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maio 12, 2016

“A Quinta dos Animais” (1945)

No fim desta leitura atravessam-me sentires muito diversos, nomeadamente porque tendo passado os últimos 30 anos a evitar regressar a este universo que tinha conhecido por via do filme homónimo de John Halas no início dos anos 1980, confronto as ideias desses tempos de inocência e ingenuidade com a análise das metáforas e camadas de real que hoje consigo de modo diferente descortinar. Se no passado o título traduzido para português — "O Triunfo dos Porcos" — fez muito sentido, hoje percebo a sua total inadequação, mais ainda tendo em conta a real intenção de Orwell expressa no prefácio original, e por isso louvo a audácia do tradutor, Paulo Faria, em descontinuar essa intitulação.



Ver um filme, ainda que de animação, decalcado da metáfora base representada nesta obra de Orwell, com 8/9 anos, pode parecer violento, e foi-o, tanto que a impressão deixada me afastou para sempre do filme, assim como do livro. Nessa altura, recordo-o agora e bem ainda, o que vi e senti teve pouco que ver com política, no seu sentido estrito de luta de classes sociais, mas antes sobre a clivagem entre humanos e animais. Não só o facto de ser ainda muito jovem, mas também de viver numa aldeia rodeado de animais — cães, gatos, porcos, vacas, galinhas, etc. — foram determinantes para esta enfabulação da minha parte, para o que viria ainda a contribuir a visualização de obras como “O Planeta dos Macacos” que consolidariam muitos dos temores que me assolariam durante alguns anos dessa fase da minha vida.

Questiono-me contudo, porque apesar de ter sentido temores similares no visionamento de “O Planeta dos Macacos”, não me afastei, e fui revendo, assim como vi e revi toda a saga, várias vezes neste período de tempo. Acredito que isso se deve ao tom, ou género, que envolveu diferentemente ambos os discursos. “O Planeta dos Macacos” claramente versado no género de ficção-científica, com base em princípios clássicos da jornada do herói, prometendo o reencontro de nós mesmos. Já “A Quinta dos Animais” apesar de se apresentar em animação, assim como obviamente ficcional, era dotado de uma caracterização profundamente realista, capaz de oferecer à metáfora dos animais uma imensa credibilidade, assim como baseado num género muito mais dramático, o da tragédia. Ou seja, apesar das questões de clivagem entre animais e homem serem mais claramente abordadas em “O Planeta dos Macacos”, o tratamento dado ao tema era não só pouco trabalhado socialmente, como era ainda adocicado com bastante otimismo na sua resolução.

Depois deste regresso ao passado, resta-me falar sobre a leitura realizada agora, naturalmente aquela que se aproxima das intenções do escritor por força da maturidade. Orwell tendo combatido na Guerra Civil Espanhola dos anos 1930, e vendo como o socialismo emanado da URSS era ali perpetrado, resolveu no seu regresso a Inglaterra escrever sobre a sua experiência, tendo assim resultado em “A Quinta dos Animais”. Ou seja, temos aqui um texto profundamente político, para o qual a metáfora dos animais serve mais de veículo à mensagem, do que operador de ideias.


Apesar desse objetivo político — das tensões entre o comunismo e o capitalismo — o texto acaba indo mais longe, nomeadamente por via da circularidade narrativa que consegue transportar as ideias para um nível acima da constatação e discussão dos comportamentos humanos e suas leis de regulação, colocando o leitor num lugar privilegiado para compreender que aquilo que está em causa não é meramente uma questão de escolha entre regimes.

No fundo Orwell acaba por nos conduzir à constatação de que a regulação social de grupos humanos tende para a manutenção do autoritarismo e que a única forma de nos libertarmos desse é por via da construção de uma literacia democrática que alavanque a racionalidade dos cidadãos na desmontagem do real à sua volta. No fundo, estamos a falar de Comunicação Humana, da capacidade que todos precisam de deter para operar discursos, para desmontar a manipulação e a propaganda.

Aliás isto torna-se ainda mais evidente na história da publicação do próprio livro em 1945 em Inglaterra, quando foi recusado por várias editores, com a elite inglesa a defender que o livro apesar de bem escrito, não deveria ser publicado por poder ferir suscetibilidades junto do aliado URSS. Assim, apesar da Inglaterra viver num aparente regime democrático, sem leis de imposição de censura, essa era mantida no terreno pelos próprios cidadãos, zelosos de supostos interesses. O que está aqui em causa não é o mero ato de censura, mas antes o seu mais pernicioso efeito, que como vemos nesta fábula, facilmente pode escalar em direcção ao suporte do autoritarismo.
"de momento, fora necessário proceder a um reajustamento das rações (Tagarela usava sempre a palavra ‘reajustamento’, nunca ‘redução’), mas, por comparação com o tempo do Reis, o progresso era enorme." (p.108)
Um pequeno livro tão atual como quando saiu, continuando obrigatório.

maio 08, 2016

A Biologia das Histórias

Amnon Buchbinder é um guionista, documentarista e professor da Universidade de York (Canada), que a partir da sua forte paixão pelo conceito de história — suas diferentes formas e particularmente relevância humana — fundou e dirige o projeto The Biology of Story, lançado em abril passado e que aqui introduzo hoje.




Neste projeto, que não é documentário nem wiki, mas antes um documentário interativo, ou documentário web, Buchbinder procura dar conta das definições de história, assim como da sua abrangência nas nossas concepções do real. Para tal entrevistou dezenas de especialistas pelo mundo fora — Tracy Fullerton, Regina Machado, Keith Oatley, Philip Pullman, Robert Rotenberg, Ana Serrano, etc. — que nos dão conta das suas experiências de investigação, experimentação e trabalho diário com histórias. O documentário não surge como a experiência tradicional de 50 minutos, mas antes como uma página de nós que nos dão acesso a cada uma das entrevistas, obrigando a uma navegação conceptual à volta do termo.

Buchbinder explica que a complexidade, pervasividade e enraizamento do conceito é de tal ordem que uma mera tentativa de criar uma definição ou explanação linear do conceito seria insuficiente, daí que compare a ideia de História ao DNA, e assuma a informação depositada na página web como uma rede de células que se ligam para formar um todo. Mais, o documentário/portal lançado em abril 2016, apresenta apenas uma parte daquilo que se pretende que venha a ser, já que o objetivo é manter a alimentação do documentário em aberto, acrescentando novas células — entrevistas, pessoas, textos, etc. — criando em si mesmo a ideia de um organismo vivo que se amplia, dia-após-dia, com a entrada de nova informação.

Biology of Story Trailer 

Para compreenderem melhor o conceito e poderem iniciar a viagem pelo documentário, aconselho vivamente que em primeiro lugar vejam os cinco pequenos vídeos do próprio Buchbinder, na secção The Big Idea. Vistos na ordem apresentada funcionam como uma introdução à motivação, estrutura e objetivos do projeto. A partir daí navega-se por entre diferentes ideias sobre o potencial das histórias, sobre o seu alcance, a sua produção de imaginário, a sua última responsabilidade que assenta na manutenção da nossa civilização.

Esta ideia de história enraizada na nossa biologia não é nova e está intimamente ligada ao mais recente movimento em redor dos estudos de narrativa, nomeadamente oriundos das neurociências, que dão conta da necessidade que o ser humano possui da estrutura, padrão, das histórias para dar sentido ao mundo, para compreender o real.


