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novembro 11, 2014

O moinho criativo

Vinha no carro quando, na RFM, sou brindado com uns versos cantados por uma voz feminina, surpreende-me, mas o que me surpreende surge depois, com fluência e cadência, a mensagem que se transmite surge por via de um português trabalhado, para logo depois ser misturada com a voz e versos de Zeca Afonso... nem queria acreditar. Depois percebi que aquilo que tinha acabado de ouvir era muito mais do que português eloquentemente falado em verso, "Vayorken" apresenta um trabalho de mistura criativa, extremamente rico, tudo criado pela artista portuense Capicua.

Capicua (aka Ana Matos Fernandes)

Movido pela surpresa pesquisei sobre a artista Capicua, e já não me surpreendeu descobrir que Capicua era Ana Matos Fernandes, licenciada em Sociologia (2006) pelo ISCTE e doutorada em Geografia pela Universidade de Barcelona, com uma tese intitulada  "Do discurso ao projecto urbano de reinvenção da ruralidade" (2011). A verdade é que aquilo que tinha ouvido naqueles 4 minutos - a estrutura, a composição e o conteúdo daquele relato - não era de todo banal, menos ainda superficial, como se espera muitas vezes de uma simples canção.

"Vayorken" (2014) de Capicua
"Era pra ser Artur e nasci Ana,
"Ana quê?" "Ana só" "Ana Só?" "Sim, só Ana!"
Era percentil 90 nos anos 80
E entre colheradas chorava sempre faminta
Sempre vestida como mini comunista
Com roupas que a mãe fazia com modelos da revista
E eu queria ser pirosa, vestir-me de cor de rosa
Vestir de Jane Fonda na ginástica da moda
Com sabrina prateada, licra colante
Crina de pequeno pónei bem escovada, espampanante.
Tinha a mania de pôr as cores a condizer,
no meu entender, rosa com vermelho não podia ser!
Uma noctívaga que não dormia a sesta
E de manhã sempre quis menos conversa,
Uma covinha só de um lado da bochecha
Adormecia com o pai e a mesma canção do Zeca!

Era sempre mais Mafalda do que Susaninha
Ai de quem dissesse mal do Sérgio Godinho
Ainda tenho alguns postais prá "gentil menina"
Enviados pelos pais de um qualquer destino.
E se alguém me perguntar pelo pai e pela mãe?
Eu sei!! Sei! Foram pa Vayorken, Vayorken
Foram pa Vayorken, Vayorken, Vayorken!"

Versos da música "Vayorken"
Capicua dá conta de algo que tenho vindo a defender, com cada vez maior intensidade, a necessidade de alimentar o nosso ser de conteúdo, de factos, eventos, informação e saber para poder produzir criativamente. Só assim se pode gerar aquilo que tenho vindo a trabalhar como, "moinho criativo", ou seja, se à água juntar apenas um tipo de fruta, independentemente do método ou processo com que misture, obterei sempre o mesmo sabor, variando apenas a sua intensidade. Se por outro lado for adicionando diferentes frutas, mas não só, elementos outros, experimentando e testando com doses e velocidades diferentes, poderei assim obter combinações distintas e inovadoras. A criatividade não difere em nada deste processo, já que só pode surgir pelo trabalho, persistência e conhecimento aplicado ao nosso "moinho interno".

É por isto que Angela Merkel não tem razão quando diz que temos licenciados a mais em Portugal, porque sem formação seremos sempre, apenas e só, o país pronto a servir turismo, servindo-se do dinheiro e cultura de quem nos visita, incapazes de ir além do imediato, do cumprir das necessidades básicas... vale a pena ler a entrevista dada pela Capicua ao JPN que nos elucida bem sobre tudo isto.

Deixo uma outra música da Capicua, "Amigos Imaginários", que se pode encontrar na sua mix tape no YouTube, "Capicua goes West (Mixtape Vol.2)" de 2013. Neste álbum podem encontrar também crítica social, fundamental no rap, sendo que a última música "Pedras da Calçada" dá bem conta do Portugal contemporâneo.


"Amigos imaginários "Capicua Goes West"" (2013) de Capicua
"Eu queria que me conhecesses e que me merecesses e que na palma da tua mão me reconhecesses, queria que os interesses fossem os mesmos e que como estes, os anos fossem eternos. Eu queria entender o silêncio e quando penso, queria apagar o incêndio que avança na tua vida, queria curar a ferida, só com saliva e conseguir sair sem cinzas na despedida. Eu queria reencontros, mesmo nos invernos, braços abertos, prontos, longos e fraternos. Queria que pudesses entender os meus versos como sempre fizeste, que tentasses pelo menos. Queria que pudesses esquecer os meus erros, como sempre quiseste, que guardasses os segredos. Queria que viesses sem stresses, sem merdas, queria que soubesses que também sinto as tuas perdas.

Quero dizer a coisa certa pra salvar a conversa da tua língua esperta, dessa ironia, dominar a frieza, e abrir sobre a mesa, toda a subtileza presa em telepatia. Faço questão de ser perfeita para ganhar a discussão e não há senão que não rejeite a minha ambição! Faço o que posso para que o fosso não se abra e que o desgosto e essa mágoa não nos cubra pelo pescoço dessa água suja. A casa arde, alguém que fuja e que carregue sem ajuda a nossa estátua durante a fuga!”

Versos da música "Amigos imaginários"

novembro 09, 2014

O belo é constrangedor

Wayne White é um nome provavelmente estranho para muitos, mas se vos disser que criou as marionetes do programa "Pee-wee's Playhouse" (1986) talvez diga algo mais, e se disser que foi o director artístico do videoclip “Tonight, Tonight” (1995) dos Smashing Pumpkins acredito que irão reconhecer. Com estes trabalhos White arrecadou, nos anos 1990, vários Emmys, mas não é sobre isso que o filme “Beauty is Embarrassing” (2012) fala, embora também, o que aqui está em causa é verdadeiramente o artista por detrás dessas, e muitas outras criações. E se podemos admirar o seu trabalho, mais fiquei a admirar a sua pessoa, essencialmente pelos traços que a caracterizam: honestidade, frontalidade, simplicidade e tenacidade.




O documentário “Beauty is Embarrassing” (2012) dá conta do espírito subjacente à criatividade, à criação artística, às suas motivações, mas essencialmente ao modo como brota. Ver o espaço e o modo de trabalho de White é bastante elucidativo, mas não é menos compreender as suas raízes, compreender como está no mundo. Aceder à sua intimidade, vê-lo interagir com os filhos e a mulher dá conta do quão simples tudo isto é, e deve ser, das escolhas que se fazem, da educação, da orientação, motivação e investimento.



Wayne White, esposa e filhos
"Beauty is embarrassing. Now, what do I mean by that? Beauty is a many-pronged thing, you know? It has many sides to it. When we see something beautiful, truly beautiful, we're in awe, and raw emotion comes to the surface. We're also humbled by it. We're not worthy. That emotional vulnerability, that insecurity, those are both embarrassing situations.

"If only I could make something that beautiful,"
or,
"if only I was that beautiful."
So we're sort of embarrassed for ourselves when we're struck by true beauty. Artists and creative people are people who make beauty. Now, that's the bottom line. I mean, that's what we do. We make beauty. I've been trying to make beauty my whole life, and just to even say that is embarrassing, but I have.

So, ladies and gentlemen, I owe you a very big debt of gratitude, 'cause this is a rare and special time for me right now. You let me stand up here and show you all my beautiful things, and I didn't get embarrassed once.

Follow your heart and your pleasure in art. Don't do what you think is gonna be making you money or what your parents want you to do or what that beautiful girl or guy thinks you should be doing. Do what you love. It's gonna lead to where you want to go. Go out there and make the world more beautiful. I know you can.
My name is Wayne White. Thank you.
"

"Beauty Is Embarrassing" (2012) de Neil Berkeley

agosto 21, 2014

"The Martian" (2014)

The Martian” de Andy Weir ficará como um dos livros do ano 2014, pela aventura que nos conta, assim como pela aventura que lhe deu origem. Publicado pelo próprio autor em 2012, a versão final revista foi apenas editada pela editora Crown em Fevereiro de 2014. “The Martian” trata um assunto que não é novo, a reacção do ser humano quando numa situação extrema de solitude humana, precisa de sobreviver num mundo desconhecido, história que conhecemos de Robinson Crusoe, mas que serve de pano de fundo a imensas outras histórias que versam sobre o herói incompreendido. Neste caso, o nosso protagonista foi deixado no planeta Marte sozinho, após o cancelamento de uma missão mal-sucedida, e tem de procurar sobreviver até que alguém possa vir em seu socorro.


Dito assim apenas “The Martian” não seria mais do que uma pequena história de exploração de um ambiente que tem servido as fantasias de muitos dos amantes de Ficção Científica (FC). É mais porque “The Martian” foi escrito com base em muita pesquisa científica, e antes de chegar à versão final agora publicada, os seus dados foram confrontados e revistos por vários especialistas internacionais em várias das áreas científicas abordadas no livro. Ou seja, a especulação que podemos ler neste livro, não é mera imaginação romanceada, é antes o desenho de um futuro próximo possível, colocado sob a forma de romance, fruto de três anos de investigação.

