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março 03, 2017

"Passengers", a arte de questionar

"Passengers" (2016) é uma espécie de Robinson Crusoé com duas modificações narrativas essenciais que enriquecem imensamente o seu sentido: a primeira, é o facto de que estando completamente sozinhos temos à nossa volta 5000 pessoas em modo hibernação; a segunda é que o facto de estarmos no espaço, e não numa ilha contida pelo planeta Terra, impossibilita a ideia de esperança, de se poder ser avistado e salvo por outro qualquer ser. Estas variações da ideia central, de estar sozinho, permitem ao filme lançar várias questões de grande alcance e profundidade, em termos daquilo que nos define como seres humanos.





Enquadramento: Uma nave que transporta 5000 pessoas para um outro planeta, a 120 anos de distância, sofre um problema ao fim de 30 anos, e um dos sistemas de hibernação avaria acordando um passageiro, com cerca de 30 anos, a 90 anos de distância do destino. Os sistemas na nave não permitem voltar a hibernar, por isso terá de viver o resto dos seus dias naquela nave, em trânsito, sabendo que nunca chegará vivo ao destino. E é assim que começam as questões:

1 - O que faríamos se nos encontrássemos sozinhos num mundo, rico de experiências materiais e experienciais proporcionadas pelos mais avançados sistemas digitais e robóticos de entretenimento, mas sem acesso a contacto com qualquer outro ser humano?

O filme explora a questão inicialmente, podia ter feito muito mais, mas optou por não se centrar na resposta, preferindo adicionar novas camadas de questionamento.

2 - Sabendo da existência de 5000 pessoas a dormir ali ao lado, e podendo acordar uma delas, seria ético fazê-lo? Mais ainda sabendo que essa pessoa seria privada de tudo aquilo que tinha planeado fazer ao acordar, ou seja, seria privada da SUA vida para viver a MINHA vida?

O filme não dá grandes respostas. A escolha do passageiro a acordar não é alvo de grande explicação, nem intenção, desde logo porque nem sequer é tentada qualquer comparação entre os milhares de passageiros existentes. O que só por si daria para anos de ponderação, tendo em conta que na nave existem registos vídeo, com explicações das razões de cada pessoa para ter embarcado na viagem. Aliás, as diferenças de interesses, ou de classe social apresentadas não são nunca exploradas.

3 - Mudando o foco de personagem. Se descobríssemos que a vida miserável que estamos a viver foi completamente criada pela pessoa com quem estamos a dormir, e por quem nos deixámos apaixonar, o que faríamos? 

Mais uma vez a resposta é frágil, embora aqui tenhamos de aceitar a enorme habilidade de Jon Spaihts, guionista de “Prometheus” (2012), na forma como desenha a resposta, ao passar o foco dos envolvidos para uma mais ampla responsabilização, ou seja, retirando a ênfase do Eu, passando-a para o Nós, Todos. Aceito que o filme tente uma lógica enfabulatória do Síndrome de Estocolmo, embora esta mudança de pesos de responsabilidade atenue imensamente essa leitura, criando uma multiplicidade de outras significações.

Dito tudo isto, o que sobra? As perguntas. Sim, são o melhor do filme, inegavelmente superiores às respostas. Mas o que pergunto a todos os críticos é o seguinte: existiria alguma forma de responder a estas questões? Aliás, este foi o problema apontado a "Prometheus", o que dá conta de um padrão na escrita de Spaiths, a sua capacidade para enquadrar e lançar grandes questões, não sendo depois capaz de responder à altura.

Porque toda a essência e beleza do argumento do filme assenta no desenho das perguntas. No modo como nos consegue colocar na situação, a tentar imaginar o que faria eu perante aquelas condições? Não é essa a essência de qualquer base filosófica, a capacidade de nos questionarmos? As respostas pertencem a cada um. E por isso no final do filme, apesar de todas aquelas respostas, eu dei a minha, sobre o que senti, nomeadamente sobre aquilo a que o filme me levou no questionamento daquilo que me define:
:: O contato humano. O outro. É a única coisa que conta, a única coisa sem a qual não podemos absolutamente viver. Precisamos de espelhos, precisamos de cooperar, precisamos de colaborar, precisamos de nos complementar para nos completar.
Podemos criar algoritmos, robôs, brinquedos sexuais. Podemos adicionar-lhes cognição, emoção, toque suave e quente, mas eles nunca serão humanos. Eles nunca enfrentarão a extinção da carne. Eles nunca enfrentarão dilemas morais. Eles nunca se sentirão submissos ou dominantes. Eles nunca vão sentir necessidades, desejos e urgências impossíveis de cumprir. Eles nunca estarão sozinhos.

dezembro 10, 2016

“Stranger in a Strange Land” (1961)

Cada vez me convenço mais que os livros de maior sucesso, que vendem milhões, são livros que as pessoas compram com múltiplos fins, excepto o da sua leitura. “Stranger in a Strange Land” parece-me ser um desses casos. Um livro que se apresenta como de Ficção Científica, mas que de científico tem zero, e que deveria antes apresentar-se nas prateleiras das “Ciências” do Esotérico.


A razão porque vendeu tanto é, em parte, explicável. Saiu em 1961, passou totalmente despercebido. Apesar de receber o prémio Hugo em 1962, as várias análises da época foram bastante destrutivas, e o livro acabou por passar ao esquecimento. Em 1968 com o ressurgimento em força do Programa Apollo da NASA, com o lançamento do primeiro americano no espaço, o livro foi reeditado, mesmo a tempo da loucura que seria o ano 1969 com a chegada à Lua. E é assim que o livro acaba a ser o primeiro livro de FC a entrar na lista do The New York Times Bestsellers, ultrapassando a marca dos 100 mil livros vendidos. Desde então, o facto de ter sido o primeiro livro FC bestseler do NY tem servido fortemente a promoção levando-o a vender mais 5 milhões.

Por mais mal que se diga, se o livro vendeu bem e ainda por cima tem um prémio Hugo, o mais importante da FC, alguma coisa deve existir no livro. Foi isto mesmo que também pensei, contudo, nem sempre os prémios tudo explicam, mais ainda no caso do Hugo que na altura ainda nem 10 anos tinha de existência. Depois, Heinlein na altura era já um grande nome do meio, com uma grande quantidade de contos publicados e alguns livros. Aliás Heinlein costuma surgir ao lado de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke como os três grandes da ficção literária de FC. Contudo, só o consigo equiparar em pioneirismo, tudo o resto deixa muito a desejar, basta pensar no livro que precede este, "Starship Troopers" (1959).

Vejamos então ao que vem “Stranger in a Strange Land”. A premissa surgiu de uma ideia da sua esposa, Ginny Heinlein, depois de ler “The Jungle Book” (1894) de Rudyard Kipling. A ideia assentaria numa personagem que em vez de ter sido criada por animais, teria sido criada por marcianos. Uma premissa que se parece estimulante à partida, peca por um problema de base, a ausência de qualquer conhecimento sobre marcianos. Se no Livro da Selva, Kipling procura fusionar as características dos animais com as dos humanos, no caso de Heinlein, não existindo marcianos, resta-lhe fusionar humanos com humanos.

Assim sendo, e de modo a minorar a desconfiança do alcance do seu texto, Heinlein vem dizer que na verdade não tinha feito um livro de ficção científica, mas antes uma “sátira sociopolítica sobre o sexo e a religião na cultura contemporânea”, com o que mais concordo. Na verdade já tivemos algo parecido no passado, naquele que é hoje tido como o primeiro livro de FC, “As Viagens de Gulliver” (1726), e que Heinlein cita a meio do seu livro. Então o que os diferencia? Em essência, a ciência.

Como Heinlein não usa qualquer base científica sobre a potencial vida em Marte, ou qualquer outro planeta, o que nos apresenta limita-se a dois mundos idênticos, com ideologias políticas distintas. Mas percebendo a insuficiência desse embate, e seguindo Swift, que coloca em confronto ideias sociopolíticas, mas a partir de posicionamentos distintos (pessoas muito pequenas, pessoas muito grandes ou pessoas racionalistas), Heinlein vai optar por embarcar no oposto, e gisar os marcianos enquanto pessoas esotéricas, desenhando toda uma sociedade baseada no misticismo, superstição e inexplicável, fazendo mesmo uso da astrologia para conduzir muito do seu enredo.