Projeto: The Biology of Story
Nota: o sistema de nós do projeto não funciona muito bem em Chrome, aconselho o Safari.

março 26, 2016

Nova série web: "Makers & Gamers"

A Sony lançou mais uma série web, Makers & Gamers, que promete tornar-se um sucesso junto da comunidade de jogadores, mas não só. Esta nova série tem como objetivo promover a aproximação entre criadores e jogadores, e ilustrar as capacidades de comunicação dos videojogos. De um lado podemos ouvir as intenções dos autores, do outro os efeitos e impactos na recepção pelos jogadores, contribuindo deste modo para melhor compreendermos como funciona o medium. O primeiro episódio é dedicado ao videojogo "Journey" (2012).




Não vou falar muito sobre este primeiro episódio uma vez que já deixei aqui as minhas impressões, imensamente positivas quando o jogo saiu, em 2012. Mas não quero deixar de enfatizar o quão relevante este jogo foi para o meio, algo que fica perfeitamente demonstrado neste pequeno filme de dez minutos. A forma como "Journey" consegue estabelecer conexão emocional com o jogador é sublime, demonstrando todo um claro empenho por parte dos criadores para chegar a essa conexão. Enfatizar ainda que se a arte visual muito contribui para tudo isso, é o design de interação social, ou seja o modo como o videojogo promove a jornada com alguém desconhecido, que eleva a experiência para além do comum videojogo. Como Jenova Chen diz aqui, a transformação emocional é algo profundamente social.

Para quem tenha sentido um interesse particular pela história de Sophia e as experiências de jogo com o seu pai entretanto falecido, recomendo vivamente a leitura do texto Preservação de memórias nos videojogos.

"Makers & Gamers: Journey" (2016) de Jesse Moss

fevereiro 11, 2016

“Ruído Branco”, escrever para pensar

Demorei a escrever sobre este livro porque me obrigou a alguma reflexão mais elaborada, já que por um lado sentia que estava perante um trabalho de escrita e aprofundamento cultural de relevo, mas por outro sentia muitas reticências face à essência daquilo que nos queria dizer o seu autor. Li várias críticas de quando saiu em 1985, li mais algumas à edição comemorativa dos 25 anos de 2010, mas não consegui extrair muito mais do que aquilo que tinham sido as minhas impressões positivas, encontrei pouco esforço de interpretação de algumas das ideias que atravessam o livro. Aproveitei então o Goodreads para ler algumas críticas mais atuais, distanciadas no tempo, por quem como eu não leu o livro quando saiu, e assim totalmente despegado de memórias e nostalgias, e comecei a encontrar aqui e ali, alguns pontos negativos em consonância com as minhas dúvidas. Mas foi ao ler uma entrevista de DeLillo à Paris Review de 1993, que comecei a compreender a razão das minhas impressões.


De forma sintética, e abstraindo do enredo que nos faz virar as páginas, “Ruído Branco” procura respostas para as ansiedades contemporâneas, nomeadamente as produzidas pela velocidade e abundância de mensagens introduzidas pelos media na paisagem diária em que vivemos. Para produzir esta crítica DeLillo cria um mundo a partir de uma pequena cidade americana, na qual seguimos um professor universitário, especializado em Estudos de Hitler. Como rapidamente se depreende esta especialização é o foco da sátira de DeLillo, servindo de ponte para o questionamento final que nos propõe, a angústia do Medo de Morrer.

Capa da edição comemorativa dos 25 anos de "White Noiseda Penguin.

O romance está dividido em três grandes blocos — o primeiro de crítica dos media; o segundo do impacto dos media sobre o modo como vemos a realidade; e o terceiro como tentativa de explicar o que tudo isso representa. A primeira parte é a mais bem conseguida, tanto no conteúdo como na escrita, a erudição das metáforas e uma impressionante capacidade para escalpelizar ações e comportamentos num modo incisivo. A segunda parte é dedicada à ação mas numa lógica concentrada que nos permite aproximar mais da intimidade das relações da família do personagem principal. Por fim, a terceira parte é a mais simbólica, abandonam-se as descrições e a ação, e é tudo focado na explicação dos porquês, com recurso a algum devaneio filosófico.

As primeiras questões que me surgiram tiveram que ver com o facto de trabalhar especificamente na grande área de Estudos dos Media o que me torna mais sensível ao conteúdo. Falo especificamente do momento em que o livro é escrito, há 30 anos, e toda a crítica que foi produzida antes e depois sobre os mesmos problemas identificados aqui por DeLillo. Não tendo nada de errado a apontar, surge-me como um discurso um pouco saturado, mesmo nos anos 1980 já o era, as principais obras de McLuhan são dos anos 1960. Embora tenhamos de admitir que foi nos anos 1980 que a cultura popular se hegemonizou, e por via dos media de massas assumiu ascendente sobre a realidade. Aliás, daí a catalogação de uma nova era, a da pós-modernidade, nomeadamente pela via da tal hiperrelidade, como bem definiram Baudrillard ou Eco, em que o real deixa de existir porque substituído pela realidade criada pelos media.
" — Eles estão a tirar fotografias de gente a tirar fotografias." p. 20
“— Compreendi finalmente que este meio de comunicação social [a televisão] é uma força primordial no lar americano. Fechado, independente do tempo, contido em si mesmo auto-referenciado. É como se, mesmo ali, no meio da nossa sala, um mito estivesse a nascer, algo que fosse já do nosso conhecimento, de uma forma onírica e pré-consciente.” p. 68
De certo modo parece-me que o livro envelhece menos bem, apesar de ser ainda contemporâneo por vezes sobressai como crítica/sátira de uma era já longínqua. Talvez aqui o problema não seja sequer de DeLillo, mas antes da velocidade que se imprimiu à sociedade, nomeadamente por via das tecnologias de comunicação que transformaram drasticamente os media e a nossa relação com os mesmos, e tudo nos pareça já tão distante. Ainda assim gostei de ler, e não foi por aqui que me surgiram impressões menos positivas.

As minhas dúvidas ou incómodos surgem na terceira parte do livro, quando DeLillo entra no modo explicativo, e faz a sua proposta de teorização sobre a crise humanista criada pelos media, em que o acessório se tornou central, em que o mesquinho, o irrelevante ou insignificante passou a dominar o real, e a dominar os interesses das nossas vidas. Para Delillo isto explica-se como modo de fuga ao Medo da Morte. Seria uma tentativa de alheamento de si, de concentração no exterior de nós mesmos, para olvidar os nossos anseios. Diga-se que não discordo completamente desta ideia, muito do cinema e literatura de puro entretenimento que produzimos hoje tem esse desígnio como objetivo, esquecermo-nos de nós mesmos, escapar ao real que nos restringe a liberdade. A minha dúvida, e mesmo contestação à premissa é que não acredito que isso tenha qualquer relação com o Medo da Morte, desde logo porque se essa fosse a condição, então cada um de nós procuraria antes aproveitar o máximo possível antes de morrer, e não investir o tempo em futilidades para esquecer, para apagar o resto do tempo que nos resta por cá.

Verifiquei depois mais algumas referências de textos académicos que a proposta a que Delillo chega é, admitido por ele, influenciada por um texto de grande sucesso dos anos 1970, “The Denial of Death”, e que encaixa totalmente aqui em termos de argumento. Não vou dizer mais nada sobre esse livro, para além do que disse na resenha que lhe fiz logo depois de ter terminado “Ruído Branco”. Dizer apenas que é um texto sem valor na atualidade do conhecimento científico, e que tenho pena que o escritor se tenha deixado enredar por tal argumentação. Apesar disso, e enquanto romance, já que não se trata de um livro científico, DeLillo consegue manter todo o nosso interesse até ao final, assim como a nossa admiração pela forma como vai montando a argumentação com alguns casos e diálogos verdadeiramente lancinantes.

