fevereiro 24, 2014

O som por "detrás" das imagens

"Silent" (2014) é a nova curta da Moonbot criada para os Laboratórios Dolby, com o objectivo de evidenciar a relevância do som junto da imagem. Foi apresentada em Fevereiro deste ano na cerimónia dos Science’s Scientific and Technical Awards da Academy of Motion Picture Arts (EUA). A personagem Morris Lessmore, do filme da Moonbot, The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore (2011), ganha autonomia e assume-se como uma personagem do mundo do cinema. O mais interessante é que a forma como aqui é tratada encarna na perfeição dois dos personagens que talvez tenham estado na sua génese, Charlie Chaplin e Buster Keaton.





Uma das maiores forças do storytelling está na fusão que se realiza entre imagem e som, na capacidade que ambos ganham quando se misturam, para recriar um universo à nossa volta, capaz de nos envolver cognitivamente, conduzindo à imersão durante todo o tempo que dura a experiência. Apesar do cinema, a mais poderosa máquina de emoções criada pelo ser humano até hoje, ser feito essencialmente de imagem e som, continuamos ainda a menosprezar a importância do som. Mais sobre a história da construção desta fusão pode ser visto no episódio 4, "Once Upon a Time", da série documental da BBC, "How Art Made the World" (2005).
“Sound is one of the things now that really binds you into that world, envelops you completely… I mean it takes [a movie] from just being the flat plane in front of you to literally surrounding you. And there’s nothing else like that.” William Joyce in Making Of
Silent (2014) de Brandon Oldenburg

fevereiro 20, 2014

O universo visual de "The Last of Us"

Sei que pode parecer sobranceria da minha parte dizer que assim que vi as primeiras imagens em 2011 de “The Last of Us” (2013) fiquei apaixonado pelo jogo, agora que o jogo é aceite por todos como um dos melhores legados da última geração de consolas. Por outro lado, o Facebook acaba tendo destas coisas interessantes, consegui repescar o que escrevi na altura em que saiu o primeiro trailer, e a forma com o defendi. Dizia eu,

Pripyat,  Ucrânia
“é todo um Universo muito pouco explorado até agora tanto no cinema como nos jogos, a mistura de um cenário apocalíptico com o imenso verde da natureza. Algo que nos diz que a natureza continua o seu caminho, mesmo depois de nós. Ou seja, esteticamente, está mais próximo de "Children of Men" (2006) do que de "The Road" (2009).” (in Facebook 12.12.2011)
"Hotel Polissia" em Pripyat, Ucrânia. Fotografia de Quintin Lake

Na verdade quase tudo se resumiu ao meu encantamento por uma espécie de apocalipse verde. E é sobre este que faço este post, sobre a raiz que suportou toda a estética do jogo. Nate Wells, o lead artist de The Last of Us deu uma entrevista para o blog I.Eat.Games em Julho de 2013, na qual refere que a inspiração visual para o videojogo veio do livro “Zones of Exclusion: Pripyat and Chernobyl” (2008) do fotógrafo Robert Polidori, e acho que isso diz tudo sobre aquilo que encontramos no jogo.
“There’s a book that came out a few years back by a photographer name Robert Polidori called Zones of Exclusion. He went in about 20 years ago to the day into the Chernobyl site and photographed the town of Pripyat and Chernobyl. It was an inspiration during Bioshock 1, and when I came over to Naughty Dog there were 3 copies! Don’t try to get it because it’s like $400 because it’s out of print. This photographer also did Detroit and a smattering of other abandoned urban spaces. There’re also a bunch of great photographers on line too.
Those are all huge resources for us with The Last of Us, especially for lighting and the degree of decay and overgrowth. All those things. When you play the game you’ll notice those themes keep coming up.
The environment really becomes a mirror to humanity. Humanity has decayed and become infected, so has their world. It’s decayed and it’s now being overrun and reclaimed by nature in the same way their bodies are. It makes a great analog, but it also makes these incredibility beautiful moments that you’re not likely to see. To go into a beautiful hotel and see the ceiling caved in and now vines are reaching through the skylight, or to be in a space where the ceilings collapsed, seeds have fallen through and a tree has had 20 years to grow all inside a store. Those are the sort of things and the sorts of moments you want, and it’s the juxtaposition that’s so fun.” (Nate Wells, Julho 2013)