Imagem de simulação da cratera Mojave em Marte [ver mais]

The Martian” vai para além do mero rótulo de Hard SF, dado o grau de verossimilidade, mas acima de tudo o grau de proximidade no tempo da possibilidade efectiva de acontecer o que é descrito. Ou seja, o trabalho realizado por Andy Weir está agarrado a quase tudo o que já hoje temos ao nosso dispor em termos de tecnologia e conhecimento. Para quem tem acompanhado as missões da NASA a Marte nos últimos anos, é muito fácil sentir a ligação entre essas realidades e aquilo que nos vai surgindo ao longo do livro. É tudo muito próximo, coerente e estruturado, faz sentido e é crível. E essa é para mim a principal razão do sucesso deste livro.
“I originally wrote “The Martian” as a free serial novel, posting one chapter at a time to my website.  Thanks to my previous attempts at writing, I had a small but loyal following of readers who read each chapter as I finished it. This turned out to be an amazing process. I got tons of feedback as the story progressed, and I fine-tuned the novel as I went along… I’ve received fan emails from astronauts, people in Mission Control, nuclear submarine technicians, chemists, physicists, geologists and folks in pretty much every other scientific discipline. All of them had nice things to say about the book’s technical accuracy, though some of them also sent formal proofs detailing where I’d gone wrong. I corrected those problems (mostly) in the final edition that went to print.” [fonte]
Em termos literários não é um grande livro, embora em termos narrativos esteja muito concebido, quase ao nível de um Dan Brown. Deste modo ao fim de 1/5 do livro somos sugados e não mais queremos parar de ler até virar a última página. E isto é tanto mais interessante quando sabemos que este é apenas o segundo livro escrito por Andy Weir, ambos auto-publicados, que ele vem da área da informática e que dedica grande parte dos seus tempos livres ao cálculo de dinâmicas orbitais. Deste modo a sua preocupação central, além da coerência científica, passava por garantir o balanceamento do storytelling, não a experimentação estética.
“Was I worried about whether my scenario would give me enough plot to sustain a novel? Did I wonder if being that realistic would make a boring story? Hell yes… the deeper into the book I got, the more excited I became, because I found that I was arriving at that place writers dream of: I was coming up with plot twists that genuinely surprised me, yet felt totally organic to the situation I’d dreamed up. This allowed me to do what writers treasure more than anything else: Catch the reader off-guard. There’s nothing better than knowing you’re going to outwit the reader. And the type of people who read sci-fi are very difficult to outwit.” [fonte]
Dito isto, “The Martian” é o tipo de história que fará as delícias de qualquer amante de histórias de aventuras, em especial dos amantes de FC. Já a forma detalhada como foi tratado o tema da sobrevivência técnica dirá muito em especial a todos os engenheiros, ou todos o que possuem um espírito versado em ciência e tecnologia. O nosso astronauta sobrevivente, Mark Watney, possui dupla especialidade, é engenheiro mecânico e botanista, daí que apresente um largo leque de conhecimentos sobre o funcionamento do ecossistema de Marte assim como das maquinarias deixadas pela missão abortada. Ao longo do livro cada uma das suas acções é fundamentada em dados e análises concretas apresentadas por meio de um diário, o que para algumas pessoas se poderá tornar enfadonho, mas para quem conseguir acompanhar se torna tão cativante como viciante, e assim na essência do interesse narrativo.

Andy Weir tinha publicado o livro em capítulos grátis na sua página, mas após o pedido de vários leitores criou uma versão completa para o Kindle que colocou na Amazon, a 99 cêntimos porque a Amazon não permitia livros grátis. Em pouco tempo o livro entrou no Top 5 de FC da Amazon, com milhares de downloads, o que chamou a atenção de editores, assim como de Hollywood. "The Martian" está neste momento em produção pela 20th Century Fox, contando com dois pesos pesados de Hollywood, Ridley Scott na realização e Matt Damon na interpretação. Podemos dizer que é mais um caso de sucesso promovido pela internet, mas não podemos esquecer que se assim é, se deve mais ao imenso trabalho do autor, todo o investimento em treino de escrita com pequenas histórias assim como ao estudo de fundo sobre o assunto, tudo vertido numa obra original, e não ao mero poder de propagação da rede.


Atualização
O livro já foi editado em português pela TopSeller. Não sei como está a tradução, mas o original é bastante acessível para quem está habituado a ler inglês técnico.

julho 01, 2014

Corrida contra a automação da informação

Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee são dois académicos de economia do MIT que procuram perceber os impactos e efeitos das tecnologias de informação sobre o trabalho e a produtividade. “The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies” (2014) é o resultado de vários anos de investigação, e uma espécie de edição definitiva do livro que ambos auto-publicaram em 2011, “Race Against The Machine”.


O cerne da teorização apresentada assenta sobre a ideia de que a Primeira Era das Máquinas (revolução industrial) tratou da automação do trabalho manual, enquanto a Segunda Era das Máquinas trata da automação do trabalho com informação. Esta segunda era é motivada pela quantidade de informação acessível em tempo-real e os algoritmos de tratamento da mesma, sendo um dos grandes exemplos apontado pelos autores, o carro sem condutor da Google, algo que foi apenas possível graças ao manuseamento de massas de dados existentes combinados de forma contínua com a captura em tempo real de dados no carro.

Lexus da Google sem condutor

A primeira parte do livro centra-se sobre as alterações na paisagem tecnológica, sustentando-as com exemplos e demonstrações do que está acontecer no mundo em que nos movemos. Os autores trabalham sobre a exponenciação da capacidade tecnológica baseando-se no princípio de Moore, trabalham questões sobre a digitalização de cultura, sobre a inovação e os efeitos benéficos destas alterações. Nesta fase do livro o discurso é bastante optimista, o futuro será melhor e mais fácil graças ao desenvolvimento tecnológico, e essencialmente ao avanço das tecnologias de informação e de aprendizagem por parte das máquinas. É aqui que se introduz um dos conceitos chave do livro, BOUNTY (recompensa), que dá conta dos ganhos que a sociedade viveu nas últimas décadas graças ao avanço da computação. O facto de podermos aceder a cada vez mais e melhor tecnologia, e consequente conforto, pagando cada vez menos para tal, assim como o facto de termos cada vez mais tempo livre que nos permite gerar toda uma nova economia social.

No entanto o livro não se fica pelos ganhos, nem pelo avanço tecnológico, os autores especialistas em economia, passam a segunda metade do livro a trabalhar o assunto do ponto de vista das pessoas, dos seres humanos que se relacionam com a tecnologia, e os impactos que esta teve e terá sobre as suas vidas. Nesta segunda parte é introduzida o segundo conceito chave do livro SPREAD (distanciamento) que dá conta do aumento do fosso entre aqueles que conseguem aproveitar o que as tecnologias oferecem, e aqueles que por várias razões não as conseguem dominar, ou sequer aceder. Os impactos estão à vista com a mais recente crise de 2008 como se pode ver na obra “Capital” (2014) de Thomas Piketty, que se estende num conglomerado de problemáticas, algumas bem evidenciadas por Lanier em ”Who Owns the Future?” (2013). Como é dito a certa altura,
“Eventually, the economy will find a new equilibrium and full employment will be restored as entrepreneurs invent new businesses and the workforce adapts its human capital.
But what if this process takes a decade? And what if, by then, technology has changed again? This is the possibility that Wassily Leontief had in mind his 1983 article when he speculated that many workers could end up permanently unemployed, like horses unable to adjust to the invention of the tractors. Once one concedes that it takes time for workers and organizations to adjust to technical change, then it becomes apparent that accelerating technical change can lead to widening gaps and increasing possibilities for technological unemployment. Faster technological progress may ultimately bring greater wealth and longer lifespans, but it also requires faster adjustments by both people and institutions.”
Neste sentido o livro fecha as duas partes - Bounty e Spread - apresentando um conjunto de soluções para se atuar primeiro a um nível individual, e em seguida a um nível político. Deste modo podemos dizer que estamos perante um trabalho bastante abrangente, que procura identificar o bom e o mau da revolução de informação que vivemos no momento, refletindo e apresentando soluções plausíveis e exequíveis. É sobre essa parte que me irei deter um pouco mais aqui, não que o resto do livro não seja muito interessante também, mas porque é aquilo que me parece mais relevante discutir. Julgo que depende de todos nós, e cada um pode à sua maneira, e no limite das suas possibilidades procurar a mudança. Assim deixo alguns dos pontos que me parecem mais relevantes.