Posto isto quero agora ligar tudo com a entrevista de DeLillo, e explicitar um pouco daquilo que retiro de toda a experiência de leitura e reflexão de “Ruído Branco”, começando desde logo pela primeira pergunta sobre a razão pela qual DeLillo começou a escrever
"Eu queria aprender a pensar. A escrita é uma forma concentrada de pensar. Eu não sei o que penso sobre determinados assuntos, ainda hoje, até me sentar e tentar escrever sobre eles. Talvez eu estivesse à procura de formas mais rigorosas de pensar." [DeLillo à Paris Review]
Foi esta frase que me fez compreender “Ruído Branco”, que passei a ver como ensaio, à lá Saramago, em que uma determinada ideia lhes surge à mente e recorrem à escrita para a compreender, dar-lhe sentido e significado. A semelhança com Saramago termina aqui, já que DeLillo é muito mais orgânico, menos estruturado, mais próximo de Faulkner, como ele próprio gosta de afirmar. Aproximei-me de DeLillo porque esta revelação vai de encontro ao que faço com muitos dos textos que crio não científicos, nos quais começo com uma ideia e a meio do texto dou por mim a pensar algo completamente diferente, encadeado pela exploração mental dos diferentes conceitos que vão aflorando à consciência. O que me ajuda a compreender como se pode partir da discussão sobre os media e chegar ao medo da morte, e mais ainda, como ao longo do tempo pós-escrita, e de novas escritas, vamos vendo as nossas ideias mudar. Ou seja, não assumo aquilo que DeLillo aqui escreveu, como o seu modo único de ver a realidade, mas antes o modo como a viu na altura em que escreveu este livro, apenas isso.

Não menos interessante, e que me aproximou um pouco mais da sua pessoa, foi a resposta à questão sobre a fase da vida em que tinha começado a ler, DeLillo surpreendentemente revela que em criança só lia banda desenhada, e que só começou a ler mais seriamente a partir dos 18 anos. Não me poderia ter identificado mais, embora a minha identificação termine aqui, já que fiquei depois embasbacado pensando na elevada qualidade do seu trabalho, e no como tinha na minha frente mais um exemplo do modo como o talento se constrói, que não nasce, mas também não tem de ser condicionado desde o berço.

“Ruído Branco” tem alguns problemas de conteúdo, muito fruto do tempo em que foi escrito, mas enquanto romance, obra artística, continua intacto, dono de uma escrita soberba capaz de abrir pequenos orifícios na realidade e conduzir-nos pelo seu interior na tentativa de nos ajudar a compreender, perscrutando por dentro.

janeiro 06, 2016

“Jogo de Influências”, um jogo sério e dramático

Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.




Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?

Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."

Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.

O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.

Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.

outubro 24, 2015

"Dimensões do Diálogo" de Svankmajer

Jan Svankmajer (1934) é um reconhecido animador checo com uma obra que remonta aos anos 1960, sempre polémico e desconfortável, ora pelos objetos a que recorre nas suas animações, ora pelas ideias que exprime com estes, sendo muitas vezes rotulado de surrealista grotesco. Contudo o filme de que aqui hoje dou conta, fica-se mais pelo grotesco, deixando o surrealismo à porta, uma vez que a mensagem é coesa, seguindo o molde base do processo narrativo.


Ainda que eu o apresente como de traço narrativo, a veia surrealista de Svankmajer impede-o de ser completamente objetivo, mesmo quando o título é direto e as secções do filme são entrecortadas com subtítulos, permitindo múltiplas leituras e interpretações. Estas acontecem e podem ser encontradas na crítica rede afora, direcionando a nossa leitura em função da experiência e conhecimento de quem interpreta. Nesse sentido, a interpretação que aqui vos ofereço deve funcionar como complemento, sendo lida apenas após visionamento do filme. Da minha perspectiva o filme é obrigatório para qualquer amante da Comunicação.

"O Bibliotecário" (1566) de Giuseppe Arcimboldo

Em termos meramente plásticos Svankmajer assume neste filme a influência direta de Arcimboldo, nomeadamente das obras, "As Quatro Estações" e o "Bibliotecário", entre outras. Como se Svankmajer entrasse pelas telas de Arcimboldo adentro e lhes desse vida, como compete à animação, mas indo além, conferindo-lhes desígnio, narrativa e sentido.

Dimensões do Diálogo” (1982) de Jan Svankmajer, Checoslováquia

A minha interpretação,

Parte I - A Evolução (subtítulo: "Diálogo Eterno")
A primeira parte surge como o início dos tempos, a criação e evolução do ser humano, do ser pré-histórico ao ser atual, construído pela via do Diálogo. Svankmajer oferece-nos aqui uma leitura particular do homo-sapiens e da sua inteligência como fruto da interação humana, responsável pela filtragem e aprofundamento de tudo aquilo que somos hoje.

Parte 2 - A sobrevivência (subtítulo: "Diálogo Apaixonado")
Se na primeira parte Svankmajer nos fala do processo de evolução e aprimoramento da consciência, aqui fala do corpo, do como a espécie depende do diálogo com todo o seu espectro emocional do amor à raiva, para a sobrevivência da carne, sua reprodução e manutenção.

Parte 3 - O fim (subtítulo: "Diálogo Desgastante")
Por fim, já cansados e gastos, o diálogo começa a perder-se, começam a surgir as primeiras indicações de que o diálogo não se está a efetivar, o desentendimento ou falha na comunicação, e assim começa a nossa degradação até à extinção do ser.

novembro 28, 2014

Hipótese da Simulação Corpórea

Um dos livros que tenho andado a trabalhar, para textos que ando a desenvolver, deixou-me uma impressão grande, por isso resolvi pegar no que fui escrevendo sobre o mesmo, e juntar tudo num texto para dar conta do mesmo aqui no blog. Falo do livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" de Benjamin Bergen de 2012. Este livro não é uma mera discussão pessoal do modo como criamos sentido do mundo, antes desenvolve um conjunto de hipóteses assentes em dezenas de estudos realizados ao longos das últimas décadas, tendo o próprio Bergen contribuído para o desenvolvimento de vários desses estudos.


Bergen começa o livro discutindo a teoria vigente categorizada como, a “Hipótese da Linguagem do Pensamento”, que procura definir o modo como criamos sentido da realidade, e que nos diz que compreendemos a realidade por meio da linguagem, que não é propriamente a língua nativa, porque esta não passa de mera convenção cultural, mas antes uma linguagem interna do pensamento, que permite compreender por meio de um descodificador interno o mundo à nossa volta, e que ficou conhecida por “mentalese” (um conceito amplamente defendido por “Fodor (1975) e Pinker (1994) mas que já aparecia na lógica de Bertrand Russell (1903)”). Ou seja para cada objecto, propriedades, conceitos, ações, etc. teríamos um símbolo mental que corresponderia e que atribuiria sentido ao real que enfrentamos em cada momento. O mentalese funcionaria de certo modo como uma normal linguagem, com substantivos, verbos, adjetivos, etc. Ou seja é possível construir ideias, frases, como numa linguagem normal, mas é algo sem forma, sem som nem imagem, não concreta.