Só isto seria suficiente para atirar o livro por terra, mas é todo o restante enredo que é também tão pobre e subdesenvolvido. Temos um adulto de 25 anos que nasceu em Marte, mas filho de humanos que para lá viajaram numa nave. Esta pessoa vai depois apresentar poderes de telepatia e telecinese, apesar de biologicamente ser um simples humano que viveu toda a vida em Marte. Ou seja, Heinlein não consegue delimitar o seu trabalho, passando entre o social, o psicológico e o físico como se tudo fosse igual. Acabamos por perceber porque assim é, o foco do seu interesse nunca foi os marcianos, mas antes e só projetar os seus ideais sociais, defender por meio de uma historieta, uma quantidade de banalidades, pseudo-filosóficas, sobre a religião e o sexo, apresentando assim uma espécie de sociedade pré-New Age.


Para agravar tudo isto, o livro inicial tinha sido fortemente editado e reduzido em mais de 60 mil palavras, mas depois de Heinlein morrer a sua esposa encontrou a versão não editada, e resolveu publicá-la, dizendo que era a versão em que o marido sempre tinha acreditado. Assim, para quem quiser ler hoje estas desventuras, tem de sofrer mais uma centena de páginas em que nada acontece, a não ser montes de diálogos inconsequentes, em que se discutem banalidades do quotidiano, e que podem sim, servir a quem quiser traçar os hábitos à época, anos 1960, apesar do livro supostamente ser passado no futuro.

dezembro 07, 2016

“Inside”, uma obra incontornável

"Inside" é uma obra dotada de imensa maturidade que assenta numa enorme consciência do que é um videojogo, ao que se junta uma vasta cultura artística áudio/visual/ficcional, e por fim grande competência criativa no modo como constrói a integração do todo. Dito isto, existe imenso para analisar num jogo com este alcance, do que tentarei dar aqui conta, apenas à superfície, de alguns dos elementos que considero mais relevantes, mas acreditando e esperando ver algumas teses de mestrado futuras sobre o mesmo. Assim, e independentemente da dimensão que ocupa num disco duro, ou do tempo que se leva a terminar, se não for Game of the Year ombreará de muito perto.






:: Design de jogo
“Inside”, tal como “Limbo”, funcionam mais como walking simulators, com a particularidade de se apresentarem através de um ponto de vista único, na forma de sidescroller, ao que se adiciona um conjunto de obstáculos, na forma de puzzle, sendo que a sua essência reside no ambiente, e na história contada por este. Ou seja, falamos aqui fundamentalmente de environment storytelling. Neste campo, ambas as obras são virtuosas, assentes num minimalismo soberbo, capaz de conferir todo uma imensidão de significados, algo ainda pouco trabalhado na arte dos videojogos. Arnt Jensen, o diretor de ambas as obras, vem de um país com forte tradição no campo, apesar de no cinema, podendo inspirar-se em autores como Carl T. Dreyer, Lars Von Trier ou Joachim Trier.

O design pode ser analisado a partir de um particionamento do jogo em quatro categorias — Ambiente, Personagens, Eventos, Obstáculos — estando o design mais focado nos obstáculos (puzzles), mas não podendo separar-se dos restantes elementos. De modo que apesar de Arnt Jensen dirigir, encenar, tem de o fazer sempre em cocriação com o lead designer, Jeppe Carlsen.

Se adoro tudo o que engloba, dos ambientes aos eventos, no caso dos obstáculos surgem-me algumas resistências. Porque se temos de admitir que os mesmos são desenhados com enorme perspicácia, totalmente embebidos no ambiente, são parte, nunca surgem como extrínsecos, nem sequer extemporâneos, fica-me um certo amargo de falta de conexão com os eventos. Ou seja, os obstáculos são desenhados na sua relação com o ambiente, e nesse campo funcionam muitíssimo bem, acabando por se dar à personagem de forma lógica e coerente, contudo contribuem muito pouco para a definição dos eventos. Reduzem-se a meia-dúzia, os obstáculos que realmente produzem eventos, narram, dão conta daquilo que o ambiente desesperadamente tenta dar conta quase sozinho. As exceções vão para os tipos de morte que sofremos, nomeadamente quando atacados por forças do mundo, ou quando ativamos e controlamos algo supostamente “inteligente” desse mundo, embora neste segundo grupo surjam também imensas estruturas inconsequentes do ponto de vista narrativo.

Isto não minora o design de jogo que a partir do que digo, sobre a relação com o ambiente, é brilhante. Podia realmente conseguir uma maior sintonia narrativa, mas aqui admito que os posicionamentos quanto ao que um jogo, um filme, e uma história interativa devem ser, possam distanciar-se. Ou seja, o design de “Inside” é ele próprio uma mina de perspetivas de análise, podendo variar imenso o que se interpreta em função do ponto de partida, se procuramos mais narrativa ou mais jogo. Apesar de “Inside” pouco espaço dar a um posicionamento exclusivo de jogo, mesmo que o seu criador diga que não está focado na narrativa, o que só por si daria toda uma outra discussão sobre a artes e os processos criativos. E seguindo esta possibilidade, foco no ponto seguinte a arte de “Inside”.

:: Arte Visual
Mais uma vez falando também de “Limbo”, a arte é extraordinária no campo da ilustração, pode-se dizer que em certos quadros falamos mesmo de pintura, em que o propósito de comunicar uma ideia é ultrapassado, deixando espaço aos criadores para se incluírem a si próprios no trabalho final. São os cenários que criam os ambientes que acabam por dar vida ao mundo narrativo. Ambos os jogos trabalham agarrados a uma técnica da pintura, que o cinema em tempos também recuperou, o chiaroscuro, uma técnica cara a Caravaggio, que contribui para a criação de mundos, pintados, que formam uma espécie de duas dimensões que se entrechocam: o da presença de luz, e o da ausência dessa luz.

Mas existe todo um campo da arte de jogo em que “Inside” vai muito além de “Limbo”, é o da animação, nomeadamente da câmara e do personagem principal, a cargo de Andreas N. Grøntved com a contribuição visual de Morten Christian Bramsen. A câmara, apesar de condicionada pela perspetiva 2D, trabalha imenso com a profundidade, muito graças aos cenários tridimensionais. Assim, e por via da animação da câmara, a interação que se desenha sempre num plano bidimensional, ganha um escopo tridimensional. Não raras vezes o plano 2d surge em diagonal e profundidade, e a câmara segue, ao que se junta todo um enorme trabalho de cenarização para criar efeitos de parallax e assim construir uma ideia de mundo completo e vivo. No entanto todo este poderio técnico nunca se torna centro de si próprio, surge sempre ao serviço do que se pretende mostrar ou fazer.

Mas se a câmara surpreende, o personagem principal é o verdadeiro ex-libris da animação. Sendo a sua forma visual tendencialmente abstrata, desde logo pela ausência de cara, é na linguagem corporal, essência animada, que tudo se joga, literalmente. Bastam poucos segundos de contato com o gamepad e o jogo, para percebermos que não se trata de um simples personagem do sidescroller tipo. A forma como salta, agacha, cai e quase cai, espreita, pega em objetos, toca em superfícies, nada, vira frente/trás, ou cai morto, é absolutamente impressionante. Não se trata de mero movimento, nem sequer de criar a impressão de vida, é muito mais do que isso, é pura comunicação, é a expressão de pensamento e sentimento. Sendo a animação grandemente responsável por grande parte do relacionamento que vamos criando com esse personagem. Para quem quiser deter-se mais neste ponto, deixo a ligação para um conjunto de gifs recolhidos pelo Rock Paper Shotgun que servem bem uma análise inicial, não invalidam jogar para experienciar interativamente as animações.