. Trabalhar com as máquinas, não contra elas
“The teams of human plus machine dominated even the strongest computers. The chess machine Hydra, which is a chess-specific supercomputer like Deep Blue, was “no match for a strong human player using a relatively weak laptop. Human strategic guidance combined with the tactical acuity of a computer was overwhelming.The surprise came at the conclusion of the event. The winner was revealed to be not a grandmaster with a state-of-the-art PC but a pair of amateur American chess players using three computers at the same time. Their skill at manipulating and “coaching” their computers to look very deeply into positions effectively counteracted the superior chess understanding of their grandmaster opponents and the greater computational power of other participants. Weak human + machine + better process was superior to a strong computer alone and, more remarkably, superior to a strong human + machine + inferior process.” Kasparov citado no livro

. As áreas em que ainda fazemos a diferença
“Picasso’s quote [“But they (computers) are useless. They can only give you answers.”] is just about half right… Computers are not useless, but they’re still machines for generating answers, not posing interesting new questions. That ability still seems to be uniquely human, and still highly valuable. We predict that people who are good at idea creation will continue to have a comparative advantage over digital labor for some time to come, and will find themselves in demand.”
Os três conceitos chave em termos de competências humanas para o futuro serão - a ideação (ter ideias), a criatividade (fazer diferente) e a inovação (criar novo). As três abordagens estão ligadas ao pensamento “fora-da-caixa”, algo que os computadores apresentam muita dificuldade em fazer, uma vez que estão limitados ao framework que lhes é dado. Ou seja, os computadores são excelentes a reconhecer padrões, mas muito maus a irem além destes. Uma das razões pelas quais somos bons nisto, tem que ver com o facto de combinarmos os vários sentidos para absorver e analisar a realidade, o que acaba reflectindo-se na forma como depois nos expressamos face à realidade.
“The Spanish clothing company Zara exploits this advantage and uses humans instead of computers to decide which clothes to make. For most apparel retailers, forecasting and sales planning are largely statistical affairs… Zara takes a different approach… To answer the critical question “Which clothes should we make and ship to each store?” Zara relies on its store managers around the world to order exactly, and only, the merchandise that will sell in that location over the next few days. Managers figure this out not by consulting algorithms but instead by walking around the store, observing what shoppers (particularly cool ones) are wearing, talking to them about what they like and what they’re looking for, and generally doing many things at which people excel. Zara store managers do a lot of visual pattern recognition, engage in complex communication with customers, and use all of this information for two purposes: to order existing clothes using a broad frame of inputs, and to engage in ideation by telling headquarters what kinds of new clothes would be popular in their location.”
Outra razão em que eu tenho vindo a reflectir bastante nos últimos anos, tem que ver com o facto de como seres humanos errarmos, estarmos autorizados a errar, porque faz parte de nós. Enquanto a máquina não pode errar. Ora acredito que se a máquina não pode errar, não pode sair do caminho predeterminado, então muito dificilmente alguma vez poderá ser verdadeiramente criativa.


. A escola no meio de tudo isto

Para que estas competências se desenvolvam precisamos de uma escola diferente, capaz de estimular a autonomia, a automotivação e o envolvimento. Mas tudo isto não pode ser desligado de uma profunda capacidade de análise crítica da realidade, algo que tem vindo a ser descurado, essencialmente no ensino superior, fase em que esta competência deveria ser profundamente estimulada.
“Arum and Roksa made use of the Collegiate Learning Assessment (CLA), a recently developed test given to college students to assess their abilities in critical thinking, written communication, problem solving, and analytic reasoning. Although the CLA is administered via computer, it requires essays instead of multiple-choice answers. One of its main components is the ‘performance task,’ which presents students with a set of background documents and gives them ninety minutes to write an essay requiring them to extract information from the materials given and develop a point of view or recommendation. In short, the performance task is a good test of ideation, pattern recognition, and complex communication.
Arum, Roksa, and their colleagues tracked more than 2,300 students enrolled full-time in four-year degree programs at a range of American colleges and universities. Their findings are alarming: 45 percent of students demonstrate no significant improvement on the CLA after two years of college, and 36 percent did not improve at all even after four years. The average improvement on the test after four years was quite small. What accounts for these disappointing results? ”
Arum, Roksa, and their colleagues document that college students today spend only 9 percent of their time studying (compared to 51 percent on “socializing, recreating, and other”), much less than in previous decades, and that only 42 percent reported having taken a class the previous semester that required them to read at least forty pages a week and write at least twenty pages total."
No fundo não chega querer, menos ainda chega entrar na universidade pretendida, ou no curso pretendido, é preciso trabalhar, e muito, para construir as competências. A universidade e o professor são apenas a ponta do iceberg, os resultados só aparecem com o trabalho em profundidade individual do estudante. Não é por acaso que Bolonha impôs metas para o trabalho individual a realizar pelo aluno fora de aulas. Estudos como, “How College Affects Students: A Third Decade of Research”, de Ernest Pascarella e Patrick Terenzini concluíram que “the impact of college is largely determined by individual effort and involvement in the academic, interpersonal, and extracurricular offerings on a campus”.

Deste modo Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee acabam por concluir que apesar das máquinas estarem a automatizar e a tornar tudo mais fácil em nosso redor, nem por isso o mundo à nossa volta será mais fácil para a grande classe média. Conseguir emprego será cada vez mais difícil, e para se precaver só existe um caminho,
“our most fundamental recommendation to students and their parents: study hard, using technology and all other available resources to ‘fill up your toolkit’ and acquire skills and abilities that will be needed in the second machine age.”
Esta é uma realidade que por mais que queiramos escamotear nos bate à porta em todas as estatísticas e recomendações, como bem dá conta o relatório publicado no mês passado pela Comissão Europeia sobre o emprego na Europa,
“Low qualified workers encounter increasing difficulties to find a job, face lower job stability and are out-competed by medium-skilled workers even in elementary occupations.”

Por fim quero apenas deixar um ponto abordado a determinada altura no livro, e que tem que ver com a investigação que realizamos nos nossos laboratórios todos os dias. Nós que trabalhamos com tecnologias de informação e comunicação estamos constantemente preocupados em desenvolver novos sistemas que automatizem as atividades humanas. O que os autores dizem é, e se não fosse assim? E se em vez de procurarmos automatizar as tarefas, procurássemos antes novas formas de criar actividades, de tornar as pessoas, os seres humanos, mais ativos, mais criativos? (Isto é em parte algo que tenho vindo a trabalhar mais recentemente sob a designação de Tecnologias Criativas). No final, nenhum de nós procura verdadeiramente parar de trabalhar, o trabalho é essencial ao ser-humano por estranho que possa parecer! Esse é um ponto aqui defendido, e com o qual concordo particularmente,
“It’s tremendously important for people to work not just because that’s how they get their money, but also because it’s one of the principal ways they get many other important things: self-worth, community, engagement, healthy values, structure, and dignity, to name just a few. Whether the focus is on the individual or the community, the conclusion is the same: work is beneficial.”

“The Second Machine Age" é um livro carregado de ideias, questões, dúvidas, hipóteses e imensa reflexão sobre algo que nos preocupa a todos. De tudo isso dei aqui conta apenas de uma brevíssima síntese sobre algumas dessas ideias, o resto fica para lerem no próprio livro. Entretanto se quiserem saber mais, vale a pena ver as duas TED talks dos autores.

junho 11, 2014

"O Código do Talento"

Depois de ler “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell e “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, acabei por chegar a “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How.” (2009) de Daniel Coyle. Os três livros formam um trio que questiona as origens do talento, criatividade e modelos de aprendizagem. Se tinha gostado de Gladwell e tinha adorado Colvin, Coyle é ainda mais interessante e incisivo. Não que traga algo de muito novo, mas a ligação que estabelece entre os processos neurofisológicos e os estudos empíricos é profundamente enriquecedora para quem quer que se interesse pelo tema. Desde os jogadores de futebol brasileiros, às tenistas russas, passando pelos violinistas, skateboarders e produtores de música pop, vários são os exemplos que nos abrem um mundo novo sobre o fundamento do talento, os processos de aprendizagem e de coaching.


Algumas das críticas ao livro de Coyle dizem respeito ao seu fascínio com as mais recentes descobertas em torno da mielina, uma substância que se encontra no cérebro e sobre a qual ainda decorrem estudos. Mas neste momento suspeita-se que a sua função assente no isolamento das ligações neuronais, de modo a garantir que os impulsos eléctricos possam circular de forma mais eficiente. Ou seja, uma função parecida com aquela que o plástico executa em redor dos cabos eléctricos. Sendo essa a sua função, o modo como esta se desenvolve nos nossos cérebros parece ocorrer a partir de prática focada e repetida. À medida que vamos repetindo exercícios, a prática em nós vai-se sedimentando por meio de mielina junto aos nossos neurónios. Quanto mais grossa for ficando a camada de mielina em redor da ligação neuronal responsável pela competência que estamos a treinar, melhor isolada fica, permitindo que possamos agir de cada vez com maior eficácia.

Apesar da relevância que Coyle atribui à mielina, o mais relevante do seu livro não depende propriamente dessa descoberta, que acaba por funcionar mais como curiosidade, porque aquilo que Coyle nos demonstra advém do seu trabalho etnográfico sobre o talento, realizado um pouco por todo o mundo, em centros de treino de algumas das maiores estrelas do planeta. Coyle chama a esses centros, “hotbeds”, locais dotados de um design e condições específicas, capazes de contribuir para um aperfeiçoamento e aceleramento do processo de formação de talento.