Ora isto levanta um problema, sem solução à vista, de onde vem o mentalese? Como se cria, como se desenvolve, como se processa, onde está alojado? Para Pinker, partindo da sua ideia da inexistência de um "Blank Slate" (2002), defende que o mentalese é algo inato, que nasce inscrito em nós, e por isso somos seres dotados de linguagem.

Mas outros procuraram dar resposta por outros meios, nomeadamente por meio de algo que vai além do reduto da mente, e usando o corpo como um todo, como detentor de conhecimento, adquirido pela experiência do mundo. Autores como George Lakoff na linguística, Mark Johnson na filosofia, ou Eleanor Rosch nas ciências cognitivas procuraram compreender a ideia de significado no corpo. Uma ideia que claramente deve a vários princípios discutidos nos últimos 20 anos no ramo da neurociência, nomeadamente com os estudos da emoção de António Damásio (1994) e depois com os Neurónios Espelho de Gallese e Rizzolatti (1999). Assim esta abordagem pelo corpo, apresentada como ideia rival do mentalese, ficaria conhecida como “Hipótese de Embodied Simulation” (que opto aqui por traduzir como Hipótese da Simulação Corpórea), definindo-se como
“Maybe we understand language by simulating in our minds what it would be like to experience the things that the language describes.”
O mais interessante é que esta ideia de conceber o mundo por via do corpo, é bem mais antiga que os estudos aqui apresentados por Bergen, nomeadamente toda a Fenomenologia, nomeadamente com Merleau-Ponty, assenta sobre este princípio base, em que se procurava desviar o foco da mente para o fenómeno externo. Mesmo dentro da psicologia com Gibson, em que este procurou claramente desviar-se do foco do cognitivo, para a ecologia visual, o mundo externo, concebendo a construção de realidade, por meio da interação e experienciação do mundo externo. É claro que aquilo que se apresenta agora aqui é mais desenvolvido, muito mais elaborado, e acima de tudo mais relevante porque sustentado em imensos estudos empíricos.

Ou seja, nós sabemos o que é simular mentalmente. Nós passamos a vida a fazê-lo, é assim que imaginamos a cara dos nossos amigos ou filhos, ou imaginamos um passeio pela praia, é assim também que imaginamos sons, sem sequer sentir qualquer onda sonora bater nos nosso tímpanos. Acordados ou a dormir, somos verdadeiros especialistas da simulação mental. Mas aquilo que Bergen nos diz, é que estes exemplos que imaginamos através do “olho da nossa mente”, são no fundo apenas aquilo que designamos por “mental imagery”, ou seja processo de criação de imagens mentais, sendo que o processo de simulação é algo mais vasto e profundo.
“Simulation is an iceberg. By consciously reflecting, as you just have been doing, you can see the tip—the intentional, conscious imagery. But many of the same brain processes are engaged, invisibly and unbeknownst to you, beneath the surface during much of your waking and sleeping life. Simulation is the creation of mental experiences of perception and action in the absence of their external manifestation. That is, it’s having the experience of seeing without the sights actually being there or having the experience of performing an action without actually moving. When we’re consciously aware of them, these simulation experiences feel qualitatively like actual perception; colors appear as they appear when directly perceived, and actions feel like they feel when we perform them. The theory proposes that embodied simulation makes use of the same parts of the brain that are dedicated to directly interacting with the world. When we simulate seeing, we use the parts of the brain that allow us to see the world; when we simulate performing actions, the parts of the brain that direct physical action light up. The idea is that simulation creates echoes in our brains of previous experiences, attenuated resonances of brain patterns that were active during previous perceptual and motor experiences. We use our brains to simulate percepts and actions without actually perceiving or acting.”
Nós temos consciência deste processo de simulação, é perfeitamente natural, e não há nada de muito novo aqui, a grande questão é saber se processamos a linguagem do mesmo modo. Ou seja, se compreendo as palavras, as frases, as ideias aí inscritas, por meio de processos de simulação, em vez de por meio de uma linguagem interna, o mentalese. Porque na verdade, o que temos é algo bastante mais natural, em termos de rentabilização de recursos do nosso corpo e cérebro. Faz mais sentido que utilizemos os nossos sistemas de percepção (o sistema sensorial, os 5 sentidos, embora haja uma tendência para privilegiar a visão e audição) e a ação (sistema motor) para compreender a realidade, do que tenhamos criado algo novo, à parte, para processar apenas a linguagem. No fundo, isto vem reforçar fortemente a ideia de que a linguagem nos ajuda a construir sentidos mais elaborados do mundo, já que ela faz uso directo das experiências desse mundo. Ou seja, o modo como trabalhamos a gramática da linguagem, serve-nos para processar de modos mais elaborados a realidade que experienciamos, as vivências que adquirimos, o mundo a que acedemos.

Uma das grandes questões que se levanta de imediato, é que se em vez de recorrermos a uma linguagem inata, igual e universal para todo o ser humano, recorrermos a processos que simulam experiências perceptivas anteriores, então o significado da realidade passa a ser algo extremamente pessoal e subjetivo. O que mais uma vez nos indica que estamos no caminho correto, se olharmos para as grandes questões da semiótica, desde a “Obra Aberta” (1962) de Umberto Eco, que discutimos a ideia de interpretação da realidade, as realidades convergentes e as realidades pessoais. O que temos é uma cultura humana como dotadora de códigos que permitem a criação de uma comunicação humana, e à qual cada um de nós ajusta as suas próprias impressões e experiências pessoais do mundo.


“Perky Effect” 

O “Perky Effect” consiste em estar a olhar para uma parede branca enquanto se imagina um objecto (uma banana ou uma folha), e projectar nessa parede uma imagem desse objecto com variações de transparência. O que Perky descobriu é que muitos acreditavam que estavam apenas a imaginar a banana ou a folha, não reconhecendo que esse objecto estava verdadeiramente na sua frente. Deste modo este efeito demonstra que, realizar imagens na mente pode interferir com a percepção que temos do mundo. Isto é o que acontece quando sonhamos acordados, vemos imagens sobrepostas sobre a realidade que nos rodeia, que no fundo bloqueiam essa mesma realidade. Os estudos sobre este efeito demonstraram que não apenas imagens mas também as suas posições no espaço, assim como os seus movimentos visuais ou verbais, podem interferir com o modo como percepcionamos a realidade.

Ao nível do movimento e espaço, os estudos demonstraram algo verdadeiramente relevante sobre o modo como organizamos mentalmente a espacialidade que nos rodeia. Estudos que me deixaram a reflectir particularmente na organização de espaço em ambientes virtuais. Em estudos desenvolvidos sobre processos mentais que procuravam realizar acções de de rotação de objetos ou movimentação espacial, verificou-se que  “you perceive motion in mental images like you do real motion in the world — the things that take longer in the world also take longer in the mind. Because it’s like real motion, mental motion is useful”.


