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agosto 20, 2017

Os Miseráveis (1862)

É um romance histórico, mas pelo número de personagens, extensão e eventos quase que o poderíamos qualificar de saga, uma saga social. Socorrendo-se de um período de grande alteração civilizacional, o pós-Revolução Francesa de 1789, Victor Hugo trabalha várias personagens históricas responsáveis pela época, mas escolhe para veículo de introdução aos factos e eventos, as classes mais baixas e desprotegidas do sistema — os ex-prisioneiros, os órfãos, as prostituas, os pobres — os miseráveis. Deste modo, serve-se do seu sucesso e influência na sociedade francesa para ao longo de 1300 páginas, e enquanto conta uma história, dissertar sobre as leis e as morais da época. Nem tudo é perfeito mas o seu sucesso e resistência ao teste do tempo demonstram a força e atualidade da sua mensagem.

Nova tradução de José Cláudio e Júlia Ferreira para a Relógio d'Água, publicada em Maio 2017.

“Os Miseráveis” foi publicado em 1862 quando Victor Hugo tinha 60 anos e era já um escritor reconhecido pelos pares a ponto de ser membro da elitista Academia Francesa desde 1841, respeitado pela sociedade política tendo sido eleito para a Assembleia Nacional em 1848, e respeitado pela sociedade em geral, não só pela sua poesia mas também pelo seu enorme sucesso obtido com “O Corcunda de Notre-Dame”. Exilado em Inglaterra a partir de 1851 com o golpe de Napoleão III, Victor Hugo sabia bem o que continuava a representar para a França, daí que este livro, que foi escrito ao longo de quase 20 anos, tenha sido visto pelo próprio como uma espécie de legado a essa França, ainda que de desejos universalistas. Deste modo, esta obra, apesar dos problemas que irei avançar à frente, para além da história que conta, é um manifesto sobre a vida em sociedade, no qual o autor procura expressar os seus ideais e desejos para construir aquilo que acreditava poder vir a ser um mundo melhor.
"A Igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. Pelo direito ao alfabeto, é por aí que devemos começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos: é essa a lei. Da escola idêntica nasce a sociedade igual. O ensino, sim! Luz! Luz! Tudo vem da luz e tudo para lá volta. Cidadãos, o século XIX é grande, mas o século XX será feliz."
A prosa de Victor Hugo é irrepreensível. Se podemos ceder à tentação de comparar Jean Valjean com Edmond Dantés de Alexandre Dumas, as similaridades ficam-se pelos meros traços gerais da trama, já que toda a arte poética de Victor Hugo é tão elaborada e graciosa, fruto de um virtuosismo que está completamente fora do alcance de Dumas. Diga-se que a nova tradução apresentada agora pela Relógio d’Água faz verdadeiro jus à obra original, o que nos permite, em português, sorver o que de melhor nos deu a pena de Hugo. Se dúvidas houvesse, ser objeto de dedicatória de Balzac, um dos grandes pilares do cânone literário ocidental, e na obra por si considerada maior — “Ilusões Perdidas” (1843) — estando Victor Hugo ainda vivo e com apenas 41 anos, diz quase tudo o que se pode dizer sobre a qualidade da sua escrita, assim como pessoa.

É essa pessoa que temos em “Os Miseráveis”. Podemos dizer, como já foi dito antes pelos irmãos Goncourt que a obra roça o “artificial”. Não raras vezes damos por nós a pensar: mas existiria alguma vez alguém tão puro como o Bispo de Digne; ou como a freira que nunca mentiu; ou com a submissão infinita de Fantine; ou com a honra do dever de Javert; para não falar da gigantesca conversão e humildade inesgotável de Jean Valjean? Como diria Flaubert também, parece faltar “verdade”, são tantas as coincidências que o enredo provoca que é impossível não levantar o sobrolho. Mas dissecando a obra, dedicando-lhe a devida atenção, procurando compreendê-la no seu contexto histórico e do seu autor, podemos aos poucos começar a desvelar camadas não imediatamente visíveis.

A artificialidade aqui em questão é apenas o modo narrativo escolhido por Victor Hugo para lançar os seus dados, é um contar de história popular que para tal recorre a heróis, impossibilidades, e mitos. Victor Hugo disse-o ao editor: “Eu não sei se será lido por todos, mas foi escrito para todos”. Ou seja, Victor Hugo tal como Hollywood faz hoje, procurou o veículo ficcional que lhe pudesse oferecer o maior alcance possível, mas por ser a pessoa que era, não o fez pensando em ganhos financeiros, mas antes como manifesto, com objetivos puramente ativistas. Assim, se à superfície “Os Miseráveis” parece não passar de uma manta de mitos recontados ao longo da nossa história, por debaixo existe mais do que as pequenas lições que esses mitos serviam, existe uma vontade renovadora, reformadora, e progressista. Existe um ideal de sociedade, um olhar político encantado à procura de um mundo melhor, como fica explícito neste parágrafo quase no final da obra:
“O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou as fraquezas, o caminho do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus.”
O grande sucesso da obra de Victor Hugo pode não advir desses seus ideais para o mundo, embora seja por eles que é ainda hoje uma obra de referência obrigatória em qualquer país que siga o cânone ocidental. É um sucesso que se baseia no uso dos mitos eternos, dos arquétipos e do monómito do herói que facilmente se cola aos anseios dos seus leitores. Mas não é só, no trabalho de Victor Hugo existem elementos de pura genialidade narrativa, a um nível que nos habituámos a encontrar apenas em trabalhos da classe de Dostoiévski. Falo da acuidade e agilidade com que desenha os devires dos seus personagens, como os interroga e expõe o seu interior, conduzindo-nos a ver e a sentir como eles, nomeadamente no desenho das condições de escolha em momentos decisivos para os seus destinos, os dilemas. Damos por nós, estacados frente à página de papel, como que frente a uma parede, numa bifurcação em que os dois caminhos se opõem, sendo igualmente relevantes mas autoexcludentes. Apetece fechar o livro e não ler para não saber o que vai ser deixado cair: deve deixar morrer e salvar-se, ou salvar e morrer; deve expor-se e perder toda uma vida de conquistas para salvar um outro, ou deve permanecer na sombra com o peso na consciência... O que Victor Hugo busca aqui é acima de tudo o escrutinar do humano, como nos diz no seguinte parágrafo:
“Há um espetáculo maior do que o mar: é o céu; há um espetáculo maior do que o céu: é o interior da alma.
Escrever o poema da consciência humana, nem que fosse a respeito de um único homem, nem que seja a respeito do mais ínfimo dos homens, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das intenções, a fornalha dos sonhos, o antro das ideias de que nos envergonhamos: é o pandemónio dos sofismas, o campo de batalha das paixões. Em certos momentos, experimentem olhar para a face lívida de um ser humano que está a refletir, olhem mais além, observem-lhe a alma e contemplem-na nessa obscuridade. Sob o silêncio exterior, desenrolam-se aí combates de gigantes como em Homero, batalhas de dragões e hidras e revoadas de fantasmas como em Milton e espirais visionárias como em Dante. Que coisa sombria é este infinito que cada homem arrasta consigo e pelo qual regula com desespero as vontades do cérebro e as ações da vida!” 
Naturalmente muitas destas questões funcionam apenas no calor da história que está a ser contada, porque rapidamente percebemos que o valor da vida não é o mesmo sempre, nem para todos. Os soldados que morrem num campo de batalha, ou os manifestantes que morrem numa barricada, parecem não passar de peões. É contudo interessante verificar como esta questão tem também sido discutida noutros meios narrativos, sendo bastante comum no cinema de Hollywoood, ou nos videojogos, sendo reconhecido pela sua definição psicológica, “dissonância cognitiva”. Isto deve-se em parte ao uso dos mitos, o modo como estes são facilmente aceites como supra-realidade, analogias de um mundo mágico, no qual as condições de verdade são por vezes suspensas, para assim se poder intensificar a emoção e enfatizar o sentimento pretendido. Não é por acaso que Victor Hugo cita inúmeras vezes Homero, Dante ou Milton ao longo do texto.

Dito tudo isto, justificadas as razões porque considero “Os Miseráveis” uma obra de referência e que continuará a eternizar-se, quero contudo apontar o ponto que considero, não como negativo, mas como menos conseguido artisticamente em toda a obra, e que é talvez aquele que fez Baudelaire, em privado, considerar o texto “incompetente”. Falo das digressões e ensaios que perfazem nada menos que o 1/3 do livro, 450 páginas em 1300. Claro que como disse um dos biógrafos de Victor Hugo, "as digressões dos génios são facilmente perdoadas", mas não quero por isso deixar de explicitar e discorrer sobre este ponto, tendo em conta a permanência da sua relevância para as artes narrativas.