Fotografias de Robert Polidori do livro “Zones of Exclusion: Pripyat and Chernobyl” (2008)

Vendo as fotografias de Robert Polidori, entre muitas outras que se podem encontrar online, tiradas nas cidades de Pripyat e Chernobyl ao longo da última década, 20 anos após o seu total abandono, podemos encontrar zonas que o jogo praticamente decalcou, desde ginásios e corredores a praças, fachadas e varandas.



Fotografias de Pripyat e Chernobyl encontradas online

fevereiro 18, 2014

O tempo da animação digital

Em Janeiro tive o prazer de participar na arguição do projecto de mestrado do José Pedro Sousa Teixeira no âmbito do mestrado em Animação Digital da Escola Superior Artística do Porto - Guimarães. O projecto consistiu na criação da curta de animação digital, Agnes (2013), orientada pelos colegas Pedro Mota Teixeira e Pedro Bastos.



O que tínhamos para avaliar era uma curta de animação 3d de quatro minutos, inteiramente concebida por uma pessoa apenas, exceptuando a música e sonorização, ao longo de 11 meses, no software open source Blender. Nesse sentido a avaliação realizou-se em função dessas condições, sabendo que para além do filme tínhamos ainda um relatório bem fundamentado sobre a história da animação 3d, aspectos estéticos, e as metodologias de trabalho desenvolvidas.

Agnes (2013) é assim uma curta com algumas limitações estéticas, porque realizada por uma pessoa apenas, e em menos de um ano. Ainda assim, é um trabalho de excelência, nomeadamente no design de personagens, e criação do mundo tridimensional. A componente de animação e cinematografia apresenta também enorme qualidade. Sendo que a parte que eu gostaria de ter visto mais desenvolvida seria a das texturas e iluminação, mas sabemos bem que aí entramos no território do detalhe visual que requer bastante tempo por parte do criador. No plano temático o criador optou por brincar com motivos dos videojogos cruzando-os com tendências da animé, o que ajudou a desenvolver um universo muito próprio, com uma identidade clara, que se espelha um pouco por todo o filme, desde o movimento dos personagens à atmosfera que se gera.

Gostaria ainda de trazer aqui um outro ponto, que é muitas vezes esquecido quando falamos deste tipo de trabalhos, seja nas arguições, seja noutras situações, que é o tempo envolvido no desenvolvimento deste tipo de projectos. Já disse que foram 11 meses, mas isso fala de um modo muito genérico. Nesse sentido o José Teixeira teve a ideia de apontar todos os tempos que investiu no filme numa folha de excel, o que foi excelente, e depois teve a enorme amabilidade de me fazer chegar essas folhas de excel.

Captura da folha de excel de tempos de José Teixeira

E porque digo que isto é relevante? Porque quando ensinamos, ou falamos com alguém sobre esta área, é difícil as pessoas compreenderem o que está verdadeiramente em questão por detrás do trabalho realizado. Nesse sentido, olhando para estes dados em maior detalhe, será possível dar a conhecer com muito maior concretude o que se passa por detrás de um filme de apenas 4 minutos de animação 3d.