A criatividade por detrás dos Porcos Voadores

Uma questão que se levanta quando se lança a hipótese da teoria de simulação a partir de experiências, é que se a construção de significado é realizada na nossa mente, então nós devemos ser capazes de gerar ideias a partir de ideias que não existem no mundo real. Daí que a ideia de “Porco Voador”, algo que não existe, sirva de exemplo perfeito aos intentos de Bergen, estando inclusive na capa do livro. Então como é que chegamos a essa ideia?
“The writer John Steinbeck imagined such a winged pig and named it Pigasus. He even used it as his personal stamp. What do you know about your own personal Pigasus?
It probably has two wings (not three or seven or twelve) that are shaped very much like bird wings. Without having to reflect on it, you also know where they appear on Pigasus’ body—they’re attached symmetrically to the shoulder blades. And although it has wings like a bird, most people think that Pigasus also displays a number of pig features; it has a snout, not a beak, and it has hooves, rather than talons”
Daqui podemos extrair várias ideias:

1 - A ideia de Porco Voador é comum à grande maioria de pessoas, e parece significar algo. Apesar de este não existir, o que coloca um problema ao Mentalese, que defende que o significado surge da relação com o real, o que obrigaria então a que este existisse de algum modo.

2 - A ideia de Porco Voador, não estimula apenas o surgimento mental de uma imagem de um porco, mas de um porco com asas, em que montamos uma ideia nova, a partir da junção de dois conceitos distintos. Ao mesmo adicionamos os efeitos das suas condições, neste caso sendo porco e não pássaro, é natural que nos surja a imagem de um porco, e as asas, normalmente apenas duas por imitação das aves, e sendo voador é natural que surja voando no ar e não sentado no chão.

3 - A imagem criada para o Porco Voador é altamente subjectiva, cada um imaginará algo completamente distinto, porque não existindo uma imagem real, que coloque em comum, cada um terá repescar as imagens que possui de Porcos e Aves Voando, para construir a nova. Alguns poderão mesmo construir ideias de Porcos com capas voadoras, do tipo Super Porco.

Imagem retirada do livro de Bergen

Ou seja, o processo de Simulação Mental é um processo profundamente pessoal, e que está na base explicativa do que é a Criatividade (“how you breathe life into your own personal Pigasus”). Neste sentido o uso de texto é profundamente mais criativo, já que obriga os sujeitos a construírem, a inovar na construção mental de ideias, a que se acedeu apenas a partir de texto. Se visse um porco voador num filme, nada haveria a simular de novo, seria dado como adquirido, e o processo de simulação mental seria reduzido à integração de uma nova experiência na memória.


Treino e prática mental

Vários estudos realizados com atletas de golfe, ténis, basquetebol demonstraram que os atletas que treinavam apenas vendo imagens de jogos e imaginando sequências de ações de jogo, melhoravam concretamente nas suas competências. A grande questão que se coloca então é: porque é que estando apenas a imaginar o uso do corpo de uma forma particular, se torna mais fácil ao nosso corpo mover-se depois?
“When we visualize actions—consciously and intentionally activating mental images—we use the very parts of our brain that control our body’s movements. When we imagine the footwork we employ to serve a tennis ball, the part of our brain that controls foot motion starts firing. When we think about how we hold a basketball in our hands, the part of our brain controlling hand motion lights up. As a result, whether you call it mental imagery, visualization, or mental rehearsal, imagining doing things is extremely effective at solidifying motor skills. And that’s because, to a large extent, when we’re visualizing, our brain is doing the same thing it would in actual practice.”

O maior problema da “Simulação Corpórea”
“in understanding language, we use our perceptual and motor systems to run embodied simulations. That’s all fine and good... about concrete stuff—polar bears that have a visual appearance, door knobs that you can physically turn, and rock classics that actually sound like something. But this only scratches the surface of what we can talk about. One of the unique and powerful things about human language is that we can use it to talk not just about the easy, concrete stuff but also about ideas that we can’t see or feel. We can talk meaningfully about truth, responsibility, or justice, none of which really look like anything. Or, for that matter, we can talk about meaning itself, like this book does... If simulation of sights, sounds, and actions is really at the heart of meaning, then how could we ever understand language about things that we can’t see or do?”

Solução: a Metáfora

A resposta apresentada por Bergen assenta na ideia de Metáfora, algo que faz imenso sentido nomeadamente no campo do design de interação, mas faz ainda mais sentido no campo do Cinema. Quando preciso de transmitir uma ideia abstracta, a primeira coisa que fazemos é procurar ideias concretas, que possam metaforizar a ideia abstracta que se quer transmitir. Uma das mais trabalhadas no cinema, é a ideia de Tempo, que Bergen também trabalha aqui.

Um dos exemplos que começa por trabalhar é o conceito de “sociedade”, através dos exemplos:

- “Japan has been a closed society for long despite its huge ”
- “War veterans struggle to fit back into society”
- “those who without assistance and guidance would fall through the cracks of society”

Ou seja, o que aqui temos é uma discussão sobre a ideia de sociedade, realizada de um modo perfeitamente concreto. Uma sociedade que pode ser fechada, que pode encaixar pessoas, ou pode apresentar fissuras. Ou seja, sociedade, nestas expressões parece uma espécie de “contentor”. O problema é que podemos falar de sociedade, de modos completamente distintos, e passar por exemplo, de contentor a uma espécie de “organismo”:

- “Farmers are the backbone of our society.”
- “Sexual violence disempowers women and cripples society.”
 - “A healthy society requires an ongoing dialogue between faith and reason.”

Claro que percebemos que “sociedade” não é um contentor nem um organismo vivo, mas usamos essas ideias concretas, como metáforas do seu significado. E é assim que surge a “metaphorical simulation hypothesis”, que nos diz que “ we understand abstract concepts through concrete, though metaphorical, simulation.”.  Exemplos, do uso do sistema motor,

- “grasping ideas”
- “clubbing you over the head with study after study”
- “bite the apple”
- “kick the bucket”

Esta ideia sustenta-se nas duas seguintes hipóteses,

Hipótese 1: “understanding a metaphorical action phrase, like grasp a concept, activates the motor apparatus responsible for performing the same action; in other words, mentally simulating the metaphorical action.”

Hipótese 2: “merely simulating an action makes you understand a phrase faster if it metaphorically uses that same action. ”

Mas um estudo demonstrou que “language that appears metaphorical like familiar metaphorical idioms that, when you read it as whole sentences, doesn’t always massively activate the relevant parts of the brain that we might expect to light up if people are performing motor simulations.”. Ou seja, a familiaridade das metáforas, evita o uso da simulação motora.

Por outro lado um outro estudo demontrou, “a sentence describing metaphorical motion upward, like The rates climbed, doesn’t interfere with perceiving a shape, no matter where it appears on the screen.” Assim “the Perky method shows no effect for metaphorical language - “if there’s no specific object being mentally simulated, then there’s no image to interfere with actual perception.” Ou seja, não estamos a usar a mesma parte do cérebro, e isto diz-nos que não estamos então a simular mentalmente.

Deste modo temos que “a compreensão da linguagem metafórica é feita através da construção de simulações corpóreas que são menos detalhadas, do que as literais, mas que ainda assim fazem uso do sistema motor e perceptual.”
“So much of what we actually talk about is abstract that we could hardly say we understand the process of understanding without figuring out how people grasp abstract concepts. The idea that we’ve come to is that we take what we know about how to perceive concrete things and to perform actions, and we use that knowledge to both describe and also think about abstract concepts. In this way, we bootstrap harder things to think and talk about—abstract concepts—off of easier things to think and talk about—concrete concepts.”