Quero começar por separar as digressões dos ensaios, dizendo que não foram as digressões em si, comuns em tantas e tantas obras de grandes autores que me chocaram. Embora sobre estas ainda, deva dizer que pecam por verborreia e cargas metafóricas baseadas na mera interpretação pessoal da realidade, muitas vezes desprovidas de suporte em factos, estudos ou trabalhos, apresentando-se assertivamente, e por vezes mesmo algo arrogantes, como se do pedestal do seu observatório Victor Hugo se arvorasse em dono da verdade. Contudo como digo, o maior problema, em termos da obra como um todo, surge na forma de autênticos ensaios, ou seja, blocos integrais de texto com pouca ou nenhuma relevância para a narrativa.

Na introdução de muitos destes blocos o narrador, que se confunde com o autor, dá-se ao luxo de dizer na cara do leitor: espere aí que agora tenho de lhe contar aqui uma outra coisa, que para mim é também muito interessante. São dezenas de vezes em que literalmente diz isto aos leitores, chegando a criar um Livro (rótulo atribuído aos conjuntos de capítulos dentro da obra) inteiro que intitula de “Parêntesis”, para dissertar sobre mosteiros, abadias e deveres religiosos, quando ainda no Livro imediatamente anterior tinha já digressionado fartamente sobre a construção de um convento e as suas religiosidades. Noutros, como “Waterloo”, discute batalhas e estratégias de guerra; para pouco depois criar outro livro “Páginas de História” e discutir a revolução de 1830 em Paris; e mais à frente ainda dedicar todo um outro livro ao dia “5 de Junho 1832” em Paris. Pelo meio temos livros como “Paris no seu átomo” em que se apresenta um estudo das crianças abandonadas nessa cidade; outro como “Calão” em que se observa o modo como nasce o calão nas ruas de Paris; ou ainda “Patron Minette” em que se discute a formação de uma quadrilha em Paris; ou por último um inteiramente dedicado à razão e funcionamento das redes de esgotos de Paris.

O que é que estes textos fazem no meio de um livro que tem como personagem principal Jean Valjean? Ou secundárias como Fantine, Cosette, Marius, Javert, ou o Bispo de Digne? Nada, porque nenhuma destas personagens é mencionada em nenhum destes capítulos. Eles foram escritos por Victor Hugo como textos autónomos, independentes da trama, alheios ao discorrer da narração, assim como aos destinos dos personagens. São textos que demonstram o conhecimento e trabalho profuso de Victor Hugo, mas são textos que demonstram incompetência pela falta de artifício narrativo no fusionar de factos e do contar de história. É verdade que isto está longe de ser algo fácil, veja-se como o cinema tem dificuldade em o fazer, acabando por optar por diferenciar-se claramente entre filmes de ficção e filmes de documentário, ou como os videojogos educativos falham cabalmente. O chamado edutainment (entretenimento educativo) é difícil de criar, mesmo num campo mais abstrato como a literatura, por isso temos tal como no cinema a ficção e a não-ficção, mas existem excepções.

Enquanto Victor Hugo se debatia sobre a metodologia a adotar na criação do seu livro de ficção carregado de factos, Leo Tolstoi avançava e mostrava como fazê-lo. Se colocados lado a lado, “Os Miseráveis” (1862) e “Guerra e Paz” (1869), Victor Hugo falha "miseravelmente". O Pierre Bezukhov de Tolstoi viveu a batalha da Invasão Francesa da Rússia, sentiu o palpitar de uma Moscovo sitiada, e com ele levou-nos a experienciar todos esses eventos históricos por dentro. Já Jean Valjean nunca chega a saber quem foi Napoleão, nem porque raio as pessoas se envolvem em revoluções. Deste modo, apesar de ambas apresentarem fortes tramas e factos reais, os modos como o fazem são não só diferentes, como providenciam aprendizagens históricas efetivas bastante distintas. Aliás, basta olhar para a história das publicações de cada uma destas obras.

Existem muito poucas obras resumidas de “Guerra e Paz”, já de “Os Miseráveis” abundam, o nosso Plano Nacional de Leitura chega a recomendar uma dessas versões, o que nos diz que as partes históricas, os tais ensaios, normalmente extirpados destas versões, precisam de acompanhamento para chegar à maioria dos leitores. Ou seja, é uma obra que claramente aconselha o estudo em escolas, para que os professores possam ir contextualizando e trabalhando os dados históricos do livro com os alunos, não os deixando à mercê de factos complexos e em torrente.

Por outro lado, terá sido também a facilidade com o que se podem recortar esses blocos do livro, sem impacto na trama, que terá conduzido ao seu sucesso popular. Existem mesmo listas de aconselhamento sobre os capítulos que se podem evitar. É muito provável que o facto de “Guerra e Paz” ser pouco lido se deva menos à sua extensão e mais às suas digressões e relato de eventos históricos que acabam por não ser tão facilmente tolerados pelo leitor comum, mais habituado a focar-se no enredo. E talvez também por essa facilidade de extrair as partes mais ensaísticas, as adaptações de “Os Miseráveis” tenham tido tanto sucesso, com mais de meia centena realizada pelo meio audiovisual, sendo que um dos musicais adaptados permanece em cena há mais de 30 anos.

Para fechar, e socorrendo-me do musical, talvez o fruto mais expressivo do sucesso desta obra, quero referir um facto apontado pelo produtor Cameron Mackintosh, que disse numa entrevista que parte do revigorar do sucesso da adaptação “Les Mis” ao chegar ao marco dos 25 anos, se deveu ao fenómeno surgido num programa da televisão inglesa, Susan Boyle. Surgindo como revelação no concurso "Britain Got Talent", a cantar o tema do musical “I Dreamed a Dream”, encarnava pela história da sua vida, o fundamento de tudo aquilo que Victor Hugo nos quis deixar como legado. No final de "Os Miseráveis" Jean Valjean pode não ser um grande conhecedor da História que o rodeou ao longo de todas aquelas páginas, mas o leitor não poderá dizer que não percebeu o porquê de Jean Valjean ter vivido como viveu.

Susan Boyle no concurso Britain Got Talent canta "I Dreamed a Dream"

julho 02, 2017

“Pry”, artefacto multimédia (livro/jogo/filme)

Esta semana participei num júri de doutoramento na UALG a propósito de Literatura Digital, em que a obra “Pry” (2015) foi utilizada como objeto principal do estudo de caso da tese. Apesar da abordagem multimédia de “Pry”, a promoção, pelos seus criadores Danny Cannizzaro e Samantha Gorman, tendeu a apresentar o mesmo como um novo tipo de livro e um potencial modelo para toda uma nova literatura. No caso da tese, versando sobre Literatura Digital, seguiu-se essa abordagem no sentido de tentar trazer para a teoria da literatura novo conhecimento. Do meu lado pareceu-me que "Pry" deveria continuar a ser visto apenas como artefacto multimédia.


Devo começar por declarar que me movo na área da Multimédia desde há décadas. Comecei pelo cinema, mas o meu interesse pelos videojogos fez com que me interessasse pela tecnologia, o que acabou por me levar a interessar por todo o tipo de experimentos tecnológicos com o cinema, nomeadamente cruzamentos com os videojogos. Aliás isso mesmo viria a ser o centro da minha própria tese. Assim tendo para algum proteccionismo da área e suas obras.

“Pry” é uma obra de grande excelência, desde logo porque apesar de procurar inovar o modelo de livros digitais através da apetecível plataforma que é o iPad — tendo em atenção que a obra começou a ser pensada em 2012, pouco depois do lançamento da plataforma, e de todo o deslumbramento criado na sociedade com as novas possibilidades que se apresentavam para todo o domínio do impresso, dos livros à imprensa — não se deixou seduzir pela “magia” da tecnologia, tendo colocado acima desta as ideias e a comunicação.


Como substrato narrativo temos um soldado retornado do Iraque, 6 anos depois da primeira invasão em 1993, a lidar com as suas memórias, e com o modo como as encaixa no seu dia-a-dia, como se relaciona com as pessoas, age e reage a diversos conflitos e como tudo isso o afeta interiormente. Temos assim um universo narrativo facilmente reconhecível que é depois trabalhado em diferentes media — texto, imagem e vídeo — e integrados numa obra multimédia. A tecnologia presente rapidamente se esvanece, torna-se transparente para que o recetor se possa focar apenas e só na história e nas suas motivações para participar na mesma.

Em sentido lato, a obra multimédia não obriga a existência de interatividade na sua relação com o recetor mas obriga a uma interação entre media processada por computador, de outro modo a multimédia sem interação com o recetor não passaria de cinema. “Pry” não se apresenta como novo meio de comunicação, é uma obra multimédia, diga-se bastante próxima das obras do meio lançadas na vaga dos anos 1990. Aliás, como muitas das Apps que foram lançadas com o iPad que fizeram surgir todo um revisitar dos anos de ouro do CD-Rom Multimédia, agora com muito melhor qualidade vídeo, imagem e som, tudo num suporte imensamente móvel, sem necessidade de ratos ou teclados, criando por meio da interface de toque a impressão de uma interação quase-transparente.


