórias mentais, para assim compreendermos o que nos está a chegar por via dos sentidos. Mas como se diz acima, isto não trabalha apenas com os sentidos, isto trabalha de modo quase-contínuo em nós, alternando com o modo cognitivo de foco (em que exigimos toda a nossa capacidade cognitiva para realizar uma tarefa) operando como uma espécie de máquina de “sonhar acordado”, que nos vai oferecendo pontos de vista sobre o mundo, e sobre nós próprios pela interação com o mundo externo, assim como pela interação entre pedaços de informações provindas de experiências do passado, memorizadas em nós.

Neste sentido quando acedemos a histórias exteriores a nós, pelo facto de usarem a mesma estrutura organizativa que o cérebro utiliza para as simular, recorremos a toda uma “cognitive architecture” que realiza um “stitch together individual words, link events with their causes, and remember what came before to build a holistic understanding”. Isto explica porque é tão fácil conectarmo-nos com o que vai sendo contado, e em certa medida, porque ouvir ou ler uma história, não se diferencia muito de sonhar acordado, o que acaba por dar suporte ao sentimento de “imersão” ou de “perder-se numa história”, o sentimento de esquecimento do mundo real à nossa volta.

No final, a equipa de Damásio veio dar razão a muito daquilo que sempre soubemos: que gostamos de histórias porque o nosso cérebro passa a vida a contar histórias a si próprio; ou ainda que as histórias servem para enquadrar a realidade e compreendê-la, não apenas os seus acontecimentos e os seus mundos, mas mais ainda em particular, as suas personagens, que usamos como modelos para nos colocar no lugar de, para simular e empatizar, para no fim de tudo, aprender.


Nota: Tendo o trabalho sido desenvolvido por uma equipa considerável, é muito interessante ver como no final surge apresentada a divisão de trabalho efetivo realizado por cada um dos membros da equipa. Talvez seja prática em certos domínios, mas julgo que seria algo a implementar em todas as publicações científicas.

Todos os excertos inglês retirados do artigo:
Dehghani, M., Boghrati, R., Man, K., Hoover, J., Gimbel, S. I., Vaswani, A., Zevin, J. D., Immordino-Yang, M. H., Gordon, A. S., Damasio, A. and Kaplan, J. T. (2017), Decoding the neural representation of story meanings across languages. Hum. Brain Mapp.. doi:10.1002/hbm.23814

setembro 10, 2017

Mass Effect: Andromeda (2017)

A trilogia Mass Effect (2007-2012) é um dos maiores legados culturais dos videojogos, pela força da sua história mas acima de tudo pela inovação operada através da singularidade do meio, a interatividade narrativa. Se o cinema nos deu algumas das maiores epopeias da ficção científica, a literatura e a banda desenhada não lhe ficaram atrás, mas nenhum destes meios podia ter oferecido aquilo que apenas está ao alcance das artes narrativas interativas, agência, ou a responsabilização do recetor pelo desenrolar do imaginário ficcional. Por tudo isto, criar um quarto videojogo foi sempre um grande risco, a Bioware, ao contrário da Valve, resolveu arriscar. O resultado é um trabalho menor, ainda que tecnicamente mais evoluído.


O tema de “Mass Effect: Andromeda” (ME:A) não traz nada de novo, antes aproveita um dos imaginários mais presentes na atualidade da ficção-científica como trampolim para os seus desenvolvimentos. Num espaço tão curto de anos foram várias as obras a socorrer-se da ideia de largada de grandes naves carregadas de seres-humanos criogenados em busca dos chamados “Golden Worlds”, ou seja planetas semelhantes à Terra, em que possamos refazer a vida enquanto espécie humana.


No cinema, tivemos um romance FC com “Passengers” (2016) de Morten Tyldum, poucos anos antes tínhamos tido um dos mais eficazes filmes de FC desta recente geração, “Interstellar” (2014) de Christopher Nolan, e até a própria série Alien se socorreu do tema para este seu último tomo, “Alien: Covenant” (2017) de Ridley Scott. Na literatura tivemos também uma trilogia, “The Wayward Pines” (2012-2014) de Blake Crouch, entretanto convertida numa série de televisão homónima, de imenso sucesso. Este imaginário não é alheio à realidade que nos circunda: a superpopulação e consequente drenagem de recursos do planeta; as alterações climáticas e a potencial destruição do ecossistema que possibilita a vida na Terra; a visão apocalíptica providenciada pelos receios dos avanços da inteligência artificial ou a recuperação dos receios do nuclear; ou ainda, os avanços na compreensão da física quântica e as teorias dos mundos possíveis e paralelos, que nos colocam a sonhar com alternativas ao planeta.

Apesar do tema não ser novo, o tema é vasto e de potencial praticamente inesgotável, como se vai vendo pelas obras que vão surgindo. Contudo, é preciso não esquecer que um tema não é uma história, é apenas um pano de fundo, e é desde logo aqui que ME:A começa mal. A história, ou conflito escolhido para ser representado, assenta numa luta entre espécies, com vilões e super-vilões, que apesar de esforçado nunca chega a gerar conexão com os jogadores. O cruzamento com alguns dos grandes temas da trilogia até são aflorados, chegando a criar-se pontos que nos agarram, como a descoberta da origem da espécie Angara, mas nunca chegam a ser devidamente explorados, e por isso perdem-se no meio de tudo o resto.


O problema dos nós narrativos relevantes em ME:A é talvez o maior demonstrador da incompetência da obra. O universo representado é enorme e muito detalhado, criando no jogador uma completa dispersão da atenção, que não apenas se perde entre missões mas nunca se chega a realizar. No final do jogo, ou melhor da realização da main quest, que engloba apenas as missões “Priority Ops”, fiquei a pensar o quanto desse falhanço não se deve também a uma má estruturação entre missões obrigatórias e opcionais, nomeadamente lendo várias recomendações online. Para quem jogar de modo tradicional, seguindo a linha de obrigatoriedades criadas pelas missões Priority Ops, tem 16 missões pela frente, mas o que fica de fora, a julgar pelos números, é imensamente maior: “Allies and Relationships”, 33 missões, “Others” 12 missões, “Heleus Assignments” 98 missões, e “Additional Tasks” 61 pequenas missões.

Os mundos abertos são a norma atual nos grandes jogos de ação-aventura RPG, mas são também imensamente complexos por tudo o que necessitam de produzir para serem considerados enquanto tal, e acima de tudo pelo balanceamento entre o que deve ser considerado obrigatório e aquilo que deve ser secundário, ou opcional para que o jogador possa sentir um verdadeiro efeito de liberdade e autonomia durante o jogo. Se todas as missões consideradas relevantes para o jogo forem consideradas obrigatórias, e rodeadas de precedências, fica complicado fazer sentir ao jogador que está num mundo verdadeiramente aberto, que se dá à sua agência. Por outro lado, se não se colocam obstáculos ou freios que guiem o jogador ao longo das missões, o mais certo é a narrativa nunca se chegar a erguer. Por fim, mesmo quando se garante que as missões principais estão alinhadas e elas trabalham para o desenvolvimento de um arco narrativo delineado, é preciso não esquecer que missões menores, nomeadamente de desenvolvimento dos personagens são fundamentais para criar o imaginário, e acima de tudo aproximar o jogador da “vida” do jogo.


