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janeiro 28, 2016

Pyongyang, quando o real não chega

Esta semana escrevi para o IGN um texto sobre a diferença entre contar histórias baseadas na realidade e na fantasia, defendendo que o facto de basear as histórias numa “verdade”, não as torna mais relevantes. O que digo aí não podia assentar melhor no problema com que me deparei ao ler "Pyongyang: A Journey in North Korea", um livro de banda desenhada escrito por Guy Deslile, no qual relata os dois meses que passou na Coreia do Norte a trabalhar num filme de animação.


Pyongyang” revela-se uma espécie de obra voyeurista, tal câmara escondida, em que a objetiva era o olho do autor, e o gravador as suas memórias. Como tal funciona muito bem, a obra dá conta da vida diária dos habitantes daquela cidade, do que é possível aí ver e visitar enquanto cidadão estrangeiro, e em parte do que aquelas pessoas pensam sobre determinadas temas. Tem valor enquanto registo que reporta um real pouco conhecido, dá conta de um fluxo temporal num espaço concreto, mas fica-se por aí.

"Verdade e Fantasias nas Histórias", texto escrito esta semana para o IGN

Pyongyang” não tem história, porque é apenas descrição do dia-a-dia de quem passou dois meses num local. O arco é apenas delimitado pelo dia de chegada e dia de partida, não havendo sequer o esforço de esboçar um climax. Mas se fosse apenas esse problema, menos mal, poderíamos dizer que estávamos perante uma tentativa de documentar o que se viu. Contudo o que temos não é um relato neutral, é um relato enviesado pela cultura de quem olha, por acaso a minha (ocidental), mas que nem sequer crítica chega a ser, menos ainda interpretativa, fica-se antes pela mera chacota, não dos líderes mas dos seus cidadãos, um desrespeito que chega por vezes a roçar a xenofobia.

Não se trata aqui de defender o regime, esse é irrelevante nesta discussão, trata-se de ser capaz de compreender o real, e isso implica muito mais do que descrever edifícios, regras, proibições, atrasos tecnológicos, requer capacidade para compreender as pessoas com que se interage, compreender a vida que o sistema como um todo germina. Mas para isso era preciso que o autor fosse dotado de mais mundo, das ferramentas necessárias ao estabelecimento de comparações que lhe iriam abrir horizontes para a interrogação e o questionamento. De outro modo, ficamo-nos por um conjunto de piadas, algumas de gosto duvidoso.

Quanto ao traço não ajuda muito, serve e segue o relato, no seu tom vulgar e despretensioso, conseguindo talvez como melhor feito dar conta do vazio e da descaracterização que constitui o panorama da cidade de Pyongyang.

janeiro 16, 2016

"Habibi", criatividade épica

Craig Thompson está no meu Top 10 de sempre com "Blankets", por isso seria difícil superar-se, mesmo que para tal tenha investido sete anos de trabalho, e tenha construído uma banda desenhada de quase 700 páginas em que cada página parece uma tela. Ainda assim “Habibi” é um épico, porque nos conta uma história na senda de "As Mil e Uma Noites" envolvida por uma arte que obedeceria aos mais requintados requisitos dum sultão.


A narrativa centra-se nas arábias, seguindo nós duas crianças até à idade adulta, uma menina vendida para poder alimentar a sua família e um menino negro órfão, que se encontram e iniciam uma amizade eterna, num barco abandonado no meio de um deserto. O desenvolvimento das suas histórias vai focar-se sobre a sobrevivência humana, nomeadamente sobre as necessidades básicas do ser humano — comida, sexo, e segurança. Se a menina sofre fisicamente pela volúpia dos homens, o menino sofre mentalmente os efeitos dessa volúpia. O seu crescimento dá-nos o desenvolvimento da história que leva ambos a atravessar uma cordilheira de flagelos, que acaba por tornar o livro duro, por vezes doloroso, até roçar o insuportável.

Existe alguma crítica feita a Thompson, e que já tinha surgido com Blankets, com a forma como este lida com o sexo, uma espécie de culpa ou sofreguidão parece persegui-lo, no modo como este o descreve como a fonte de todos os males. Em Habibi isto é bastante mais forte, e se posso perceber essa crítica, percebo ainda melhor Thompson porque acho que aquilo que me aproximou tanto de Blankets foi exatamente essa sua visão peculiar do mundo, com a qual me identifico tanto. Aqui vai muito mais longe, mas o facto de o fazer numa realidade distante diminui em parte a negridão discursiva, porque lhe confere um certo traço de exageradamente específico da fantasia. A questão sexual não é apenas aqui trabalhada enquanto necessidade básica da espécie, Thompson serve-se dela para discutir todo um conjunto de outras questões que vão desde a religião, nomeadamente procurando juntar o Islamismo e o Cristianismo por via das parábolas do Corão e da Bíblia, aos efeitos do capitalismo, das suas lógicas de sobrevivência, da oferta-procura ao exagero do consumo e seus efeitos no planeta.