Mas aquilo em que “Pry” se destaca relaciona-se ainda assim com a discussão dos media, pela estrutura narrativa interativa desenhada para dar conta dos estados de consciência da personagem que automaticamente nos coloca frente a frente com a discussão das capacidade expressivas específicas dos meios: literatura e cinema. Assim: a literatura é reconhecida pela supremacia em dar a conhecer o não-consciente dos seus personagens, algo que foi extremamente enfatizado por movimentos como o modernismo e autores como Joyce e Woolf, naquilo que ficaria conhecido como “fluxo de consciência”; por outro lado o cinema apresenta dificuldades em dar conta desses estados interiores dos seus personagens, pela simples razão de que não pode deixar de se focar no visível, tendendo a centrar-se na consciência e suas ações externas realizadas pelos personagens.

Storyboard da interação, na qual se pode perceber como o gesto de abrir pinça, permite aceder à realidade visível (olho), e o gesto de fechar pinça, permite aceder ao não-consciente. 

“Pry” é assim uma obra multimédia que apesar de não inovar o meio, apresenta uma interativdade prenha de sentido. A relação entre a experiência literária e cinematográfica faz-se destacando a relevância do consciente e não-consciente para a compreensão dos personagens e da história, acontecendo apenas graças à interatividade. Ou seja, os autores não se deixaram levar por uma abordagem simplista de dar a experienciar cada uma das camadas da consciência por meio de cada um dos media (literatura para o não-consciente e filme para o consciente), antes o fazem de forma completamente transmediada, passando a ação de diferenciação entre os planos de consciência para a interatividade, empoderando o interactor, tornando-o responsável por aceder às camadas de consciência em função das partes da história necessárias à compreensão do arco dramático completo.

Trailer de "Pry" (2015)

Apesar de todo este meu posicionamento, acredito que as terminologias artísticas são tudo menos exatas e as suas fronteiras nunca estão encerradas. Na verdade a AppStore começou por catalogar "Pry" como Livros, só passados alguns meses é que resolveu mover a aplicação para a secção de Jogos. Contudo, nenhuma destas categorias serve o objeto bem. "Pry" é livro e mais do que livro, é jogo e mais do que jogo, é filme e mais do que filme, por isso talvez tentar reduzi-lo a qualquer uma dessas áreas seja simplesmente ingrato para com todo o trabalho multidisciplinar envolvido e o resultado final, um híbrido que espelha o fundamento da transdisciplinaridade que é no fundo o desígnio da multimédia.

maio 21, 2017

Realismo Duro

É poderosa a capacidade de Cristian Mungiu de colocar no ecrã as complexidades das vidas modernas, de a partir das suas superfícies de normalidade conseguir extrair interstícios das suas fragilidades. Algo que não pode ser estranho ao facto do filme ser dirigido mas também escrito pelo próprio, mas ainda mais ao facto de Mungiu ter pensado inicialmente seguir uma carreira como escritor em vez de cineasta, tendo começado por estudar literatura e só depois cinema. "Graduation" (2016) é um grande filme que podia ter sido um grande livro. Mungiu aborda a luta da família para suceder no meio de uma sociedade que exige competências e resultados aos seus filhos, tudo permeado pela fina linha que regula a moral entre a honestidade e o ‘danem-se todos os outros’, e por um país, a Roménia, que escapou ao comunismo e procura agora edificar-se numa nova filosofia de vida capitalista.




Mungiu não é nenhum novato, já nos deu os belíssimos “4 Months, 3 Weeks and 2 Days” (2007) e “Beyond the Hills” (2012). “Graduation” (2016) é um regresso ao contemporâneo urbano, do filme de 2007, ao desatar das teias sociais e dos sentires de cada ser individual em face das injustiças e das incapacidades de lidar com as mesmas. Mungiu apresenta-nos a história de uma família que lutou para dar o melhor à sua filha única, e chegados ao final do liceu vê como único caminho possível, numa Roménia degradada, mandá-la estudar para Inglaterra. O filme vai concentrar-se sobre o casal, os seus desejos e problemas, e o modo como a corrupção ainda contamina muitos dos meandros da sociedade romena. Contudo Mungiu não faz uma crítica de cima, Mungiu leva-nos para dentro dos problemas e obriga-nos a empatizar com os personagens, a sentir o que eles sentem, e a pensar no que faríamos no lugar deles, o que torna a experiência da obra densa e muito impactante.

Christina Mungiu na rodagem de "Graduation" dando indicações aos atores.

Em termos criativos, Mungiu consegue elevar a sua expressão por meio de um texto profundo, trabalhado muito bem pela montagem da obra nas suas intensidades, fazendo com que duas horas pareçam uma, e por uma direção de atores que assume uma naturalidade impressiva, tornando completamente real o texto. No campo mais plástico, a cinematografia apesar de naturalista é trabalhada com imenso cuidado, gratificando-nos com forte saturação, o que cria um contraste entre o deslavado comunista e o desejo do novo capitalista. Tudo isto é acompanhado por uma faixa de som na qual não existe música além da diegética (no carro e em casa), mas que está sempre carregada de sonoridades ambiente, como os telefones que tocam, as pessoas que conversam entre si, os carros, as portas, tudo mexe sonoramente, dando uma ideia de vida ativa e intensa, na qual temos de nos encontrar e trilhar as nossas difíceis escolhas. Impossível não pensar em Dardenne, Haneke ou Farhadi.

É melancólico, porque é profundamente humano, é verdade que existe vida para além dos problemas que se apresentam, porque em meio à tragédia existe sempre tempo e espaço para a comédia, mas o modo como termina o filme é bastante significativo, já que torna inevitável a comparação com o cinema americano, nomeadamente o modo como são tratados estes momentos de graduação, que nos questiona ainda mais sobre a diferença de mundos, de realidades e sentires. Por tudo isto, não admira que Mungiu tenha levado de Cannes o prémio para melhor realizador por este filme.

Trailer de "Graduation" (2016)

maio 13, 2017

"Louder than Words" (2015)

Puro fluxo de consciência fílmico. Joachim Trier a usar a câmara como Woolf usava a caneta, para nos levar ao encontro das memórias e pensamentos de múltiplos personagens que se cruzam entre as primeira e terceira pessoas, e nos dão a conhecer um mundo humano de ideias, sentimentos e perplexidades sobre a realidade que os rodeia e lhes dá vida. Podia quase dizer-se uma efabulação do ato de estar consciente de existir.




O filme centra-se sobre uma família americana da costa este, quase-europeia, que perdeu uma mãe, fotógrafa de guerra, imensamente reconhecida. O pai que ficou com dois filhos, um adulto e um outro na pior fase da adolescência. Passados alguns anos todos parecem atravessar bem as suas existências, contudo tudo é muito parte das fachadas de que cada um se serve para continuar o seu caminho.

Trier faz um trabalho impressionante no modo como escreve o desenrolar narrativo, já que apesar do fluxo permanente de trocas entre consciências e não-consciências, o arco dramático consegue emergir, progredir e intensificar-se ao longo de todo o filme, mantendo-nos completamente absorvidos e expectantes. Contribui para a dramatização o brilhante trabalho de Huppert, assim como Byrne e Eisenberg, ao que se junta, o score de Ola Fløttum e cinematografia de Jakob Ihre, que repetem ambos a colaboração com Trier.

Como disse acima, é um filme para quem gosta de procurar compreender porque pensamos como pensamos, o que nos torna indivíduos e o que nos torna parte de um todo, mas é também um filme que fará as delícias de todos os que se interessam pela arte da fotografia, do que ela representa e espelha do nosso existir.

Ver também:
Trier e a solidão da arte

março 26, 2017

“Assassin's Creed”, o filme

Tirando o IMDB vi o filme ser trucidado em quase todo o lado, apesar de sem surpresa. Virou moda dizer que os filmes adaptados dos videojogos são maus, e por mais que se façam adaptações interessantes como “Warcraft” (2016) ou “Angry Birds” (2016), nunca serão bons suficientes. Em parte isto explica-se por uma confusão de expectativas, os críticos esperam filmes elaborados quando se fala de videojogos blockbusters, e os jogadores esperam que tudo o que viveram, ao longo de dezenas e dezenas de horas, possa surgir com ainda mais intensidade em apenas duas horas de filme.



Apesar de não querer alimentar expectativas à partida, o facto de o realizador ser Justin Kurzel deixou-me bastante interessado, mais ainda quando suportado por Michael Fassbender, Marion Cotillard e Jeremy Irons. Se tinha gostado de “Snowtown” (2011), foi com “Macbeth” (2015) que tive a certeza de estar perante um realizador relevante. O modo como capta a essência do que pretende relatar, comprime e intensifica, é excelente, mas depois como constrói o universo plástico, brilha completamente. O naturalismo de “Snowtown” com uma imagem de rudeza esbatida é impressionante, e no entanto em “Macbeth” opta por uma mudança de quase 180º, recorrendo a toda a maquinaria digital para construir um universo belo e sumptuoso de luz e textura.