Neste sentido, considero que a maior falha de ME:A acaba por estar no subdesenvolvimento dos seus personagens e seus conflitos, ou então no modo inarticulado como foi desenhada a estrutura de missões, a julgar pela existência de uma enorme quantidade de missões secundárias a realizar com os personagens que circundam o protagonista. A main quest está apenas focada num objetivo narrativo, e os personagens servem quase de meros peões. Não há espaço para o desenvolvimento dos personagens, e mesmo as pequenas sequências que nos vão sendo oferecidas, até de conflitos hierárquicos, são sempre a correr, com medo de perder o ritmo do enredo. Interessa apenas chegar ao “golden world” e para tal é preciso ultrapassar os obstáculos, ou seja, os vilões que surgem por todo o lado.


Ao seguir este caminho ME:A acaba por perder o bem mais preciso que tinha sido desenvolvido pela trilogia, as tomadas de decisão narrativas. Ao contrário do que acontece em todos os anteriores três jogos, não existem momentos intensos em que tenhamos de tomar decisões, não que eles não surjam, o problema é que o jogo não desenvolve suficientemente as nossas ligações afectivas com os personagens para garantir impacto. Na verdade, isto não tem que ver apenas com a falha na estrutura das missões, já que ao longo de toda a main quest, nunca chega a existir um conflito, digno do nome, entre personagens. Mesmo quando os superiores estão chateados connosco, ou algum personagem está preocupado com algo, tudo parece seguir um rumo meramente declarativo, pejado de neutralidade, como se nos estivessem a testar, a ver se queremos ou não deixar-nos enredar por aqueles sentimentos.

Isto leva-me a questionar o novo sistema de conversação desenvolvido para este jogo. Se na trilogia tínhamos o modelo — Paragon / Renegade — em parte criticado pela suposta binariedade emocional e moral, agora temos quatro polos — Emocional / Lógico / Profissional / Casual. Em teoria enriquece-se as relações entre os personagens, amplia-se o escopo de tomada de decisão, mas na prática não funcionou. Digo mesmo que funcionou mal, já que raramente, ou nunca se vê ou sente o impacto dessas escolhas, ficando a dúvida se têm verdadeira relevância. Por outro lado, acabam por gerar todo um tipo de questionamento sobre as decisões que retira espaço ao pensar sobre o que verdadeiramente está acontecer no jogo, já que nos focamos mais na forma do que no conteúdo. Não tenho uma opinião completamente negativa sobre o sistema, julgo que ele pode até funcionar, desde que a narrativa, em especial a escrita seja boa, já que não raras vezes me senti decepcionado com a trivialidade de algumas respostas. Contudo, não me parece que tenha sido a decisão de design correta, já que o sistema desenvolvido para a trilogia era muito bom, exatamente por não ser binário como alguma má crítica apontou, ou seja, apesar de dual o sistema tratava as nossas decisões num plano dimensional e não discreto.


O melhor do jogo é, sem dúvida, os ambientes criados por onde podemos viajar. Os cenários, o espaço, a possibilidade de aí construir, criar, lançar colonos, e avançar com novas civilizações. Em termos de ações, podemos agora dar saltos impulsionados pelo fato, temos um novo veículo ágil e rápido que nos oferece uma boa perspectiva dos mundos por onde viajamos. A colonização pode ser diferenciada entre desenvolvimento de ciência ou militar. Mas é a fluidez audiovisual que envolve tudo isto que nos faz sentir em harmonia com os lugares e vontade de continuar a voltar ao jogo, ainda que todo o sistema de crafting acabe sendo desnecessariamente complexo, e de difícil gestão.



Em jeito de conclusão, findada a main quest, existe tanto ainda por explorar e fazer no jogo que acredito poder fazer as delícias de quem resolver dedicar-lhe esse tempo, ainda que estejamos já no domínio dos fãs hard-core do jogo, nomeadamente por todas as potencialidades técnicas adicionadas ao que se conhecia da trilogia. Contudo, para quem vem à procura de uma experiência Mass Effect, ligação a personagens, tomada de decisões, perplexidade e dilemas narrativos, não a vai encontrar, e por isso não admira a fraca receção que o jogo teve. Ainda que muita da crítica se tenha focado em problemas técnicos como as expressões faciais, entretanto completamente refeitas nos novos patches, nada nessas transformações consegue disfarçar os vários problemas de escrita e narrativa apontados ao longo deste texto.


Ler mais
Processos de escolha em Mass Effect, VI, 2014
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa, VI, 2015

agosto 20, 2017

Os Miseráveis (1862)

É um romance histórico, mas pelo número de personagens, extensão e eventos quase que o poderíamos qualificar de saga, uma saga social. Socorrendo-se de um período de grande alteração civilizacional, o pós-Revolução Francesa de 1789, Victor Hugo trabalha várias personagens históricas responsáveis pela época, mas escolhe para veículo de introdução aos factos e eventos, as classes mais baixas e desprotegidas do sistema — os ex-prisioneiros, os órfãos, as prostituas, os pobres — os miseráveis. Deste modo, serve-se do seu sucesso e influência na sociedade francesa para ao longo de 1300 páginas, e enquanto conta uma história, dissertar sobre as leis e as morais da época. Nem tudo é perfeito mas o seu sucesso e resistência ao teste do tempo demonstram a força e atualidade da sua mensagem.

Nova tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira para a Relógio d'Água, publicada em Maio 2017.