Assim temos que o projecto foi desenvolvido efectivamente em duas fases separadas, a primeira entre Novembro 2011 e Março 2012, e a segunda entre Janeiro e Junho de 2013. Ou seja, temos 11 meses efectivos, ao longo de dois anos. Durante esses 11 meses o José Teixeira trabalhou efectivamente na curta um total de 1570 horas, o que dá um total de cerca de 200 dias a 8 horas de trabalho. Ou seja, poderíamos dizer que foram precisos em média 50 dias para criar cada minuto de animação. Aprofundando o detalhe por áreas específicas, temos então

  1. Modelação de Personagens: 336 horas
  2. Modelação de Cenários: 480 horas
  3. Rig de Personagens: 144 horas
  4. Texturização: 144 horas
  5. Iluminação: 64 horas
  6. Animação Personagens/cenários: 1200 horas
  7. Animação Câmaras: 48 horas
  8. Render: 84 horas
  9. Montagem (Video+Som): 144 horas


Agnes (2013) de José Teixeira

Daqui podemos extrair algo que quem trabalha na área já sabe, mas fica aqui evidenciado quantitativamente, e que é o facto de que aquilo que é mais complexo, moroso, e trabalhoso  num trabalho de cinema de animação 3d, é a animação de personagens. Esta duplica o trabalho investido na modelação de personagens e cenários juntos, que é já de si um trabalho imensamente moroso dada a minúcia necessária ao trabalho de esculpir cada um dos elementos.

Podemos ainda através apenas desta discriminação perceber porque falava eu de alguns problemas na texturização e iluminação, pois ambas juntas tiveram menos investimento do que a modelação dos personagens apenas. Por outro lado é muito interessante constatar que apesar do investimento na animação das câmaras ser reduzido, a qualidade é muito boa. Ou seja, existem questões que vão para além dos dados quantitativos aqui apresentados e que se prendem com os talentos de cada um. Ou seja, um trabalho como estes requer sensibilidades muito distintas, o que torna muito complicado de conciliar tudo numa única pessoa apenas.

Modelar, Texturizar, Iluminar, Animar e Cinematografar não são a mesma coisa. Por isso quando exigimos a alguém que faça uma curta 3d, não podemos esperar que faça um trabalho com a qualidade dos efeitos de Hollywood. E já não falamos de meios tecnológicos, que deixaram quase de ser relevantes, mas porque um trabalho destes requer equipas de pessoas altamente especializadas em cada uma destas áreas. Claramente que o José Teixeira trabalha bastante bem no campo da modelação, animação e cinematografia, mas ainda assim estamos a exigir demais de uma pessoa apenas. As sensibilidades, os interesses, as experiências que temos de ter vivido, a cultura que temos de ter consumido, a prática que temos de ter treinado são bastante diferentes.

E é por isso que quando vemos um trabalho como Agnes, não podemos deixar de nos sentir felizes. Não sendo um "Rosa" (2011), é um trabalho de excepcional qualidade, é a obra-prima de José Teixeira apresentada no final no seu caminho de aprendizagem, como se fazia na idade média no âmbito das guildas de excelência.

fevereiro 17, 2014

Seis factores da comunicação viral

Jonah Berger passou a última década a fazer investigação na área do marketing digital, tendo publicado “Contagious: Why Things Catch On” (2013) como um sumário dos resultados da sua investigação. O cerne do seu trabalho esteve centrado sobre o aspecto viral das mensagens online, algo que já existia no mundo analógico, mas que se acentuou, ou melhor dizendo, percebemos melhor a partir do momento em que passámos a quantificar o que acontece com as mensagens. Nesse sentido Berger desenvolve e apresenta uma metodologia de análise da viralidade da comunicação.


Tenho a dizer, ainda antes de entrar no detalhe, que me parece de grande relevo o trabalho realizado por Berger, não pelo foco em si, mas pela abordagem realizada ao foco. Ou seja, Berger não se focou sobre aquilo que as pessoas mais gostam ou detestam, mas antes centrou todo o seu trabalho na tentativa de perceber o que leva uma pessoa a partilhar uma informação. Ou seja, estamos a falar de um agenciamento, que implica consciência e ação, alguém que decide que uma informação deve ser partilhada ou não. Berger começou esta investigação exatamente depois de ter comparado durante vários meses os “Artigos Mais Lidos” e os “Artigos Mais Partilhados” no Wall Street Journal, e ter compreendido que na maior parte das vezes eles não coincidiam. A partilha parece assim ser diferente do simples gostar, achar interessante ou irrelevante, porque é algo que exige uma persuasão que vai para além do gosto, a persuasão tem de ser suficientemente forte para fazer agir, colocando o sujeito no início de um processo que pressupõe autoria, ainda que apenas através da mera curadoria.