Assim, “Assassin's Creed” segue em quase toda a linha “Macbeth”, desde a dupla de atores  — Michael Fassbender e Marion Cotillard — à componente visual pela cinematografia de Adam Arkapaw. Por outro lado, tanto “Macbeth” como “Assassin's Creed” são adaptações, com uma não pequena diferença, uma provém do Bardo, o que acarreta responsabilidade acrescida, mas ao mesmo tempo minora o esforço necessário para conseguir uma boa estrutura, assim como uma audiência conhecedora do contexto.

No entanto, é exatamente estrutura o que mais falta no mundo dos jogos de “Assassin's Creed”. Apesar de ter jogado todo os jogos principais da série, e ter levado cinco deles até ao final, continua a persistir um rol de dúvidas sobre o que sustenta o mundo do jogo. O melhor da série sempre foi o que se vivia dentro do Animus — as viagens ao passado, cidades e personagens históricas — sendo que a história do presente foi sempre muito pouco clara, a ponto de nos últimos jogos se tornar praticamente irrelevante. O interesse da Ubisoft em criar o filme parece ter tido um objetivo claro, esclarecer as dúvidas criadas pelos jogos.

“Assassin's Creed”, o filme, responde a essas dúvidas, torna claro quem são os Templários, quem são os Assassinos, e a importância da Maçã. Podemos argumentar que a Maçã é aqui simplificada, mas não é, é antes sintetizada à sua uma essência. Ainda que possamos objetar contra a real possibilidade do seu poder, não deixa de se apresentar como uma boa premissa. Contudo, uma premissa baseada num objeto, por mais filosófico que seja, não tem como ombrear com uma premissa baseada no íntimo do conflito humano, como acontece em “Macbeth”. A Maçã não é mais do que um Graal, e como tal, objeto de enredos de aventuras infinitos que não podem impactar verdadeiramente a condição humana. Deste modo, procurar em “Assassin’s Creed” um filme que vá além do filme blockbuster de aventuras, é ridículo. “Assassin’s Creed” é um filme de aventuras, tal como os videojogos, e enquanto tal, faz muito bem o seu papel. Por isso quando vejo análises ao filme a qualificar a história de "mero Dan Brown", só posso pensar que se enganaram na sala de cinema quando aceitaram escrever a crítica.


Kurzel consegue, mais uma vez, puxar pela sua capacidade de síntese e construir um objeto que incorpora grande parte dos traços distintivos da série de videojogos “Assassin’s Creed”, desde o parkour e realidade virtual, ao mistério e thriller, passando pelo cruzamento entre a tecnologia e a envolvente histórica, incluindo o "leap of faith", está lá tudo para quem quiser entrar no filme sem preconceitos.

fevereiro 18, 2017

O filme perdido de Godard

"Une femme coquette" (1955), de Jean Luc Godard, representa a primeira criação ficcional do autor. Foi filmada em Genebra, quando tinha 24 anos, com uma câmara 16mm emprestada, sem equipa além de si próprio, e uns dinheiros conseguidos com a venda da sua primeira obra, o documentário "Opération Béton" (1955) sobre a construção da barragem Grande Dixence Dam, Suiça. Julgado  perdido, chegou esta semana ao Youtube.



"Une femme coquette" é baseada no conto "Le Signe" (1886) de Guy de Maupassant, e apresenta como premissa, uma mulher que decide seguir e imitar os gestos de flirting e sedução de uma prostituta, acabando por seduzir um homem que depois a persegue. Sendo simples, não deixa de se tornar hilário, ainda que graças à misoginia de Maupassant, o que talvez explique a razão do filme ter estado tanto tempo inacessível.

É um claro primeiro experimento narrativo, com Godard a servir-se da narração em off para dar conta do que tem para dizer. Temos um conjunto de sequências unidas por uma música clássica que atravessa os 9 minutos, sem diálogo nem qualquer outro efeito sonoro. É um filme de muito baixo orçamento, e essencialmente um filme de aprendizagem. Não podemos dizer que seja a primeira obra de um génio, porque na verdade tais obras não existem, nem no cinema, nem em qualquer outra arte. Ninguém nasce artista, menos ainda génio. Aliás, sobre isto mesmo falava Andrew Saladino no video-ensaio "There Are No Film Prodigies" (2017).

É uma primeira obra que acaba funcionando bem, ainda que por graça narrativa de Maupassant, pelo trabalho psicológico em redor do hesitar pulsante da personagem principal, que aqui fica a cargo de Maria Lysandre. Como curiosidade final, Godard realiza um cameo, já na posse da sua imagem de marca, os óculos escuros.

"Une Femme Coquette" (1955) de Jean-Luc Godard, 
completo, com legendas em inglês

fevereiro 12, 2017

Todos os Oscars de Melhor Cinematografia, desde 1927

É uma viagem alucinante este supercut que nos dá a ver, em 7 minutos, imagens de todos os filmes premiados com o Oscar de Melhor Cinematografia, desde 1927. Sente-se a história passar, sentem-se as décadas fluir, mas sente-se também a força da arte visual que se imprime em nós e nos extasia. O filme foi criado por Andy Schneider e Jonathan Britnell para o canal Burger Fiction.

"Sunrise ― a song of two humans" (1927) de
F.W. Murnau com cinematografia de Charles Rosher & Karl Struss

Abaixo deixo a lista completa de todos os filme mencionados, ano e os respetivos nomes dos cinematógrafos. No fim da lista continua a impressionar-me o feito conseguido por Lubezki.

Every Best Cinematography Winner Ever (1927-2016 Oscars)