“Os Miseráveis” foi publicado em 1862 quando Victor Hugo tinha 60 anos e era já um escritor reconhecido pelos pares a ponto de ser membro da elitista Academia Francesa desde 1841, respeitado pela sociedade política tendo sido eleito para a Assembleia Nacional em 1848, e respeitado pela sociedade em geral, não só pela sua poesia mas também pelo seu enorme sucesso obtido com “O Corcunda de Notre-Dame”. Exilado em Inglaterra a partir de 1851 com o golpe de Napoleão III, Victor Hugo sabia bem o que continuava a representar para a França, daí que este livro, que foi escrito ao longo de quase 20 anos, tenha sido visto pelo próprio como uma espécie de legado a essa França, ainda que de desejos universalistas. Deste modo, esta obra, apesar dos problemas que irei avançar à frente, para além da história que conta, é um manifesto sobre a vida em sociedade, no qual o autor procura expressar os seus ideais e desejos para construir aquilo que acreditava poder vir a ser um mundo melhor.
"A Igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Pelo direito ao alfabeto, é por aí que devemos começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos: é essa a lei. Da escola idêntica nasce a sociedade igual. O ensino, sim! Luz! Luz! Tudo vem da luz e tudo para lá volta. Cidadãos, o século XIX é grande, mas o século XX será feliz."
A prosa de Victor Hugo é irrepreensível. Se podemos ceder à tentação de comparar Jean Valjean com Edmond Dantés de Alexandre Dumas, as similaridades ficam-se pelos meros traços gerais da trama, já que toda a arte poética de Victor Hugo é tão elaborada e graciosa, fruto de um virtuosismo que está completamente fora do alcance de Dumas. Diga-se que a nova tradução apresentada agora pela Relógio d’Água faz verdadeiro jus à obra original, o que nos permite, em português, sorver o que de melhor nos deu a pena de Hugo. Se dúvidas houvesse, ser objeto de dedicatória de Balzac, um dos grandes pilares do cânone literário ocidental, e na obra por si considerada maior — “Ilusões Perdidas” (1843) — estando Victor Hugo ainda vivo e com apenas 41 anos, diz quase tudo o que se pode dizer sobre a qualidade da sua escrita, assim como pessoa.

É essa pessoa que temos em “Os Miseráveis”. Podemos dizer, como já foi dito antes pelos irmãos Goncourt que a obra roça o “artificial”. Não raras vezes damos por nós a pensar: mas existiria alguma vez alguém tão puro como o Bispo de Digne; ou como a freira que nunca mentiu; ou com a submissão infinita de Fantine; ou com a honra do dever de Javert; para não falar da gigantesca conversão e humildade inesgotável de Jean Valjean? Como diria Flaubert também, parece faltar “verdade”, são tantas as coincidências que o enredo provoca que é impossível não levantar o sobrolho. Mas dissecando a obra, dedicando-lhe a devida atenção, procurando compreendê-la no seu contexto histórico e do seu autor, podemos aos poucos começar a desvelar camadas não imediatamente visíveis.

A artificialidade aqui em questão é apenas o modo narrativo escolhido por Victor Hugo para lançar os seus dados, é um contar de história popular que para tal recorre a heróis, impossibilidades, e mitos. Victor Hugo disse-o ao editor: “Eu não sei se será lido por todos, mas foi escrito para todos”. Ou seja, Victor Hugo tal como Hollywood faz hoje, procurou o veículo ficcional que lhe pudesse oferecer o maior alcance possível, mas por ser a pessoa que era, não o fez pensando em ganhos financeiros, mas antes como manifesto, com objetivos puramente ativistas. Assim, se à superfície “Os Miseráveis” parece não passar de uma manta de mitos recontados ao longo da nossa história, por debaixo existe mais do que as pequenas lições que esses mitos serviam, existe uma vontade renovadora, reformadora, e progressista. Existe um ideal de sociedade, um olhar político encantado à procura de um mundo melhor, como fica explícito neste parágrafo quase no final da obra:
“O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou as fraquezas, o caminho do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus.”
O grande sucesso da obra de Victor Hugo pode não advir desses seus ideais para o mundo, embora seja por eles que é ainda hoje uma obra de referência obrigatória em qualquer país que siga o cânone ocidental. É um sucesso que se baseia no uso dos mitos eternos, dos arquétipos e do monómito do herói que facilmente se cola aos anseios dos seus leitores. Mas não é só, no trabalho de Victor Hugo existem elementos de pura genialidade narrativa, a um nível que nos habituámos a encontrar apenas em trabalhos da classe de Dostoiévski. Falo da acuidade e agilidade com que desenha os devires dos seus personagens, como os interroga e expõe o seu interior, conduzindo-nos a ver e a sentir como eles, nomeadamente no desenho das condições de escolha em momentos decisivos para os seus destinos, os dilemas. Damos por nós, estacados frente à página de papel, como que frente a uma parede, numa bifurcação em que os dois caminhos se opõem, sendo igualmente relevantes mas autoexcludentes. Apetece fechar o livro e não ler para não saber o que vai ser deixado cair: deve deixar morrer e salvar-se, ou salvar e morrer; deve expor-se e perder toda uma vida de conquistas para salvar um outro, ou deve permanecer na sombra com o peso na consciência... O que Victor Hugo busca aqui é acima de tudo o escrutinar do humano, como nos diz no seguinte parágrafo:
“Há um espetáculo maior do que o mar: é o céu; há um espetáculo maior do que o céu: é o interior da alma.
Escrever o poema da consciência humana, nem que fosse a respeito de um único homem, nem que seja a respeito do mais ínfimo dos homens, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das intenções, a fornalha dos sonhos, o antro das ideias de que nos envergonhamos: é o pandemónio dos sofismas, o campo de batalha das paixões. Em certos momentos, experimentem olhar para a face lívida de um ser humano que está a refletir, olhem mais além, observem-lhe a alma e contemplem-na nessa obscuridade. Sob o silêncio exterior, desenrolam-se aí combates de gigantes como em Homero, batalhas de dragões e hidras e revoadas de fantasmas como em Milton e espirais visionárias como em Dante. Que coisa sombria é este infinito que cada homem arrasta consigo e pelo qual regula com desespero as vontades do cérebro e as ações da vida!” 
Naturalmente muitas destas questões funcionam apenas no calor da história que está a ser contada, porque rapidamente percebemos que o valor da vida não é o mesmo sempre, nem para todos. Os soldados que morrem num campo de batalha, ou os manifestantes que morrem numa barricada, parecem não passar de peões. É contudo interessante verificar como esta questão tem também sido discutida noutros meios narrativos, sendo bastante comum no cinema de Hollywoood, ou nos videojogos, sendo reconhecido pela sua definição psicológica, “dissonância cognitiva”. Isto deve-se em parte ao uso dos mitos, o modo como estes são facilmente aceites como supra-realidade, analogias de um mundo mágico, no qual as condições de verdade são por vezes suspensas, para assim se poder intensificar a emoção e enfatizar o sentimento pretendido. Não é por acaso que Victor Hugo cita inúmeras vezes Homero, Dante ou Milton ao longo do texto.

Dito tudo isto, justificadas as razões porque considero “Os Miseráveis” uma obra de referência e que continuará a eternizar-se, quero contudo apontar o ponto que considero, não como negativo, mas como menos conseguido artisticamente em toda a obra, e que é talvez aquele que fez Baudelaire, em privado, considerar o texto “incompetente”. Falo das digressões e ensaios que perfazem nada menos que o 1/3 do livro, 450 páginas em 1300. Claro que como disse um dos biógrafos de Victor Hugo, "as digressões dos génios são facilmente perdoadas", mas não quero por isso deixar de explicitar e discorrer sobre este ponto, tendo em conta a permanência da sua relevância para as artes narrativas.