Ou seja, quando leio/vejo uma mensagem posso gostar ou não desta, mas a decisão de a partilhar, é completamente distinta do juízo moral ou estético que faço da mesma. O simples processo de partilha insinua o meu suporte ao que é dito nessa mensagem, empresto-lhe a minha identidade no momento em que a partilho. Não existe apenas a implicância de se dar ao trabalho de partilhar, por fácil que seja, mas ainda a responsabilidade de o fazer. Tomo uma posição quando partilho, ajo sobre o mundo que me rodeia, e daí posso retirar benefícios, mas também ganhar novos problemas ou até perder amigos, que poderia ter evitado mantendo-me apenas quieto! O ato de partilha é assim um processo de agenciamento da nossa parte perante o mundo, ao contrário do ato de leitura ou consumo. A grande questão que se coloca então é, sabendo das implicações que a partilha acarreta, o quê e como é que se conduz alguém a partilhar algo? Ou seja no fundo, como é que se cria e mantém uma corrente viral?

Para dar resposta a esta questão Berger passou alguns anos a fazer pesquisas sobre partilhas feitas por milhares de pessoas, incluindo uma das mais faladas que foi realizada a partir do estudo do top dos artigos do NYT mais partilhados por e-mail. Os vários estudos conduziram Berger à definição de um conjunto de factores que potenciam a partilha, e que são apresentados neste livro, os STEPPS: Moeda Social, Gatilhos, Emoção, Público, Valor Prático, Histórias.


1. Moeda Social
O primeiro factor está intimamente ligado ao ato de partilha, o que ele representa. Na verdade a partilha é um processo social que tem custos e benefícios, ainda que possamos não estar conscientes do facto, quando o fazemos. Não partilhamos algo que possa ser negativo para nós, que possa danificar a imagem que os outros têm de nós. Ou seja, a partilha é feita em função da imagem que queremos dar de nós próprios. Por isso tendemos a partilhar aquilo que possa contribuir para uma imagem mais prestigiante, como pessoa inteligente, “cool” e que está por dentro dos assuntos. A partilha de algo permite que a pessoa se afirme como sabedora, sem ter de o dizer explicitamente, daí também que as empresas explorem os atributos da gamificação, como prémios, medalhas, posições em rankings que garantam uma partilha imediata do status (ou seja atribuem uma representação imediata ao valor social) de cada um dentro do sistema.

As pessoas tendem a partilhar a novidade, o diferente, o surpreendente e notável, aquilo que contribui para gerar status. E se isto é fácil de ser conseguido com um novo iPhone, ou um novo filme do Batman, pode já não ser tão simples de fazer com o lançamento de um novo modelo de frigoríficos, etc. Mas Berger dá o exemplo do papel higiénico preto, por acaso inventado pela Renova portuguesa, mas que como ele diz, sendo algo nunca visto e impressionante, dá vontade imediata de partilhar.

2. Gatilhos 
O segundo factor tem que ver com os gatilhos que conduzem as pessoas a associar diferentes ideias, ou diferentes produtos. Os gatilhos são como lembranças ambientais porque atuam sobre as nossas memórias. Por exemplo uma música no rádio pode recordar-nos um amigo ou namorado, o cheiro de pão quente pode recordar-nos a nossa avó, etc. Assim mesmo que não tenhamos visto o objecto em questão, vemo-lo na nossa cabeça. E estes gatilhos podem também podem contribuir para incrementar a partilha. Ou seja, o facto de nos recordar algo, faz com que fique presente na nossa mente, e nos leve a partilhar mais facilmente.