Das hotbeds mencionadas ao longo do livro a primeira foi a que mais me impressionou, por tudo o aquilo em que eu acreditava ter sido posto em causa, mas também por exemplificar na perfeição a base de design conceptual de uma hotbed. Falo dos locais de treino das estrelas mundiais do futebol brasileiro, de Pele ou Zico a Romário ou Robinho. Todos eles começaram a jogar futebol num campo de cimento com metade do tamanho de um campo relvado, com uma bola metade do tamanho e com o dobro do peso de uma de futebol normal, e com equipas de apenas 5 jogadores de cada lado, no fundo aquilo que hoje conhecemos como Futebol de Salão ou Futsal. À primeira vista, nada de especial, mas a realidade é que estes campos mais pequenos, proporcionaram condições para treinos mais intensivos. O espaço reduzido obriga a maiores velocidades de arranque e paragem, a bola pequena e pesada obriga a um maior domínio da mesma, as balizas mais próximas permitem chegar mais vezes perto e treinar mais vezes as situações de golo. Por minuto os jogadores tocam mais 6 vezes na bola do que no futebol de campo, os passes certeiros e o trabalho colaborativo é fundamental. Ou seja, a ideia de que os jogadores brasileiros são treinados na praia é um mito que fica bem nos postais de turismo. Claro que não basta o futebol de salão, ele tem um impacto concreto no domínio da prática intensiva, mas falta o resto, aquilo que Coyle considera ser o código do talento, e de que darei conta a seguir.

"Nenhum tempo mais nenhum espaço é igual a melhores habilidades. O futsal é o nosso laboratório nacional de improvisação." Emilio Miranda, professor da Universidade de São Paulo, a propósito do treino em salão

Coyle identifica várias hotbeds espalhadas pelo planeta, falando das piscinas abandonadas em LA que se transformaram em centros de treino de skaters, do centro de treino russo em que se formou Kournikova e da consequência num número de tenistas russas no WTA, assim como do número de Coreanas no LPGA Tour (Golf), ou ainda do modelo de escola americana KIPP, tocando ligeiramente no fenómeno da Nova Vaga de Cinema Romeno proveniente da Bucharest National University of Drama and Film, ou das estrelas Pop da Disney, etc. E assim a partir destas hotbeds, e de vários outros estudos, Coyle vai dividir o talento, e o livro, em três grandes partes, que considera serem o Código do Talento: “Prática Profunda” -  ”Ignição” - “Mestres de Instrução”. Coyle considera que cada um destes vectores é relevante à sua maneira, mas é da convergência dos três que emerge  a competência. Segundo ele, a sua simples convergência pode em poucos minutos contribuir para construir no sujeito competências que sem os três vectores simultâneos, pode arrastar-se por anos.

Diagrama do Código do Talento, os três elementos base - "Prática Profunda", "Ignição" e "Mestres de Instrução". Pode ver-se como a Deep Practice é destacada como se se tratasse de mielina em formação, camada a camada, em função da quantidade de prática.

VECTOR 1: Prática Profunda (Prática)

Coyle segue aqui trabalhos anteriores de estudos académicos, dando conta do percurso e estudos realizados por Anders Ericsson, uma das maiores autoridades no campo do talento, reconhecido pela teoria das 10 mil horas, e pelo conceito “Deliberate Practice” que Coyle aqui converte em “Deep Practice”. Ericsson define a prática como algo que precisa de ser realizada de modo voluntário para criar competência, já Coyle seguindo as lógicas da produção de mielina, aposta numa ideia de prática em profundidade, de modo a poder gerar mielina. Deste modo Coyle apresenta três regras para realizar prática profunda: Chunk, Repeat e Learn to Feel.

Regra 1: “Chunk”
“Deep practice feels a bit like exploring a dark and unfamiliar room. You start slowly, you bump into furniture, stop, think, and start again. Slowly, and a little painfully, you explore the space over and over, attending to errors, extending your reach into the room a bit farther each time, building a mental map until you can move through it quickly and intuitively.”
A ideia central passa por absorver a totalidade da acção a realizar, e depois quebrá-la em pequenas partes, que podem ser mais facilmente realizadas e apreendidas, no fundo a velha ideia de “baby steps”. Dos vários locais de treino intensivo que Coyle visitou, a mesma prática era repetida,
“First, the participants look at the task as a whole — as one big chunk, the megacircuit. Second, they divide it into its smallest possible chunks. Third, they play with time, slowing the action down, then speeding it up, to learn its inner architecture. People in the hotbeds deep-practice the same way a good movie director approaches a scene—one instant panning back to show the landscape, the next zooming in to examine a bug crawling on a leaf in slo-mo.”
Regra 2: “Repeat”

A repetição é condição essencial para produzir mielina. Vendo pelo lado oposto, a melhor forma de transformar um grande pianista num mau, é impedi-lo de treinar durante um mês. Mas isto não quer dizer que a repetição deva acontecer sem fim, sem descanso nem pausa. Dos estudos de Ericsson os grandes talentos mundiais praticam entre 3 e 5 horas diárias. Mas nas hotbeds visitadas por Coyle os treinos andam sempre abaixo das três horas diárias, para crianças mais novas (6 a 8 anos) 3 a 5 horas semanais é mais do que suficiente. Ou seja, depende muito de se conseguir reunir os três vectores simultaneamente - prática, ignição e mestre.

Regra 3: “Learn to Feel”
“I hate to practice! Hate, hate, hate! So what I did, I forced myself to make it as productive as it could be… You guys have to realize this is top sport. You are athletes. Your playing field is a few inches long, but it still is your field. You need to find a place to stand, know where you are. First, tune your instrument. Then tune your ear… If you hear a string out of tune, it should bother you… It should bother you a lot. That's what you need to feel. What you're really practicing is concentration. It's a feeling.” Skye Carman, concertmaster of the Holland Symphony
Ao longo do trabalho de Coyle, quando questionava as pessoas sobre as sensações que sentiam quando estavam a treinar de forma produtiva, referiam: “Attention; Connect; Build; Whole; Alert; Focus; Mistake; Repeat; Tiring; Edge; Awake.” Uma lista de sentimentos que evoca a ideia de se estar a atingir algo, a caminho de se conseguir algo, uma linguagem própria de montanhistas, descrevendo a sensação incremental, passo a passo. A ideia de esforço para atingir um objetivo concreto, e de se estar muito perto de o conseguir. A ideia de praticar muito não pode ser um mero exercício de repetição e esforço, mas deve ser antes uma busca por atingir algo que ainda não se atingiu, repetindo e iterando,
  1. "Pick a target.
  2. Reach for it.
  3. Evaluate the gap between the target and the reach. 
  4. Return to step one."
Ou seja, como diz Coyle, uma lista de palavras que nunca ouviu nos locais de treino foi - "natural, effortless, routine, automatic" - ou ainda "genius". Não que não existam génios, mas todos os mestres confirmam o mesmo, que eles surgem apenas num ratio de um para um milhão. A generalidade do talento humano é filho do treino, esforço, repetição, e aperfeiçoamento continuado.


VECTOR 2: Ignição (Motivação)

Se o primeiro vector depende exclusivamente do indivíduo já o segundo vector é uma mistura entre o indivíduo e o ambiente, ambos têm que dar para que as coisas funcionem e o talento possa emergir. Ou seja, o indivíduo necessita de estar atento ao mundo que o rodeia, procurar pistas, seguir pistas, auto-motivar-se, construir a sua ideia do mundo, mas para o fazer precisa que o mundo lhe prepare o terreno, construa um ambiente adequado a tal.

Nesse sentido nós, pais, temos trabalhado contra a criação destas condições. Quando acreditámos que o ideal seria garantir as condições óptimas, ou garantir o acesso ao máximo de actividades para que as crianças pudessem escolher o que lhes falava ao coração, estávamos a entrar por um caminho completamente contrário à realidade das necessidades do treino do talento. Sei que custa ouvir isto, porque também me custa a mim, porque é muito difícil aceitar que o caminho para a construção de competências seja penoso e duro, mas é o que é. E é por isso que a prática deliberada, ou em profundidade, exige ignição, “combustível motivacional” como lhe chama Coyle.

Assim quando falamos do futebol no Brasil, do futebol de salão, isso não chega como condição para criar tantos bons jogadores. Existem duas outras condições que são fundamentais na criação de grandes jogadores brasileiros: a pobreza e a dureza das condições de vida. As mesmas que fizeram surgir Kournikova, que fazem surgir grandes violinistas em meios pobres da periferia, ou que fazem surgir grandes visionários da ciência ou construtores de fortunas. As condições de que se parte estão longe daquelas a que se pretende chegar, e é essa distância que dinamiza a força necessária para conquistar terreno. A tenacidade incutida pela dureza dá-lhe capacidade para aguentar o árduo caminho que terá de ser realizado para lá chegar. Ter um instrumento só meu, aceder a uma escola boa sem esforço, ter todo o tempo disponível para treinar, se tudo isto existir à partida, quer dizer que já chegámos a meio do caminho sem termos dado muito de nós, e assim sendo só muito dificilmente se poderá fabricar "combustível" para dar os passos que ainda são necessários dar até se conseguir atingir o talento.