Quero começar por separar as digressões dos ensaios, dizendo que não foram as digressões em si, comuns em tantas e tantas obras de grandes autores que me chocaram. Embora sobre estas ainda, deva dizer que pecam por verborreia e cargas metafóricas baseadas na mera interpretação pessoal da realidade, muitas vezes desprovidas de suporte em factos, estudos ou trabalhos, apresentando-se assertivamente, e por vezes mesmo algo arrogantes, como se do pedestal do seu observatório Victor Hugo se arvorasse em dono da verdade. Contudo como digo, o maior problema, em termos da obra como um todo, surge na forma de autênticos ensaios, ou seja, blocos integrais de texto com pouca ou nenhuma relevância para a narrativa.

Na introdução de muitos destes blocos o narrador, que se confunde com o autor, dá-se ao luxo de dizer na cara do leitor: espere aí que agora tenho de lhe contar aqui uma outra coisa, que para mim é também muito interessante. São dezenas de vezes em que literalmente diz isto aos leitores, chegando a criar um Livro (rótulo atribuído aos conjuntos de capítulos dentro da obra) inteiro que intitula de “Parêntesis”, para dissertar sobre mosteiros, abadias e deveres religiosos, quando ainda no Livro imediatamente anterior tinha já digressionado fartamente sobre a construção de um convento e as suas religiosidades. Noutros, como “Waterloo”, discute batalhas e estratégias de guerra; para pouco depois criar outro livro “Páginas de História” e discutir a revolução de 1830 em Paris; e mais à frente ainda dedicar todo um outro livro ao dia “5 de Junho 1832” em Paris. Pelo meio temos livros como “Paris no seu átomo” em que se apresenta um estudo das crianças abandonadas nessa cidade; outro como “Calão” em que se observa o modo como nasce o calão nas ruas de Paris; ou ainda “Patron Minette” em que se discute a formação de uma quadrilha em Paris; ou por último um inteiramente dedicado à razão e funcionamento das redes de esgotos de Paris.

O que é que estes textos fazem no meio de um livro que tem como personagem principal Jean Valjean? Ou secundárias como Fantine, Cosette, Marius, Javert, ou o Bispo de Digne? Nada, porque nenhuma destas personagens é mencionada em nenhum destes capítulos. Eles foram escritos por Victor Hugo como textos autónomos, independentes da trama, alheios ao discorrer da narração, assim como aos destinos dos personagens. São textos que demonstram o conhecimento e trabalho profuso de Victor Hugo, mas são textos que demonstram incompetência pela falta de artifício narrativo no fusionar de factos e do contar de história. É verdade que isto está longe de ser algo fácil, veja-se como o cinema tem dificuldade em o fazer, acabando por optar por diferenciar-se claramente entre filmes de ficção e filmes de documentário, ou como os videojogos educativos falham cabalmente. O chamado edutainment (entretenimento educativo) é difícil de criar, mesmo num campo mais abstrato como a literatura, por isso temos tal como no cinema a ficção e a não-ficção, mas existem excepções.

Enquanto Victor Hugo se debatia sobre a metodologia a adotar na criação do seu livro de ficção carregado de factos, Leo Tolstoi avançava e mostrava como fazê-lo. Se colocados lado a lado, “Os Miseráveis” (1862) e “Guerra e Paz” (1869), Victor Hugo falha "miseravelmente". O Pierre Bezukhov de Tolstoi viveu a batalha da Invasão Francesa da Rússia, sentiu o palpitar de uma Moscovo sitiada, e com ele levou-nos a experienciar todos esses eventos históricos por dentro. Já Jean Valjean nunca chega a saber quem foi Napoleão, nem porque raio as pessoas se envolvem em revoluções. Deste modo, apesar de ambas apresentarem fortes tramas e factos reais, os modos como o fazem são não só diferentes, como providenciam aprendizagens históricas efetivas bastante distintas. Aliás, basta olhar para a história das publicações de cada uma destas obras.

Existem muito poucas obras resumidas de “Guerra e Paz”, já de “Os Miseráveis” abundam, o nosso Plano Nacional de Leitura chega a recomendar uma dessas versões, o que nos diz que as partes históricas, os tais ensaios, normalmente extirpados destas versões, precisam de acompanhamento para chegar à maioria dos leitores. Ou seja, é uma obra que claramente aconselha o estudo em escolas, para que os professores possam ir contextualizando e trabalhando os dados históricos do livro com os alunos, não os deixando à mercê de factos complexos e em torrente.

Por outro lado, terá sido também a facilidade com o que se podem recortar esses blocos do livro, sem impacto na trama, que terá conduzido ao seu sucesso popular. Existem mesmo listas de aconselhamento sobre os capítulos que se podem evitar. É muito provável que o facto de “Guerra e Paz” ser pouco lido se deva menos à sua extensão e mais às suas digressões e relato de eventos históricos que acabam por não ser tão facilmente tolerados pelo leitor comum, mais habituado a focar-se no enredo. E talvez também por essa facilidade de extrair as partes mais ensaísticas, as adaptações de “Os Miseráveis” tenham tido tanto sucesso, com mais de meia centena realizada pelo meio audiovisual, sendo que um dos musicais adaptados permanece em cena há mais de 30 anos.

Para fechar, e socorrendo-me do musical, talvez o fruto mais expressivo do sucesso desta obra, quero referir um facto apontado pelo produtor Cameron Mackintosh, que disse numa entrevista que parte do revigorar do sucesso da adaptação “Les Mis” ao chegar ao marco dos 25 anos, se deveu ao fenómeno surgido num programa da televisão inglesa, Susan Boyle. Surgindo como revelação no concurso "Britain Got Talent", a cantar o tema do musical “I Dreamed a Dream”, encarnava pela história da sua vida, o fundamento de tudo aquilo que Victor Hugo nos quis deixar como legado. No final de "Os Miseráveis" Jean Valjean pode não ser um grande conhecedor da História que o rodeou ao longo de todas aquelas páginas, mas o leitor não poderá dizer que não percebeu o porquê de Jean Valjean ter vivido como viveu.

Susan Boyle no concurso Britain Got Talent canta "I Dreamed a Dream"

fevereiro 11, 2017

Anime: "Erased" (2016)

Tenho seguido muito pouco a anime dos últimos anos, apesar de sempre me ter chamado a atenção pela forma adulta como são tratados os temas, ao contrário da maior parte das séries de animação ocidentais. “Erased” veio muito recomendada pelo seu storytelling, e apresentava a mais valia de trabalhar um dos meus temas preferidos, as viagens no tempo. São 12 episódios de 20m cada, que valem todo o tempo investido.