Este factor explica por exemplo o sucesso das listas online, que nos recordam imensas experiências vividas, sugerindo imediatamente a partilha, com a ideia de que possamos levar os outros a viver também aquelas experiências. Ou por exemplo o facto das barras de chocolate Mars terem aumentado vertiginosamente as suas vendas aquando da chegada da Missão Rover ao planeta Marte (em inglês Mars), mesmo sem a marca ter promovido qualquer campanha publicitária nessa altura. Ainda no campo dos chocolates uma ideia inteligente, foi a associação do chocolate Kit-Kat à pausa para café, que faz associar o chocolate a uma recompensa que todos conhecemos e desejamos. Ou por exemplo uma música que aparentemente ninguém daria nada por ela, mas porque se chama "Friday", acabou sendo altamente partilhada quando saiu, particularmente todas as sextas-feiras.

3. Emoção 
O caso da emoção, é um dos mais estudados nas últimas duas décadas, tendo sido altamente explorada em todas as suas dimensões, fisiológica, cognitiva, comportamental, etc. Aqui Berger vai socorrer-se da perspectiva fisiológica, que define as intensidades de atividade fisiológica que cada emoção requer. Assim nas emoções intensas positivas temos a – Euforia e Alegria – e nas negativas – Raiva e Nojo. Nas emoções pouco intensas fisiologicamente, positivas temos – tranquilidade e relax – e nas negativas - tristeza e melancolia.

Berger a partir dos seus estudos conclui que temos uma maior tendência para partilhar emoções positivas, porque estas contribuem diretamente para a Moeda Social. Ou seja, partilhamos que fomos promovidos no emprego, mas não partilhamos que o nosso filho teve negativa num exame. Por outro lado somos capazes de partilhar as negativas, quando isso pode contribuir para repor algum sentido de justiça (crianças magoadas, cães abandonados, pessoas em grande sofrimento, etc.). Já quando as histórias apresentam apenas a tristeza, sem um culpado não há lugar a canalização de raiva, logo não há partilha. O mesmo sucede as histórias de mero relaxamento ou tranquilidade, sem um motivo que exalte esse estado, torna-se em algo sem potencial agenciador.

Modelo Circumplexo de Russell (1980), tal como apresentado no livro Emoções Interactivas (2009:51)

No fundo o que Berger nos diz, é o mesmo que eu acabei encontrando a propósito da interactividade nos videojogos, que aquilo que nos leva agir são as emoções que despoletam excitação e ação, e não as que despoletam repouso ou inação. Ou seja, o acto de partilha é um acto de acção tal como o de interacção, requerendo ambos agenciamento da nossa parte, daí que as emoções mais intensas fisiologicamente, nos predisponham a realizar o esforço da partilha, o assumir de responsabilidades, o querer agir, o querer mudar o rumo dos eventos.

4. Público 
Este factor não traz propriamente nada de novo já que se limita a ser um dos factores da persuasão social mais amplamente estudados, conhecido como “Prova Social”. Um exemplo clássico é escolhermos o restaurante que está cheio para jantar, e não o vazio. Neste sentido temos tendência para imitar o outro, embora só o possamos fazer quando o vemos. Ou seja, é necessário tornar as coisas públicas, para que estas possam ser imitadas.


O exemplo dos auscultadores do iPod serem brancos foi uma das jogadas mais bem elaboradas, já que conseguiu tornar público algo que normalmente estava escondido. Outro exemplo que Berger fala é o das campanhas de donativos para várias lutas, e uma que fez uso do tornar público, foi uma campanha que ficou conhecida como Movember, deixar crescer o bigode como suporte aos problemas de saúde dos homens. O bigode faz as pessoas lembrarem-se que devem contribuir para a causa.