:: Arte Sonora
Este campo costuma dividir-se, de forma bastante acentuada, entre o design de som e a música, contudo no caso específico de “Inside” essa divisão não nos oferece grande proveito, uma vez que a fronteira é ténue, sendo o diretor de ambas a mesma pessoa, Martin Stig Andersen. Diria que a principal razão para tal assenta no minimalismo musical. Assim, não raras vezes damos por nós na dúvida se o som que ouvimos é melodia de fundo, ou faz parte do universo em que estamos incluídos, já que raramente esta se destaca do fundo narrativo. Para isto contribuí imenso o desenho de sonorização dos espaços, que de algum modo se vai misturando de forma muito imbricada com o score. Desde os ruídos emitidos pela maquinaria, aos ruídos emitidos pelo personagem, o áudio parece mais um todo, do que a tradicional pista musical, sobre a qual se trabalham efeitos de som.

Esta fusão não surge sem um propósito, é minimalista, mas não é só isso, o minimalismo áudio procura, dada a sua influência emocional, seguir o minimalismo da escrita, daquilo que a obra tem para dizer. E é disso que falo no próximo ponto. Deixo ainda sugestão para quem quiser mais sobre esta parte de uma entrevista dada ao Kill Screen.

:: Arte Ficcional
Optando Jensen por dizer de forma tão pouco explícita ao que vem, dentro e fora da mesma, já que raramente dá entrevistas, ou quando dá evita explicações, toda a estética se sintoniza com esta abordagem. “Inside” é extremamente contido no que diz, cria quadros de ideias, mas não os liga causalmente de forma evidente, nem se detém nunca para explicar, explanar, ou expor argumentos. Opta por apresentar uma ideia geral, macro, a partir da qual escalpeliza alguns eventos, coloca o jogador no centro dos mesmos, via interatividade e inferência, e depois espera que seja o jogador a preencher os espaços deixados vazios, propositadamente, com as suas experiências do mundo. Ou seja, a história não está fechada: um mundo é apresentado e um personagem introduzido. Na progressão do jogo percebemos como evolui o nosso personagem, que vai ganhando capacidades que o separam do mundo inicial e o aproximam do estranho mundo em que entrámos (“Inside”), mas cabe ao jogador, recetor, definir exatamente que mundo é esse (estamos “Inside” de quê), o que representa, o que quer dizer!

Não existe uma única forma de interpretar o que nos é apresentado, e por isso cada um poderá ver diferentes significados no mundo narrado pelo jogo. Como disse, e dizia Eco no seu “Obra Aberta” (1962), o mundo que lemos e vemos, é o mundo apresentado conjugado com o mundo de que somos feitos. Ou seja, para quem tiver lido, e vivido, obras como “Brave New World” (1932), “Animal Farm” (1945) ou “1984” (1949) representará, ainda que próximo, algo diferente de quem tiver lido obras como “The Simulacra” (1964) ou “Neuromancer” (1984), ou ainda tiver visto filmes como “The Thirteenth Floor” (1999) ou “Matrix” (1999), ou ainda de quem tiver seguido filmes como “Dark City” (1998), “Prometheus” (2012), e claro “Existenz” (1999). Para quem não tiver lido/visto nada de Ficção Científica, representará algo distante de muito disto, dependente do tipo de mundo que contém dentro de si. Apesar de tudo, “Inside” não deixa de se inclinar para a distopia, para uma melancolização em redor do progresso tecnocientífico. E fá-lo de forma erudita, minimal e profundamente coerente.

Ficha técnica

Dito tudo isto, concordo com o Rui Craveirinha quando diz que “Inside acaba a ser um marco para o género da ficção científica videolúdica”, e vou mais longe, é um marco da Ficção Científica, enquanto género ficcional. Um género que começou pela literatura, ganhou toda uma nova dimensão no cinema, mas de há alguns anos para cá, tem encontrado no meio dos videojogos um espaço de cada vez maior relevância (recordemos por exemplo "SOMA" do ano passado).

novembro 17, 2016

“Dark Matter” (2016), emoções do multiverso

Tenho visto poucas séries, raramente me prendem mais de dois ou três episódios, no entanto “Wayward Pines” conseguiu agarrar-me e levar-me até ao final da primeira temporada, o seu autor era Blake Crouch. Quando li que um dos livros de FC mais badalados deste ano, “Dark Matter”, tinha sido escrito por ele, a atração foi imediata. Se no início sentimos que Crouch está apenas a remisturar a fórmula de “Wayward Pines”, rapidamente tudo descola, agarrando-nos pela tensão, adrenalina e claro, a total contorção da realidade.


A escrita não é o forte de Blake Crouch, embora pelo que vi dos seus livros anteriores, melhorou bastante, muito provavelmente pelo enorme trabalho de edição que a obra sofreu desde o primeiro esboço até ao seu lançamento, como fica evidente na nota final de agradecimento do próprio autor. Crouch também não é um romancista e por isso as personages são aqui mais peões do que essências, se Jason e Daniela se ficam pelo casal modelo, a relação com o filho Charlie é um verdadeiro apêndice. Por outro lado, Crouch é brilhante no desenho de suspense, na criação de enredo — ações, conflitos e obstáculos — tanto o é, que o primeiro manuscrito, com apenas metade das páginas, foi vendido à Sony por mais de um milhão de dólares, dois anos antes do livro sair, para criação do filme.

Se gosto do trabalho de Crouch, deve-se menos à sua mestria do suspense e mais ao modo como ele trata o tema da Realidade. Esse é o tema de fundo de “Wayward Pines” e “Dark Matter”, o modo como nós, humanos, compreendemos, construímos, aceitamos, distorcemos e por vezes enlouquecemos por meio daquilo a que chamamos Realidade. É um tema que me apaixona, tendo sido parte integrante dos meus estudos, o que me me levou a analisar dezenas de filmes que lidam com realidades alternativas, viagens no tempo e mundos possíveis. É um tema eterno, que nos pode levar até à “Alegoria da Caverna” de Platão, ou simplesmente parar para apreciar a intensa expetativa contemporânea em redor das novas tecnologias de Realidade Virtual.

Considero que a premissa de “Wayward Pines” era mais original, contudo “Dark Matter” é uma obra mais madura, complexa e questionadora, capaz de lançar o leitor num tobogã de conceitos que misturam Física e Filosofia. Apesar da velocidade imprimida, não raras vezes, damos por nós a estacar e a refletir sobre o que está a acontecer, sobre o que é a realidade, o que somos, como somos, e porque somos. Neste sentido, e apesar da ação contribuir para alguma superficialidade, não é um livro fácil para quem não estiver habituado às temáticas.


Em relação à história e ciência, “Dark Matter”, como o título acaba por indicar, trabalha conceitos da física quântica, nomeadamente o conceito de multiverso. Contudo, apesar de seguir uma base científica, rapidamente resvala para o puro ficcional, distanciando-se de abordagens mais clássicas da FC, como é exemplo um dos grandes sucessos recentes da FC, “The Martian” (2014). Mesmo aproximando-se da temática de “Interstellar” (2014), e ainda que este tenha também tomado bastantes liberdades, “Dark Matter” usa a especulação científica mais como rampa de lançamento para a fantasiação do conceito de identidade.

setembro 09, 2016

Mundo Novo das Memórias

Li "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley nos anos 1990, tendo perdurado em mim fortes memórias que me permitiam recordar a obra como maior, pela sua qualidade e visão. No entanto, depois de ter voltado ao seu universo, por ter visto o filme homónimo de Burt Brinckerhoff (1980), e ter relido alguns capítulos do livro, concluo que as minhas memórias eram melhores que a realidade.

Livro de 1932 e filme de 1980

"Admirável Mundo Novo" é um livro interessante que se sustenta no valor histórico, tendo surgido antes de "Mil novecentos e oitenta e quatro" (1949) de George Orwell, ainda que depois de "Nós" (1921) de Yevgeny Zamyatin. A escrita não é muito atrativa e o enredo é um tanto ingénuo, segurando o nosso interesse mais pelo modo como vai apresentando a vida do "mundo novo" e contrapondo os seus valores aos nossos.

Filmes de síntese capazes de incorporar o espetador na trama durante o seu visionamento, levando-o a sentir como se fosse verdadeiramente o personagem na tela.