O que Thompson nos diz neste quadro está intimamente ligado ao que discutia há umas semanas atrás num texto para o IGN sobre as Preferências Sexuais do Entretrenimento 

Até aqui temos tudo aquilo que deveria fazer deste livro mais uma obra-prima, e assim seria não ocorressem vários problemas ao longo do livro, desde logo a extensão que se torna injustificada dada a repetição temática ao longo da narrativa, nomeadamente a repetição dos aspetos sexuais e religiosos que à medida que vão surgindo vão desgastando a nossa aceitação. Contudo o maior problema para mim surge do lado das indefinições de espaço e tempo, que acabam por não solidificar a argumentação. Percebo que ao criar um tempo em que as arábias medievais se cruzam com o industrialismo do século XX, estava a tentar desenhar um mundo fábula, sem fixação no real, contudo e em conjunto com as parábolas religiosas que vão surgindo, acaba por tornar tudo não só difuso mas confuso, perdendo em credibilidade narrativa. Provavelmente esta confusão que se gera advém mais pelo lado simbólico que suporta a narrativa central, mas ao qual só podemos chegar detendo o background correcto, que não é o meu caso. Falo das questões existenciais religiosas à volta do grande conceito dos 7 Céus que funciona como camadas de significado da nossa existência, e que o livro refere sem explicar, assumindo que o leitor já conhece.

O conceito é referido por Thompson em entrevista como base estrutural da narrativa, mas apesar de perceber o objetivo, nada me move a ir em busca da sua definição, ou da tentativa de compreender em maior profundidade o alcance do seu simbolismo. Poderia com esse conhecimento chegar a uma compreensão mais completa das intenções de Thompson, mas uma conceptualização do mundo que é pura mitologia, sem qualquer base de sustentabilidade científica, não é capaz de gerar em mim qualquer curiosidade para ir atrás e tentar saber mais.


Em suma Habibi é um portentoso trabalho de arte gráfica que luxuosamente serve uma história de contornos épicos, profundamente investigada e caracterizada, que vale a pena ser experienciada, ainda que carregue alguns excessos de simbolismo e flagelo humano.

novembro 11, 2015

Arte do storytelling sequencial

Matthew Inman criou sozinho um dos sites de cartoons mais visitado da web, The Oatmeal, sendo capaz de gerar mais de quatro milhões de visitas ao longo de um mês. A banda desenhada de hoje, "It's going to be okay" é baseada na história real de uma personalidade bem conhecida dos amantes de séries de ficção científica televisivas. Se a personagem é um ícone e a história profundamente inspiradora, o mais interessante para mim acabou sendo a belíssima arte sequencial criada por Inman.


Tal como definida por Eisner e McCloud a arte sequencial delimita-se no conjunto de imagens desenvolvidas em sequência para contar uma história, normalmente mais ligada à banda desenhada, mas podendo aplicar-se ao cinema e cinema de animação, já que estes não passam de 24 imagens por segundo, criando na nossa mente uma mera ilusão de movimento. No caso da banda desenhada, a sequência pode surgir de qualquer forma, na vertical, horizontal, direita para esquerda, esquerda para direita, sendo apenas relevante que exista sequência entre as imagens.

Ora a sequência apresentada nesta banda desenhada acontece na vertical e em quadros únicos, o que pensado de raiz pelo autor, abre espaço a toda uma potenciação do storytelling, nomeadamente na gestão da informação e expectativas que se vão criando na cabeça do leitor. Isto não tem nada de novo, o que aqui se releva é antes a mestria com que Inman geriu toda a sequência de imagens e textos, controlando a história e as nossas emoções com um ritmo absolutamente perfeito.

Leiam a história em "It's going to be okay".

setembro 05, 2015

Síria: clima e geografia de um conflito

Trago um trabalho em banda desenhada, "Syria's Climate Conflict" (2014) que procura dar conta da origem dos conflitos na Síria a partir de uma perspectiva completamente distinta. Os conflitos na Síria têm alguns anos, e à primeira vista parecem ter emergido como efeito de contágio da Primavera Árabe, levantamentos populares iniciados na Tunísia e Egipto em 2011 que se alastraram a vários países do Norte de África e Médio Oriente. Outro elemento que surge como potencial motor do conflito, são as redes terroristas e os efeitos do ataque dos EUA ao Iraque e Afeganistão em 2001, que em vez de selar o problema terá contribuído ainda mais para tornar toda aquela região ainda mais instável.



O trabalho realizado pela jornalista Audrey Quinn e pela ilustradora Jackie Roche (do belíssimo "Underemployed") aponta num sentido completamente distinto, indo à causa inicial do despoletar dos problemas na Síria. É verdade que estamos tão cientes das versões explicativas acima enunciadas, que esta que aqui se apresenta à primeira vista mais parece uma desculpa, ou uma tentativa de limpar a imagem de alguma coisa. Talvez porque seja mais fácil ter rostos para culpar, porque procuramos explicações que possamos controlar. Mas aquilo que nos é aqui relatado não só faz muito sentido, como explica muitos dos problemas de toda aquela região.