Uso da Metáfora sem Linguagem

Utilizamos todo o tipo de metáforas, mesmo quando não se trata de linguagem, mas apenas e só de compreender o real. No caso do tempo, que é um conceito extremamente abstracto, não existe nada palpável que lhe possa conferir forma. Ainda assim, temos tendência a medir o tempo em função do espaço (exemplo: linha de progressão de download). Uma linha maior dará indicação de maior duração, ou por exemplo um salto em comprimento, quanto maior, mais tempo terá levado. Por outro lado, o inverso não se confirma para nós, em termos metafóricos, ou seja, mais tempo não nos dá indicação clara de mais espaço.
“even when there’s no language around (just lines on screens), people use space to make judgments about time but not the reverse. This adds support to the idea that abstract concepts are generally understood in terms of more concrete ones, and not the reverse, even when there’s no language to prompt them to do so.”
Ou seja, usamos o concreto para criar sentido no abstracto, mas não usamos o abstracto para dar sentido ao concreto. Outros exemplos, tais como por exemplo uma “pessoa calorosa” ou o sentimento de “exclusão social”, foram investigados em termos perceptivos. E no caso da descrição de pessoas, existe uma tendência para descrever de forma mais calorosa ( adjectivando com: generosa, alegre e sociável) outra pessoa, depois de lhe terem passado para a mão um café quente. Da mesma forma se pediu para pensarem em momentos em que se sentiram incluídos ou excluídos socialmente, e logo a seguir questionou-se sobre a temperatura do quarto em que estavam. Os que pensavam em momentos de exclusão, descreveram como mais frio que os que pensavam em momentos de inclusão “lonely feels cold”. Ou seja

Outro exemplo dado, é o Macbeth Effect. num estudo em que foi pedido a pessoas para pensarem em ações éticas e não éticas, tendo a seguir oferecido um objecto para levar, verificou-se que quem tinha pensado em ações éticas tendia a escolher o lápis, ao passo que as não-éticas tendiam a escolher um objecto de limpeza. Assim o efeito corresponde à ideia de que quando as pessoas pensam em ações pouco éticas que fizeram no passado, sentem uma certa necessidade de se “limpar”.

Todos estes exemplos de metáforas fora do domínio da linguagem acabam por demonstrar que “concepts like time, morality, and affection are tightly linked to the very concrete things that they’re metaphorically described in terms of—distance, cleanliness, and warmth.”

Contudo e apesar destes exemplos, a verdade é que a simulação corpórea não responde a todos os problemas, nomeadamente ao facto de sabermos quando devemos simular uma metáfora como real percepção/ação real ou quando simular como mera metáfora conducente a um sentido abstracto. Como acaba dizendo Bergen, “the more that understanding abstract language is like understanding concrete language, the more infrastructure we must have to keep them apart.” E isso está longe de estar explicado.


Conclusão

No final Bergen questiona a funcionalidade e utilidade da simulação, toma o lado oposto, e questiona de várias formas a sua possibilidade, acabando por concluir, que apesar de muitas dúvidas termos, a hipótese é muito mais sustentada que a do mentalese, deixando vários exemplos, recordando de novo a questão do japonês, que ao contrário das línguas europeias, que apesar de trazer o verbo de acção, no final das frases, leva a processos de simulação mental muito aproximados na interpretação de frases, quando comparados com os das línguas ocidentais. Ou seja, o mentalese “doesn’t explain why Japanese speakers already have expectations about the shape of a mentioned object before they even come to the verb.

Um último ponto surge neste livro de relevância, e que no fundo está subjacente a toda esta discussão, e que tem que ver com a Comunicação. O que é, e como se serve de toda esta maquinaria.
“As speakers, the messages we intend to transmit are probably far from discrete packets of information. Instead, they are dynamic and continuous currents of perception and action, either performed and perceived or mentally simulated. As speakers, we have to jam all this messy, amorphous, nonspecific, continuous stuff through the narrow aperture afforded by discrete words and grammatical structures available to us in our language. This process of encoding is necessarily lossy: a few words can’t hope to capture the breadth and depth of the perceptual, motor, or affective experiences we want to convey. It’s also nondeterministic: we might use two different words to describe the same thought, sometimes even in the same sentence. And it’s fickle: we often just reuse words or grammar that we’ve just uttered and we tend to mimic the linguistic patterns of our interlocutor, instead of picking out the theoretically perfect words for a given message. So the information we want to convey is neither neatly delineated to begin with nor uniquely and perfectly packageable in words.”
A grande questão com que Bergen acaba fechando, é a eterna questão da Comunicação, como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?

julho 10, 2014

Daqui a 30 anos, segundo Negroponte

Nicholas Negroponte é um dos principais responsáveis por eu fazer o que faço hoje. Nesta sua TED de 2014 diz a certo ponto que quando a Wired saiu, os miúdos deixaram de comprar a Sports Illustrated para passar a comprar a Wired, no meu caso deixei de comprar a Cahiers du Cinema, mudando claramente os meus interesses. Mas provavelmente o mais importante tenha sido o seu livro "Being Digital" (1995) que me fez despertar para todo um novo mundo da tecnologia no qual o computador passava a assumir o lugar de extensão expressiva do humano.



Nesta TED Negroponte passa em revista as 14 TED talks que deu, um número que dá bem conta da sua importância na arena dos desenvolvimentos das tecnologias da comunicação. Ao mesmo tempo aproveita para enfatizar o facto de ter sido responsável por alguns projectos e algumas afirmações visionárias que em tempos foram motivo de chacota ou refutação mas que hoje são amplamente usadas ou aceites.

Nesse sentido, e respondendo à questão que Chris Anderson (director da TED) lhe tinha lançado, “qual é a sua previsão para daqui a 30 anos?”, Negroponte responde com uma ideia simples, mas ao mesmo tempo tão ficção-científica, que nos parece tão impossível como ter um carro nas estradas sem condutor!
“one of the things about learning how to read, we have been doing a lot of consuming of information going through our eyes, and so that may be a very inefficient channel. So my prediction is that we are going to ingest information You're going to swallow a pill and know English. You're going to swallow a pill and know Shakespeare. And the way to do it is through the bloodstream. So once it's in your bloodstream, it basically goes through it and gets into the brain, and when it knows that it's in the brain in the different pieces, it deposits it in the right places. So it's ingesting.”


Acredito nesta previsão, só não sou tão optimista como Negroponte, talvez porque como ele diz, daqui a 30 anos já cá não estará, mas eu talvez ainda cá esteja. Por isso acredito antes que isto possa vir a ser possível dentro de 50 anos. Mas tenho de acrescentar aqui uma variação ao que é dito por Negroponte, eu não acredito que esta ingestão venha substituir a leitura, pela simples razão que aquilo que vamos ingerir não serão comprimidos de texto. Aquilo que vamos ingerir são os filmes e videojogos do futuro, realidade virtuais que simularão no nosso cérebro histórias, acções e experiências. Aliás falei disto quando aqui discuti o último filme de Ari Folman, "The Congress" (2012).

junho 19, 2014

O homem que transformou o papel em píxeis

Adam Westbrook publicou mais um brilhante ensaio audiovisual no Delve, sobre "The Man Who Turned Paper Into Pixels" (2014) com o subtítulo "How our digital world was born and the surprisingly simple idea that makes it work". São apenas 5 minutos mas valem todos os segundos. De uma forma absolutamente simples e extremamente eficaz Westbrook explica a base que dá suporte ao mundo digital, tornando muito fácil para qualquer pessoa perceber como foi possível converter o mundo analógico em meros "0" e "1".