A narrativa de “Erased” foi desenhada segundo a tradicional estrutura de mistério. A personagem principal entra em choque com uma tragédia sucedida na sua vida, e acaba por sofrer aquilo, que a série designa por efeito de “revival”, que o faz regressar no tempo. Não percebendo porque regressou, iniciam-se as interrogações, com várias camadas narrativas a surgirem, enquanto nós procuramos respostas. Pelo meio, a viagem no tempo perde relevância para se focar completamente nos personagens, e talvez essa tenha sido a aposta mais acertada da série.
"The town where he alone is not there."
A caracterização é conseguida por meio de um leque de dramas que convidam a um cada vez maior aprofundamento de cada personagem. Temos desde relações professor-aluno, a rapto de crianças, maus-tratos familiares, e assassinos em série que dão vida e dinâmica a um enredo que se vai dirigindo para dois grandes motivos: o isolamento social e a amizade. Uma série que poderia ser apenas um entretém, brincar com a narrativa para nos manter grudados no ecrã, mas que é mais do que isso, procura ser mais, tratando problemas contemporâneos, assumindo posicionamentos e questionando-os.


Tudo isto é envolvido por uma belíssima plástica, tanto visual como sonora. Os ambientes são profundamente atmosféricos, o que permite densificar a história. É todo um trabalho de cor, arquitectura e música, que nos transporta para o espaço e nos faz esquecer a nossa realidade. Em termos de animação não temos nada de excepcional, é uma série de televisão, e por isso recorre aos artifícios típicos da anime para poupar frames, mas a ilustração, montagem e música acabam compensando.


Claro que nem tudo é brilhante, mas não podemos esquecer que se trata apenas de uma pequena anime. Para além de nunca se perceber como surge a capacidade de viajar no tempo, o maior problema surge no arco narrativo de Kayo que assume um papel demasiado forte, desequilibrando o desenho narrativo geral, roubando protagonismo ao arco principal de Fujinuma. Assim, terminado o arco de Kayo a série parece esvair-se de propósito para continuar, acabando por passar a ideia de que deveria terminar ali. Contudo, para os espectadores que mantêm o interesse vivo, são recompensados pouco mais à frente, quando tudo se resume, o equilíbrio se repõe, e o todo ganha um sentido não só mais coeso mas também mais intenso. Podemos dizer que a série merecia mais, é verdade, mas se colocarmos a fasquia da exigência no nível correto, saberemos apreciar e aproveitar o melhor que esta tem para nos oferecer.

janeiro 13, 2017

Como filmar o pensamento

O Nerdwriter traz-nos esta semana mais um brilhante ensaio, "Sherlock: How To Film Thought", no qual dá conta cabal do modo como as séries de televisão ombreiam com o cinema. Se até aqui falávamos do modo como estas dominavam a arte do storytelling, passámos agora a falar da arte completa do audiovisual, do uso e avanço da linguagem que torna o audiovisual um meio expressivo. O cinema deixou de ser o farol e passou a ser apenas mais um dos imensos suportes. O cinema é hoje o mesmo que televisão, vídeo, web, móvel, tudo suportes. É a linguagem do audiovisual que fundamenta todos estes canais, a arte da fusão entre imagem em movimento e som.




Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.

Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.

"A Requiem for a Dream" (2000) Darren Aranofski

É claro que o Nerdwriter se deixa levar pelo entusiasmo, desde logo quando diz que não há CGI, quando várias das sequências estão prenhes de efeitos visuais, mas especialmente porque isto não é novo. Mais uma vez o cinema já lá tinha chegado antes, e o tinha mostrado, e até de forma mais efetiva. Se gostaram desta sequência, recomendo-vos vivamente "A Requiem for a Dream" (2000) do brilhante Darren Aranofski. A mim contudo, resta-me uma questão, porque razão só se procura mostrar o interior da mente dos personagens quando eles estão sob efeito de drogas!?

"Sherlock: How To Film Thought" (2017) de Nerdwriter

janeiro 06, 2017

Por detrás da HiperNormalização (media e storytelling)

Chegou-me por diferentes fontes o documentário “HyperNormalisation” (2016), de Adam Curtis, produzido pela BBC. Fontes que por respeitar me obrigaram a encontrar as 2h46m para dedicar ao visionamento do mesmo. No fim, não posso dizer que tenha sido tempo perdido, mas também não posso deixar de dizer que me senti defraudado e até vítima de uma enorme tentativa de manipulação, o que não deixa de ser irónico, ainda que interessante, tendo em conta que a tese central do documentário assenta na demonstração da manipulação global das massas pela política internacional.




Ao longo de quase três horas Curtis ensaia as mais diversas teorias, que vai suportando totalmente em imagens de arquivo e uma voz off de autoridade. Esta abordagem audiovisual é magistral, já que usa o real como espetáculo para passar a ideia e ao mesmo temo credibilizá-la. Usa um  modo discursivo com que as pessoas estão familiarizadas, o do cinema espetáculo mesclado com o da informação televisiva. É difícil escapar à argumentação, apresentada como verdade cabal, única sem margem para dúvida, reforçada por imagens do real, som e vozes coadunantes, ficamos como que hipnotizados e deixamo-nos embalar pela excelência da retórica audiovisual.

Em essência, Curtis defende que o mundo vive dominado por meia-dúzia de políticos que para se manter no poder, engendram continuamente histórias da carochinha (ex. Sistema Bancário, Bolsa, Kissinger, Assad, Kadafi, Bush, Blair, Hussein, ISIS, Putin, Farage e Trump) que servem no adormecimento da sociedade, como ele diz, na defesa de uma suposta “estabilidade”. Curtis defende, que em face da complexidade da realidade, e da impotência para a transformar, os políticos, e o mundo — artistas, juízes, professores, etc. —, têm-se retraído e contado histórias uns aos outros para evitar dizer que “o rei vai nu”. Curtis elabora a teoria com base no fim do regime comunista na União Soviética, em que ninguém acreditava já na capacidade do sistema para dar resposta às necessidades reais da sociedade, mas todos continuavam a querer acreditar nas histórias que falseavam os problemas existentes, criando uma realidade patranha ("fake") em que todos preferiam acreditar e conviver. Este mundo aparente e aceite por todos, foi etiquetado como processo de "hipernormalização", pelo antropólogo Alexei Yurchak, no livro 2005, “Everything Was Forever, Until It Was No More: The Last Soviet Generation”, e é a base de todo o filme, e toda a grande teoria de Curtis.

Diga-se, não é uma má teoria, o problema deste documentário é que peca exatamente pelo pecado que tenta elucidar, o que é no mínimo caricato. Ou seja, ao tentar demonstrar que os políticos, e o mundo, têm criado histórias que fogem à complexidade do real, para hipernormalizar tudo à nossa volta, Curtis acaba a criar a sua própria hipernormalização sobre a hipernormalização, fugindo, ele próprio, à gigantesca teia de complexidades que percorre cada um dos exemplos dados para suportar a sua teorização. Diga-se que ao longo do documentário, Curtis faz leituras muito interessantes, diria mesmo penetrantes e verdadeiros abre-olhos, tais como o fantoche internacional Gaddafi, ou ainda a definição dos perfis e modos de atuação política de Putin e Trump, como “shape-shifters” (constante mudança de forma e objetivos, baralhando tudo e todos). Contudo, outros exemplos como o arco narrativo de décadas criado para explicar o surgimento do ISIS roça a pura mitologia. E isso fica evidente para cada um de nós especialista nas suas áreas. Não especialista em ciência política não sou capaz de medir com concretude o alcance do que Curtis afirma, deixando-me seduzir. Contudo quando ele fala de cinema, internet ou IA fico totalmente estupefacto com o modo como supersimplifica o complexo apenas para garantir que o que se conta corresponde às necessidades da sua história, algo que os académicos conhecem muito bem como viés.