Mas o ambiente é ainda responsável por criar o objectivo último a atingir, porque ninguém caminha por sentir um chamamento esotérico. O ser humano aprende por imitação, segue copiando e imitando. Para isso são precisos exemplos, ídolos, ícones, celebridades, estrelas que nos mostram o caminho, e nos referem o que podemos almejar. São eles que dizem que é possível. É o Cristiano Ronaldo que veio da aldeia mais pobre da Madeira e chegou a melhor Jogador do Mundo, que nos diz que todos podem também conseguir. É a Kournikova que todas as meninas tenistas da Russia querem imitar, ou a Madonna ou Michael Jackson que todos querem seguir. Todas estas pessoas, abrem o caminho para que os outros sigam os seus exemplos. Como se pode ver no atletismo, sempre que alguém quebra um recorde impossível, logo a seguir temos vários atletas a conseguir quebrar esse mesmo recorde. É um fenómeno de imitação, de cópia, “se outro alguém consegue, eu também consigo”.

Antes de avançar, preciso de fazer aqui um parênteses sobre um dos maiores problemas da atualidade, que veio toldar esta formula da imitação. Falo da televisão e revistas do jornalismo cor-de-rosa. Ou ainda dos reality shows, não dos Big Brothers, mas dos concursos de talentos, que têm emergido como cogumelos por aparentarem trazer algo de útil à sociedade. Ora o que todos estes realmente fazem, é destruir tudo aquilo de que falei até aqui. De que é preciso muita prática, muito esforço, muita dedicação para se atingir o auge. Porque estes nos mostram apenas partes da realidade, como faz normalmente o discurso audiovisual. O concurso de talentos não mostra tudo o que deu origem aos indivíduos que nos aparecem pelo ecrã adentro. Vozes são lançadas em programas de televisão como se nunca tivessem praticado em toda a sua vida e que de repente por chegarem à televisão surgem tal qual o cisne que emerge de patinho feio. Ou seja, a televisão vende-se a si própria como caixa mágica capaz de produzir talento, e as pessoas seguem porque querem acreditar que o talento depende de sorte, de ser bonito, de ser famoso, de um concurso!

"Everybody said Jessica [Simpson] was a Texas girl who'd been singing in her church choir. That's ridiculous — that girl worked to become the singer she was. They said [American Idol winner] Kelly Clarkson was a waitress, like she never sang before. Waitress? Excuse me? Kelly Clarkson was a singer — we all knew Kelly Clarkson. She had training, and she worked her tail off like anybody else does. She didn't come from nowhere any more than Jessica came from nowhere. It's not magic, you know." Linda Septien professora de voz
Voltando à ideia da imitação, ela continua sendo central, porque é a partir dela que se constrói a Ignição, ela é central e determinante para o futuro do talento. Como demonstra um excelente estudo de Gary McPherson que procurou perceber o factor que determina a progressão das crianças no estudo de um instrumento musical. McPherson realizou estudos com centenas de crianças que aprendiam instrumento, para perceber porque umas eram melhores que outras, e foi eliminando variáveis - IQ, IE, sensibilidade, capacidades motoras, nível financeiro, etc -. A diferença fez-se notar fortemente apenas quando este lhes lançou uma simples questão, how long do you think you'll play your new instrument?"
"They mostly say Th, I dunno' at first… But then when you keep digging and ask them a few times, eventually they will give you a real solid answer. They have an idea, even then. They've picked up something in their environment that's made them say, yes, that's for me."
As hipóteses de resposta eram: “ao longo deste ano”, “ao “longo da primária”, “até ao liceu”, ”toda a minha vida”. Isto foi condensado em Pequeno, Médio e Grande Comprometimento. Estes dados foram cruzados com o tempo que cada criança praticava por semana  - 20, 45 e 90 minutos por semana. O que daria o gráfico abaixo,

Os alunos quando motivados por um comprometimento de longo termo com o instrumento, conseguem performances 400% superiores aos que apresentam um comprometimento de curto termo.

Ou seja, tendo em conta o mesmo tempo de prática/semana entre crianças, nada além do comprometimento tinha impacto no nível que se atingia de evolução na performance. E quando se juntava o comprometimento de longo termo com a prática mais elevada, a performance disparava para mais de 400% face aos restantes. Ou seja, duas crianças poderiam treinar o mesmo tempo toda a semana, mas aquela que estava profundamente motivada conseguia fazer disparar o rendimento dessa prática. Ou seja, não era a mera repetição, mas aprendizagem profundamente produtiva.
“We instinctively think of each new student as a blank slate, but the ideas they bring to that first lesson are probably far more important than anything a teacher can do, or any amount of practice. It’s all about their perception of self. At some point very early on they had a crystalizing experience that brings the idea to the fore, that says, ‘I am a musician’. That idea is like a snowball rolling downhill.”
Algo que nos deve fazer refletir enquanto pais, mas também enquanto professores. Ensinar alguém que não tem uma motivação interna, pode muito bem não representar mais do que o velho ditado “chover no molhado”. Por isso continuo a defender as escolas técnico-profissionais, profissionalizantes, vocacionais, o que lhe queiram chamar. Nada pode ser pior do que manter uma criança fechada num espaço durante 18 anos a fazer de conta que aprende. Esta é também a razão pela qual digo a todos os meus mestrandos e doutorandos que uma tese com valor, só se pode fazer sobre algo que se ama, de outra forma é tempo perdido, para eles e para mim.


VECTOR 3: Mestres de Instrução

Apesar de tudo o que se disse até aqui, do primeiro vector fundamentalmente dependente do indivíduo (interno), do segundo vector dependente deste e do meio-ambiente (interno-externo), existe um terceiro vector extremamente relevante e totalmente dependente do ambiente (externo). Falo do professor ou simplesmente instructor (coach). Aquela figura que por vezes é tida como secundária, como quase irrelevante, que qualquer um pode fazer! Aliás de tanto se acreditar na sua irrelevância nos últimos anos começámos a pensar que seria possível substituir o mesmo por meros jogos de computador, ou criar cursos para milhares de alunos em simultâneo.

Coyle abre o capítulo com uma ideia muito atual nomeadamente no campo do treino animal, os Whisperers. E é verdade que costumamos olhar para estas pessoas como dotadas de um qualquer dom mágico, porque capazes de comunicar numa linguagem indecifrável para nós, normalmente a do animal. O que não anda muito longe da realidade.

Na realidade o velho provérbio, “quem não sabe fazer, ensina” é meia verdade, porque só quem já soube fazer, e já não faz, pode ensinar. Normalmente quem ensina são pessoas que por algum motivo pararam de o fazer, e se dedicaram desconstruir os processos de fazer, a compreender o detalhe e as minudências, a ponderar os prós e os contras, a encontrar os defeitos e os atalhos, a definir as metas e os objectivos. Se dedicaram a criar uma linguagem, o “whispering”, capaz de colocar em palavras entendíveis por quem faz, os processos para atingir a melhoria. Quando lá atrás se disse que temos de, escolher um objectivo, trabalhar para o atingir e avaliar a diferença entre o que se atingiu e o que falta, é preciso compreender aquilo de que falamos. É preciso perceber que objectivo nos falta atingir, compreender quais devemos percorrer em primeiro lugar, compreender porque não conseguimos ainda lá chegar, compreender que treinos podemos realizar em repetição, para aperfeiçoar e chegar a ser aquele modelo abstracto que temos em mente. E é isso que faz o professor, o coach, comunica e guia, orienta e claro motiva. Mas é ele quem desconstrói as etapas a realizar por nós, que nos mostra os passos que já demos, e aqueles que ainda nos faltam dar, que nos mostra por onde podemos seguir para conseguir dar os passos em falta, e mais importante de tudo, que nos faz ver que além do objectivo final, existem múltiplos objectivos intermédios que precisamos de atingir para chegar ao que tanto desejamos.

A propósito dos treinadores Coyle fala de um contraste muito interessante entre as certezas e o conhecimento em profundidade que estes detêm sobre os detalhes da arte em si, e as dúvidas que estes demonstram sobre o todo, sobre a capacidade um indivíduo pegar em tudo o que sabe e ir além, de uma equipa de estrelas se superar. Na verdade, isto faz todo o sentido, e demonstra apenas a humildade imprescindível a qualquer professor que se reflecte no simples facto de que por mais que se faça, a última palavra depende sempre da capacidade interna do indivíduo, o coach é apenas um dos vectores como já vimos. Ele molda, ele ajuda a crescer, mas é o indivíduo quem decide, quem a determinada altura tem de tomar em mãos o seu caminho.

Deixo um estudo empírico sobre o treinador de basquete, John Wooden, considerado o melhor treinador da história da NCAA, realizado por dois psicólogos educacionais, Ron Gallimore e Roland Tharp que procurava compreender a sua fórmula de sucesso.
“practice began… Wooden didn't give speeches. He didn't do chalk talks. He didn't dole out punishment laps or praise. In all, he didn't sound or act like any coach they'd ever encountered… Wooden ran an intense whirligig of five to fifteen-minute drills, issuing a rapid-fire stream of words all the while. The interesting part was the content of those words… teaching utterances or comments were short, punctuated, and numerous. There were no lectures, no extended harangues ... he rarely spoke longer than twenty seconds… Here are some of Wooden's more long-winded "speeches":

"Take the ball softly; you're receiving a pass, not intercepting it."
"Do some dribbling between shots."
"Crisp passes, really snap them. Good, Richard—that's just what I want."
"Hard, driving, quick steps."