Por outro lado, a abordagem pela sátira acaba por ser contraproducente, no sentido em que evidencia fortemente uma das suas maiores fragilidades, os personagens. Na ânsia por colar os mesmos a figuras políticas da altura, e de lhes tecer críticas, acaba por criar personagens sem identidade, volúveis e inverossímeis, com os quais temos dificuldade em nos relacionar. Se não surge a densidade de um Winston ("Mil novecentos e oitenta e quatro") com quem empatizar, os restantes parecem apenas fazer parte do cenário, nunca funcionando como efetivo contrapoder.

Diria que o melhor, e aquilo que continua a fazer o texto sobreviver ao tempo, além do aspeto histórico, assenta na ideia, na sua vanguarda especulativa, nomeadamente na clarividência em relação ao futuro da ciência e dos media, o que tem mantido a obra como boa referência de estudo e reflexão académica.

O filme, apesar de datado, funciona bastante bem em termos de fidelidade de adaptação, mais porque sendo telefilme permitiu-se uma extensão de três horas, garantido assim tempo para o desenrolar dos detalhes enunciados no livro. Por outro lado, o facto de ser um telefilme, torna o acesso ao mesmo mais difícil, tendo apenas conseguido ver o mesmo por meio de uma velha cópia VHS.

setembro 01, 2016

“Viagens de Gulliver” (1726)

Gulliver pode não ser a maior obra de arte literária, mas é uma das obras literárias de maior impacto narrativo na nossa civilização recente. Não existe meio expressivo — cinema, rádio, banda desenhada, teatro, etc. — que não tenha visto surgir a sua versão de "Viagens de Gulliver", sendo que desde que foi publicado, há quase 300 anos, não deixou de ser reapresentado a cada nova geração. Gulliver é fruto do mais nobre que a imaginação humana nos pode dar, o puro ato de fantasia, em todo o seu esplendor criativo.


Se “Viagens de Gulliver” surge quase como resposta à viagem de “Robinson Crusoe”, publicado na década anterior, é à veia satírica de Jonathan Swift que devemos a capacidade para ir além do mundo conhecido, para especular sobre realidades alternativas, umas mais fantásticas outras mais científicas, e assim congeminar novos mundos, novos personagens/pessoas e novos costumes, lançando a primeira pedra de um género que se mantém até hoje, o da Ficção Científica (FC). Swift precedeu em mais de um século, o chamado pai da FC, Jules Verme, e em dois, George Orwell, que nesta edição prefacia a obra.

A ilha de Laputa em “As Viagens de Gulliver”

Acredito que a inovação desta obra surja arrastada pela sátira, um género que tem necessidade de entrelaçar ficcional e real por forma a garantir os seus efeitos, conduzindo Swift a inovar muito provavelmente sem o desejar, antecipando assim todo o género literário de FC. Gulliver está longe de se apresentar como mero relato fantasioso, ou fantástico, não é de todo um conto de fadas, mágicos ou esotérico, a relação entre o plausível e o potencialmente possível é uma constante, é puro trabalho de especulação ficcional que temos aqui. Desde um mundo de pessoas pequenas (Lilliput) a um de gigantes (Brobdingnag), em que se confrontam as distinções físicas pelas suas propriedades anatómicas e perceptivas, passando por uma ilha voadora, na qual vivem pessoas abstraídas da realidade mundana, encerradas no estudo da matemática e música (Laputa), chegando a um dos raros momentos em que Swift parece resvalar, na visita à ilha de Glubbdubdrib, com Gulliver a ser introduzido num universo de magia e ocultismo, podendo conversar com espíritos célebres defuntos, acaba no entanto a invocar reis e rainhas para descobrir segredos da História, indo mesmo ao ponto de invocar e discutir ideias de algumas das figuras mais relevantes da ciência, de Descartes (1596 a 1650) a Sócrates (-470 a -399).
“Por vezes pousavam [moscas] em minha comida, e deixavam nela seus asquerosos excrementos ou ovas, que para mim eram perfeitamente visíveis, embora não para os nativos daquele país, cujos olhos grandes não eram tão aguçados quanto os meus quando se tratava de ver objetos pequenos.”
Como texto, Gulliver surge com a aparência de mera reunião de contos, a cada viagem, novas ilhas com novas pessoas que nos permitem aceder a novos modos de compreender a realidade, contudo a sucessão de viagens acaba por desenvolver um impacto final no nosso personagem, fruto do cumulativo de experiências, garantindo assim unidade à história, ao personagem, e no fundo a toda a obra. Swift parece um tanto obstinado na sua sede de crítica à sociedade e aos homens que a compõe, por via da sátira, hoje de difícil interpretação sem acesso a enquadramento histórico*, traçando desse modo um quadro de amadurecimento de ideias, no que toca à percepção daquilo que somos enquanto espécie.
“Perguntou-me ele quais eram as causas ou motivos usuais que levavam um país a ir à guerra contra o outro. Respondi que eram inumeráveis, porém mencionaria apenas umas poucas entre as mais importantes. Por vezes a ambição dos príncipes, que jamais julgam ter terra ou Gente suficiente para governar: por vezes a corrupção dos ministros, que induzem seu senhor a fazer guerra a fim de sufocar ou desviar o clamor dos súditos contra sua má governança. As diferenças de opiniões têm custado muitos milhões de vidas: por exemplo, se a carne é pão, ou o pão é carne; se osSuco de uma certa fruta é sangue ou vinho; se assobiar é um vício ou uma virtude; se é melhor beijar uma tábua ou jogá-la no fogo; qual a melhor cor para uma túnica, preto, branco, vermelho ou cinza; se ela devia ser longa ou curta, estreita ou larga, suja ou limpa, e muitas outras coisas. E não há guerras tão furiosas e sangrentas, nem tão duradouras, quanto as que são ocasionadas por diferenças de opinião, especialmente quando se trata de coisas sem importância.”

Assim, e apesar de apontado como livro de histórias para crianças, sendo-o mais pelo texto simples e muito acessível assim como pelo apelo à imaginação e fantasia das duas primeiras viagens, por sinal as mais conhecidas, é contudo uma obra com várias camadas de significado, que se vão abrindo a cada um em função do que se traz para leitura do mesmo.


* Esta edição da Penguin vem com muito boas notas do prof. Robert DeMaria Jr., a tradução de Paulo Henriques Britto, para a Companhia das Letras, está também muito boa.

agosto 25, 2016

“A História de Uma Serva” (1985)

As distopias nunca estiveram tanto na moda, na última década tivemos para todos os gostos, desde o erudito “A Estrada” (2006) de Cormac McCarthy às várias séries juvenis “Os Jogos da Fome” (2008) de Suzanne Collins, “Maze Runner” (2009) de James Dashner, “Divergente” (2011) de Veronica Roth, ou ainda “O Silo” (2012) de Hugh Howey, para não falar dos universos zombie, da banda desenhada “The Walking Dead” (2003) e homónima série (2010) ou videojogos “The Last of Us” (2013), não esquecendo o retorno do culto de “Mad Max” (2015). Não sendo de agora, a lista de histórias criadas, independentemente do meio, principalmente ao longo do último século é deveras impressionante. O fim do mundo, o fim da espécie, ou o fim da vida/costumes como a conhecíamos, são tópicos imensamente atrativos para quem se aventura na escrita de histórias a partir do imaginário, científico ou fantasioso, quanto mais não seja por se darem imensamente bem ao questionamento próprio das boas histórias: “e se?” ou “e depois?”


Como confessa Margaret Atwood, muito do trabalho do escritor assenta no “brincar com hipóteses”, e este livro surgiu-lhe a partir de uma hipótese simples, baseada nos credos de grupos religiosos extremistas: “Se o lugar da mulher é em casa, então o quê? se decidirmos forçar isso, o que se segue?”, embora como ela diz nesta mesma entrevista, o objetivo não tenha sido o da defesa do lugar da mulher, mas antes “um estudo sobre o poder, como ele opera e como ele deforma ou modela as pessoas que vivem dentro desse tipo de regime” Atwood (1986).