Os problemas do Médio Oriente e Norte de África não são originados apenas pelas mudanças climáticas, embora também, mas fazem parte da própria região, tornando-a difícil de habitar, mais ainda de criar qualidade de vida que suporte o exponencial aumento populacional do último século. A geografia foi e continua a ser fundamental no suporte da vida humana à face do planeta, não aceitar isso faz parte da nossa incapacidade para nos resignarmos, por outro lado, compreender isso poderia servir para alterarmos todo um estado de coisas, não apenas dos regimes políticos e das populações, mas também da forma como aqueles que vivem em geografias privilegiadas, como é o caso da Europa. Para compreender o impacto da geografia sobre a resiliência da espécie humana, aconselho vivamente a leitura de "Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies" (1997) de Jared Diamond.

Seguir para "Syria's Climate Conflict" para ler a banda desenha completa online.

julho 25, 2015

"Logicomix"

Brilhante. Em múltiplos sentidos, “Logicomix” impressiona, e brilha mesmo na forma como coloca o storytelling ao serviço da divulgação de ciência, sem nunca se deixar comprometer. A banda desenhada como medium pode servir qualquer forma expressiva, contudo como noutros media, a forma mais poderosa de envolver os leitores assenta no formato narrativo, no contar de histórias. Dessa forma os autores deste livro, que aborda um dos assuntos mais complexos e abstractos da ciência, optaram por garantir primeiro o contar de história, e só depois a verdade. Pode parecer um compromisso falhado, mas não o é, e acima de tudo deveria servir de exemplo a todos aqueles que sonham em usar o cinema ou os videojogos para educar.



Em termos concretos “Logicomix” (2008) apresenta-se como a história do surgimento da Lógica Matemática, que viria a criar as bases para a criação do computador, nomeadamente das linguagens de computação. Para contar esta história os autores utilizaram vários artifícios narrativos, desde logo incluindo-se a si próprios no livro, discutindo as abordagens e bifurcações da história que queriam contar. Como bons storytellers, os autores não se focaram na abstracção - “o que é a lógica?” -, mas antes nas pessoas que a fizeram surgir. Deste modo Bertrand Russell é usado como o veículo condutor e estrutural da teorização, fazendo uma história sobre a lógica soar a biografia de Bertrand Russell. Reconhecido como uma das mentes mais brilhantes da nossa História, Russell encarna na perfeição o papel de herói, que é depois servido por encontros não menos fantásticos com outros ícones da história das ideias, tais como Ludwig Wittgenstein, Kurt Gödel, Georg Cantor, Henri Poincaré, John Von Neumann, Alfred North Whitehead, Gottlob Frege e David Hilbert.



Uma das opções mais inteligentes dos criadores assentou exatamente na encenação dos encontros entre Russell e os seus colegas. Como admitem no final do livro, num texto em forma de adenda, muitos desses encontros nunca existiram, por várias razões, embora sejam plausíveis no sentido em que as ideias circularam entre eles. Contudo para o contar da história, para lhe garantir verosimilidade, crença por parte de quem lê, são vitais. Ou seja o design da narrativa, não se quedou por seguir paulatinamente a história real, antes a ajustou às suas necessidades, procurando de qualquer forma não ferir nunca o essencial do que se procurava transmitir. Deste modo garante-se o envolvimento do leitor, a sua total atenção, permitindo que o núcleo do que se quer transmitir passe.

Tudo isto só pode ser aceite, desde que como aqui acontece, seja admitido na própria obra, de outro modo estaríamos a induzir em erro os leitores (um problema que é inclusivamente abordado em termos filosóficos no próprio texto, no sentido da auto-referenciação e da mentira no discurso previamente assumido como mentira). Aceita-se também porque ganhando o storytelling, ganha a capacidade de comunicar, ganhando a capacidade de assimilação e compreensão por parte dos leitores, que diga-se neste caso não é de somenos, já que o assunto em questão é verdadeiramente complexo.


Assim sendo a importância deste livro vai muito para além da sua capacidade de divulgar às massas ideias altamente complexas, o seu formato é uma lição para todos aqueles que procuram novas formas de comunicação, nomeadamente assentes no storytelling ou jogos. Este livro demonstra que é possível, a prova está que no final da leitura, poucos de nós não sentirão admiração pela ciência e espírito científico.

O livro foi entretanto publicado em Portugal pela Gradiva, no ano passado.

Links de interesse:
Página do livro
Trailer do livro

maio 16, 2015

Subempregados

"Underemployed" (2015) é uma banda desenhada autobiográfica de Jackie Roche que aborda o impacto da Grande Recessão sobre os recém-licenciados, apontando a quase ausência de emprego qualificado, incapaz de dar conta de vidas cheias de sonho e energia.



"Underemployed" (2015) de Jackie Roche

A Grande Recessão nasceu do rebentar da crise imobiliária nos EUA, em 2007/2008, tendo um impacto muito para além da geografia dos EUA, atingindo praticamente todo o globo, a tempos diferentes. Juntamente com esta, o avanço tecnológico passou a funcionar como tábua de salvação na redução de custos, para empresas e instituições, gerando ondas sucessivas de diminuição de emprego desde então. Em breve estaremos a fazer 10 anos pós-início da crise, e esta não deu ainda quaisquer sinais de recuperação. Porque se até aqui quem detinha muito dinheiro ia investindo facilmente na bolsa, em bancos, em empresas e em países, agora com toda a economia em risco contínuo de colapso, em que as redes de dinheiro público foram também já esgotadas, quem tem muito dinheiro prefere investir na compra de "arte".