Gallimore and Tharp were confused… This was great coaching?… As weeks and months went by, an ember of insight began to glow… it came mostly from the data they collected in their notebooks. Gallimore and Tharp recorded and coded 2,326 discrete acts of teaching. Of them, a mere 6.9 percent were compliments. Only 6.6 percent were expressions of displeasure. But 75 percent were pure information:

What to do, how to do it, when to intensify an activity.

One of Wooden's most frequent forms of teaching was a three-part instruction where he modeled the right way to do something, showed the incorrect way, and then remodeled the right way, a sequence that appeared in Gallimore and Tharp's notes as M+, M-, M+… Wooden's demonstrations rarely take longer than three seconds, but are of such clarity that they leave an image in memory much like a textbook sketch… The information didn't slow down the practice; to the contrary, Wooden combined it with something he called "mental and emotional conditioning," which basically amounted to everyone running harder than they did in games, all the time."
O coach ou mestre é isto, alguém que dá feedback muito objectivo e muito concreto sobre cada uma das acções, alguém que indica se estamos no caminho correcto, e se não estamos explica como podemos retomar esse caminho. A construção de talento não acontece no vazio, por mais motivação que se detenha, aprendemos com os erros mas precisamos de saber como fazer na vez seguinte. Podemos até fazê-lo a solo, por tentativa e erro, mas isto vai demorar muito mais tempo, correndo o risco sério de destruir o combustível motivacional que se detém. A motivação é algo frágil que precisa de ser continuamente alimentada, e um desses alimentos é o sentimento de progressão, se nos sentirmos a encalhar mais facilmente entraremos na espiral de desistência.


Para concluir, Coyle tudo faz ao longo deste livro para demonstrar que o talento é algo que se constrói, algo que se produz, algo que todos podem atingir. O talento não é dom, não nasce, não é mágico, nem existe sob a forma de pó de estrelas. Ou seja, a velha discussão Natureza ou Cultura é aqui bem evidenciada, e fica claro que apesar da natureza nos criar diferentes, podemos cada um gerar os nossos próprios talentos e destacarmo-nos à nossa maneira. Ainda assim Coyle sabe, e todos sabemos, que de tempos a tempos vão surgindo indivíduos fora do normal, os que apelidamos de génios, o tal um num milhão, mas mesmo esses se não tiverem a sorte de ter em seu redor a triangulação - Prática, Motivação e Mestres - dificilmente emergirão.


Epílogo

No final do livro Coyle tenta aplicar algumas destas ideias à Educação, e na verdade podemos questionar-nos, porque sabendo a fórmula isto não funciona nas nossas escolas? Não me julgo detentor de respostas, mas ao fim de alguns anos a trabalhar como professor e a estudar este assunto, julgo que o centro nevrálgico acaba por estar na motivação, na Ignição. Por isso falei lá em cima que acredito na escola vocacional. Julgo que tudo neste mundo é possível para todos quando estes estão motivados, sem essa motivação nada se pode fazer. E se é verdade que o sistema escolar americano KIPP tem conseguido enormes resultados, para mim não restam dúvidas que se devem ao meio social em que se inserem, um pouco como acontece com o futebol no Brasil. A filtragem para essas escolas acontece de uma forma natural, sendo procuradas por um grupo de pessoas muito específico, pais e filhos fortemente motivados pela ideia de que para sair do ciclo de pobreza é preciso chegar à Universidade. Daí que as ideias de mais horas de escola, mais dias por semana, menos férias, mais exames e testes, etc. funcionem muito bem, porque tudo isso é apenas mais combustível para manter a motivação acesa.

Mas esta abordagem se aplicada a crianças de classe média, com pais com estudos superiores em casa, ou com acesso a uma boa qualidade de vida, simplesmente não funcionará. E é por isso que numa grande maioria das escolas, um pouco por todo o mundo, os professores em vez de funcionarem como instrutores de cada área de conhecimento, têm de funcionar como psicólogos, produtores de motivação, para manter os alunos interessados em algo que na verdade não lhes interessa, não os motiva, não lhes acende a combustão. E desiludam-se aqueles que pensam que para produzir essa combustão basta adicionar tecnologias ou videojogos à equação...

A questão que temos então de nos colocar neste momento é saber como orientar para a motivação, e não tanto como motivar. Este é um assunto que Ken Robinson tenta trabalhar em "The Element: How Finding Your Passion Changes Everything" (2009) mas que é complexo e de difícil resposta. A ideia central passa por estar atento, às crianças e pessoas, e contribuir para que estas possam auto-descobrir-se, mas a linha entre o ajudar e o formatar é muito ténue. E o risco é elevado, já que quando a pessoa se sente empurrada, pode sentir-se acossada, com a liberdade individual posta em causa, e pode reagir pela negação. A motivação para funcionar com toda a sua combustão, tem de ser algo interno, algo muito próprio, muito individual, só nosso. Algo que outros seguem, mas que apenas alguns conseguem seguir tanto como nós, dá-nos prazer ter uma área em que nos destacamos dos demais, em que temos ídolos, mas no nosso contexto somos nós os melhores naquela atividade. Não é uma questão competitiva com o mundo, é antes uma afirmação da nossa identidade, do nosso ser perante os outros.


Links de interesse
“Outliers” de Malcolm Gladwell, in Virtual Illusion
"The Element" de Ken Robinson, in Virtual Illusion
"O Talento é Sobrestimado", in Virtual Illusion

maio 17, 2014

O longo jogo do génio

Trago uma nova série de filmes web criada por Adam Westbrook, relativamente conhecido pelo seu trabalho à volta do storytelling digital. Neste seu novo projecto, Delve Video Essays, Westbrook faz uma abordagem assente no formato de ensaio audiovisual, o que é por si só motivo de análise e exploração.



Para avançar com este projecto Westbrook escreveu um manifesto que me parece relevante ser lido, vindo de alguém que tem refletido bastante sobre o storytelling e a publicação online. Retiro do mesmo quatro pontos que levaram Westbrook a avançar com Delve.
1 - “serendipity is magical and it's something the Internet can't replicate so easily. All the knowledge is there - but it's built to be easily found if you know what you're looking for.”

2 - “The knowledge is all there, accumulated over 13,000 years of civilisation but it feels locked away somehow, as if it's out of reach. It's trapped behind glass etched with the dreaded word "boring".”

3 - “’people get the mind and quality of brain that they deserve through their actions in life’ (Robert Greene)… If you choose to use your free time to play Candy Crush Saga, watch Friends re-runs and read Buzzfeed, you will get the mind that comes from that. But if you choose to push your brain, to make it work hard, to keep learning new things, to read difficult books, to consider challenging ideas then, like the muscles on your body, it grows stronger and more connective… But it's much more rewarding to read Buzzfeed.”

4 - “I'd like you to meet delve - it's a web video channel I'm building for people who want to take their learning seriously. It's not a course, or a qualification, and it's not for people who want to study something particular. It's for people who love learning for the sake of learning, who want to feed their mind the most beautiful and unexpected feasts.”
Apresentado o Delve vejamos o que nos trazem os dois primeiros trabalhos, que formam apenas um em duas partes, “The Long Game” (2014). O tema de fundo não passa ao lado de todos aqueles que se interessam pelos processos criativos, pela mestria, um tema que se tornou mais relevante nos últimos anos com a discussão em redor das comunidades e indústrias criativas.

"The Long Game Part 1" (2014) Adam Westbrook

Assim o substrato diz respeito ao processo demorado da criação do génio. Westbrook explora o exemplo de Leonardo Da Vinci, considerado um dos mais relevantes criativos da nossa história, desmontando o seu surgimento, génio e talento. Todos sabemos que o processo de transformação de um criativo é um processo lento, mas saber que Leonardo levou 16 anos a conseguir atingir o seu auge, ajuda-nos a questionar muitas das ideias feitas que temos sobre os iluminados, os chamados “outliers”. Essencialmente este dois curtos ensaios audiovisuais servem para nos alertar para um discurso de facilitismo surgido no século XX e que procurou vender a juventude, com todas as suas propriedades, como a essência da vida e do talento, quando apenas o tempo e a experiência podem conduzir à qualidade, ao génio.

"The Long Game Part 2" (2014) Adam Westbrook


Links de interesse
Talento é Sobrestimado, in Virtual Illusion
Processo criativo, dos 2 aos 25 anos, in Virtual Illusion
Outliers de Malcom Gladwell, in Virtual Illusion

abril 04, 2014

Poema à criatividade e à vida

Grande poema audiovisual de Salomon Ligthelm, um criativo que trabalha em filme e música. Ligthelm recorre ao que melhor sabe fazer, o filme com uma cinematografia soberba e uma música atmosférica, e disserta sobre o cruzamento entre a vida e a criatividade, no pequeno filme "The Great Abyss" (2014).