Para todos os que se interessam pela Comunicação este é um filme a não perder. Ao contrário de se centrar apenas na tecnologia que suportou o surgimento do digital, o transístor, como tem sido feito por muitos outros analistas do processo, Westbrook baseado no texto do professor Andrew Lih sustenta o digital no modelo matemático criado por Claude Shannon, um dos pais das Ciências da Comunicação. O transístor sem um modelo capaz de sustentar o seu uso não teria passado de uma mera aplicação.

"The Man Who Turned Paper Into Pixels" (2014) de Adam Westbrook

Os video-ensaios anteriores de Adam Westbrook podem ser vistos em O longo jogo do génio.

maio 03, 2014

“Papo & Yo” (2012)

A última parte de “Papo & Yo” deixou-me com um nó no estômago. Já tinha jogado quando saiu, mas não tinha terminado. Conhecia bem a história, tinha lido várias análises ao jogo e entrevistas com o criador, Vander Caballero, sabia que esta era a sua história pessoal. Ou seja, não foi a história em si que me bateu, foi o videojogo que me levou a estas emoções fortes, que perto do final estabeleceu uma ligação entre mim, Quico, a sua namorada e o seu pai. No final o videojogo conseguiu fazer-me sentir toda a ambivalência emocional que sente Quico na resolução do dilema, ajudar o seu pai ou desistir e conduzi-lo à destruição...


“Papo & Yo é sobre mim e sobre meu pai, um homem bom, mas também um mal. Como muitos, ele usou álcool e drogas para lidar com uma vida difícil, e eu fui pego no meio dele. O núcleo emocional do jogo é basicamente uma fábula sobre o meu relacionamento com meu pai.” Vander Caballero
Para produzir uma experiência com este alcance, “Papo & Yo” teve de desenvolver um conjunto de metáforas que se encarregaram de traduzir as acções, mas também os personagens e os sentimentos desta história melancólica. A meio do jogo as mecânicas começam a descolar da história, o seu carácter padronizado ainda que sempre muito bem contextualizado com imaginário perde-nos, mas mais perto do final tudo volta a encaixar-se. A duração da obra dá-nos tempo para reflectir sobre a relação que vamos vivendo com aquele Monstro. Quando chega a altura de tomar uma decisão sobre o futuro da relação, a fasquia emocional é colocada bem lá em cima por Caballero, mas posso dizer que é superada de forma magistral. Muito contribui para esta superação, a música e o bom controle da atmosfera do jogo, mas acima de tudo o conhecimento da linguagem de interatividade, o saber colocar o jogador no lugar de actor, levando-o a tomar partido, a querer agir.

"Papo & Yo" mostra como se podem discutir assuntos complexos e profundamente humanos, através de um videojogo. Como é possível usar a interactividade de modo expressivo, lançando os jogadores na indagação e questionamento, não apenas sobre aquilo que se presencia, mas sobre aquilo que se faz. Porque apesar do videojogo me ter conduzido a fazer, de forma linear, senti que o fazia, sinto que o fiz, porque o jogo me ajudou a tomar a decisão antes. Ou seja, no final estou com Quico, e quero fazer o que tem de ser feito...

abril 21, 2014

Inovando o storytelling nos media interactivos

“CIA: Operation Ajax” é uma obra de leitura digital interactiva com uma forte base de banda desenhada (BD). Lançada em onze capítulos entre 2010 e 2012, não é propriamente uma novidade, mas posso dizer que é a melhor experiência que tive até hoje de BD digital. Através de uma lógica que vai para além do “motion comic” e do multimédia documental, faz um aproveitamento soberbo da plataforma tablet.



Ao contrário dos cd-roms dos anos 1990 “CIA: Operation Ajax” não se perde com deslumbramentos tecnológicos e multimédia, somos transportados para o reino da história que nos é contada, e tudo funciona em seu redor. Uma história centrada num evento político do século XX, o golpe de estado no Irão operado pela CIA em 1953. A obra é uma adaptação do livro “All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror” (2003) de Stephen Kinzer, acabando assim por trabalhar a realidade geopolítca atual que vivemos, em profundidade.

Nesta obra a narrativa é o cerne. Para isso contribui imenso a ideia de focalizar a estrutura narrativa na BD, servindo esta muito bem a progressão. Ou seja, a cada toque nosso sentimos o avanço no interior da estrutura de uma prancha, na verdade o conceito de prancha desaparece, o que temos é um “atravessar” das vinhetas, uma espécie de filme entrecortado, quadro a quadro, com animação e som, e a possibilidade de navegar para trás e para a frente. O conjunto cria uma sensação de leitura fluída, com o tempo controlado pelo leitor, mas com uma direcção narrativa capaz de imprimir ritmos e suspense. A isto adiciona-se ainda uma camada adicional de documentos fotográficos e vídeos de época que podem ser acedidos opcionalmente. Segundo Burwen o objectivo desta camada documental não era o mero aproveitamente técnico, mas tinha como objectivo aumentar o realismo narrativo,
"The features we provide will include anything we can find to augment the story we are telling, and to remind people that this stuff really did happen. That real people with personalities and families were making decisions that made a major impact on the way that we think and live today. To be able to be immersed in a narrative, and to have that narrative infused with evidence like photos or newspaper articles from the period in which the story took place, it adds an element of humanity to the drama and intrigue. I can’t go too far in revealing what we have planned, but I can say that I think it’s very exciting." [Link]
Componente documental multimédia

"Ajax" foi criado pela Cognito Comics, com a plataforma The Active Reader da Tall Chair, que funciona sobre Unity, e esteve 4 anos em produção. Parece exagero mas não é, se pensarmos que como livro de BD é desde logo enorme, com 212 páginas, a partir das quais foram produzidas 6 a 7 mil vinhetas animadas!

O que faz a diferença não é a plataforma, mas o facto da animação/interacção, de grande qualidade, ter sido desenhada quadro a quadro. Aquilo que a Marvel e outros têm tentado fazer, é criar um editor que permita rapidamente transformar pranchas em objectos navegáveis. O que temos aqui é um livro de 212 páginas, totalmente reconceptualizado, ou conceptualizado desde o início, para uma lógica de acesso interactivo, com movimento e som. A cada toque no ecrã avançamos um quadro, por vezes 2 ou 3, ou melhor avança-se uma cena. A progressão não está presa a quadros fechados, mas a ambientes que podem ocupar todo o ecrã (a antiga página) que podem desenvolver-se em vários quadros, ou um mesmo quadro no qual vão surgindo novos elementos, novos balões, etc. Não existem vozes, apenas sonoridade ambiente e música, a história continua a ser acedida através dos balões, base da linguagem BD. Ou seja, "Ajax" é todo um novo modo de contar histórias, porque não é livro nem BD, não é animação nem filme, não é site nem jogo, é um novo modo de contar histórias, é um modo integrado e interactivo, e por isso complicado de descrever sem se experienciar.

Três ecrãs que concorrem para criar uma cena, que é uma página completa.

Visão completa de uma cena que comporta vários quadros sobre um quadro geral.