Deste modo, na distopia de Atwood apesar da mulher surgir no centro, como o género a quem tudo se pede e nada se dá em retorno, na verdade isso só assim é, porque o relato é feito por uma serva, já que ao longo de todo o livro podemos perceber como ninguém, mulher ou homem, está live da imposição totalitária do governo. Os homens são vistos como meros animais, sedentos de sexo, que precisam de ser domesticados a qualquer custo, enquanto as mulheres são vistas como meras ferramentas, garante da manutenção da espécie.

As distopias, enquanto conceitos, são interessantes por funcionarem como modelos que nos permitem reequacionar a civilização, já que por norma surgem a partir da necessidade de dar resposta a problemas concretos que impedem a sociedade de funcionar como antes (ex. vírus, água, clima, gestação). Por outro lado acabamos por verificar que os verdadeiros problemas estão em nós, ou seja, o que dá origem à maior parte dos problemas a que assistimos assenta no balanceamento entre o individual e o coletivo. Somos uma espécie mamífera, como tal só conseguimos sobreviver em grupo, por outro lado somos dotados de consciência de nós, o que nos impele à construção de identidade, e por conseguinte à necessidade de espaço individual. Politicamente, e de forma simplista, isto define-se como esquerda e direita, a esquerda preocupada com o coletivo, e a direita com o indivíduo, mas como diz o ditado, “a virtude está no meio”, o que faz desse meio, ou centro, uma utopia, já que para agradar a uns é preciso desagradar a outros, daí que os extremos acabem por vezes a conseguir angariar seguidores e assim a produzir sociedades distópicas.

No cerne de “A História de uma Serva” temos Offred, a quem tudo foi retirado — mãe, marido, filha, emprego, dinheiro — pedindo-se em seguida que tudo dê à espécie — ofereça o corpo para a gestação de bebés de outras famílias, por forma a garantir a continuidade da espécie, que entretanto se viu ameaçada por alterações na natureza. Percebe-se que Atwood procurou trabalhar a ambivalência dos dois pólos — negativo e positivo —, acabando por criar uma personagem ambígua, com quem  que se torna difícil empatizar. Por outro lado, o facto de tudo aquilo que esta perdeu ser concreto, mensurável, e aquilo para que ela trabalha ser de certo modo abstrato, existir ainda apenas em potência, torna-se ainda mais complicado compreender porque não reage ela de forma mais efetiva, porque parece aceitar tudo, mais ainda quando ao contrário de outras distopias é uma personagem de transição, ou seja, que conhece bem a sociedade que precedeu aquelas novas regras.

Do meu lado, e mais em concreto, julgo que o problema não surge tanto dessa ambiguidade, que diga-se é característica dos protagonistas de distopias, que têm de lidar com a enormidade da situação, mas antes pela leveza, ou superficialidade de alguns dos seus sentires, como a preocupação com o creme para as mãos, assim como muitos dos comentários que vai fazendo sobre a esposa ou o comandante, que dão conta de uma personagem ligeira, que parece a tempos ser capaz de passar ao lado daquilo que nos pareceria ser à partida um verdadeiro terramoto psicológico.

Apesar destes problemas com a personagem considero-o um livro relevante, nomeadamente por ser capaz de levantar a discussão em redor dos problemas de género, assim como e à semelhança de outras distopias nos fazer lembrar que o totalitarismo pode estar ao virar da esquina, mas também pelo modelo não-linear que a autora escolheu para nos dar acesso ao passado e presente, que funciona muitíssimo bem na manutenção do nosso interesse. Ainda assim, não o colocaria a par de obras como “1984” ou “Admirável Mundo Novo”, ou pelo menos das recordações que mantenho dessas obras, já que foram lidas em idade bem diferente.

janeiro 22, 2016

A linha da vida

Quando se começa a jogar “Lifeline” tem-se a sensação de se ter entrado no mundo de “The Martian” e ter começado a conversar com Mark Watney por SMS. “Lifeline” estabelece uma linha de contacto, via texto, entre nós e um astronauta perdido numa lua distante, pondo-nos na posição de assistente científico, moral e guarda-costas do mesmo.



Nos últimos dois anos o género de ficção interativa (jogos em texto) não tem parado de aumentar, desde “Device 6” a “80 Days” passando pelo "The Writer Will Do Something" de que aqui falei recentemente, são muitos os artefactos que têm sido criados, mais ainda desde que foi lançada a ferramenta open-source Twine, que está também por detrás deste “Lifeline”.

A história de “Lifeline” não é propriamente inovadora, e apesar dum personagem rico peca por alguns eventos menos conseguidos, mas aquilo que a destaca das demais é a premissa interativa, o modo como a narração foi modelada para a criação de agência dramática. Ou seja, o facto de colocar o personagem ficcional numa situação de total isolamento, em que o jogador é o seu único contacto humano, colocando o âmbito ficcional do artefacto sob uma dependência do jogador extremamente credível e imersiva.

Em termos de interface podemos ficar com a ideia de que já vimos algo parecido, os chatbots, a diferença é que isto não é nenhum sistema de inteligência artificial tentando convencer-nos da sua humanidade, mas antes uma narrativa desenhada para nos convencer da existência de um espaço/tempo, convencer da ocorrência de um conjunto de eventos. O personagem com quem aqui interagimos não se limita a conversar connosco, está numa situação particular e tem objetivos que estão enredados por obstáculos, cabendo-nos oferecer apoio na sua ultrapassagem.

Deste modo temos um modelo narrativo capaz de desenvolver agência no plano existencial de cada jogador, porque no mundo ficcional em que participa continua a existir um protagonista que  por sua vez se relaciona com o jogador no seu mundo real. Ou seja, o protagonista depende do jogador mas o jogador não assume o seu lugar, o que permite ao herói continuar a existir, exercendo a sua personalidade, discordando por exemplo das decisões do jogador. Assim conseguimos não apenas criar envolvimento com o mundo narrativo, mas convencer o jogador a assumir a sua participação real, não meramente projetada numa qualquer identidade, mas sendo ele mesmo.

"Lifeline" apresenta ainda um último atributo (ou defeito), em parte responsável pelo seu sucesso, que é o facto de ter sido desenhado para o Apple Watch. Assim sendo a interação com o jogo acontece fundamentalmente por via do sistema de notificação, ou seja, o facto de o jogo estabelecer o tempo como variável real, obriga a que jogador tenha de esperar pelas respostas do personagem sempre que este tem de realizar uma atividade mais demorada, como por exemplo dormir. Aqui sou obrigado a discordar da abordagem, se no Apple Watch, e enquanto factor novidade, pode ser interessante, num telemóvel e mais ainda num tablet, este atributo transforma-se num problema porque a narrativa passa a controlar o tempo do jogador, fazendo-o sentir-se aprisionado, resultando em possível frustração. Ou seja, se enquanto jogador retiro tempo para me concentrar na obra, e depois esta não me permite a participação porque está em modo stand by, não existe realismo que salve a relação (o que fez sentir-me imensamente agradecido assim que o "fast mode" foi desbloqueado).

dezembro 27, 2015

"SOMA" (2015)

"SOMA" junta-se a um lote de videojogos que marcam o ano de 2015 como um dos mais relevantes dos últimos anos em termos de videojogos narrativos, nomeadamente no que toca a quantidade, diversidade e maturidade. "SOMA" apresenta uma história de ficção-científica de nível literário, não se limitando para tal a templates narrativos, apresentando toda uma nova abordagem ao contar de histórias jogáveis. Deste modo qualquer análise da obra para estar completa precisa de se dividir entre a crítica ao texto e a análise do design.






Design da Narrativa e Jogo

"SOMA" começa por identificar-se com uma das grandes tendências atuais dos jogos narrativos, os walking simulators ("Dear Esther", “Everybody’s Gone to the Rapture”), jogos de pura navegação virtual, evoluindo depois para o environment storytelling (ex. "Gone Home", “The Vanishing of Ethan Carter”), jogos que requerem manipulação, acabando por se aproximar depois do género survival/stealth sem armas, que era uma marca que já vinha dos jogos anteriores da Frictional (ex. "Amnesia: The Dark Descent"). Assim temos um design que trabalha o espaço narrativo por via do ambiente (cenário, luz e som) e pistas (logs, fotos, videos e audios), incluindo a sua manipulação (puzzles), e o tempo narrativo por via do survival (tarefas com janelas temporais) e do stealth (a fuga de inimigos).