Daqui resulta o filme que podemos experienciar ao longa desta magnífica banda-desenhada de Roche, que nos dá conta de um casal com licenciaturas e mestrados, em boas universidades, e mesmo assim não vai além dos trabalhos temporários, sazonais, part-time, e por fim freelance. Isto corrói-me por dentro, porque não se está a passar apenas nos EUA, vejo isto em Portugal, para todo o lado que me viro. Vejo jovens altamente qualificados, com tanto para dar à sociedade, ao país, mas totalmente atados de pés e mãos, sobrando apenas a emigração, como se lá fora tudo se resolvesse por simples passe de mágica!

Esta é uma banda-desenha que bate forte porque não fala de algo no passado, de algo que aconteceu à sociedade, com alguém que teve a pouca sorte, mas que relata o presente, o aqui e agora, duro como a vida que precisa de continuar a ser vivida, dia após dia.

Ler e ver a obra completa.

janeiro 05, 2015

Livros que li em 2014

Em Maio dei aqui conta de uma alteração de hábitos que passava por jogar mais e ver menos cinema. A partir de Agosto voltei a introduzir alterações nos hábitos, tendo passado a ler mais, dedicando ainda menos tempo ao cinema, e roubando o tempo que entretanto tinha dedicado aos videojogos. Os livros lidos dividem-se em três grandes categorias - banda desenhada, não-ficção e literatura - para cada uma das categorias identifico as três melhores obras que li este ano. Alguns analisei aqui no blog, outros apenas no GoodReads.

Banda Desenhada 2014

1. Blankets (2003) de Craig Thompson [Análise]
2. Portugal (2012) de Cyril Pedrosa [Análise]
3. Arrival (2006) de Shaun Tan [Análise]

Não-ficção 2014

1. The Talent Code (2009) de Daniel Coyle [Análise]
2. To Save Everything, Click Here... (2013) de Evgeny Morozov [Análise]
3. The Design of Everyday Things Revised and Expanded (2013) de [Análise]


Literatura 2014

1. A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann [Análise]
2. Stoner (1965) [Análise]
3. The Martian (2014) de Andy Weir [Análise]

outubro 05, 2014

O mundo maravilhoso de Shaun Tan

Acabo de ler "The Arrival" (2006) de Shaun Tan que me deixou num estado de total maravilhamento. De tan Conhecia apenas a magnífica animação, "The Lost Thing" (ver abaixo), vencedora do Oscar para curta de animação em 2011. Se tinha gostado da estilística visual de "The Lost Thing" agora amei aquilo que me pareceu ser um trabalho mais apurado dessa estilística. Parece-me que o facto de "The Arrival" ser dirigido a um público mais adulto deu permissão a Tan para elaborar e detalhar mais a particularidade deste seu universo visual. Apesar disso parece-me que ambos estes seus dois trabalhos foram fulcrais na atribuição em 2011 do Astrid Lindgren Memorial Award, o nobel dos livros para criança. Tan é um artista imensamente completo.



Capa e páginas de The Arrival

"The Arrival" é particularmente feliz porque faz da forma visual o enunciado do sentir dos personagens, fundindo assim mensagem e forma num todo que se exponencia. A estilística muito sui generis de Tan não podia ter encontrado melhor texto para se dar. Tratando a emigração, o livro dá conta de um mundo estranho a que se chega (arrival), mundo esse que segue formas próximas daquilo que conhecemos mas com variações muito particulares, por vezes bizarras ou insólitas. Não se ficando apenas pelo redesenho da representação da realidade, a própria linguagem de composição de vinhetas é renovada seguindo uma lógica de álbum de fotografias antigo, com os elementos de papel texturado e rasgado, transportando assim o leitor para todo um universo que tem apenas como objectivo dar a sentir. O leitor entra na pele de um verdadeiro emigrante e cruza dentro de si as emoções deste, estranheza e saudade.

"The Lost Thing" (2010) de Shaun Tan

Estive a ver algumas imagens do seu mais recente trabalho, que ainda não li, "Rules of Summer" (2013), lançado em livro e app para iPad, que para além de seguir regras deste seu mundo visual, promete mais um mundo maravilhoso, desta vez sobre óleo em tela.