Mas se à partida tudo isto deitaria por terra o menor interesse pelo documentário, antes pelo contrário só o torna ainda mais relevante, já que acaba por se auto-incluir nesse mundo patranha, assumido ou não, sendo um documentário patranha. Mas sendo-o funciona como um objeto que merece toda a nossa cuidada atenção, já que é um objeto meta-hipernormalizante. E por isso a questão que se impõe, é tentar perceber o porquê deste fenómeno, o que encerra enquanto ação humana, como se produz, e com que objetivos; como se tornou tão central ao ponto de contaminar o próprio discurso que o tenta desmistificar.

Ora a resposta advém de um, entre muitos, dos principais fatores escamoteados pela análise de Curtis, os Media, a mediatização do real, dos factos e acontecimentos. As transformações industriais e tecnológicas permitiram transformar o planeta numa aldeia global. Como tal existe uma necessidade vital de manter a aldeia pulsante, ora essa vida só é possível através dos media, já que não se pode juntar as pessoas todas à volta da fogueira, no final do dia ou da semana. Não existe vida sem comunicação, porque a essência do que nos torna humanos é a nossa capacidade social, em essência o diálogo e a troca.

Reconhecida a presença essencial dos media, passamos ao passo seguinte, que são os seus conteúdos. Para que grupos grandes compreendam o teor das mensagens que lhes são passadas, é requerida uma simplificação da complexidade. Quando tal não acontece o grupo simplesmente acaba ignorando, começa a desligar e vai à procura de outra fonte que compreenda, que fale no seu comprimento de onda. Deste modo, mais do que encenar, foi e será sempre vital omitir e simplificar informação, isto é a condição base do processo de contar histórias (storytelling), processo de organização de informação que evolutivamente mais frutos deu à formação das civilizações humanas.

O storytelling é uma tecnologia de simplificação, podemos dizer de normalização do complexo. O processo assenta na selecção de eventos chave, na estripação do secundário e redundante, mas também do impossível ou não explicável. O processo de contar histórias não funciona bem quando, o que se diz, não tem uma causa e efeito, é como se a história ficasse incompleta. Quem está do outro lado, fica sem perceber, e como disse acima, tende a desligar de quem conta histórias sem sentido completo, fechado fácil de apreender. Era assim nos grupos tribais, onde o storytelling germinou para ajudar a transmitir conhecimento de geração em geração, mas também para manter o grupo unido, devoto de uma mesma visão, crente nos mesmos princípios, podemos dizer, sequiosos de normalização. Daí que os políticos se debatam constantemente por encontrar os bodes expiatórios, fantoches, que possam de algum modo fechar as histórias, dar-lhes uma explicação e sentido, que acalme as pessoas e lhes permita avançar.

Curtis ataca a hipernormalização pela ânsia da estabilidade, como se essa fosse um erro. É verdade que a disrupção é bem vista pelos meios artísticos e criativos, sabemos que é dela que brota o melhor de nós, as grandes inovações e avanços da humanidade. Mas daí a extrapolarmos o sentimento de momentos decisivos da sociedade, para um contínuo no tempo, vai uma distância inimaginável. O ser humano precisa da estabilidade, até para se tornar criativo. Como vários estudos têm demonstrado, os momentos de disrupção, só surgem porque momentos de acalmia e enorme estabilidade permitiram formar o conhecimento para o salto no momento de aperto. Se a todo o momento vivermos sob aperto, a criatividade simplesmente definha, basta tentar procurar inovação em regiões que vivem sob a pressão constante da guerra.


Trailer de "HyperNormalisation" (2016) de Adam Curtis

Por fim, uma rápida pesquisa na web, ou visita ao IMDB, dá para perceber que este documentário é uma linha de trabalho já muito experimentada pelo autor. Não há aqui nada de muito novo. São múltiplas as pontas do documentário que ficam soltas, e que Curtis se desculpa com a ideia de que não pretende fazer cinema, apenas criar ideias que as pessoas possam apanhar em qualquer momento que começam a ver os seus filmes. Mas o que Curtis faz é apontar o dedo à sociedade, às pessoas, simplesmente para dizer que estão a fazer algo errado. O problema de Curtis não é não explicar como fazer certo, não sejamos ingénuos ao ponto de esperar que Curtis apresentasse uma 3ª Via  para ombrear com Giddens e Gaddafi! Mas, e para além das contradições naturais em teorizações deste calibre, Curtis não tem argumentos para explicar sequer porque é errado. Apontar o dedo, fazem as crianças desde pequenas, desde que começam a perceber a diferença entre si e os outros.

Filme completo, disponível no Youtube temporariamente, até ser retirado. Normalmente apenas visionável no BBC iPlayer. 

novembro 11, 2016

Storytelling minimalista

O projeto Future of StoryTelling traz-nos um belíssimo filme com Dan Pinchbeck, a passear-se pelos cenários que inspiraram o videojogo “Everybody's Gone to the Rapture” (2015), enquanto discute o modo como a sua empresa de jogos, a The Chinese Room, funde jogo com história.





Para Pinchbeck é acima de tudo uma questão de espaço, a criação de uma arquitectura capaz de envolver o jogador, de o colocar no centro, a ponto de o obrigar a iniciar ele próprio o processo de contar a história. Ou seja, o que se objetiva, não é contar uma história, mas antes plasmar o universo da história num espaço tridimensional capaz de receber o jogador. No fundo Pinchbeck fala de algo que já conhecemos, o “environment storytelling”, que baseia o seu processo de dar conta da história nos detalhes colocados num ambiente em que se lança o recetor.

Ao longo dos quatro minutos do filme, Pinchbeck vai insistir na ideia de co-autoria e colaboração na criação da história, defendendo o universo de jogo como impulsionador, no qual um conjunto de blocos de história são dispersos, cabendo ao jogador juntar as peças do puzzle, e encontrar a sua própria explicação, em vez de esperar que esta lhe seja ditada pelo jogo.

Aquilo que aqui se discute, e que é a força motriz deste tipo de storytelling, é minimalismo, algo que estava já antes definido como storytelling minimalista, que podemos encontrar múltiplos meios expressivos. Ou seja, a criação de uma linha de eventos subtis, sem conexões fortes, que garante nós da história em branco, abrindo assim espaços a serem preenchidos pelo recetor. O minimalismo não é apenas um modo de minimizar a informação dada, é também um modo de obrigar o recetor a participar na criação dessa informação em falta, o que acaba contribuindo para um maior sentimento de agência, de participação, e claro, co-autoria.