Listagem: 
Sunrise: A Song Of Two Humans (1927/28) - Charles Rosher & Karl Struss
White Shadows In The South Seas (1928/29) - Clyde De Vinna
With Byrd At The South Pole (1929/30) - Joseph T. Rucker & Willard Van der Veer
Tabu: A Story Of The South Seas (1930/31) - Floyd Crosby
Shanghai Express (1931/32) - Lee Garmes
A Farewell To Arms (1932/33) - Charles Lang
Cleopatra (1934) - Victor Milner
A Midsummer Night’s Dream (1935) - Hal Mohr
Anthony Adverse (1936 B&W) - Tony Gaudio
The Garden Of Allah (1936 COLOR) - W. Howard Greene & Harold Rosson
The Good Earth (1937 B&W) - Karl Freund
A Star Is Born (1937 COLOR) - W. Howard Greene
The Great Waltz (1938 B&W) - Joseph Ruttenberg
Sweethearts (1938 COLOR) - Oliver T. Marsh & Allen Davey
Wuthering Heights (1939 B&W) - Gregg Toland
Gone With The Wind (1939 COLOR) - Ernest Haller & Ray Rennahan
Rebecca (1940 B&W) - George Barnes
The Thief Of Bagdad (1940 COLOR) - Georges Perinal
How Green Was My Valley (1941 B&W) - Arthur C. Miller
Blood And Sand (1941 COLOR) - Ernest Palmer & Ray Rennahan
Mrs. Miniver (1942 B&W) - Joseph Ruttenberg
The Black Swan (1942 COLOR) - Leon Shamroy
The Song Of Bernadette (1943 B&W) - Arthur C. Miller
Phantom Of The Opera (1943 COLOR) - Hal Mohr & W. Howard Greene
Laura (1944 B&W) - Joseph LaShelle
Wilson (1944 COLOR) - Leon Shamroy
The Picture Of Dorian Gray (1945 B&W) - Harry Stradling
Leave Her To Heaven (1945 COLOR) - Leon Shamroy
Anna And The King Of Siam (1945 B&W) - Arthur C. Miller
The Yearling (1946 COLOR) - Charles Rosher, Leonard Smith & Arthur E. Arling
Great Expectations (1947 B&W) - Guy Green
Black Narcissus (1947 COLOR) - Jack Cardiff
The Naked City (1948 B&W) - William H. Daniels
Joan Of Arc (1948 COLOR) - Joseph A. Valentine, William V. Skall & Winton Hoch
Battleground (1949 B&W) - Paul C. Vogel
She Wore A Yellow Ribbon (1949 COLOR) - Winton Hoch
The Third Man (1950 B&W) - Robert Krasker
King Solomon’s Mines (1950 COLOR) - Robert Surtees
A Place In The Sun (1951 B&W) - William C. Mellor
An American In Paris (1951 COLOR) - Alfred Gilks & John Alton
The Bad And The Beautiful (1952 B&W) - Robert Surtees
The Quiet Man (1952 COLOR) - Winton Hoch & Archie Stout
From Here To Eternity (1953 B&W) - Burnett Guffey
Shane (1953 COLOR) - Loyal Griggs
On The Waterfront (1954 B&W) - Boris Kaufman
Three Coins In The Fountain (1954 COLOR) - Milton R. Krasner
The Rose Tattoo (1955 B&W) - James Wong Howe
To Catch A Thief (1955 COLOR) - Robert Burks
Somebody Up There Likes Me (1956 B&W) - Joseph Ruttenberg
Around The World In 80 Days (1956 COLOR) - Lionel Lindon
The Bridge On The River Kwai (1957) - Jack Hildyard
The Defiant Ones (1958 B&W) - Sam Leavitt
Gigi (1958 COLOR) - Joseph Ruttenberg
The Diary Of Anne Frank (1959 B&W) - William C. Mellor
Ben-Hur (1959 COLOR) - Robert Surtees
Sons And Lovers (1960 B&W) - Freddie Francis
Spartacus (1960 COLOR) - Russel Metty
The Hustler (1961 B&W) - Eugen Schufftan
West Side Story (1961 COLOR) - Daniel L. Fapp
The Longest Day (1962 B&W) - Jean Bourgoin & Walter Wottitz
Lawrence Of Arabia (1962 COLOR) - Freddie Young
Hud (1963 B&W) - James Wong Howe
Cleopatra (1963 COLOR) - Leon Shamroy
Zorba The Greek (1964 B&W) - Walter Lassally
My Fair Lady (1964 COLOR) - Harry Stradling
Ship Of Fools (1965 B&W) - Ernest Laszlo
Doctor Zhivago (1965 COLOR) - Freddie Young
Who’s Afraid Of Virginia Woolf? (1966 B&W) - Haskell Wexler
A Man For All Seasons (1966 COLOR) - Ted Moore
Bonnie And Clyde (1967) - Burnett Guffey
Romeo And Juliet (1968) - Pasqualino De Santis
Butch Cassidy And The Sundance Kid (1969) - Conrad L. Hall
Ryan’s Daughter (1970) - Freddie Young
Fiddler On The Roof (1971) - Oswald Morris
Cabaret (1972) - Geoffrey Unsworth
Cries And Whispers (1973) - Sven Nykvist
The Towering Inferno (1974) - Fred J. Koenekamp & Joseph F. Biroc
Barry Lyndon (1975) - John Alcott
Bound For Glory (1976) - Haskell Wexler
Close Encounters Of The Third Kind (1977) - Vilmos Zsigmond
Days Of Heaven (1978) - Nestor Almendros
Apocalypse Now (1979) - Vittorio Storaro
Tess (1980) - Geoffrey Unsworth & Ghislain Cloquet
Reds (1981) - Vittorio Storaro
Gandhi (1982) - Billy Williams & Ronnie Taylor
Fanny And Alexander (1983) - Sven Nykvist
The Killing Fields (1984) - Chris Menges
Out Of Africa (1985) - David Watkin
The Mission (1986) - Chris Menges
The Last Emperor (1987) - Vittorio Storaro
Mississippi Burning (1988) - Peter Biziou
Glory (1989) - Freddie Francis
Dances With Wolves (1990) - Dean Semler
JFK (1991) - Robert Richardson
A River Runs Through It (1992) - Philippe Rousselot
Schindler’s List (1993) - Janusz Kaminski
Legends Of The Fall (1994) - John Toll
Braveheart (1995) - John Toll
The English Patient (1996) - John Seale
Titanic (1997) - Russell Carpenter
Saving Private Ryan (1998) - Janusz Kaminski
American Beauty (1999) - Conrad L. Hall
Crouching Tiger, Hidden Dragon (2000) - Peter Pau
The Lord Of The Rings: The Fellowship Of The Ring (2001) - Andrew Lesnie
Road To Perdition (2002) - Conrad L. Hall
Master And Commander: The Far Side Of The World (2003) - Russell Boyd
The Aviator (2004) - Robert Richardson
Memoirs Of A Geisha (2005) - Dion Beebe
Pan’s Labyrinth (2006) - Guillermo Navarro
There Will Be Blood (2007) - Robert Elswit
Slumdog Millionaire (2008) - Anthony Dod Mantle
Avatar (2009) - Mauro Fiore
Inception (2010) - Wally Pfister
Hugo (2011) - Robert Richardson
Life Of Pi (2012) - Claudio Miranda
Gravity (2013) - Emmanuel Lubezki
Birdman (2014) - Emmanuel Lubezki
The Revenant (2015) - Emmanuel Lubezki

fevereiro 05, 2017

Score de "Arrival": Jóhannsson ou Richter?

Acabei de ver "Arrival", é um belo filme, dentro da linha que Villeneuve nos tem habituado, embora não me tenha impactado. A história sendo interessante não traz nada de muito novo com os artifícios da não-lineariadade passado-futuro, discordando do modo como inicia os flashbacks, embora concordando com a premissa base da história. Contudo, não é para falar da história nem da cinematografia que trouxe aqui o filme, mas antes para falar da banda sonora e score, ou melhor, para apresentar uma questão que me deixou intrigado.


O score de "Arrival" é brilhante tendo sido criado pelo não menos brilhante Jóhann Jóhannsson, e por isso mesmo teve direito a ser editado pela muito selecta Deutsche Grammophon. Contudo a sequência de início e fecho do filme, em que o twist se dá, e ligamos o círculo narrativo, é trabalhado com uma música, "On the Nature of Daylight",  que não é de Jóhannsson, mas antes de um outro, também brilhante, compositor Max Richter.

Isto não seria surpreendente se o score tivesse sido feito por ambos os compositores, contudo como podemos ver na capa do álbum, surge apenas o nome de Jóhannsson. E se isso me incomoda, apesar de saber distinguir o Score da Banda Sonora, mais ainda me incomoda o facto da música de Richter escolhida, ter sido utilizada por várias vezes em diferentes filmes, entre os quais o "Shutter Island" (2010) de Martin Scorcese e "Stranger than Fiction" (2006) de Marc Forster, e estar editada no seu álbum "The Blue Notebooks" de 2004.

É o próprio Richter que diz que não se sentiu muito convencido em deixar usar a música em "Arrival", uma vez que já tinha sido usada em vários outros filmes, mas como ele diz também, foi o próprio Villeneuve que insistiu para o seu uso. É recorrente o uso de música de câmara de grandes autores clássicos no cinema, assim como música pop ou rock. Contudo o que questiono é, qual a razão disto quando se tem a trabalhar para o filme um compositor brilhante como Jóhannsson? E porquê ir buscar uma música que já está gasta, que os espectadores mais atentos associam a outras memórias, e memórias de outros filmes?

Max Richter, "On the Nature of Daylight", (2004)

Não posso deixar de demonstrar a minha surpresa e decepção. O final do filme perde, porque o evento que deveria ser completamente original, próprio e pertença única daquele momento cinematográfico marcante, mistura-se com todo um outro conjunto de memórias, perdendo muito do seu impacto estético, impedindo a criação de uma memória nova totalmente única.

fevereiro 03, 2017

“Shoah” (1985), monumento cinematográfico

Filme monumento, no qual a palavra é elevada a estatuto indiferente ao meio, fazendo de “Shoah” um artefacto que está para além do cinema e da literatura. 9h26m de vozes ilustradas por caras e espaços que nos contam o que os olhos viram e recriam para o espectador um mundo que inacreditavelmente existiu.
 Shoah é a palavra hebraica usada para referenciar o Holocausto

Claude Lanzmann passou 11 anos a trabalhar para este documentário, tendo definido algumas linhas de partida, de que não se afastou, e que serviram na acentuação de uma estética documental naturalista: não foram usadas quaisquer imagens de arquivo, não foi usada música, nem foi usado qualquer efeito sonoro ou gráfico, nem sequer na etiquetagem dos espaços ou pessoas. Aquilo que vemos são apenas os espaços que a câmara capta nos locais em que os eventos aconteceram, e as caras de quem fala sobre o que aconteceu nesses locais.

“Shoah” é um testemunho polifónico vivo e irrepetível. Grande parte das pessoas entrevistadas e sobreviventes do Holocausto, passados 76 anos sobre o acontecido, já desapareceram. O que nos é dito aqui, fica para a memória da espécie humana, e é por tal um documento de valor inestimável. “Shoah” dá-nos a experienciar o horror, mas de uma forma racional, sem estilhaçar as nossas emoções, sem nos obrigar a virar a cara, o impacto dá-se dentro de nós, por meio das palavras que evocam ideias e experiências  que despoletam sentimentos.
“The greatness of Claude Lanzmann's art is in making places speak, in reviving them through voices and, over and above words, conveying the unspeakable through peoples' facial expressions.” Simone de Beauvior
Não é um filme sobre o qual valha muito dissertar sobre as qualidades estéticas, apesar de presentes e imensamente poderosas, desde a cinematografia ao ritmo da montagem, que tornam a obra uma experiência intensa. Por outro lado, são muitas as evidências apresentadas que nos surpreendem, apesar de a maioria de nós ter visto e lido centenas de obras sobre o sucedido. Da simplicidade aberrante, do uso de um camião e o seu próprio monóxido de carbono para matar dezenas de pessoas de uma vez, às técnicas de propaganda psicológica para domesticar e adormecer as populações, não existem adjetivos que qualifiquem.

