Anne Mangen da Universidade de Stavanger, Noruega, tem-se dedicado nos últimos anos a analisar e a comparar cognitivamente a leitura em ecrã e em papel. O seu foco de trabalho tem-se centrado sobre o chamado “deep reading”, ou seja a leitura em profundidade, que exige grande poder de absorção, interpretação e memorização. O seu mais recente estudo comparou a leitura entre o Kindle e o papel, e os resultados não foram muito animadores.
Num estudo anterior, “
Reading linear texts on paper versus computer screen: Effects on reading comprehension” publicado no International Journal of Educational Research da Elsevier em 2013, Mange dava conta dos problemas dos ecrãs de computador, com conclusões muito claras.
“The results of this study indicate that reading linear narrative and expository texts on a computer screen leads to poorer reading comprehension than reading the same texts on paper. These results have several pedagogical implications. Firstly, we should not assume that changing the presentation format for even short texts used in reading assessments will not have a significant impact on reading performance. If texts are longer than a page, scrolling and the lack of spatiotemporal markers of the digital texts to aid memory and reading comprehension might impede reading performance.”, Anne Mangen no International Journal of Educational Research
Posteriormente Mange realizou novos estudos, trocando o PC por iPads, “
Lost in the iPad: Immersive reading on paper and tablet” (a aguardar publicação), e os resultados não foram propriamente diferentes. Aliás Mangen refere que os resultados indicam que os aspectos emocionais sofrem na experiência,
"In this study, we found that paper readers did report higher on measures having to do with empathy and transportation and immersion, and narrative coherence, than iPad readers," Anne Mangen in The Guardian
Os ecrãs de computador sempre foram mal vistos, nomeadamente por causa do brilho e efeitos sobre os olhos, levando as pessoas a imprimir resmas de papel para poderem ler, algo que os iPads pouco fizeram para apaziguar, mesmo com o marketing dos “ecrãs retina”. Por outro lado, uma tecnologia que fez frente a esses problemas, e vingou, foi a E-ink desenvolvida pela
Amazon Xerox e tornada popular pela Amazon e a sua plataforma Kindle. Esta tecnologia permite simular o papel ao ponto de não emitir luz, e ser melhor legível quanto mais luz sobre esta incide, à semelhança do que acontece com o papel. Nesse sentido, realizar um estudo comparativo entre o Kindle e o papel era o que realmente importava, e foi isso que Mangen fez.
Mangen juntou-se a Jean-Luc Velay da Universidade de Aix-Marseille e realizaram um
estudo comparativo, Kindle DX versus papel, com 50 alunos de licenciatura, com hábitos de leitura próximos. A comparação centrou-se sobre aspectos da experiência de leitura, com questões que procuravam compreender o alcance emocional e cognitivo da experiência. Ou seja, a ideia passava por inquirir os leitores sobre factos concretos, racionalizados e memorizados, assim como sobre interpretações do que tinha sido lido, procurando chegar às emoções e à imaginação. Podemos ver abaixo, um esquema do inquérito, e ver claras diferenças entre os aspectos, mais cognitivos ("Time and events" & "Plot reconstruction") e os mais emocionais ("Characters" & "Settings").
“The haptic and tactile feedback of a Kindle does not provide the same support for mental reconstruction of a story as a print pocket book does… When you read on paper you can sense with your fingers a pile of pages on the left growing, and shrinking on the right… You have the tactile sense of progress, in addition to the visual ... [The differences for Kindle readers] might have something to do with the fact that the fixity of a text on paper, and this very gradual unfolding of paper as you progress through a story, is some kind of sensory offload, supporting the visual sense of progress when you're reading. Perhaps this somehow aids the reader, providing more fixity and solidity to the reader's sense of unfolding and progress of the text, and hence the story.” Explicação de Anne Mangen para as diferenças nos resultados, in The Guardian
O que posso eu dizer sobre estes estudos? Em primeiro lugar que não me surpreendem, já que corroboram uma imensidade de outros estudos que temos vindo a trabalhar no âmbito do projecto
engageBook, e que de certo modo nos levaram ao desenvolvimento do
BridgingBook. Por outro lado, e agora com carácter pessoal, posso dizer que todos estes estudos corroboram cabalmente a minha experiência pessoal - “PC, iPad e Kindle” versus “Papel” - dos últimos anos. Se nunca me habituei a ler no ecrã do computador, com o iPad consegui passar a fazê-lo, mas isso só se tornou um hábito a partir do momento em que adquiri um Kindle.