"Rules of Summer" (2013) de Shaun Tan

Todo este trabalho, visual e narrativo, não será alheio ao facto de Tan Shaun se ter licenciado em Belas Artes e Literatura Inglesa. Como ele diz em entrevista recente, teve momentos da sua vida em que se dedicava apenas a escrever, e outros momentos em que se dedicava apenas a desenhar. Os artistas não podem, nem devem ser iguais, mas o que podemos percepcionar aqui é que ser capaz de criar o seu mundo de intenções, organizá-lo e enquadrá-lo enquanto história, e depois conseguir ainda dar-lhe uma forma, outra que não textual, não só enriquece profundamente o trabalho como dá maior liberdade e alcance à visão de um artista.

setembro 20, 2014

"Blankets", uma novela gráfica

Blankets” (2003) deixou-me profundamente emocionado. Craig Thompson fez do meio escolhido, banda desenhada a preto e branco, o seu meio natural expressivo, conseguindo por meio deste, chegar até nós com uma força impressionante. Aquilo que podemos experienciar em “Blankets” é algo raro, poucos trabalhos o conseguem, não só através deste meio, como através de qualquer outro. Thompson constrói um trabalho de grande detalhe - narrativo, dramático, visual e literário - dando-se por completo, colocando-se a si próprio nesse detalhes, impregnando-o de humanidade, de sentimento e racionalidade. “Blankets” é uma porta aberta para o interior de Thompson, porque é uma extensão visceral da sua imaginação, da sua consciência, do seu ser.


A essência do envolvimento narrativo define-se pelas suas capacidades dramáticas que por sua vez se definem no desenvolvimento dos seus personagens. Neste trabalho Raina e Craig são adolescentes em busca de si, que por meio de uma relação crescem e aprendem a lidar com o mundo e consigo próprios. Thompson criou não apenas duas personagens profundamente críveis, como profundamente humanas.

Craig e Raina

Não posso dizer que do ponto de vista narrativo ou dramático seja algo nunca feito, a literatura e o cinema são frutíferos neste domínio. Mas cada meio, por meio das suas próprias particularidades expressivas, enfatiza naturalmente diferentes substâncias. Neste caso o facto de “Blankets” ser uma novela gráfica cria, para além da surpresa de tratar um universo raro no meio, um acesso novo à experiência estética do que se quer dizer. Ou seja, o portal que a arte nos abre para compreender o sentir do autor, apresenta por meio da novela gráfica, dimensões que não estão ao alcance da literatura ou cinema. E é por isso que “Blankets”, para além de emocionante, é tão relevante.


Informações
Editora: Top Shelf Productions
Data: 2003
Páginas: 592
Prémios: Harvey Awards (2004) para "Best Graphic Album of Original Work", "Best Artist" e "Best Cartoonist"; Eisner Award para "Best Graphic Album" (2004), entre outros.

abril 21, 2014

Inovando o storytelling nos media interactivos

“CIA: Operation Ajax” é uma obra de leitura digital interactiva com uma forte base de banda desenhada (BD). Lançada em onze capítulos entre 2010 e 2012, não é propriamente uma novidade, mas posso dizer que é a melhor experiência que tive até hoje de BD digital. Através de uma lógica que vai para além do “motion comic” e do multimédia documental, faz um aproveitamento soberbo da plataforma tablet.



Ao contrário dos cd-roms dos anos 1990 “CIA: Operation Ajax” não se perde com deslumbramentos tecnológicos e multimédia, somos transportados para o reino da história que nos é contada, e tudo funciona em seu redor. Uma história centrada num evento político do século XX, o golpe de estado no Irão operado pela CIA em 1953. A obra é uma adaptação do livro “All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror” (2003) de Stephen Kinzer, acabando assim por trabalhar a realidade geopolítca atual que vivemos, em profundidade.

Nesta obra a narrativa é o cerne. Para isso contribui imenso a ideia de focalizar a estrutura narrativa na BD, servindo esta muito bem a progressão. Ou seja, a cada toque nosso sentimos o avanço no interior da estrutura de uma prancha, na verdade o conceito de prancha desaparece, o que temos é um “atravessar” das vinhetas, uma espécie de filme entrecortado, quadro a quadro, com animação e som, e a possibilidade de navegar para trás e para a frente. O conjunto cria uma sensação de leitura fluída, com o tempo controlado pelo leitor, mas com uma direcção narrativa capaz de imprimir ritmos e suspense. A isto adiciona-se ainda uma camada adicional de documentos fotográficos e vídeos de época que podem ser acedidos opcionalmente. Segundo Burwen o objectivo desta camada documental não era o mero aproveitamente técnico, mas tinha como objectivo aumentar o realismo narrativo,
"The features we provide will include anything we can find to augment the story we are telling, and to remind people that this stuff really did happen. That real people with personalities and families were making decisions that made a major impact on the way that we think and live today. To be able to be immersed in a narrative, and to have that narrative infused with evidence like photos or newspaper articles from the period in which the story took place, it adds an element of humanity to the drama and intrigue. I can’t go too far in revealing what we have planned, but I can say that I think it’s very exciting." [Link]
Componente documental multimédia

"Ajax" foi criado pela Cognito Comics, com a plataforma The Active Reader da Tall Chair, que funciona sobre Unity, e esteve 4 anos em produção. Parece exagero mas não é, se pensarmos que como livro de BD é desde logo enorme, com 212 páginas, a partir das quais foram produzidas 6 a 7 mil vinhetas animadas!