No final ficam algumas certezas: a espécie humana é capaz do melhor e do pior; a nossa essência assenta na sobrevivência e essa está biologicamente ligada à discriminação do outro, do que é diferente. Os Judeus foram perseguidos desde sempre pela sua diferença, e passados 2000 anos o melhor que conseguimos fazer foi ditar o seu total extermínio. A diferença corrompe-nos, temos de ser melhores, temos de ser capazes de controlar os nossos instintos ou acabaremos por nos eliminar a nós mesmos enquanto espécie deste planeta.

janeiro 14, 2017

Experienciar pela Metáfora

No final da leitura e análise de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) de Benjamin Bergen, surgiu-me esta questão: “Como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?”. A pergunta já tinha sido respondida antes por Lakoff & Johnson em "Metaphors We Live By" (1980).


Lakoff & Johnson disseram que "A essência da metáfora é compreender e experimentar um tipo de coisa em termos de outra." e consideraram-na essencial ao nosso modo de compreensão do real — "Enquanto seres humanos, utilizamos continuamente as metáforas para compreender o significado de conceitos abstractos, ou processar informação” (1980). Ou seja, a grande maioria do que verbalizamos são ideias abstractas, a única forma que temos de estabelecer a ponte com o outro ser-humano, e ele poder vir ao nosso encontro, é através da metáfora que ambos compreendemos da mesma forma.

A vida é ‘pesada’. (compreender a Vida pelo conceito de Peso)
Estás a ‘gastar’ o meu tempo. (compreender o Tempo pelo conceito de Dinheiro)
Ela vai subir até ao topo. (compreender o Sucesso pelo conceito de Espaço)
A minha cabeça não está a funcionar hoje. (compreender o Cérebro pelo conceito de Máquina)



Na verdade o nosso poder de metaforizarão vai ao ponto de desenvolver estruturas complexas de atribuição, em que os conceitos se metaforizam em função daquilo que somos enquanto humanos, e corpos no mundo, ou seja metáforas ontológicas. Assim podemos ter, segundo Lakoff & Johnson

Eventos e ações -> objetos
Atividades -> substâncias
Estados -> contentores

Um exemplo para compreendermos esta abordagem pode ser um Jogo de (qualquer coisa, futebol, cartas, etc.).

João, ‘viste o’ jogo no outro dia? (objeto: detém propriedade física)
O jogo acabou sendo muito ‘pesado’. (substância: detém propriedade sentiente)
Eu não aguentei ‘até ao final’. (contentor: detém propriedades variáveis)

A metáfora é distinta da metonímia e da sinédoque. Na metonímia não acontece comparação, de modo direto, nem se objetiva a dar a entender por outros meios, antes se produz uma substituição de termos, que de algum modo estão interligados (Ex. “Beber um copo”, o copo assume o significado do seu conteúdo). Não se metaforiza, mas antes se substitui pela sua variável dependente. Já a sinédoque, acaba aproximando-se muito da metonímia, no sentido, em que substitui o topo pelas partes, ou a parte pelo todo (ex. Lisboa caiu nas ‘mãos’ dos espanhóis).

Podemos então compreender o mundo sem metáforas? Podemos, tudo aquilo que experienciamos de forma física direta (Cima-Baixo, Dentro-Fora, Leve-Pesado, Frente-Trás, Escuro-Claro, Quente-Frio). Mas o mais interessante, é que partimos desta relação direta, tão básica e pobre em significação, para a construção conceptual de tudo o resto. Da acumulação de conceitos, camada sobre camada, chega-se à complexidade conceptual, aquela que nos permite detalhar aquilo que percepcionamos. Sem esta complexidade não conseguiríamos explicar as emoções que nos trespassam de cada vez que as sentimos na relação com o mundo. Ou seja, a construção de cada uma das metáforas, decorre de um processo causal baseado na manipulação direta (causa-efeito) dos conceitos, que quando bem sucedidas, atualizam os nossos mapas mentais do mundo.

Assim o uso de metáforas, representações do real, conhecidas por ambas as pessoas num diálogo é o que permite a comunicação. Percebemos tão bem isto, quando na leitura de um livro, o autor descreve um sentir, e nos revemos na metáfora aplicada. Mas quando por exemplo conversamos com uma criança, ou pessoa de outro país, damos por nós a gerar diferentes metáforas até encontrar aquela que faz acender a luz na cabeça do nosso interlocutor. Por não deterem o mesmo tipo de experiência que nós, por ainda serem novos ou terem experiências do mundo distintas, as metáforas não funcionam de modo automático. Isto quer dizer que o conhecimento, e a sua expressão (linguagem), funciona como uma espécie de pirâmide (metáfora para o conhecimento baseada em estrutura física) conceptual, que vai crescendo, com os conceitos a alicerçarem-se uns nos outros para ir aumentando o detalhamento e definição do mundo que conseguimos percepcionar. Quanto maior for o nosso mapa mental de conceitos, de metáforas, maior será a nossa capacidade para descrever o mundo, e ao mesmo tempo descrever-nos a nós mesmos.

O facto de eu trazer a comunicação para a discussão, interessa-me pelo que falarei a seguir sobre a literatura e o cinema, mas acaba por servir de resposta à discussão que Lakoff e Johnson produzem no final dobre livro, e que muita celeuma tem gerado, sobre o Objetivismo e Subjetivismo. O que percebemos a partir deste modo de conceptualização do mundo, baseado na metáfora, é que ele não pode decorrer apenas do mundo enquanto objeto, a realidade é construída, a factualidade não é verdadeiramente empírica já que precisa de ser recriada por nós internamente. Mas isso também não suporta a ideia de que vivemos perante uma inevitável subjetividade, em que o real é aquilo que a nossa imaginação quiser. No fundo voltamos à essência do que criou, e mantém viva, a ideia de sociedade, e que são as crenças partilhadas, produzidas pelo objetivismo (avaliação e contra-avaliação contínua da causalidade) mas devidamente sustentadas pelo subjetivismo (significação dessa causalidade) que tornam a realidade um bem comum. Considero assim, que é da comunicação humana que emerge aquilo que Lakoff & Johnson categorizam como via alternativa, o Experiencialismo, que não é mais do que uma atualização do 'pragmatismo' de Dewey que o levou a definir a Estética a partir da Experiência. (Do mesmo, modo tenho vindo a defender, do ponto de vista académico, a Comunicação como ponte essencial entre a Arte e a Tecnologia.)

E aqui surge então a parte a que pretendia chegar, e que no último texto aqui dava conta, falando da especificidade do cinema: “Como filmar o Pensamento?”. Na verdade o cinema está limitado a mostrar aquilo que percepcionamos de modo direto, pela visão e audição, já que regista a realidade. Ao contrário do texto que usa símbolos para descrever esse real. Contudo, como percebemos a literatura não usa esse símbolos para dar a ver o pensamento. As tradicionais descrições psicológicas do realismo russo (ex. Dostoiévski), são poderosas, não pelas palavras ou frases empregues, mas antes pela metaforizarão do interior dos personagens. Talvez por isso mesmo, Eisenstein, nos anos 20 do século passado, tenha tentado um tipo de expressão cinematográfica, que ficou conhecida por montagem intelectual, que nada mais é do que a criação de metáforas visuais (mais detalhe).

Excerto de “Strike” (1925) de Sergei Eisenstein

Não podemos esquecer que por esta altura o cinema não continha som, por isso tinha de se expressar o mais possível por meio das imagens em movimento. O cinema acabaria por progredir tecnologicamente e nos anos 1930 assimilaria o som, transformando-se numa arte audiovisual completa. A partir daí começou a contar com o poder da linguagem para expressar muito do que não conseguia mostrar. Isto não quer dizer que o cinema passasse a mera filmagem de cabeças falantes, já que isso iria contra o que o separava das outras expressões narrativas (oralidade e literatura). O cinema continuaria o seu caminho na tentativa de mostrar o que vai dentro da cabeça dos personagens, mas abandonaria a montagem intelectual, pelo distanciamento que cria face à ação, substituindo-a pela linguagem e música, mas focando-se cada vez mais em mostrar efeitos perceptíveis pela visão e audição. Daí que nesses anos 1930, o cinema alemão tenha criado aquilo que ficou conhecido pelo Expressionismo, uma tentativa de plasmar na imagem os sentimentos dos personagens, algo que também acabaria por atingir a saturação.