5. Valor Prático 
Este é um dos factores mais óbvios e naturais no suporte da partilha, e que tem que ver com o real valor que aquela informação pode ter para os outros. Partilhamos para ajudar os outros, por isso escolhemos a informação que partilhamos em função daquilo que pode ajudar o próximo. Por isso partilhamos bons negócios, ofertas, descontos, promoções. Por outro lado isto explica porque razão uma grande parte dos artigos mais partilhados são sobre Saúde (novos tratamentos, novos resultados, etc) e Educação (TED, Courseras, etc).


6. Histórias
O último factor é bem conhecido de quem segue este blog, já que o tenho aqui trazido vezes sem conta, ainda recentemente a propósito do livro The Storytelling Animal de Gottschall ou a propósito das ideias de Ira Glass sobre o Storytelling e a Criatividade. E o que sabemos é que a forma de organização narrativa é vital na transmissão de informação, logo é também vital na motivação para a partilha. Se formos capazes de embrulhar a nossa ideia ou produto numa boa história, mais facilmente ele tenderá a espalhar-se. Aliás Berger fala mesmo no Cavalo de Tróia, a história é o nosso cavalo de Tróia para chegar aos outros.



Berger fala em detalhe sobre os anúncios da Dove, nomeadamente do Dove Evolution parte da campanha iniciada em 2004, Real Beauty. Aliás o sucesso desta abordagem ao mundo dos cosméticos foi tão forte que em 2013 a Dove voltou a conseguir outro gigantesco viral com o anúncio Dove Real Beauty SketchesOu seja, as pessoas precisam de boas histórias, porque são as boas histórias que as fazem mover, que as fazem desejar continuar a agir sobre o mundo em que vivem.

Para quem não quiser o ler o livro, ou quiser mais um pouco de informação sobre cada um destes pontos dados pelo próprio autor, deixo a lista de seis vídeos que Jonah Berger gravou sobre cada um dos Factores.

Para terminar quero falar rapidamente de um assunto próximo que tem andado a circular nos últimos tempos, e que diz respeito aos anúncios pagos no Facebook, e ao modo como muitas das partilhas que fazemos não chegam a ser vistas pelos nossos amigos. Num vídeo recente do canal Veritasium, os anúncios pagos no Facebook são desmontados como sendo uma autêntica fraude. Ou seja, as pessoas pagam para ter mais likes, e eles aparecem, mas isso não quer dizer que se traduza em mais engagamento com a nossa página. Aliás, se assim fosse esta metodologia proposta por Berger não faria qualquer sentido, bastaria comprar likes na loja do Facebook!


Serve este assunto de fecho para alertar para o facto de termos de começar a interiorizar a ideia de que mais likes no facebook, ou mais seguidores no twitter, etc. está longe de ser sinónimo de verdadeira popularidade, interesse, e menos ainda relevância. Disseminar ideias, mensagens, produtos, exige esforço, pode ser um esforço metódico e premeditado, mas está longe de se limitar a uma mera compra de espaço para anunciar, ou de likes.

fevereiro 14, 2014

a arte do retrato

"The Art of Portrait Photography" (2013) é um episódio da série OffBook dedicado à fotografia de retrato. Não sendo nada de novo, está muito interessante pela forma como aborda rapidamente a história do retrato desde a pintura, seguido da apresentação de algumas variantes do retrato, tais como a fotografia narrativa, a exploração das relações do sujeito e espaço, ou ainda da criação de momentos de estranheza. Em termos visuais, os trabalhos apresentados são bastante ricos e belos. Vale a pena investir os sete minutos a ver o filme.




"Humans have been creating likenesses of each other for thousands of years, but with the introduction of photography, a new language developed for capturing the human image. Photography created opportunities for not just for biography and documentation, but also depth, empathy, and experimentation. Many portrait photographers today elevate their work from mere photo to art, communicating ideas and capturing the human subject with dignity, all while exploring the meaning and potential of portraiture."