Como é que surge um objecto destes? O seu principal mentor veio da indústria dos videojogos, Daniel Burwen, que trabalhou na EA e Activision, na área da ilustração. Depois de ter estalado a guerra no Iraque, em 2002, e depois de ler o livro de Stephen Kinzer, Burwen encarou o projecto BD como uma forma de dar voz ao que sentia sobre o assunto. Nesse sentido convenceu Kinzer a avançar com a adaptação do seu livro para BD. Mas em 2010, com o anúncio do iPad, resolveu mudar para o formato digital. O guião ficou a cargo de Mike de Seve que depois foi adaptado para BD por Jason McNamara (The Martian Confederacy, Full Moon). Na ilustração as capas foram feitas por Steve Scott (conhecido por Batman Confidential, X-Men Forever), o design dos personagens foi criado por Jim Muniz (X-Men, Hulk), e Steve Ellis (Iron Man, Box 13, High Moon) desenvolveu um capítulo completo. Burwen refere a propósito da complexidade da integração,
“I think the hardest part was learning how to make comics. Ajax is entirely built off traditional comics, and it’s because the traditional compositions work in print that the animation and interactivity works in the iPad version. Figuring out how to create a compelling animation style that honored the print page legacy was key. It was very easy to over-animate the content, and I discovered it’s a fine line between creating a poor film experience versus a rich reading experience.” [link]
Fluxogramas do design de interacção (a qualidade não é a melhor)

Temos aqui um trabalho movido por uma forte vontade de fazer, de comunicar e expressar, e isso faz mover montanhas. Além disso tenho poucas dúvidas em afirmar que Burwen apresenta nesta obra um talento muito especial no que toca à direcção e design de narrativa e interacção. O trabalho contém uma miríade de componentes de grande qualidade, mas a singularidade da obra emerge da direcção, da forma como foi imprimido sentido narrativo e acesso interactivo ao todo.

O maior problema deste formato de contar histórias é que uma produção com este nível de detalhe e qualidade fica muito cara. Se a produção de BD já é hoje considerada cara e de difícil rentabilização, muito por conta do online (pirataria), quando entramos neste detalhe multimédia os preços disparam, tal como diz Don Norman, “What is the future of the book? Very expensive.” Inicialmente cada capítulo era vendido por $7,99 mas recentemente o projecto foi colocado na íntegra grátis na AppStore. Este projecto acaba demonstrando várias coisas, essencialmente que a criatividade e imaginação conseguem ir muito além daquilo que por vezes temos acesso no mercado, mas que a inovação por si só não chega, é preciso que o mercado esteja pronto para a receber.

Trailer

Podem descarregar a obra, para iPad e iPhone, completamente gratuita, na App Store (484 mb).


Links de Interesse
Do comic para a animação interactiva, in Virtual Illusion
Comunicação visual digital, in Virtual Illusion
Brandon Generator, animação interactiva online, in Virtual Illusion
Reinventing the Graphic Novel for the iPadpalestra de Daniel Burwen no SXSW 2012
Narrative Mechanics - The Elements and Spaces of Interactive Storytelling, [Slides] Palestra de Daniel Burwen na React 2013

setembro 23, 2013

o rádio-documentário

Numa destas noites de sábado, estava eu deitado na cama, com os auscultadores à procura de uma estação de rádio que me ajudasse a adormecer, e parei na Antena 1... uma senhora falava, muito emocionada, do tempo em que era angolana, antes de Angola ser um país independente... o programa de rádio chamava-se “Começar de Novo”.


Não tenho sido um grande defensor do meio da rádio, passei uma fase em que não percebia já a sua utilidade, questionava-me porque continuava a existir... Hoje, e cada vez mais, acredito na máxima dos Estudos dos Media que diz, "os media não morrem, apenas se transformam". Este programa da RDP é uma prova disso mesmo.

"Começar de Novo", apresenta-se como uma dramatização para rádio dos eventos ocorridos entre 1975 e 1976, com a deportação de milhares de pessoas das colónias portuguesas – Angola, Moçambique, Timor, Cabo Verde - para Portugal. Muitas destas pessoas nunca tinham estado em Portugal, nem sequer portuguesas se consideravam. Na verdade, se os meus pais, e avós tivessem nascido noutro país, provavelmente sentiria o mesmo. Os portugueses não foram para as colónias no século XX, antes começaram a chegar ali no século XVI. É natural que, para muitos dos que se viram envolvidos na confusão destes anos, não se tratou de qualquer regresso à pátria, mas antes, apenas e só, de fugir à guerra, de ser expulso de um país em guerra.


Durante décadas ouvi, em surdina, a palavra Retornados. Hoje, e depois de conhecer este programa de Rádio, fiquei a compreender melhor, o que se passou nesta fase da história de Portugal. Na generalidade, estas pessoas de retornados tinham pouco, eram antes refugiados de guerra, que Portugal, enquanto responsável pelas colónias, necessitou de acolher.


"Começar de Novo" é um programa da RDP criado por Iolanda Ferreira, Inês Lopes Gonçalves, Madalena Balça e Manuela Silva Reis. São 15 26 rádio-documentários, de uma hora cada um, muito emocionantes e informativos. Cada episódio assenta a sua base na entrevista de uma pessoa, que revive os momentos mais marcantes do processo de vir para Portugal, deixando aquilo que possuía numa das ex-colónias. A construção sonora em redor da entrevista, é bastante rica, tanto utilizando música da época, como sons marcantes que acompanham cada um dos relatos. As revelações dos entrevistados são confrontadas com fatos da história, e ainda com historiadores a quem se pede confirmação e reflexão sobre essas revelações, enriquecendo assim tremendamente cada um dos episódios. É um trabalho de excelência que merece ser aplaudido, e discutido.

Todos os 15 26 episódios podem ser ouvidos na página da RDP e mais informação pode ser obtida na página Facebook do programa.
"Mais de meio milhão de pessoas chegou, de repente, a Portugal. Essas pessoas, porém, de uma forma notável,  conseguiram integrar-se na sociedade portuguesa sem conflitos de maior. Do número de retornados recenseados pelo INE em 1981, 61% eram oriundos de Angola, 34% de Moçambique e apenas 5% das restantes colónias."

julho 22, 2013

Medo e a Modernidade

Perdemos o medo de sobrevivência física, de quando vivíamos com outras espécies na floresta, mas ganhámos novos medos, como o da sobrevivência da nossa identidade aos avanços da tecnologia. Somos seres feitos de medo, é ele que mantém a chama da vida acesa.


Num artigo do New York Times compara-se o Facebook ao surgimento dos primeiros cafés em Londres no século XVII, e coloca-se a nu o facto dos medos de há quatro séculos, terem mudado muito pouco. Por sua vez Randall Munroe do XKCD fez uma tira de BD na qual cita uma série de comentários do final do século XIX e início do século XX, a partir de várias revistas científicas da altura, nas quais se podem identificar muitos dos “males” da sociedade do corrente século XXI. Em ambos os casos, o discurso pouco se alterou, a nossa biologia ainda menos, as tecnologias evoluíram mas os nossos medos permaneceram inalterados.
Anthony Wood, um académico de Oxford, dizia em 1677: "Why doth solid and serious learning decline, and few or none follow it now in the University? Answer: Because of Coffea Houses, where they spend all their time."
As distração que corrompe as massas, os males das escolas, os efeitos perniciosos da falta de leitura, a perda da decência, a perda das vivências em família, o jornalismo do sensacionalismo, a destruição do pensamento pelo aumento velocidade da comunicação... São apenas alguns dos assuntos, através dos quais podemos viajar no tempo, e compreender como apesar de termos progredido bastante, os nossos medos continuaram intactos, e a dar-nos razões para continuar a viver!

do correio ao e-mail


 
das escolas incapazes de motivar as crianças


da velocidade furiosa da informação


do jornalismo sensacionalista


os laços familiares, das revistas ao iPad


da decência e bons-costumes