Esta mescla de géneros surge da tentativa do diretor Thomas Grip, em fazer avançar o contar de histórias nos videojogos, tendo para tal criado um método de design de narrativa, que intitulou de 4-Layers. Nessa sua definição começa por definir os extremos — “Heavy Rain”, quase ausente de jogabilidade, e “Bioshock” quase só focado nos tiros — apontando a sequência final de “Brothers: A Tale of Two Sons” e a da girafa em “The Last of Us” como exemplos da perfeição do entrosamento entre narrativa e jogo. Grip diz que essas sequências serviram como inspiração para criar todo o método 4-Layers, já usado em “The Vanishing of Ethan Carter” e "SOMA", considerando eu depois de ter jogado ambos, que ele é verdadeiramente eficaz em SOMA". Este método busca desenhar o jogo em camadas, por forma a evitar a focagem na história pela história. Vejamos cada camada, e como elas atuaa em "SOMA".

"Layer 1: Gameplay". No caso de "SOMA", isto é conseguido por via de puzzles espaciais não demasiadamente complexos (encaixar ferramentas e dados entre máquinas, abrir portas), assim como por via da fuga em labirintos, ou os puzzles pressionados pelo tempo e medo. Cada uma destas mecânicas é desenhada em consonância com a história, não se centrando sobre si, mas antes procurando dar resposta a questões narrativas, o que vem de encontro ao segundo layer.

"Layer 2: Narrative Goal". Aqui Grip defende que a narrativa, tal como acontece no cinema, não pode estar apenas cingida ao arco principal que liga o início ao final, mas precisa obrigatoriamente de gerar eventos narrativos que suportem o interesse do recetor ao longo de todo o jogo. A essência deste interesse assenta no dito acima, as questões narrativas, ou seja o mistério e o suspense, capaz de motivar o receptor para a narrativa, impossibilitando assim que este se foque nas tarefas ou ações de modo isolado. Em SOMA a narrativa vai-se desvelando, mas muito devagar, vamos acedendo aos computadores e dados, falando com as pessoas, para ir percebendo o que se passa ali, mas mais importante para perceber o que se espera de nós. Cada área, e cada nível, comporta em si mesmo um trecho narrativo que por si captura o nosso interesse, sem estarmos agarrados ao objetivo final da história. A ideia é focalizar a atenção nesses objetivos narrativos intermédios e assim evitar que o jogador se foque na mecânica das suas ações, focando-se na busca de respostas.

"Layer 3: Narrative Background". Se o “objetivo narrativo” pretendia mudar o modo do jogador de “fazer coisas para avançar na história”, para, “fazer coisas por causa da história”, com o background narrativo procura-se levar o jogador a “fazer coisas para fazer a história aparecer”. Ou seja, o log que leio ou o audio que ouço em "SOMA", não são longos nem obrigatórios, para evitar que se transformem em tarefas, aquilo que tenho de fazer para chegar ao nível seguinte (isto é puro design de narrativa, já que se quisermos ler os textos originais, podemos ir à secção Files no site e ver como são longos, perceber que textos daquela dimensão no interior do jogo deturpariam a jogabilidade). Assim os textos são antes objetos que fazem a história emergir, tais como fotos que vamos encontrando, ou diálogos que decorrem enquanto fazemos outra coisa, tudo isto são momentos entremeados no jogo que vão construindo a história, mas vão acima de tudo dotando a mesma de uma base contextual.

"Layer 4: Mental Modeling". Nesta camada Grip entra adentro do cerne da relação entre narrativa e interação, a partir do conceito base do design de qualquer interação, o modelo mental. Ou seja, falamos de construir um objeto de interação que vá de encontro ao modo como o jogador vê o mundo, porque o jogador não se baseia exclusivamente no que vê ou ouve no jogo, mas antes se socorre de modos de ver o mundo que já detém, ou seja modos que determinam a sua intuição para compreender o que lhe está a ser mostrado. Claro que o jogador usa o feedback do jogo para se orientar, mas não está todo o tempo a processar tudo o que aparece no ecrã, antes carrega todo o modelo de jogo na sua mente e age por intuição, recorrendo à racionalização apenas quando o jogo não opera como esperado. Deste modo o jogador está continuamente a jogar cognitivamente, a imaginar e a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, tentando antecipar as necessidades, o que não é muito diferente do que acontece no cinema ou literatura. Isto é extremamente importante na navegação (ex. seguir o caminho debaixo de água em "SOMA"), assim como na manipulação (ex. o modo como abrimos portas, ou gavetas, ou usamos as ferramentas), assim como claro na participação na narrativa, em que assumimos diferentes modelos mentais, que geram expectativas consoante o género narrativo (ex. terror, comédia, aventura, etc.).

Quero aproveitar este 4-Layers e o caso do "SOMA", para trazer de novo a questão que me coloquei quando acabei “Witcher 3”, por comparação a “The Last of Us”. Será que poder escolher o desenlace de uma história, impacta de forma diferente a minha experiência narrativa? Se à medida que avanço em "SOMA", vou criando o mundo história, compreendendo as suas razões e fazendo destas os meus objetivos e motivações, quer dizer que passo a incluir-me nesse! Assim apesar de não poder alterar as ações da história, sinto que elas têm valor, porque se encaixam e incrementam o significado daquilo que já sei sobre aquele mundo. Não estou simplesmente a abrir e a fechar portas, a descobrir chaves e puzzles, mas estou a dar sentido à história, a procurar compreender o que está por detrás daquela porta, como se encaixa o que está ali com aquilo que já sei. Como diz Grip,
"The mental model and the narrative lie on the same level, they are the accumulation of all the lower level stuff. And if we can get them to work together, then what we have is the purest form of playable story where all your gameplay choices are made inside the narrative space." [source]
Repare-se que apesar de "SOMA" ser linear, não permitir alterar a história, ele oferece decisões ao jogador, algumas limite, como deixar viver ou morrer. E nesse caso mesmo sabendo que isso não alterará em nada o trajeto do jogo, o modo como está encapsulado, o modo como nos é feito acreditar o que vale ou não vale essa "vida", faz com que a nossa tomada de decisão seja difícil. Isto demonstra que o valor das decisões não se prende com as consequências no jogo, mas antes com o valor que atribuímos às mesmas. De certo modo é isto que se passa no final de “The Last of Us, mesmo não nos sendo permitido tomar a decisão de agir ou não agir na sala hospitalar, a perplexidade com que agimos dá conta da importância dessa ação, e mesmo quando somos obrigados a fazer o que o jogo requer para simplesmente avançar na história, não deixamos de continuar a questionar-nos sobre esse momento e o modo como nos marca.

Voltando ao 4-Layers, Grip cataloga a tomada de decisões por parte do jogador sobre a narrativa, como uma variante do “objetivo narrativo”. Ou seja, aqueles momentos em que o jogo, a nossa ação, está umbilicalmente conectada à história, em que jogamos motivados por razões narrativas, e não de jogo. No fundo, o que Grip está aqui a dizer é que mais do que colocar decisões na mão do jogador, é preciso fazer o jogador acreditar que as suas ações fazem parte da narrativa, e não são apenas um adereço para fazer funcionar o jogo. Mais uma vez recordando “The Last of Us”, o crafting de armas não surge como jogo de construção de armas, mas antes como necessidade de fazer frente aos mortos-vivos que vivem naquele mundo-história, ou seja, ajo motivado pela história, e não apenas porque quero avançar.

Fica a faltar ainda a discussão sobre o sistema de stealth que não inclui armas, o qual se torna responsável pela gestão do desafio e medo ao longo de todo o jogo, no fundo uma das grandes motivações para corrermos de um lado para o outro, por vezes sem tempo para pensar, apenas agir visceralmente. Mas voltarei a esse tema num texto próprio, já que levanta todo um conjunto de questões sobre os jogos exploratórios e os walking simulators.