"We’re drawn to portraits, because they are human beings, and we're human beings."

fevereiro 13, 2014

A condição da amizade numa animação dramática

"Junkyard" (2012) é um trabalho absolutamente impressionante do ponto de vista visual, ao ponto de apetecer parar a cada mudança de plano, para ficar ali a contemplar. Criado por Hisko Hulsing que se envolveu na animação "por mero acaso" enquanto estudava Pintura na Academia de Artes de Roterdão. É inevitável identificar nesta animação o impacto da arte da pintura, que torna o filme um trabalho único do ponto de vista estético. Não é por acaso que ao longo de dois anos foi aceite em mais de 100 festivais e premiado 22 vezes. Respira-se detalhe nesta obra, e a isso não é alheio, de forma alguma, o facto de ter estado em produção mais de 6 anos.




Em termos mais específicos o trabalho não vive apenas da beleza visual, Hisko Hulsing apresenta um enorme savoir-faire técnico no campo do storytelling, sendo capaz de gerir muito bem a informação que vai dando, o suspense que vai criando, por meio de uma narrativa complexa que assenta num conjunto de flashbacks em paralelo com a realidade do presente. Claro que contribui imenso para a gestão do storytelling a forma como é composto cada quadro do filme, já que estes não se limitam a ser belos, eles são profundamente narrativos.
“A man is robbed and stabbed on a metro train. As he lays dying, a friendship from his youth flashes before his eyes.”
Se em termos formais temos excelência, o tema e a história apresentam tanta ou mais excelência. Tratando a temática da amizade, fá-lo de modo a tocar os interstícios da condição humana, e a subjugar assim, o receptor à força desse sentimento. Tudo em menos de 20 minutos.

"Junkyard" (2012) de Hisko Hulsing

[via Short of the Week]

fevereiro 11, 2014

o excedente cognitivo de Shirky

Clay Shirky é professor de media na NYU e reconhecido como um grande defensor das tecnologias sociais baseadas na Internet. As ideias apresentadas em, "Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age" (2011), são a algumas passagens bastante interessantes e relevantes, nomeadamente porque apresentam um discurso optimista contra alguns ataques mais pessimistas relativos ao efeitos destas novas tecnologias. No entanto, o discurso de tão optimista leva Shirky a trabalhar alguns aspectos sociais, que regulam muito das nossas vidas, de um modo por vezes demasiado ligeiro.


De forma sucinta, o excedente cognitivo de que Shriky nos fala, é o tempo que hoje gastamos na internet a interagir, a criar, e a partilhar, em vez de ficar sentados no sofá a ver televisão. O problema com esta abordagem é que esquece que nem sempre as pessoas querem interagir, nem agir, e menos ainda criar. Somos definidos por um conjunto de modos e comportamentos, que se vão alterando ao longo de um dia, semana, ou meses.

Porque quando se trabalhou arduamente ao longo de um dia, no final desse dia resta pouca energia para continuar a empurrar ideias e ações para fora de si! Ou seja, uma coisa que Shirky nunca fala é sobre a economia por detrás de todos esses comportamentos de produção criativa. Todos os exemplos dados por Shirky são servidos por "modelos do grátis", dependendo de pessoas que podem apoiar com o seu tempo livre, suportado noutras fontes de rendimento, a criação e partilha.

Ao mesmo tempo, e apesar da atividade criativa e de partilha nos realizar, não podemos criar sem consumir. Supor que todas as tecnologias de comunicação do futuro obedecerão a paradigmas de comunicação bidirecional, está longe de ser uma realidade palpável. E a questão não é de sermos ou não nativos digitais, a questão é muito mais simples que isso, a interação é um estado distinto da introspecção.