Hoje, passadas décadas, e milhares de experiências, o cinema desenvolveu toda uma forma de comunicação própria, com a qual os espetadores estão em sintonia, e que é utilizada por todos os criadores de imagens audiovisuais em qualquer canal, da televisão ao vídeo, online, móvel. Essa constitui-se por uma amalgama perfeita entre cinematografia, montagem, música (dietética e extra-diegética) e linguagem (voz off, monólogo e diálogo), que em conjunto trabalham para significar.

Sem ainda ter suficientemente confrontado, nem experimentado empiricamente, deixo uma hipótese: A imagem em movimento dedica-se acima de tudo a mostrar o real experiencial direto, sobre o qual a trabalham de modo metafórico a música e a palavra.

janeiro 13, 2017

Como filmar o pensamento

O Nerdwriter traz-nos esta semana mais um brilhante ensaio, "Sherlock: How To Film Thought", no qual dá conta cabal do modo como as séries de televisão ombreiam com o cinema. Se até aqui falávamos do modo como estas dominavam a arte do storytelling, passámos agora a falar da arte completa do audiovisual, do uso e avanço da linguagem que torna o audiovisual um meio expressivo. O cinema deixou de ser o farol e passou a ser apenas mais um dos imensos suportes. O cinema é hoje o mesmo que televisão, vídeo, web, móvel, tudo suportes. É a linguagem do audiovisual que fundamenta todos estes canais, a arte da fusão entre imagem em movimento e som.




Neste ensaio é dissecada uma cena de 3m42s de um recente episódio da série "Sherlock" (2010-..), no qual Nerdwriter demonstra algo verdadeiramente importante. O cinema, o audiovisual, sempre teve dificuldade em dar a ver o pensamento, essa capacidade esteve durante imenso tempo resguardada para a literatura. A razão é simples, o pensamento é algo interno, introspectivo e subjetivo, enquanto o audiovisual é uma arte especializada em mostrar o externo e o objetivo, ou seja é uma forma expressiva dada à extroversão. Por isso de cada vez que este tem de mostrar o que alguém está a pensar, sentir, ou refletir, é complicado. Invariavelmente as ideias acabam sendo traduzidas em ações, sequências externas, que possam dar a compreender o que sente aquele personagem, porque reage como reage, e assim passar a ideia do que está a pensar a pessoa.

Ora neste episódio de Sherlock, procurou-se antes dar a ver o pensamento. Pegou-se na mente de Sherlock, naquele momento em que ele está prestes a descobrir, a ter a revelação, e pegou-se no melhor que a arte audiovisual tem — a montagem e a cinematografia — e plasmou-se no ecrã, literalmente, aquilo que lhe está a passar pela mente. O Nerdwriter termina dizendo que esta é uma das sequência original e admirável.

"A Requiem for a Dream" (2000) Darren Aranofski

É claro que o Nerdwriter se deixa levar pelo entusiasmo, desde logo quando diz que não há CGI, quando várias das sequências estão prenhes de efeitos visuais, mas especialmente porque isto não é novo. Mais uma vez o cinema já lá tinha chegado antes, e o tinha mostrado, e até de forma mais efetiva. Se gostaram desta sequência, recomendo-vos vivamente "A Requiem for a Dream" (2000) do brilhante Darren Aranofski. A mim contudo, resta-me uma questão, porque razão só se procura mostrar o interior da mente dos personagens quando eles estão sob efeito de drogas!?

"Sherlock: How To Film Thought" (2017) de Nerdwriter

dezembro 29, 2016

Aprender, esquecer e memorizar os cânones culturais

Durante décadas consumi milhares e milhares de filmes, primeiro tentando visualizar todo o cânone da arte, depois tentando acompanhar tudo o que se ia produzindo em cada ano. Há 3 anos parei, estava cansado. Mas a obsessão consumista não tinha parado, simplesmente mudou de meio, passei para os livros. Desde então tornei-me obsessivo com a leitura do cânone da literatura. Nos últimos meses tenho-me questionado sobre o porquê deste consumo, o seu fundamento e o verdadeiro interesse.


A arte e o entretenimento — cinema, literatura, banda desenhada, videojogos, teatro, ballet, ópera, música, dança, séries tv — tornaram-se centrais na experiência das nossas vidas no início do século XXI. Muito do que somos, do que edificamos em nós, enquanto seres humanos, é-nos inculcado por estas duas formas de produção de cultura. Continuamos a ser muito daquilo que as pessoas que nos rodeiam são, a cultura vai muito para além dos artefactos que produzimos, mas as transformações produzidas na sociedade têm agravado a dependência destes objetos. Ou seja, vivemos cada vez mais de forma individualizada, a partilha direta tem-se reduzido, graças à aceleração das vidas e também à consciência dos perigos. Por outro lado, a cultura na forma de registos perenes e móveis — informação digitalizada — aumentou drasticamente, o que também explica o declínio das formas de arte e entretenimento que não se conseguiram adaptar a tal, como o teatro ou o ballet.

Tendo em conta esta perspectiva do mundo contemporâneo, e não entrando na discussão das suas desvantagens ou benefícios, interessa-me discutir um dos seus grandes problemas: o consumo. Tendo em conta a rede de informação que criámos, a internet, passámos a poder não só aceder a praticamente tudo aquilo que é produzido nestas formas de arte e entretenimento registáveis, como passámos a confrontar-nos com todo o tipo de grupos de pessoas que as consomem. Estas novas condições criaram assim um fundo inesgotável de informação, de conteúdos de arte e entretenimento, e ainda conhecimento sobre as mesmas, que nos compelem a consumir.

Quem nunca passeou os olhos pelas listas dos diferentes cânones? — “os livros que deve ler antes de morrer”, “os filmes que todos os realizadores recomendam”, “os videojogos que marcaram a arte”, “os álbuns que mudaram o mundo”, “as séries que mudaram a televisão”, etc. etc. As próprias listas tornaram-se objetos de interesse, com os media a especializarem-se na criação das mesmas, e sítios web a trabalharem para a sua agregação. Mas não é sobre as listas que me quero deter, que considero relevantes, e que não são novas, basta olhar ao belíssimo trabalho de Umberto Eco, “The Infinity of Lists".

Munidos de listas e meios para aceder às obras, resta o seu consumo, para o que precisamos de tempo. Como o tempo, ao contrário das listas, não é infinito, vemo-nos obrigados a fazer escolhas, e são estas que vão gerar enormes doses de ansiedade. O que deixar de fora? Será que não estamos a perder? ‘Quem foi que tinha dito que esta era crucial’ ler, ouvir, ver, jogar? O conflito interno emerge, procuramos ainda mais informação, resenhas, livros, sítios, e ouvimos pessoas, especialistas e amigos, pessoas que respeitamos, e vamos tomando decisões. Alguns de nós tornam-se obsessivos.

Porquê e para quê?
Separando a arte do entretenimento, podemos reduzir drasticamente o que consumimos. A arte representa a novidade, o que ainda não conhecemos e temos de nos esforçar para compreender. O entretenimento limita-se a pegar no que já existe, redecorar e voltar a dar, para manter a nossa atenção ocupada sem esforço, para nos entreter. Assim, se deixarmos de lado o entretenimento, podemos questionar-nos sobre as razões de querermos, desejarmos, ou necessitarmos de consumir mais e mais arte.

Para responder a tal, precisamos de, mesmo dentro da arte, reduzir mais o espectro. Não olhar a arte como tudo o que seja distintivo, mas antes a delimitar àquilo que é capaz de produzir novos significados, capaz de alterar as nossas percepções do mundo. É isto que motiva a arte, é isto que nos motiva a querer mais, e é também isto que gera ansiedade, por sentir medo de não estarmos a aceder a todos esses novos mundos, novas experiências.

Mas é aqui que devemos parar e refletir sobre o para quê? No século XXI já percebemos que mais importante do que possuir coisas é viver experiências, são estas as responsáveis por nos edificar enquanto pessoas. Mas pelo que fui dizendo acima, as experiências transformaram-se em objetos de consumo. Até que ponto estamos verdadeiramente a experienciar, não estaremos antes a consumir, a deixar-nos levar pelo simples desejo de possuir? Já não o possuir materialmente, mas agora o possuir de informação.

O erro
É neste sentido de posse que surge o erro. Diga-se, uma posse fortemente reconhecida pela sociedade, veja-se como reage a programas como “Quem quer ser Milionário!”. Este erro define-se no modo como se conceptualiza a equivalência entre a detenção de informação e o conhecimento. Tendo em conta que o conhecimento reside na nossa mente, existe a tendência para tentar aplicar à sua compreensão, metáforas materiais. Como as coisas materiais se podem arrecadar numa garagem, a informação digital pode ser guardada em registos, torna-se natural pensar que o o conhecimento pode também ser simplesmente arrumado na nossa memória.

Diferença entre deter factos e deter conhecimento.