A História

Não é possível falar da história sem desvelar detalhes da mesma (spoilers), já que como explico acima, o modo como a narrativa foi desenhada obriga a que não se conheça nada da história, essencialmente porque é o querer conhecer o que se passa e do que nos falam, que nos vai motivando a jogar, ao mesmo tempo que mantém todo o mundo de jogo crível. Por isso se ainda não jogaram, não leiam o resto deste texto.


---------- SPOILERS ----------------------

De forma genérica, temos uma história que roda à volta de questões existenciais, nomeadamente a identidade, que nos leva numa viagem filosófica de 10 horas em busca do propósito da vida, tendo por base a dualidade mente/corpo de Descartes. Em concreto, o planeta tornou-se inabitável e como solução propôs-se uma forma de digitalizar as consciências humanas, colocá-las dentro de uma arca e enviá-la para o espaço, uma espécie de Arca de Descartes. A linha de história é nova, embora a premissa tenha sido já muito discutida, nomeadamente nos trabalhos de Philip K. Dick. O que torna a história no jogo interessante é o fato de nos colocar de frente ao processo, e seus efeitos, de nos fazer passar por decisões sobre esse processo.



Ora, diferentemente do tempo em que Descartes escreveu os seus trabalhos, hoje sabemos que a consciência não é algo autónomo, sabemos que ela é apenas aquilo que o corpo permite que seja, nomeadamente a configuração física das ligações neuronais, mas também a configuração dos marcadores somáticos em todo o nosso corpo (desde os sentidos às vísceras). Sabendo isto, poderíamos atirar borda fora toda a história, contudo isso não é tão simples, já que aquilo que alimentou a teorização de Descartes continua presente, a ideia de que no interior de nós mesmos existe algo, existe um “Eu”, e esse "Eu" é tão profundamente obsessivo no que toca à sua emancipação, que por mais que "lhe" digamos que não existe individualmente "ele" continua a querer fazer-nos acreditar que existe. Diria quase, e aqui seguindo à letra Descartes, que o "génio maligno" existe, é o nosso próprio "Eu", sempre insatisfeito, sempre produzindo a volição que nos mantém insaciáveis, vivos. Por isso todo o tema de "SOMA" continua tão atrativo, em termos de teorização e discussão filosófica, mesmo se do meu lado a paciência para Freud, Lacan ou Jung se tenha esgotado há muito!

Tirando esta problemática, uma outra surgiu-me com mais força durante o jogo, e que cheguei a colocar como o grande problema de todo o mundo história, o Wau, a personagem que se desenvolveu a partir da IA e tomou conta de todas as instalações submarinas. O Wau surge desde o início como uma espécie de praga, que toma conta de todas as máquinas, robôs, inclusive criando monstros. Isto colocou-me o problema da credibilidade, porque parecia ser apenas um motivo para criar as dinâmicas de survival que os autores precisavam para o tipo de jogo idealizado, não tendo qualquer base científica. Contudo, isto viria a desvelar-se no final do jogo, de um modo perfeitamente científico e filosófico (os monstros são os corpos abandonados/suicidados, mantidos vivos por Wau, na sua tentativa por manter vivos os humanos a qualquer custo), com a discussão a evoluir para a relação entre máquinas e humanos, entre a moral que regula as suas relações, e a capacidade de uma máquina poder entender a imperfeição de que são feitos os humanos.

Para terminar, que este texto já vai longo, embora pudesse continuar a falar sobre o mesmo, tal a riqueza especulativa despoletada pelo jogo, quero ainda deixar uma lista dos momentos altos da minha experiência no jogo, que em certa medida dão conta da intensidade e diversidade da mesmas:



Momentos marcantes da minha experiência de "SOMA"

  • Catherine, a sua escrita e contexto de jogo, enquanto companheira única num território árido de vida, é capaz de fazer sentir o desejo de buscar ansiosamente a conexão da Omnitool apenas para poder conversar com ela.
  • A opressão das sequências debaixo de água.
  • As passagens para dentro e para fora de água, o realismo da espera da compressão e descompressão, e o stress envolvido, de não querer sair, e por vezes ter medo de entrar.
  • Toda a envolvência audiovisual, nomeadamente sonora.
  • Quando me vejo ao espelho pela primeira vez, e percebo que já não sou humano.
  • Quando mudo de corpo e sou chamado a decidir desligar o meu “outro”.
  • Quando encontro o último ser humano vivo.
  • Quando lanço a arca e fico para trás.
  • Quando acordo dentro da arca, já depois do genérico.

novembro 15, 2015

“Everybody’s Gone to the Rapture”

De novo se levantam questões sobre as fronteiras entre jogo, simulação e narrativa. Tenho sempre defendido este tipo de jogos, que agora se vão denominando de “walking simulations” - “Dear Esther”, “Gone Home”, ou o mais recente “The Vanishing of Ethan Carter” - mas desta vez ao iniciar a escrita dei comigo a construir uma nova taxonomia de análise dos videojogos... O trabalho avançou mas perdi-me na imensidade de possibilidades, e por isso resolvi parar e deixar para um próximo texto, aqui vou apenas concentrar-me em "...Rapture", e deixar as considerações sobre jogo ou não-jogo para outra altura.




Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) é um espaço-história que podemos explorar na primeira-pessoa. O espaço situa-se numa pequena aldeia britânica, nos anos 1980, abandonada à pressa a julgar pelo estado da cidade. À medida que avançamos na exploração vamos encontrando espaços em que luzes dão vida a encenações de grupos de pessoas que conversam entre si, como se estivéssemos a assistir a uma cena passada há não muito tempo. A aldeia é relativamente extensa, dada a reduzida velocidade a que nos deslocamos, mas para nos ajudar na escolha da ordem das casas e locais a visitar, existe uma luz forte que deambula por toda a aldeia que parece querer servir-nos de guia. Podemos encontrar mais diálogos ou monólogos em rádios e telefones perdidos, assim como em certos momentos temos de ativar umas luzes mais fortes que surgem e que nos abrem para mais uma cena de personagens de luz, mais extensa, ou pelo menos narrativamente mais significativa e que nos permite progredir na compreensão do que se terá passado ali.

O cerne de “Everybody’s Gone to the Rapture” é a narrativa, que se desenrola por meio de um enredo duplo, por um lado a descoberta do que terá acontecido na aldeia, por outro as vidas e relações entre os habitantes dessa aldeia. Ou seja, ao longo da progressão na experiência vamos descobrindo o que terá acontecido recentemente ali, assim como vamos ganhando conhecimento sobre as personagens que ali habitavam. No final, os dois enredos enlaçam-se para dar um sentido uno a toda a experiência, despoletando toda uma enorme recompensa pelo investimento realizado na compreensão do universo. Esta técnica do duplo enredo é bem conhecida do cinema, e serve por um lado para manter o espectador mais atento já que temos duas linhas de eventos a surgir em simultâneo, e por outro lado, quando o sentido se fecha na união de ambas as linhas de progressão, o espetador sente uma recompensa maior por dar sentido ao todo. Neste caso, posso apenas dizer que tal acontece, mas não posso entrar no detalhe correndo o risco de destruir essa possibilidade.

Pouco depois de estar em “…Rapture” torna-se inevitável recordar o início de “Village of the Damned” (1960), mas aqui a simulação é ainda mais forte na construção do sentimento de abandono do espaço, a falta de vida sente-se, com a nossa navegação em primeira-pessoa a funcionar na enfatização de todo esse abandono. Em sentido contrário, a performance das personagens que vamos encontrando espalhadas pela vila estão cheias de vida, com diálogos que nos chegam quase apenas por meio de voz, já que a linguagem corporal só por vezes nos é mostrada pelas luzes que constituem os corpos, ainda assim dando conta da idade e personalidade de cada um dos seus habitantes, do quão reais todas elas terão sido.

