Facilmente podemos perceber que existe aqui matéria de estudo suficiente para um trabalho de investigação muito mais aprofundado do que um simples texto. No entanto, interessa-nos lançar aqui algumas ideias, verbalizá-las e registá-las para que não se percam, e que sirvam a quem tenha interesse no futuro em realizar esse estudo. O objectivo desta reflexão centra-se essencialmente sobre Apocalypto, mas serão feitas ligações e comparações com Passion of Christ, sempre que se julgue pertinente, isto porque o que desencadeia esta reflexão é o visionamento de Apocalypto realizada há poucos dias, enquanto Passion já vai com dois anos, necessitando de um novo visionamento podermos concentrar no detalhe.
Assim, Apocalypto, foi fortemente publicitado e badalado através do word-of-mouth como um filme muito violento mas ao mesmo tempo muito cativante. Confesso que do filme apenas, conhecia o trailer, e desse modo o meu interesse centrava-se totalmente no fascínio que tenho pelas culturas ancestrais da América latina (Aztecas, Maias e Incas), um fascínio que vem do tempo da série francesa de animação Les Mysterieuses Cités D'Or que deixaram fortes marcas na minha infância.
Entrando no filme, propriamente dito, e começando pelas suas personagens, elas desenvolvem-se na base dos arquétipos dos personagens campbellianos, que evoluem os seus traços ao longo do filme, e em que o "mal" aparece para destabilizar o "bem" e romper com todo o seu status quo, de modo a criar o conflito que dá origem a todo o drama que se segue e que terá de evoluir para gratificação das empatias geradas nos espectadores. O filme suporta-se numa balança que vai pendendo ao longo de todo o filme, para a esquerda ou direita, entre o "bom" e o "mau", os eternos personagens da narrativa de aventura. E é neste balanceamento "mágico", universal e estandardizado que se centra toda a acção e temática de Apocalypto.
Veja-se em maior detalhe Jaguar-Paw e Zero Wolf, ambos evoluem de forma bastante acentuada numa linearidade faseada. Jaguar-Paw inicia a sua caminhada como um quasi-adolescente sem muita noção do real, passando a adulto de uma forma trágica com a eliminação do pai. Durante o desenvolvimento do filme a sua personagem estabiliza dá-se a conhecer e complexifica-se com a apresentação de uma aparente serenidade e compaixão para com os seus colegas. No momento em que é "libertado" dá um salto em frente, apresenta-se como invencível e de tudo capaz para salvar a sua família. Já do lado oposto, mas com uma evolução também ela bastante marcada, temos Zero Wolf, inicia-se como um pilar de firmeza e determinação, condutor dos destinos de todos os que o rodeiam. Uma determinação marcada pelo mal, pela completa usurpação da liberdade do outro, ao mesmo tempo que o coloca a meio caminho entre o bom e o mau, defendendo os seus prisioneiros apesar de sabermos que apenas com um finalidade. Mas chega mesmo a pender para a positividade com a consciência que demonstra ao tomar conta do futuro do seu filho, passando-lhe o testemunho da continuação do seu trabalho, mas desiludindo novamente quando se percebe o destino dos prisioneiros que por causa do eclipse já não serão sacrificados. Ou seja, ambos os personagens evoluem de forma fortemente faseada dando-lhes contornos de personagens complexas, porque não assumem uma só visão, mas também porque a determinação que ambos demonstram lhes permite realizar uma evolução na narrativa que se torna determinante para a progressão da história. A fuga de Jaguar Paw, deixando para trás, uma ferida aberta (o filho) em Zero Wolf, abre o prelúdio para o clímax do filme, com uma perseguição total em contra-relógio (motivada pela chuva) que se adensa e entranha nos sentires de ambos os personagens faseando a gratificação do espectador.
Passando agora à questão que verdadeiramente me levou a escrever este texto, o impacto emocional do filme, a dita violência crua/gratuita. Julgo que é nesse aspecto que o filme inova verdadeiramente, aliás tal como já tinha feito com Passion of Christ, Gibson não se fica pelo lado adocicado da representação, mas apresenta o mundo "tal como ele é". E é sobre este "tal como ele é" que vou precisar de me alongar um pouco mais, uma vez que pode parecer uma loucura. A verdade é que nada do que é mostrado em Passion ou Apocalypto é impossivel e ainda menos inverosímil, uma vez que falamos de casoa com 2000 anos e no outro 500 anos. Ia agora recuar no tempo para falar de atrocidades, mas dou-me conta que não é necessário, pense-se apenas em Abu Ghraib em pleno século XXI, nada mais do que o lado real da famosa Stanford Prison Experiment. O ser humano pode ser violento, muito violento mesmo e ao mesmo tempo é um animal mamífero por completo, determinado por uma matriz social que o impele à manutenção da união da espécie graças a uma forte componente neuropsicológica que a isso obriga. Mas julgo que isto será óbvio para todos, desse modo resta-me lembrar que no aspecto visual Passion é bem mais forte na composição gráfica da violência mostrando o sangue e a mutilação de um modo completamente frontal. Por outro lado, a violência em Apocalypto é muito mais psicológica, é acima de tudo determinada pela destruição dos vínculos inter-casal e parental, fortemente enfatizado pelas expressões faciais em grandes planos dos personagens. A tristeza nos bons e a raiva e loucura nos maus.