Em termos pessoais,
este Verão realizei uma experiência que foi abdicar de todos os media e artes, e dedicar-me exclusivamente aos livros, tarefa que realizei em kindle e em papel. Alguns livros foram lidos integralmente em papel, outros integralmente em Kindle, e outros em ambos, lendo partes em papel e partes em Kindle. Destes, os lidos em ambos os formatos, quando terminada a leitura, não senti propriamente grande diferença. Apesar disso, e com o passar do tempo, fui notando a minha preferência a inclinar-se para o Kindle! Esta preferência agudizou-se quando este mês fui recuperar livros maiores para ler, clássicos de mil páginas. Isto porque nestes casos específicos o Kindle supera totalmente o papel em termos de conforto de leitura!
Leituras deste Verão (12 em Papel, 3 em Kindle, 3 em Kindle e Papel)
Mas relendo estes estudos, e analisando à distância do tempo a experiência deste Verão, fazendo uma introspecção honesta e sincera, preciso de confessar que a minha experiência de leitura, dos lidos apenas em Kindle, foi diferente. Acredito que da experiência gerada pelo Kindle restou menos da componente emocional, porque menos racional. Ou seja, com o tempo, a minha aparente incapacidade para recordar mais concretamente detalhes da história, retira-me acesso ao prazer emocional sentido aquando da leitura. Ou seja, a experiência no momento foi emocional, mas o alegado facto de os dados da leitura se perderem, fizeram com que algumas emoções sentidas também se tivessem perdido!
A minha explicação para isto está de certo modo espelhada no que Mangen também diz, e tem que ver com o modo como opera a nossa memória. Assim, o Kindle apesar de muito mais cómodo em termos de mobilidade, apresenta vários problemas em termos de multisensorialidade. Ou seja, não é possível para mim criar uma percepção somática da obra, enquanto um todo. O Kindle falha por não providenciar o toque individual de cada página, assim como o entre-páginas, falha por impedir a criação de uma mapa mental das diferentes secções e do todo do livro, e falha por não permitir a alocação das partes do livro (páginas, alto de páginas à esquerda, e à direita, etc.) aos momentos de leitura, impedindo assim a criação de selos temporais e sensoriais da leitura. É verdade que à medida que nos tornamos mais experientes no uso do Kindle passamos a utilizar melhor os dados de "Locations" e "Percentagens", mas estes são dados racionalizados, que não nos chegam via sentidos alternativos à visão.
Consequentemente, no final da leitura a nossa memória possui menos pistas e dicas que ajudem a colar os nós e os eventos da história. O nosso cérebro funciona num modelo associativo, e a nossa memória recupera informação, realizando triangulações de informações. Neste caso triangulando o que foi dito na história, com aquilo que eu inferenciei no momento para interpretar, juntamente com o mapa somático-sensorial vivido no momento. Ora é esse mapa somático-sensorial que se perde com o objecto digital, porque ausente de materialidade, de corpo.
Nada disto está fechado, continuaremos a ler cada vez mais em digital, mas os estudos não auguram grandes possibilidades para um mundo exclusivamente feito de bits e bytes. Concordo ainda com Mangen quando refere que esta não é uma mera questão de ser ou não ser nativo digital, pois vejo isto como algo muito mais essencial, é algo que lida com a nossa biologia, o nosso corpo. Habituados a colocar a intelectualidade no plano do imaterial, esquecemos que o saber se constrói e edifica de forma mais eficiente em nós, quando nos chega por via da acção material. Ora, estes estudos mostram que até a simples materialidade de um livro pode fazer diferença.
Nota final: Esta discussão levanta ainda outras problemáticas, nomeadamente a comparação da experiência cognitiva de uma história, quando realizada num livro físico versus um filme/série ou videojogo. Isto porque, tanto o filme/série como o videojogo são imateriais, ainda que no caso do jogo exista uma componente acção via interface física. Mas os estudos desta natureza são demasiado complexos, já que nem o filme/série nem o videojogo, podem apresentar exactamente a mesma experiência narrativa de um livro, serão sempre adaptações. Daí que realizar um estudo que consiga separar as variáveis da adaptação, das variáveis da materialidade, para não falar das variáveis da linguagem, é algo praticamente impossível de realizar. Isto não invalida que não possamos especular, teorizar e acima de tudo reflectir sobre tudo isto.