Quando nos tornamos pais, o nosso mundo muda, o mundo à nossa volta ganha novos sentidos, aprendemos, crescemos, e como diz Ligthelm, "rendemo-nos", mas isso não nos torna menores, antes pelo contrário... Fica o filme, e abaixo o texto que transcrevi.

“I’ve to work hard, to make anything good… Every artist has some form of insecurity… About what they create… Is it good enough? It’s going to stay at the top? Still speak to people? Is it going to loose relevance?

You can’t worry about these things. You have to create, things there are truthful… truthful to yourself, authentic, and honest… and resonant with these experiences and situations that you gone through…

Often wish there I got to hardest things in life. So it makes my heart richer in some layer, questioning my own identity for some reason. I kind of have to deal with my existence being wrapped up by what I do… And I was confronted with that… I realised that when I had a kid… I want to be very okay with being a dad…

‘Have you surrendered yourself to the great abyss’. Have you come to the end of yourself… when you realise it’s not about you… it’s not about all your talents… because all those things form this persuasive reality, where you find all your validation in what you do… and if you surrender yourself to it, then those things don’t become as important, and you find your creativity again. You find out the reason why you create.

Creativity is fathers. It’s not for yourself. It’s to serve others.”

março 10, 2014

Damásio fala da Criatividade e do Social

António Damásio esteve em Porto Alegre no Brasil a participar na conferência Fronteiras do Pensamento 2013, organizada pelo Instituto CPFL Cultura. Mário Mazzilli aproveitou a sua passagem pelo Brasil para lhe realizar uma interessante entrevista que foi entretanto vertida para um pequeno documento audiovisual e colocada online.


Ao longo dos 30 minutos que dura a entrevista, Damásio, de um modo muito calmo, vai discorrendo sobre vários temas que para muitos deveriam ser tratados separadamente mas que são impossíveis de dissociar quando queremos tratar as questões do cérebro e consciência. Falo do facto de Damásio ter um discurso fortemente contaminado pelas Artes e Ciências Sociais em conjunto com as Neurociências e a Biologia. Num tom académico e humilde Damásio consegue permear todas estas áreas, sem as sobrepor, num contínuo de coexistência e codependência, porque no fundo é como Damásio diz, quando falamos de cérebro, falamos de Vida.

Logo a abrir a entrevista, uma afirmação rápida deixou-me a reflectir, Damásio refere-se ao Teatro e ao Cinema como "artes complexas", em face das clássicas Pintura, Escultura e Música. Em parte isto deve-se ao facto de o Teatro e o Cinema serem artes de síntese das artes ditas clássicas, e por isso em termos de produção requererem conhecimento não apenas da arte em si, mas também das anteriores. Mas é interessante como continuamos ainda assim a assistir a algum desdém por parte do meio das artes clássicas face a estas. Julgo que pode estar relacionado com algum purismo face aos discursos, a singularidade de cada uma destas, e isso pode explicar também em certa medida a relutância em aceitar os videojogos como arte. Por isso escrevi aqui há algum tempo o texto “A singularidade da linguagem dos videojogos" e ainda por estes dias escrevi a propósito da multiplicidade de especialistas requeridos para se criar um jogo como "The Last of Us".

Ao longo da entrevista Damásio vai tocando o tema da criatividade, já que ele é director do Brain and Creativity Institute da USC. Gosto da abordagem que faz quando coloca a Criatividade a par da Memória e da Imaginação, defendendo que não existe criatividade sem memória, porque a criatividade emerge através de um processo de colagem, de "montagem cinematográfica", das memórias que preexistem em nós. Isto vem de encontro ao que ando a defender há muito, a propósito da ideia de que a criatividade se encontra no remix. E é por isso que quando leio algumas tiradas levianas como as de Umberto Eco, defendendo que não é importante as crianças saberem história porque o Google lhes diz quem fez o quê e quando e que o que é importante é saber filtrar a credibilidade de páginas web, me arrepio.
“a memória é absolutamente indispensável para que exista criatividade… é do facto de poder relembrar e manipular imagens que nasce a nossa fonte criativa… as memória são imagens, não visuais, são representações mentais…” Damásio na entrevista
Damásio defende a uma certa altura uma visão humanista da ciência. Uma ciência que se preocupa com a cultura humana, que para perceber o que temos hoje, investiga o que tivemos no passado, uma ciência que se preocupa com os problemas de forma longitudinal e em profundidade. Porque não quer uma ciência que apenas está preocupada em resolver problemas, em realizar avanços tecnológicos por realizar, porque como ele diz, nem toda a ciência é boa e “é possível fazer ciência que é horrível”.

Isto vem de encontro ao que Morozov tem defendido e vem apelando, que não se embarque na ideia do progresso inevitável da tecnologia, da obrigatoriedade de nos adaptarmos aos efeitos da tecnologia. Pode ler-se sobre isto no seu último livro, "To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism" (2013) (farei a análise do mesmo aqui em breve). Nesta sintonia entre Damásio e Morozov, que pode parecer complexa e paradoxal, defendermos que a ciência tem limites, ajuda-nos a relembrar que o mais importante é aquilo que defendemos enquanto seres humanos, e não ideias no abstracto por mais lógicas que nos possam parecer.

"Entrevista com António Damásio" (2013) por Fronteiras do Pensamento e Instituto CPFL

Na senda desta abordagem ao mundo e à ciência, Damásio fala dos problemas das "dores morais", ou da depressão, e relaciona-as com "a velocidade a que a informação e a cultura entram no nosso cérebro" nos dias de hoje, para nos relembrar que "não fazemos a mais pequena ideia se isto é bom ou mau", porque teremos de estudar as consequências de tudo isto ao longo dos próximos anos. Uma opinião de enorme sensatez, como seria de esperar, e que vem mais uma vez de encontro a algumas ideias que me venho interrogando muito sobre a questão da velocidade da sociedade de informação e comunicação.

Penso desta mesma forma porque quando me aproximo da ideia de culpar a velocidade atual a propósito do excesso de entropia, percebo que no passado as coisas não foram tão lentas como pensamos, porque não estamos a comparar realidades, mas antes a realidade que vivemos atualmente com representações da realidade que fomos construindo a partir da cultura sobre esse passado. Por outro lado, sabemos também que passámos por imensos estádios de desenvolvimento tecnológico, nomeadamente nos últimos 200 anos, mas que soubemos sempre adaptar-nos.

Agora essa adaptação não quer simplesmente apenas dizer que a tecnologia seguiu o seu rumo, e nós aceitámos, e evoluímos, mas antes que soubemos adaptar o mundo, as tecnologias e nós próprios em função daquilo que seria melhor para a espécie. Ou seja, o tal processo de "homeóstase sociocultural" de que Damásio fala, em que muitos de nós podem contribuir para fazer evoluir e progredir a ciência e tecnologia, enquanto muitos outros contribuem para reflectir, criticar e chamar à razão sobre a mesma. Por isso mesmo é que não podemos apostar tudo apenas na Ciência e Tecnologia, precisamos das Artes e Humanidades para contrabalançar, precisamos de ouvir vozes dissonantes, de ouvir diferentes pontos de vista sobre cada inovação, sobre cada avanço, para podermos evoluir sim, mas de forma equilibrada.

fevereiro 11, 2014

o excedente cognitivo de Shirky

Clay Shirky é professor de media na NYU e reconhecido como um grande defensor das tecnologias sociais baseadas na Internet. As ideias apresentadas em, "Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age" (2011), são a algumas passagens bastante interessantes e relevantes, nomeadamente porque apresentam um discurso optimista contra alguns ataques mais pessimistas relativos ao efeitos destas novas tecnologias. No entanto, o discurso de tão optimista leva Shirky a trabalhar alguns aspectos sociais, que regulam muito das nossas vidas, de um modo por vezes demasiado ligeiro.


De forma sucinta, o excedente cognitivo de que Shriky nos fala, é o tempo que hoje gastamos na internet a interagir, a criar, e a partilhar, em vez de ficar sentados no sofá a ver televisão. O problema com esta abordagem é que esquece que nem sempre as pessoas querem interagir, nem agir, e menos ainda criar. Somos definidos por um conjunto de modos e comportamentos, que se vão alterando ao longo de um dia, semana, ou meses.

Porque quando se trabalhou arduamente ao longo de um dia, no final desse dia resta pouca energia para continuar a empurrar ideias e ações para fora de si! Ou seja, uma coisa que Shirky nunca fala é sobre a economia por detrás de todos esses comportamentos de produção criativa. Todos os exemplos dados por Shirky são servidos por "modelos do grátis", dependendo de pessoas que podem apoiar com o seu tempo livre, suportado noutras fontes de rendimento, a criação e partilha.

Ao mesmo tempo, e apesar da atividade criativa e de partilha nos realizar, não podemos criar sem consumir. Supor que todas as tecnologias de comunicação do futuro obedecerão a paradigmas de comunicação bidirecional, está longe de ser uma realidade palpável. E a questão não é de sermos ou não nativos digitais, a questão é muito mais simples que isso, a interação é um estado distinto da introspecção.