O uso de storytelling minimalista funciona bem nos videojogos porque se torna menos intrusivo, dá espaço ao jogador para que ele se vá inteirando do mundo, e ao mesmo tempo, fazendo desse mundo, o seu também. Da mesma forma, liberta o jogador de um esforço cognitivo dual, entre o jogar e seguir uma história, já que a história lhe chega ao ritmo que o próprio jogador define, podendo este optar por investir no jogo, sem nunca perder nada da história.

Dan Pinchbeck — Parachuting into the Story (FoST 2016)

Assim, e como Pinchbeck acaba por aceitar no final do filme, os videojogos não estão aqui a fazer nada de propriamente novo. Mais do que tudo, o que interessa reter de mais esta conversa, é que as histórias constroem-se nas mentes das pessoas, tudo aquilo que desenhamos, desenvolvemos e criamos materialmente são apenas estímulos à imaginação, são formas de ativar o processo criativo de cada um.

outubro 22, 2016

Espreitando pelo orifício da culpa

“Borrowed Time” surge a partir de um esquema interno da Pixar que permite que os seus empregados possam dedicar tempo e recursos da empresa a um projeto mais pessoal, sendo por surpreendente que pareça, a primeira animação a surgir do programa, até agora tinham sido todos curtas de imagem real.




“Borrowed Time” socorre-se do principal ingrediente do sucesso da Pixar, o storytelling. Para além de ter uma premissa muito forte, que assenta sobre a emoção complexa da culpa, trabalha tudo de um modo absolutamente perfeito, como tudo o resto que temos vindo nascer nesta empresa de animação. Os primeiros embates e twists são por demais referenciais a toda a história da empresa, que tem sabido gerir emoções fortes, desde a mãe de Nemo à fundição de Toy Story.

Em termos de inovação temos pela primeira vez o desvio do público infantil para um público maduro, algo que foi claramente assumido como objetivo pelos criadores, e algo que podemos dizer totalmente conseguido.  Comprová-lo estão as dezenas de prémios em festivais, o que também me leva a relembrar que esta colocação online, integral e gratuita, do filme é algo limitado no tempo, por isso é aproveitar para ver agora.

O facto do score estar a cargo de Gustavo Santaolalla eleva todo registo dramático a um nível que contribui intensamente para o esquecimento do formato, de animação, ligando-nos apenas à personagens e ao que estas sentem. Tudo em conjunto desenvolvem uma curta de animação que prefiro definir através das palavras do colega Albertino Gonçalves: "Há algo de cósmico nesta curta-metragem. Abarca o mundo e a vida com um punhado de pormenores." 


"Borrowed Time" (2015) de Andrew Coats e Lou Hamou-Lhadj

Esta curta vem amenizar a espera que ainda temos pela frente para entrar no mundo de “Red Dead Redemption 2”.

setembro 06, 2016

“Firewatch" (2016), o anti-catártico

Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.





Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.

Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.

Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.

Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.

Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.

Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.

Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.

julho 19, 2016

"Uncharted 4", zénite da arte e tecnologia

A Naughty Dog é hoje, de entre as grandes empresas de videojogos a mais relevante, não só porque nos tinha dado dois dos mais significativos jogos da história do meio — "The Last of Us" (2013) e "Uncharted 2" (2009) — mas, e em virtude destes, porque reúne uma das equipas de desenvolvimento mais talentosa do planeta, capaz de dar conta do melhor que os videojogos têm para oferecer nos seus distintos domínios — tecnologia, design e arte. Ao contrário da Ubisoft soube crescer sem dispersão, nomeadamente soube acarinhar o enorme talento que foi construindo e adquirindo, transformando-se num selo de qualidade, tornando obrigatório qualquer obra que venha a colocar no mercado nos próximos anos.




Como referi, nesta série em concreto, “Uncharted 2” é uma referência, e sabendo nós como as séries são parcas em progressão de excelência, soa estranho dizer que “Uncharted 4”, depois de um terceiro tomo bom mas apenas isso, supera. Existem algumas potenciais razões para explicar esta questão, desde logo aquelas que já usei para explicar porque muitos dos segundos videojogos são melhores, mas não só, neste caso em particular existe um processo interno à própria empresa, que produziu variações nas equipas responsáveis pela série e que ajudam a explicar o ocorrido.

Falo nomeadamente da dupla Bruce Straley e Neil Druckmann, o coração daquele que continuo a considerar o melhor jogo do meio, “The Last of Us”. Podemos muito rapidamente verificar que ambos fizeram parte da equipa de “Uncharted 2”, Straley na direção juntamente com Amy Hennig, e Druckmann no design com Richard Lemarchand, mas nenhum dos dois fez parte de “Uncharted 3”, porque nessa altura a Naughty Dog resolveu criar duas equipas para poder produzir em paralelo “The Last of Us”, juntando assim pela primeira vez Straley e Druckmann. Ou seja, analisado este historial, poderíamos dizer que “Uncharted 4” é uma espécie de sequela de “The Last of Us”, em termos de construção sobre conhecimento de equipa acumulado de uma primeira experiência, seguindo toda a lógica de design evolutivo dos segundos jogos de que falava acima. Apesar de soar estranho, dizer que “Uncharted 4” é uma sequela de “The Last of Us”, porque não o é em termos narrativos, julgo que a grande maioria das pessoas que jogou ambos, sentiu muitas pontes na experiência, nomeadamente estética e de flow.

Tendo dito tudo isto, quase que me poderia limitar a dar conta da história de "Uncharted 4" e terminar por aqui, já que muito do que haveria para dizer eu já o teria dito sobre "The Last of Us", o que não está longe da verdade, ainda assim, considero que “Uncharted 4” apresenta particularidades de que vale a pena falar, enfatizar e mesmo louvar. Por isso darei conta aqui apenas das componentes que mais se distanciam de “The Last of Us” e dos anteriores “Uncharted”.


Tecnologia
Em termos tecnológicos, "Uncharted 4" vai além de qualquer um dos jogos anteriores, não só porque estamos a falar do primeiro jogo da Naughty Dog desenvolvido de raiz para a PS4, assim como todas as tecnologias de computação gráfica progrediram entre os anteriores e este, mas também porque a equipa de desenvolvimento ao trabalhar mais tempo junta, criou maior experiência e domínio elevando assim aquilo que consegue obter da tecnologia. Isto pode ser visto na excelente análise realizada pela Digital Foundry que rotula o jogo como "o melhor alguma vez testado por eles em consolas", uma afirmação que não me impressiona de todo.