Everybody’s Gone to the Rapture” é um jogo sobre o fim do mundo, mas muito diferente daquilo a que estamos habituados a assistir, aliás esse era o objetivo de Pinchbeck:
“We talked about it, and we said, well, what is the important thing about the end of the world? It’s not about cities being consumed in fire. Take the movie 2012 – the whole of California vanishes and you don’t feel a thing, it’s just ridiculous. The apocalypse is about people, and the connections between them. What’s really touching is parents waiting for their kids to come home - and what they’re worried about is that the buses aren’t running, not that the world is ending. It’s the little moments that get you.” [fonte]
É isso que vemos, ouvimos e sentimos. O cenário escolhido toca-nos pela beleza, infelizmente não tanto como parece tocar os jogadores britânicos, que revelam sentir um enorme impacto nostálgico ao visitar os vários espaços no jogo. Mas a visualização daquele mundo é suportada por brilhantes dramatizações audio, que só poderiam ter sido conseguidas por atores de rádio, que conseguem fazer-nos sentir mesmo sem ver. Se tudo isto trabalha muito bem na construção do conhecimento dos eventos, toda a banda sonora adicionada ao jogo é imensamente poderosa, trabalhando com música coral que enfatiza o sentimento e conduz as sensações que vamos sentindo na progressão do jogo. Posso dizer que existe algum exagero no recurso musical, já que quase tudo é conduzido por este, o que claramente dá conta das fragilidades narrativas do objeto, muito por lhe faltarem personagens que possamos chegar a conhecer e empatizar completamente.

Trailer de “Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) de The Chinese Room

Mas é o no final que tudo se dá, e é poderosamente gratificante, ainda que possamos sentir alguma lógica “new age” em toda a conceptualização da vida e universo, mas a forma como se constrói toda a sequência final é feita de modo gerar arrepios emocionais nos mais sensíveis. Quando tudo começa a fazer sentido dentro de nós, quando as duas linhas de enredo se cruzam e se tornam numa só, quando percebemos o que representa tudo aquilo que experienciámos até ali, dá-se a catarse cognoscente que acompanhada pela banda sonora e imagens finais nos deixa ali colados aos créditos finais, sem vontade de arredar até que o último nome passe...

fevereiro 25, 2015

Propósito da vida segundo Isaac Asimov

Isaac Asimov (1920-1992) ficou conhecido pelo seu trabalho na ficção-científica, mas ele fez muito mais do que isso enquanto por cá andou. Depois do seu doutoramento em Química, escreveu mais de 500 livros, e ganhou dezenas de reconhecimentos pelos mesmos, dizendo a determinada altura: "Writing is my only interest. Even speaking is an interruption.” O seu desejo de conhecer o mais possível o universo em que vivia era suficiente para consumir todo o seu tempo. Numa entrevista em 1988, a propósito do futuro da computação, dissertou sobre o propósito da vida na terra, deixando como memória palavras que foram agora convertidas para banda desenhada pelo Zen Pencils.



Como diz Asimov, para muitos a aprendizagem acaba quando termina a escola, mas na verdade a aprendizagem é a única coisa que motiva a nossa vida. Enquanto seres homo sapiens estamos constantemente em busca de mais, de ver o nunca visto, de sentir o nunca sentido, de ouvir o nunca ouvido, de compreender o nunca compreendido. Claro que gostamos do conforto da comodidade do conhecido, mas em pouco tempo nos saturamos, para ir de novo em busca do desconhecido. Hoje o potencial para chegar até esse desconhecido é gigantesco, não que seja só de agora, os livros foram a primeira grande ponte, depois veio o cinema e a televisão, mas hoje, com a internet, só nos falta libertar as amarras dessa vontade, e deixar clicar para seguir absorvendo.


Ver a banda desenha completa.

janeiro 06, 2015

“Auteur in Space“ (2015)

Mais um brilhante ensaio audiovisual, "Auteur in Space" (2015) de Kogonada, foi publicado pelo BFI na rede. Desta vez Kogonada desmonta o filme “Solaris” (1972) não nos seus aspectos formais, apesar de também, mas em tudo aquilo que Tarkovski quis dizer com tudo aquilo que quis fazer (sublime a ligação a 2001 de Kubrick). Kogonada leva-nos por uma viagem rápida, de 5 minutos apenas, através dos conceitos emanados de Stanislaw Lem, o autor do livro homónimo, e tratados por Tarkovsky, ao som do atmosférico “Mychkine” do Tarkovsky Quartet.



“is art that triumphs here, that speaks to the mystery of existence”

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julho 11, 2013

viagem espacial interstelar

Belíssima viagem, ao futuro próximo das viagens interestelares com Project Kronos (2013) de Hasraf HaZ Dulull. Existe um problema na realização de missões longas que está relacionado com a nossa biologia. Nesse sentido o Project Kronos é uma espécie de tentativa de dar a volta ao problema, mantendo o ser humano no centro.


O filme, funciona como um documentário, ainda que saibamos que é falso pois situa-se em 2035, mas está bem conseguido, porque nos leva a levantar as barreiras da descrença, e por momentos a acreditar no que estamos a ver. Ou pelo menos, a equacionar, a possibilidade daquilo que nos está a ser apresentado, vir um dia a ser possível.

Genevieve Okupniak do Short of the Week criticou a ausência dos três actos no storytelling, mas discordo completamente. É verdade que inicialmente nos sentimos um pouco perdidos, mas é aí que reside a magia do storytelling. A forma como foi desenhado o enredo, ficamos totalmente a mercê do que nos vai sendo revelado, e à medida que se aproxima do final, só queremos saber mais, e mais, e mais. Ou seja, objectivo narrativo, totalmente atingido.

Project Kronos (2013) de Hasraf HaZ Dulull

Se tiverem interesse, em indagar mais sobre o conteúdo do filme, deixo o link para um texto de Greg Fish do weird things, que discute os muitos "se's" do filme.

janeiro 18, 2013

R'Ha é mais um monumento criativo

R'Ha (2013) é uma curta de ficção-científica de 6 minutos integralmente feita por apenas uma pessoa, Kaleb Lechowski, e que possui sequências que parecem ter sido filmadas por grandes equipas de especialistas em VFX para um filme de grande orçamento de Hollywood. Sem surpresa, Kaleb Lechowski tem apenas 22 anos e é estudante na Mediadesign Hochschule em Berlim. Todo o filme foi realizado como um projecto para uma cadeira, durante 7 meses.



Como as sequências poderiam ter sido retiradas de um filme de grande orçamento, Lechowski foi já contactado pelo manager Scott Glassgold, o mesmo que apresentou Rosa (2011) e True Skin (2012) aos executivos de Hollywood, para ir a Los Angeles fazer um pitch do filme.

O filme impressiona, tem uma qualidade de modelação, texturização e atmosfera absolutamente perfeitos. Adorei tudo, menos a animação de personagens, aqui existem problemas. Mas é interessante porque já o tinha dito sobre Rosa (2011) também. Não surpreende, são ambos os dois filmes feitos exclusivamente por uma única pessoa, e claramente que não se pode ser talentoso em toda as áreas. Tanto Rosa como agora R'Ha impressionam pela qualidade do detalhe visual, recheado de perfeição, mas perdem quando têm de mostrar os seus personagens em acção.

No campo das ferramentas Lechowski utilizou o zBrush para esculpir o extra-terrestre, o Blender para modelar o universo, e o Maya para animar e renderizar. Teve ajuda no som e narração por David Masterson, tudo o resto é feito por si e por ferramentas que estão ao alcance de qualquer um.

R'Ha (2013) de Kaleb Lechowski

outubro 31, 2012

viagem impressionante

Red Journey é um filme verdadeiramente emocionante, tendo em conta os momentos que se vivem face à conquista espacial. Realizado por Maneki Lab para Louis Vuitton, segundo lema - Where will your journey take you?.


O filme foi totalmente criado em CGI mas baseado em locais reais de Marte desenhados a partir de imagens captadas por satélite (OBSCOM). É impossível não sentir um deslumbramento pela proximidade visual que existe entre o planeta Marte e o planeta Terra, questiona-nos sobre o que somos, e o que fazemos aqui.


Depois de verem este filme, vejam ou revejam Mars Curiosity Descent HD, e já agora ouçam a mensagem que Carl Sagan deixou para os primeiros visitantes de Marte.

Red Journey (2012)

Actualização 26.12.2012: 
Se o vídeo no Vimeo não estiver a funcionar, vejam o filme na It's Art Mag.