Sobre este ponto, posso mesmo dizer, que nunca antes tinha visto no cinema uma sequência tão violenta e agressiva, como aquela do início de Apocalypto, reitero que esta violência não decorre da habitual composição visual de sangue ou luta (longe das arenas de Gladiator) mas sim da mistura perfeita entre a narrativa e o aproveitamento da linguagem não verbal dos personagens que nos explode na cara tocando-nos no íntimo da espécie. Não é uma sequência de dureza gráfica como Kill Bill ou 300, mas também não é a sequência típica da tragédia se comparamos com outros casos de grande compaixão como Schindler's List (1993) ou mais próximo até deste registo, a cena final de The Mission (1986). A perfeição da composição emocional aproxima-se do savoir-faire de Kubrick em A Clockwork Orange (1971) e que assenta numa optimização da relação conteúdo/forma, operando o conteúdo sobre os valores essenciais ao ser humano, o vínculo inter-casal e no caso de Apocalypto também parental e uma total impotência face aos eventos que se sucedem, apresentando-se sob uma capa formal, estigmatizada pela comunicação facial e corporal, crua na representação fotográfica, ausente do embelezamento gráfico tão típico na indústria americana e que incrementa o realismo, proximidade e familiaridade com o momento, colocando o espectador num estado empático muito duro e violento.
Neste sentido, os dois filmes de Gibson fogem ao registo adocicado de Hollywood, em que se aborda a violência, mostrando apenas o seu lado momentâneo da raiva (acção) deixando de lado as consequências ou efeitos dramáticos/psicológicos dos seus efeitos para segundo plano. Nesta lógica, os efeitos são por norma o lado mais explorado pelo cinema europeu ou dito artístico, em que a acção (violência) é evitada para que se explore fortemente o lado da tragédia humana que permita o desencadear dramático na sua plenitude. Assim podemos dizer que Gibson, soube beber nas duas correntes e optimizar os dois discursos com vista à satisfação, tanto do público como dos críticos.
Existe uma vontade em Gibson de mostrar, de representar o mais fielmente possível as experiências humanas nos seus contextos históricos, "tal como elas são". Ainda que possamos apontar problemas e erros, a verdade é que no geral, e apesar de existir uma vontade e necessidade de dramatização que por vezes se vê obrigada a transformar um eclipse solar de horas em parcos minutos, ambos os filmes espelham com uma certa dose de realismo a dureza dos tempos vividos pela raça humana. Esta vontade espelha-se também numa particularidade técnica que ocorre duas ou três vezes no filme, em que vemos a cara do personagem que olha para algo, e durante algum tempo podemos apenas imaginar o que ele estará a ver, até que a câmara começa a rotação passando-se para trás do actor e mostrando o que este estava a ver. Uma vez mais, a exploração da face como mundo narrativo contagiado de emoção, na qual nos deixamos perder à procura de respostas para o que estarão aqueles olhos a ver. A cena final da chegada dos espanhóis é brilhante nesse aspecto.
A forma como Gibson introduz os Espanhóis no filme é magistral, depois de nos ter deixado suspensos pela contagiante expressão de perplexidade de Jaguar Paw, eis que ao virar da câmara aparecem, ainda que não surpreendentemente, os Espanhóis. O momento é no entanto de pura surpresa, tal como Jaguar, nós estamos também surpreendidos. Gibson, aproveita-se da expressão do personagem para nos preparar para o facto, e depois deixa-nos à deriva com a imagem do padre que se aproxima na barca, de ar misericordioso. A surpresa que surge em nós, não é tanto causada pelo facto de se apresentarem ali, como um elemento quase externo à narrativa Maya do filme em particular, mas antes por tudo aquilo que eles representa para a América latina, e que tão surpreendemente facilmente se cola a sequência ultra-violenta que abre o filme. Aliás existe, aqui um provável recalcar por parte de Gibson sobre aquilo que somos como seres humanos. A misericórdia trazida pelos espanhóis originou um dos maiores massacres da história da humanidade, com mais de 20 milhões de mortos. Um massacre quatro vezes superior ao tão propalado, holocausto judeu, decorrido na Europa.
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