De qualquer forma Shirky acaba por tocar em várias ideias interessantes a propósito da sociedade criativa, e das novas possibilidades abertas pelas comunicação via internet. Ainda assim ideias que precisam de ser lidas com alguma contenção, já que o discurso da democratização do acesso às tecnologias esquece, por demasiadas vezes, que a criação não é feita pela tecnologia mas pelas pessoas. Como dizia Franny Armstrong, uma documentarista britânica citada por Evgeny Morozov,
"Yes, the internet is democratizing in that sense that the cheap equipment is democratizing. But just because a football is cheap and anyone can kick one around, it doesn’t mean that everybody is Ronaldo
Deste modo o que me interessa neste discurso, não é a democratização do acesso, mas a democratização da experiência e o seu potencial feedback imediato. Ou seja, as tecnologias criativas abriram novos caminhos para que qualquer um possa tentar uma ampla gama de atividades criativas e assim descobrir pela experiência, o que mais diretamente fala consigo. Num mundo de muitas escolhas, poder experimentar sem investir muito esforço é importante, porque pode contribuir para conduzir as pessoas a encontrar os seus próprios talentos.

O facto de muitas destas tecnologias estarem em rede, e incentivarem a partilha, abre a possibilidade de obtenção de feedback imediato às criações. Apesar das reacções online poderem nem sempre vir das melhores referências, nem com as melhores intenções, elas poderão contribuir para manter o interesse em continuar a via criativa. A atividade criativa depende fortemente do feedback, que deve ser filtrado em função da sua origem (se é um par com trabalho efectivo na área ou não), porque só este pode ajudar no processo de auto-aprendizagem. O feedback contribui para levar a pessoa a investir e a repetir o exercício de técnicas menos conseguidas, assim como descobrir os caminhos em que melhor se exprime. O feedback é uma das peças da atividade criativa que a rede veio tornar mais acessível.

No final, o assunto aqui discutido não tem apenas uma abordagem ou uma resposta, nem sequer uma posição correta. Aproximar o tema com preconceito é fácil, por isso Shirky acaba afirmando, "Proponents of the new and defenders of the old can’t merely discuss the transition, because each group has systematic biases that make its overall vision untrustworthy". Estamos a viver esta mudança na nossa sociedade agora, dentro de alguns anos, quando olharmos para trás, vamos com certeza rir de muitas das nossas ideias ingénuas, assim como de muitos dos nossos receios.

fevereiro 09, 2014

Ira Glass sobre Storytelling e Criatividade

Ira Glass é um dos mais conceituados apresentadores da rádio americana, um meio no qual trabalha há mais de 30 anos. Ao longo da sua carreira foi agraciado com vários prémios e um doutoramento honoris-causa. A sua capacidade e mestria como contador de histórias é amplamente reconhecida, e é por isso que vale a pena parar para ouvir o que tem a dizer nesta entrevista para Public Radio International, sobre o modo como conta histórias, como as encontra, assim como como se atinge este estado de mestria.




Definição de história nos Media
Na primeira parte da entrevista, Glass fala sobre o que define uma história. Começa por dizer que as histórias nos media são diferentes daquelas que nos habituámos a escrever na escola. Assim Glass define dois blocos de construção para qualquer história a ser contada através dos media,

1 - A anedota, ou pequena história 
É uma sequência de acções, "primeiro aconteceu isto… e depois aconteceu isto… e a seguir aquilo… depois ele fez assim… e chegou àquele sítio…"
"The power of the anecdote is so great...No matter how boring the material is, if it is in story form...there is suspense in it, it feels like something's going to happen. The reason why, is because literally it's a sequence of events...you can feel through its form [that it's] inherently like being on a train that has a destination...and that you're going to find something..."
Esta sequência tem de ser gerida por meio de um ritmo, determinada por uma batida (beats) que são as questões que se vão colocando a cada momento: "Porque aconteceu isto? Porque foi ele para lá? Onde é aquele sitio?"
"The anecdote should raise a question right from the beginning. It's implied that any question you raise, you're going to answer it. The shape of the story is that you are throwing out questions, to keep people watching or listening, and then answering them along the way."
Isto que Ira Glass define como a "anedota", é no fundo aquilo que David Bordwell define como "hipothesizing". Bordwell explica-nos que no cinema estamos continuamente a lançar hipóteses mentais sobre o que vai acontecer a seguir. A nossa curiosidade guia-nos e mantém o nosso interesse desperto. Por isso tendo a definir muitas vezes a arte do storytelling como a arte de gerir expectativas.

2 - Momento de reflexão
A sequência de acções, que nos colocou dentro de um comboio em movimento, tem de nos conduzir a algum lado, tem de nos questionar e surpreender, tem de dizer alguma coisa.
"Why am I wasting time hearing this story... you have the two parts of the structure, you have the anedocte and the moment of reflection... and often you'll have an anedocte that just kills, that is so interesting... but in the end it means absolutely nothing... it doesn’t tell you anything new...
And sometimes we know we have something here, something kind of compelling but it just doesn’t seem to become together... and often it's your job to be kind of ruthless and understand that either you don't have a sequence of actions or you don't have a moment of reflection, and you're going to need both."
Primeira parte da entrevista

Em suma, os dois blocos que Ira Glass considera centrais para a construção de qualquer história, são os mesmo que se consideram centrais desde o início dos estudos da narratologia, a Fabula e o Syuzhet, ou seja o conteúdo e a forma, a história e o discurso. Aquilo que Glass aqui faz diferente, é que lhes dá um tom específico, não fica pelo discurso seco e objectivo do nosso discurso académico. Glass concretiza como deve funcionar o syuzhet e a que deve responder a fábula.


Encontrar uma boa história
Na segunda parte da entrevista Glass fala dos problemas de se encontrarem boas histórias, ou seja boas fabulas para contar. E apesar de parecer um queixume da profissão, acaba por ser imensamente relevante, já que tão poucas vezes se fala da mesma:
“Often the amount of time it takes to find a good story, takes more  time than to produce it.”
Uma frase que vem totalmente de encontro ao que não me canso de repetir, a propósito dos aspectos criativos, da criatividade, e da produção e partilha de conteúdos, que é que nada podemos criar, sem muito antes consumir.
"You’ll have to get rid of a lot of crap before you get to anything special. Because you don’t want to do mediocre work. The only reason you want to do this, is because you want to do something memorable, something special."

A evolução do processo criativo
Na terceira parte Glass vai apresentar um dos pontos altos da entrevista, e que mais tem sido partilhado online a propósito do processo criativo ao longo da vida. Mais uma vez, não é nada de novo, mas sim a forma como é exposto, a sinceridade e autenticidade da apresentação.
"Nobody tells people who are beginners — and I really wish somebody had told this to me — is that all of us who do creative work … we get into it because we have good taste. But it’s like there’s a gap, that for the first couple years that you’re making stuff, what you’re making isn’t so good, OK? It’s not that great. It’s really not that great. It’s trying to be good, it has ambition to be good, but it’s not quite that good. But your taste — the thing that got you into the game — your taste is still killer, and your taste is good enough that you can tell that what you’re making is kind of a disappointment to you, you know what I mean?

A lot of people never get past that phase. A lot of people at that point, they quit. And the thing I would just like say to you with all my heart is that most everybody I know who does interesting creative work, they went through a phase of years where they had really good taste and they could tell what they were making wasn’t as good as they wanted it to be — they knew it fell short, it didn’t have the special thing that we wanted it to have.

And the thing I would say to you is everybody goes through that. And for you to go through it, if you’re going through it right now, if you’re just getting out of that phase — you gotta know it’s totally normal.

And the most important possible thing you can do is do a lot of work — do a huge volume of work. Put yourself on a deadline so that every week, or every month, you know you’re going to finish one story. Because it’s only by actually going through a volume of work that you are actually going to catch up and close that gap. And the work you’re making will be as good as your ambitions. It takes a while, it’s gonna take you a while — it’s normal to take a while. And you just have to fight your way through that, okay?"

"The Gap" (2014) de Daniel Sax, é um pequeno filme que procura dar corpo a este momento da entrevista de Ira Glass. Algo que já tinha sido antes também transposto para visualização tipográfica por David Liu

Glass expressa tudo isto a propósito daqueles que querem criar vídeo, mas serve para qualquer atividade criativa. O que Glass aqui fala é do desenvolvimento da mestria, um processo moroso, o qual ficou conhecido nos últimos anos como as 10 mil horas necessárias para nos tornarmos especialistas. Mas mais uma vez, Glass apresenta isto de uma forma tão vívida, e sentida, que se torna impossível para nós, não nos revermos naquilo que ele diz.

Eu próprio fico a questionar-me, quando há quase 15 anos tomei a decisão de abandonar a realização/edição video, para me dedicar exclusivamente à investigação. Nessa altura, dei-me conta que tudo aquilo que tinha conseguido fazer até ali, estava longe de me satisfazer. Conhecia à minha volta quem fosse capaz de fazer melhor, e na confrontação, não consegui continuar aquele caminho. Talvez tivesse precisado de investir mais tempo, como diz Glass. Por outro lado, não me arrependo. Julgo que tudo passa por decisões que tomamos em certos momentos da nossa vida, e decidimos avançar. Podemos olhar para trás e questionar como teria sido, mas não adianta ficar parado a questionar.