O problema é que o conhecimento não é informação, não é mera detenção de factos. De nada adianta deter na memória todas as datas dos reinados portugueses se nada fizermos com elas. Conhecer é mais do que deter informação, é a capacidade de criar com essa informação. Requer detenção mas também interligação de factos, em que o todo se torna distinto das partes, criando novos mundos mentais, produzindo aquilo a que chamamos imaginação, potenciador de novas ideias, novas ações, novas decisões.

A questão que se coloca então é, como podemos fortalecer o nosso conhecimento a partir daquilo que experienciamos, ou consumimos, tendo em conta que a relevância para nós assenta mais na criação de interligações entre factos, do que na detenção dos mesmos?


Como?
Poderíamos cair na tentação de acabar com o consumo exterior e dedicarmo-nos apenas a trabalhar as ligações entre os factos que já detemos. Contudo isso acabaria por nos levar a um beco conceptual. Mesmo para quem procure a especialização, é possível dentro da mesma encontrar sempre novas perspectivas que aprofundem essa especialização. Ou seja, o que nos interessa então é perceber como se produzem essas novas perspectivas, que mais não são do que diferentes formas de interligar os factos.

Podemos dizer que a única forma de aceder a essas formas diferentes de interligação é aceder a diferentes mundos que interligam factos. Ora esses mundos são produzidos por pessoas, seres-humanos, cada um de nós. Daí que seja vital para a nossa sobrevivência a interação humana, algo que o nosso sistema biológico recompensa tão intensamente. Montaigne descobriu empiricamente que as obras nunca poderiam substituir as pessoas, a experiência, mas na verdade muitos de nós não estão ao alcance da interação com pessoas de diversas profissões, culturas e conhecimentos. Daí que as obras sejam aquilo que nos resta, e continuem a ser um veículo fundamental na ampliação do conhecimento.

Mas se aquilo que buscamos são as interligações, e não os factos, e se estas existem na forma como cada ser humano as cria, então em vez de nos centrarmos nas obras, deveríamos centrar-nos nos seus criadores. Ou seja, interessa compreender quem são, como conduziram a interligação dos factos. Ficarmos apenas pelas interligações presentes nas obras, poderá levar-nos de volta à mera memorização de factos. O que queremos saber é como foram produzidas as interligações, mas para isso precisamos de compreender as particularidades que constituem o seu criador, como são potenciados os mundos que nos apresenta.

No fundo estamos a dizer que cada autor possui uma forma particular de configurar o mundo e dar-nos a sorver. Seja em livro, filme, etc. É da sua experiência do mundo que advém a obra, da sua experiência particular que lhe permitiu construir uma configuração pessoal. De certa forma isto explica porque o consumo de múltiplas obras do mesmo autor tende a não nos dar muito mais. Não é uma questão de incapacidade do autor, é antes porque ao procurarmos diferentes interligações, é difícil encontrá-las numa mesma pessoa. Isto acaba por estar em consonância com o que dissemos acima e que separa a arte do entretenimento. As múltiplas obras de um artista, são no fundo repetições, são variações dos modos como configura e interliga o mundo percepcionado (podemos aqui exceptuar as obras criadas entre períodos de grande diferença de idade/experiência).

A memória
Dito tudo isto, resta ainda compreender como funciona o nosso sistema interno de registo, a nossa memória. Porque se refleti sobre tudo isto não foi apenas para concluir que me interessa apenas ler um livro de cada criador. Existe algo mais por detrás de tudo isto, algo que diz respeito a nós recetores, e que tendemos a esquecer, literalmente.

Quando paramos para analisar o que consumimos — livros, filmes, videojogos, etc. — percebemos muito rapidamente que aquilo que experienciámos e que muito nos disse no dia em que terminámos, passado um mês já quase desapareceu. Quando ao fim de ano queremos recordar o que disse um personagem, o que fez, ou o que o impediu de fazer algo, percebemos que essa informação já não existe na nossa cabeça. Detemos alguns factos, mas na generalidade as interligações entre esses desapareceram.

Quanto recordamos de um livro ao longo do tempo (de Timothy Kenny)

Há uns anos dei-me conta disto com os filmes que via. Por isso passei a escrever quase sempre sobre os filmes aqui no blog. Era uma forma de fortalecer a memória. Contudo, com a experiência dos anos, fui percebendo que mesmo isso não fazia mais do que atrasar o esquecimento. Por outrolado, quando confrontava memórias de filmes vistos no ano anterior com filmes vistos há 20 anos, notava estranhamente que os que tinha visto há 20 anos se mantinham mais vivos dentro de mim!

Poderia ser uma questão de qualidade fisiológica da memória, jovem versus envelhecido. Isso é muito propalado no discurso popular, ‘estou a ficar velho, esqueço-me de tudo’. Contudo, quando comparei efetivamente o que acontecia, reparei numa diferença central, o tempo de exposição. Quantas vezes terei visto obras maiores e menores, como “Apocalypse Now”, “Dead Zone”, “Alien”, “Amadeus”, “They Live”, “Rambo”, “2010”, “Bleu”, “The Doors”, “Wild at Heart”, não menos de 10 vezes, alguns mesmo mais de 20. Por outro lado, filmes que considerei obras-primas na última década, como “Blue Is the Warmest Color”, “Her”, “Gravity”, “The Turin Horse”, “Enter the Void”, “Tuesday After Christmas”, “Sangue do meu Sangue”, “About Elly”, “The Return”, não vi nenhum mais de uma vez. Ou seja, a exposição repetida tem ser relevante no perdurar das memórias.

Na verdade, as memórias não são mais do que interligações neuronais, e por isso, se essas não forem reforçadas tendem a desfazer-se (perceber melhor como funcionam as memórias jogando "Neurotic Neurons" ou lendo um pequeno texto do Guardian). Ou seja, se tiver lido um livro ou visto um filme hoje, e trabalhar sobre o seu conteúdo, aprofundar o que vi, estruturar ideias sobre o mesmo (exemplo de técnicas), de modo continuado no tempo, provavelmente ao fim de um ano ainda terei boas memórias do mesmo, porque fiz com que as ligações permanecessem ativas. Mas isto funciona apenas no modo continuado, porque como dizia acima, fazer uma análise no momento e nunca mais voltar a ela, apenas atrasa o esquecimento.

Interligações neuronais

Esta ideia, de continuamente trabalhar sobre algo que se aprendeu, é uma técnica com várias décadas, nos campos da memorização e aprendizagem, denominada de "prática de recuperação" (retrieval practice). Ou seja, não basta saber que sei (que li, vi, ou joguei) preciso de em cada momento, conduzir-me à extração da informação sobre o que sei. A abordagem trabalha a outra extremidade da memória, ou seja, a repetição de leitura ou visualização de obras repõe a memória pela repetição na entrada de informação, enquanto que a repetição de acesso à memória, repõe pela saída, trabalhando ambas no aumento da solidificação das interligações. Conto em breve trazer aqui mais algumas ideias sobre a memória, depois de acabar de ler "Make it Stick" de Henry L. Roediger.

Conclusão
A principal conclusão que retiro da minha experiência com os cânones culturais, do que aprendo, memorizo e esqueço, é que mais do que aceder ao máximo de obras, de modo desenfreado e obsessivo, interessa encontrar um conjunto de obras que falem connosco. Que não podendo nós contactar com os seus criadores, possamos usar as suas obras para com eles conferenciar. Tendo feito esse trabalho, interessa voltar a essas obras, voltar, voltar, e voltar. Trabalhar sobre as mesmas, saber mais, aprofundar sobre quem as fez, sobre o que verdadeiramente interligam, e como interligam. Compreender para aprender, aprender para imaginar, repetir para manter viva a imaginação.

Fica assim traçado o meu objetivo para o ano 2017: reler, rever, e rejogar.

dezembro 16, 2016

Instintos da violência

Trago uma curta-metragem francesa que ao longo de 15 minutos me fez regressar ao passado, mais propriamente a meio da década de 1990, altura em que saiu um dos filmes mais emblemáticos da cinematografia francesa dessa década. A opressão de quem vivia nos bairros sociais de Paris, nos HLM, palcos da cultura underground do momento, alimentava a cena musical, de onde emergia o rap francês, tendo sido plasmado o seu auge em "La Haine" (1995) de Mathieu Kassovitz.




Passados 21 anos, Karim Boukercha revisita o filme original, numa tentativa de perceber o que mudou desde então, se é que algo mudou! "Violence en Réunion" (2016) apresenta Vincent Cassel, na altura um desconhecido, hoje uma estrela internacional, como Vinz, o personagem principal de "La Haine". Para alguns, a curta é uma espécie de "La Haine 2".

O mais relevante da curta, que se pode descortinar a partir do título, é que se na altura de "La Haine", muito se discutiu sobre a violência, as suas origens, motivações e explicações, acaba sendo aqui totalmente posta a nu, sem qualquer tipo de pejo, nem pudor, o seu problema base, ainda que os adjetivos surjam em defesa e atenuação.


"Violence en Réunion" (2016) de Karim Boukercha