O que faz a diferença não é a plataforma, mas o facto da animação/interacção, de grande qualidade, ter sido desenhada quadro a quadro. Aquilo que a Marvel e outros têm tentado fazer, é criar um editor que permita rapidamente transformar pranchas em objectos navegáveis. O que temos aqui é um livro de 212 páginas, totalmente reconceptualizado, ou conceptualizado desde o início, para uma lógica de acesso interactivo, com movimento e som. A cada toque no ecrã avançamos um quadro, por vezes 2 ou 3, ou melhor avança-se uma cena. A progressão não está presa a quadros fechados, mas a ambientes que podem ocupar todo o ecrã (a antiga página) que podem desenvolver-se em vários quadros, ou um mesmo quadro no qual vão surgindo novos elementos, novos balões, etc. Não existem vozes, apenas sonoridade ambiente e música, a história continua a ser acedida através dos balões, base da linguagem BD. Ou seja, "Ajax" é todo um novo modo de contar histórias, porque não é livro nem BD, não é animação nem filme, não é site nem jogo, é um novo modo de contar histórias, é um modo integrado e interactivo, e por isso complicado de descrever sem se experienciar.

Três ecrãs que concorrem para criar uma cena, que é uma página completa.

Visão completa de uma cena que comporta vários quadros sobre um quadro geral.

Como é que surge um objecto destes? O seu principal mentor veio da indústria dos videojogos, Daniel Burwen, que trabalhou na EA e Activision, na área da ilustração. Depois de ter estalado a guerra no Iraque, em 2002, e depois de ler o livro de Stephen Kinzer, Burwen encarou o projecto BD como uma forma de dar voz ao que sentia sobre o assunto. Nesse sentido convenceu Kinzer a avançar com a adaptação do seu livro para BD. Mas em 2010, com o anúncio do iPad, resolveu mudar para o formato digital. O guião ficou a cargo de Mike de Seve que depois foi adaptado para BD por Jason McNamara (The Martian Confederacy, Full Moon). Na ilustração as capas foram feitas por Steve Scott (conhecido por Batman Confidential, X-Men Forever), o design dos personagens foi criado por Jim Muniz (X-Men, Hulk), e Steve Ellis (Iron Man, Box 13, High Moon) desenvolveu um capítulo completo. Burwen refere a propósito da complexidade da integração,
“I think the hardest part was learning how to make comics. Ajax is entirely built off traditional comics, and it’s because the traditional compositions work in print that the animation and interactivity works in the iPad version. Figuring out how to create a compelling animation style that honored the print page legacy was key. It was very easy to over-animate the content, and I discovered it’s a fine line between creating a poor film experience versus a rich reading experience.” [link]
Fluxogramas do design de interacção (a qualidade não é a melhor)

Temos aqui um trabalho movido por uma forte vontade de fazer, de comunicar e expressar, e isso faz mover montanhas. Além disso tenho poucas dúvidas em afirmar que Burwen apresenta nesta obra um talento muito especial no que toca à direcção e design de narrativa e interacção. O trabalho contém uma miríade de componentes de grande qualidade, mas a singularidade da obra emerge da direcção, da forma como foi imprimido sentido narrativo e acesso interactivo ao todo.

O maior problema deste formato de contar histórias é que uma produção com este nível de detalhe e qualidade fica muito cara. Se a produção de BD já é hoje considerada cara e de difícil rentabilização, muito por conta do online (pirataria), quando entramos neste detalhe multimédia os preços disparam, tal como diz Don Norman, “What is the future of the book? Very expensive.” Inicialmente cada capítulo era vendido por $7,99 mas recentemente o projecto foi colocado na íntegra grátis na AppStore. Este projecto acaba demonstrando várias coisas, essencialmente que a criatividade e imaginação conseguem ir muito além daquilo que por vezes temos acesso no mercado, mas que a inovação por si só não chega, é preciso que o mercado esteja pronto para a receber.

Trailer

Podem descarregar a obra, para iPad e iPhone, completamente gratuita, na App Store (484 mb).


Links de Interesse
Do comic para a animação interactiva, in Virtual Illusion
Comunicação visual digital, in Virtual Illusion
Brandon Generator, animação interactiva online, in Virtual Illusion
Reinventing the Graphic Novel for the iPadpalestra de Daniel Burwen no SXSW 2012
Narrative Mechanics - The Elements and Spaces of Interactive Storytelling, [Slides] Palestra de Daniel Burwen na React 2013

outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.

agosto 01, 2013

Dicotomia em banda desenhada

Mused é uma série de banda desenhada criada por Kostas Kiriakis, que funciona segundo ele, como uma "espécie de diário" narrativo visual das ideias que o vão assombrando no dia-a-dia. Dessa série, fiquei bastante impressionado com a novela gráfica, A Day at the Park (2013), porque é profundamente filosófica, o que é algo pouco habitual de se ver tratado no formato de banda desenhada.

A Day at the Park (2013) de Kostas Kiriakis

A Day at the Park, lança-nos numa complexa dicotomia que pretende separar, e classificar as diferenças entre "Questões" e "Respostas". Quais são mais relevantes? e porquê? A discussão assume os contornos clássicos das dicotomias filosóficas, desde o querer distinguir entre corpo e alma, ao querer distinguir entre forma e conteúdo. É uma novela gráfica, que nos prende na discussão, nos "questiona" e obriga a reflectir, deixando-nos a pensar, muito para além da sua leitura.