Arte
Mas é claro que para que a tecnologia possa ser levada a este ponto não chega a engenharia, e foi por isso mesmo que intitulei este texto como o zénite da tecnologia mas também da arte, porque só ela poderia demonstrar aquilo de que a tecnologia é verdadeiramente capaz. “Uncharted 4” resulta neste sentido, em termos do almejo de quem trabalha os mundos multidisciplinares entre arte e tecnologia, numa das maiores conquistas, não só pela grandiosidade da obra criada, mas especialmente por demonstrar cabalmente que a tecnologia sem arte não existe, assim como a arte sem a tecnologia não progride. A quantidade de detalhe artístico, potenciado pela tecnologia, presente neste jogo é absolutamente impressionante, e algum deste é discutido no artigo da Foundry, mas eu gostaria de deixar aqui um pequeno vídeo que realiza uma demonstração com excertos de partes do jogo que mostra muito desse trabalho, nomeadamente no campo da ilustração e animação interativas. Foram imensas as vezes que parei no jogo para apreciar, para literalmente contemplar o mundo virtual de "Uncharted 4", para admirar e sentir o efeito total da surpresa e admiração por todo o talento humano que contribuiu para a sua criação.



Design
Dos cinco componentes que resolvi aqui destacar — Tecnologia, Arte, Design, Direção e História —, este é talvez o menos revolucionário, e isso foi também uma marca de “The Last of Us”, o que aqui temos é inovação de tipo incremental, que não tem nada de mal, e que no fundo eu próprio venho defendendo ao longo da última década. Porquê? Porque se trata de um blockbuster, porque é um investimento colossal que não se pode dar ao luxo de revolucionar no design. Mas também porque é uma obra, que tal como "The Last of Us", estava mais preocupada em criar uma experiência nos jogadores, do que em chamar a atenção sobre si. “Uncharted 4” é arte, mas é arte-entretenimento, é uma obra produzida com um fim concreto, produzir experiências nos jogadores, não é arte no mesmo sentido de um jogo indie, à procura de novos modelos expressivos, capazes de transformar o meio em si.


Apesar disto, o talento por detrás do design da obra demonstra um domínio absolutamente estonteante da técnica, assim como um conhecimento muito apurado do que ela pode fazer pela experiência de jogo. Deste modo o design de "Uncharted 4", pode não apresentar inovação expressiva, mas apresenta uma tal coerência, uma integração de todos os componentes que laboram para o design da obra como um todo, capaz de produzir no jogador em poucos segundos de contato com o jogo um alheamento do seu meio circundante. A tecnologia, a arte, e a história são centrais, mas é o design que une tudo isto num só objeto, que o torna uno, coerente e integrado, um verdadeiro todo, que faz o jogador sentir-se acolhido no seio do jogo, sentir-se parte do mundo virtual e interativo, e desejo de ali continuar, ou rapidamente ali regressar novamente.

Direção (narrativa e storytelling)
Quanto terminei o jogo escrevi no facebook, “Não me consigo lembrar da última vez que vi aventura e profundidade misturadas tão bem, graças ao impressionante trabalho de storytelling”. Aproveito essa frase, para elaborar sobre o que experienciei, já que essa impressão de fim de jogo tornou-se, passados dois dias de distanciamento da experiência, ainda mais verdade.

Como disse acima, o design é responsável por tudo integrar, mas em jogos profundamente narrativos e complexos como “Uncharted 4”, não chega, existe uma camada acima, que fica a cargo da direção de jogo, e que é no fundo responsável pela leitura da obra, por garantir os signos e significados, ou seja por garantir que a história que se quer contar chega aos jogadores, por entre tantos outros elementos que gritam por atenção. Ou seja, a direção balanceia o todo em busca da experiência global, mas essa experiência deve obedecer a uma ideia que se quer transmitir, normalmente uma história que se quer contar. “Uncharted 4” é exímio nisso, ou melhor a dupla Straley e Druckmann são exímios nesta arte, na capacidade de ir além do design, e criar uma verdadeira direção que garante que o todo trabalha para uma visão.


Ou seja, Straley e Druckmann pegam no melhor da linguagem audiovisual, desde os primórdios do cinema aos dias de hoje — principalmente cinematografia, colocação em cena e direção de atores — ao que juntam o melhor da linguagem interativa em termos de interação com representação, da aventura gráfica de Robinett aos walking simulators de hoje — principalmente a terceira-pessoa, o espaço virtual, e a interação por objetivos — e constroem um artefacto capaz de contar uma história a partir do melhor que a comunicação audiovisual interativa nos pode oferecer. Sempre que entramos no videojogo sentimos as amarras com a realidade a diminuir e o mundo ficcional envolver-nos, o design de jogo é tão bem entrançado com o design da narrativa, que a clássica divisão entre a resolução de problemas e o contar de histórias está praticamente ausente aqui.

História
Para terminar, não posso deixar de falar daquele que é tema principal de qualquer obra narrativa, ou seja, o que se diz, o que se conta. Para tal devemos partir de um dado concreto definido pela Naughty Dog, de que este tomo 4, seria o último, algo que é de certa maneira bem evidente ao longo de todo o jogo. O protagonista surge como alguém dotado de uma história, com três tomos passados, nunca os esquecendo para nos relembrar que é passado, e que chegou o momento de deixar para trás esse mesmo passado. Assim, o facto do protagonista, o arquétipo herói, surgir como resignado ao real, cansado da fantasia que dava corpo a aventuras em mero modo de repetição, coloca “Uncharted 4” desde logo noutro patamar, alheio ao blockbuster tipo.

Mas “Uncharted 4” vai ainda mais longe, não se limita a refletir criticamente sobre as histórias de aventuras, por meio da idade e vida do protagonista, da parecença com o target mais hard-core dos videojogos (jogadores com cerca de 35 anos), reflete e obriga a refletir o próprio jogador, sobre a sua própria vida, sobre os seus sonhos, fantasias e a contrapô-los ao real. Leva-nos de volta à infância e confronta-nos com a idade adulta, questionando-nos sobre aquilo que fomos e aquilo que somos. Seremos nós Nate, ou ainda estaremos presos à utopia de Sam?

Straley e Druckmann reescrevem totalmente “A Ilha do Tesouro” (1883), apresentando-a como uma efemeridade, necessária nas nossas vidas, mas com um tempo de vida finito. Quase me atreveria a dizer que “Uncharted 4” ao pé de “Piratas da Caraíbas” (2003), parece uma autêntica obra de autor, dotada de reflexão, ideias e visão. Não se está aqui meramente à procura de produzir uma experiência de escapismo, mas também de um retorno para o jogador que marque a diferença entre um antes e um depois da experiência.



É tudo isto e muito mais, é uma grande obra que pode ser comparada a par com a literatura e o cinema sem desmerecer em qualquer dimensão. É um digno zénite da junção entre arte e tecnologia, mas é também a demonstração das enormes capacidades artísticas, enquanto linguagem expressiva, de um meio.