Muito interessante também é depois de ler, ficar a conhecer como decorreu o processo criativo de construção da novela. Kiriakis diz-nos na sua página, que normalmente define um plano com um princípio, meio e fim para o que vai desenvolver, mas neste caso não foi assim. Aqui o processo foi profundamente exploratório, sem qualquer noção do que viria a suceder no quadro seguinte. Nas suas palavras, esta é uma forma de trabalhar com elevado risco, e bastante complexo a nível interno,
"Turns out the most difficult thing about that, is fighting that constant urge to get back in control. Which is another way of saying ‘I desperately need to get back in my comfort zone’. Playing it safe all the time though isn’t  a very expansive strategy. Especially in a creative process. So in a way it boils down to an exercise in courage really. Remembering that it’s ok to let go. Make mistakes. Play around. Go nuts. Have fun." [fonte]

maio 23, 2013

"Punk Rock Jesus" (2012), o amadurecimento das narrativas

Os videojogos ainda têm um longo caminho a percorrer ao nível das histórias e ideias que discutem. Assim como os comics evoluíram, os videojogos acabarão por conseguir contar histórias mais maduras, que nos façam reflectir e questionar o mundo em que vivemos. Ler hoje os comics tradicionais da Marvel ou DC, sabe ao mesmo que jogar um videojogo AAA, falta densidade, profundidade, risco e autenticidade. A marca Vertigo pertence ao universo DC, mas foi criada especificamente para um público adulto, com o objetivo de tratar temas mais complexos. Espero ainda um dia ver aparecer uma editora destas no mundo dos videojogos.


Punk Rock Jesus é uma série de 6 livros (que podem agora ser adquiridos todos num único volume) criada por Sean Murphy em 2012 e que rapidamente se tornou num bestseller. A narrativa oferece-nos algo já visto mas enquadrado de uma forma diferente e apelativa. A ideia do retorno de Jesus através da clonagem de DNA é muito interessante, e arriscada. Tendo em conta todo o potencial dessa clonagem, tudo é montado no formato de reality show, e todo o mundo passa a acompanhar o crescimento do pequeno em directo nos ecrãs de TV, tal qual Truman Show (1998). A arte é apresentada sem cor, com traços tipicamente comic, com bastante qualidade mas sem qualquer procura por inovação na forma. Tudo aqui se centra na ideia, na história que se quer contar.


A revolta de Jesus é o momento mais interessante, no qual o conflito sobe de tom e podemos ver o novo Jesus assumir o papel do antigo, mas de uma forma totalmente atualizada. Tudo é aqui colocado em causa, tanto as perspectivas pró-religião como as anti-religião, dá-se espaço à discussão e inclusão, questiona-se em profundidade. Não se procura evangelizar, procura-se apenas questionar. Murphy diz em entrevista,
I didn't want the book to read that way. The trick was to write something that pushed believers to question their religion, but not in a way that abandoned them. (Amazon)
E um simples comic consegue fazer isto tão bem, mas se o faz bem deve-o muito ao modo como os personagens foram tão bem desenhados em termos sociais e psicológicos, é-nos dado a ver e a sentir o que lhes atravessa a mente, e isso facilita a nossa empatia com estes. Num outro excerto, Murphy diz-nos,
Punk Rock Jesus is actually an autobiography in disguise, because most of the characters are based off different aspects of my personality, or different roles I've inhabited over the years. For example, Thomas is a lot like me when I was Catholic—very black and white in how I viewed the world. And Chris is a lot like me when I first lost my faith—angry and militant about my new found atheism. Luckily, I've cooled off a lot since then, otherwise PRJ would have been a very (atheistically) preachy book. (Amazon)
Em certa medida está aqui tudo aquilo que devemos esperar dos videojogos no futuro. Em parte foi isto que a Telltale Games já conseguiu com The Walking Dead (2012) que já era uma adaptação de um comic com o mesmo nome, da Image Comics.

novembro 24, 2012

Brandon Generator, animação interactiva online

The Random Adventures of Brandon Generator (2012) é um trabalho de ficção colaborativa produzido pela Microsoft para promover o Internet Explorer 9 e o HTML5. A Microsoft juntou talentos incontornáveis em várias áreas, Edgar Wright na escrita, Tommy Lee Edwards na ilustração, Scott Benson na animação, Julian Barratt na narração e David Holmes na música e criaram um artefacto online memorável.


É difícil definir exactamente o que é Brandon Generator. Wright define-o como um "crowd sourced animated film", enquanto Tommy o define como "interactive online animated graphic story". Julgo que ambas as designações estão correctas. Em termos de trabalho audiovisual temos uma animação com sabor a motion comics, mas mais elaborada do que isso. Ao contrário dos motion comics, em que o trabalho provém de ilustração previamente impressa, aqui tudo foi desenvolvido para este formato final. Como diz Tommy o objectivo passou por "elevar o modo como as histórias são contadas online".


O que posso dizer é que esse objectivo foi conseguido em toda a linha, nomeadamente no campo estético. A ilustração de Tommy com toque Marvel é de todos o que mais se evidência, e controla grande parte da nossa relação com o artefacto, por outro lado a animação simples de Benson cria um ritmo específico para o universo narrativo que é depois fortemente suportada pela belíssima narração de Barrat e a música de Holmes. Ou seja, se o artefacto funciona é porque nada foi deixado ao acaso, a Microsoft não se ficou pela simples vontade de criar um trabalho demonstrativo da tecnologia, mas quis investir na criação de algo capaz de ficar na história da ficção online.


No campo interactivo, apesar de existirem algumas interacções possíveis com cada episódio, a interatividade joga-se quase toda no plano da comunicação assíncrona com a ficção. Ou seja, no final de cada episódio os espectadores eram convidados a participar, escrevendo trechos de continuidade para o episódio seguinte, desenhando elementos para fazerem parte do universo gráfico, ou deixando mensagens telefónicas para o personagem principal que depois poderiam entrar na banda sonora do episódio seguinte. Tudo isto era depois assimilado pelos criativos para fazer evoluir a história e a animação no sentido da participação deixada pelos milhares de espectadores. Consequentemente os espectadores sentem-se envolvidos na narrativa, a sua participação origina consequências reais sobre a narrativa. A participação contrói-se a partir de uma parceria real entre os criadores e os receptores, colocando-os num plano horizontal criativo, elevando fortemente o envolvimento de todos.





Imagens que mostram arte produzida pelos participantes, e na última imagem os nomes dos vários contribuintes só do episódio 3.

A história de Brandon Generator anda à volta do bloqueio criativo o qual leva um escritor a desmaiar de cansaço, quando este acorda descobre que todo o trabalho foi feito enquanto esteve inconsciente. E aqui começam as interrogações, quem terá feito as misteriosas contribuições, quem terá deixado as mensagens no gravador, quem terá desenhado no seu caderno de notas. A narrativa está brilhantemente desenhada no sentido em que a interacção do espectador está em sintonia total com o conteúdo da história, permitindo que cada elemento narrativo que nós acrescentamos enquanto espectadores possa fazer parte daquele universo sem propriamente o distorcer ou corromper. Wright conseguiu assim criar, nas suas palavras "an internet head trip where the users become co-writers, where they can help Brandon or punish him". Na minha interacção com o trabalho aconteceu algo interessante que me levantou algumas questões, sobre tudo isto. No final do ep1 deixei uma contribuição escrita para uma potencial continuação que não se revelaria muito distante daquilo que depois vi acontecer, em traços muito genéricos é claro. Aqui fica o escrevi,
"One day, the lack of coffee, made Brandon go out, in search for a coffee shop. In the walking he found a beautiful a girl. They took a coffee together, they laughed, and then he disappeared... "
Esta imagem aparece apenas no Episódio 3

Esta pouca diferença, levou-me a questionar sobre o poder do escritor e criadores para nos sugestionarem. Ou seja, até que ponto a nossa participação é de algum modo fortemente condicionada por aquilo que acabamos de ver. Somos enredados pela atmosfera, pelo personagem, e talvez dada a qualidade da imersão narrativa criada pelo trabalho somos como que conduzidos para um determinado universo ficcional do qual dificilmente nos conseguimos desprender. Continuamos a ter liberdade, mas somos sugestionados a pensar a dentro de um determinado quadro de convenções, o que homogeneíza os discursos!


Em termos de desenvolvimento, o trabalho web foi desenvolvido pela LBi, e no site de making of é possível obter mais informação técnica sobre o HTML5, CSS3 e Js usado. Mais interessante de tudo é a afirmação de Tommy a propósito de tudo isto quando ele diz "This whole thing would not exist without the internet." e suporta a afirmação referindo,
"Not only is Brandon Generator co-created by the online community's input, the whole process of creating the finished project is quite virtual. I live in rural North Carolina, where I storyboard, illustrate, design, and direct the animation for Brandon Generator. My CG modeling team (Don Cameron & Daryl Bartley) are in Los Angeles. Scott Benson handles all the animation and composite After Effects work up in Pittsburg. But through using skype, our smart phones, email, and various file-sharing methods, the four of us work hand-in-hand to create a seven or eight minute animated film. Edgar spends most of his time between Los Angeles and London. Same with composer David Holmes I think. Al the sound guy is British, but I'm actually not sure where he is at the moment. LBi builds the Brandon Generator website and handles all the tech from London. It's quite the little global effort." [link]
Impressiona. O mundo é cada vez mais global porque existe uma rede electrónica que suporta e mantém uma comunicação humana em modo contínuo. E daí que nos vejamos confrontados com a necessidade de repensar os modelos narrativos que temos, repensar não apenas os modelos de produção, mas também os modelos criativos. Não que eu acredite que estes possam transformar-se nos modelos dominantes. Como ainda há pouco tempo aqui referia num estudo de Zac, estamos muito formatados pelo modelo linear de contar histórias. Mas o que Brandon Generator nos mostra, é que a participação assíncrona pode ser um caminho muito interessante a explorar no storytelling interactivo (não que seja uma total novidade, mas está muito bem feito), porque mantemos a estrutura linear tradicional, adicionando uma camada participativa não disruptiva dessa linearidade.

Trailer do primeiro episódio

Experienciem The Random Adventures of Brando Generator, depois percam-se na página do making of.