De qualquer forma Shirky acaba por tocar em várias ideias interessantes a propósito da sociedade criativa, e das novas possibilidades abertas pelas comunicação via internet. Ainda assim ideias que precisam de ser lidas com alguma contenção, já que o discurso da democratização do acesso às tecnologias esquece, por demasiadas vezes, que a criação não é feita pela tecnologia mas pelas pessoas. Como dizia Franny Armstrong, uma documentarista britânica citada por Evgeny Morozov,
"Yes, the internet is democratizing in that sense that the cheap equipment is democratizing. But just because a football is cheap and anyone can kick one around, it doesn’t mean that everybody is Ronaldo
Deste modo o que me interessa neste discurso, não é a democratização do acesso, mas a democratização da experiência e o seu potencial feedback imediato. Ou seja, as tecnologias criativas abriram novos caminhos para que qualquer um possa tentar uma ampla gama de atividades criativas e assim descobrir pela experiência, o que mais diretamente fala consigo. Num mundo de muitas escolhas, poder experimentar sem investir muito esforço é importante, porque pode contribuir para conduzir as pessoas a encontrar os seus próprios talentos.

O facto de muitas destas tecnologias estarem em rede, e incentivarem a partilha, abre a possibilidade de obtenção de feedback imediato às criações. Apesar das reacções online poderem nem sempre vir das melhores referências, nem com as melhores intenções, elas poderão contribuir para manter o interesse em continuar a via criativa. A atividade criativa depende fortemente do feedback, que deve ser filtrado em função da sua origem (se é um par com trabalho efectivo na área ou não), porque só este pode ajudar no processo de auto-aprendizagem. O feedback contribui para levar a pessoa a investir e a repetir o exercício de técnicas menos conseguidas, assim como descobrir os caminhos em que melhor se exprime. O feedback é uma das peças da atividade criativa que a rede veio tornar mais acessível.

No final, o assunto aqui discutido não tem apenas uma abordagem ou uma resposta, nem sequer uma posição correta. Aproximar o tema com preconceito é fácil, por isso Shirky acaba afirmando, "Proponents of the new and defenders of the old can’t merely discuss the transition, because each group has systematic biases that make its overall vision untrustworthy". Estamos a viver esta mudança na nossa sociedade agora, dentro de alguns anos, quando olharmos para trás, vamos com certeza rir de muitas das nossas ideias ingénuas, assim como de muitos dos nossos receios.

fevereiro 09, 2014

Ira Glass sobre Storytelling e Criatividade

Ira Glass é um dos mais conceituados apresentadores da rádio americana, um meio no qual trabalha há mais de 30 anos. Ao longo da sua carreira foi agraciado com vários prémios e um doutoramento honoris-causa. A sua capacidade e mestria como contador de histórias é amplamente reconhecida, e é por isso que vale a pena parar para ouvir o que tem a dizer nesta entrevista para Public Radio International, sobre o modo como conta histórias, como as encontra, assim como como se atinge este estado de mestria.




Definição de história nos Media
Na primeira parte da entrevista, Glass fala sobre o que define uma história. Começa por dizer que as histórias nos media são diferentes daquelas que nos habituámos a escrever na escola. Assim Glass define dois blocos de construção para qualquer história a ser contada através dos media,

1 - A anedota, ou pequena história 
É uma sequência de acções, "primeiro aconteceu isto… e depois aconteceu isto… e a seguir aquilo… depois ele fez assim… e chegou àquele sítio…"
"The power of the anecdote is so great...No matter how boring the material is, if it is in story form...there is suspense in it, it feels like something's going to happen. The reason why, is because literally it's a sequence of events...you can feel through its form [that it's] inherently like being on a train that has a destination...and that you're going to find something..."
Esta sequência tem de ser gerida por meio de um ritmo, determinada por uma batida (beats) que são as questões que se vão colocando a cada momento: "Porque aconteceu isto? Porque foi ele para lá? Onde é aquele sitio?"
"The anecdote should raise a question right from the beginning. It's implied that any question you raise, you're going to answer it. The shape of the story is that you are throwing out questions, to keep people watching or listening, and then answering them along the way."
Isto que Ira Glass define como a "anedota", é no fundo aquilo que David Bordwell define como "hipothesizing". Bordwell explica-nos que no cinema estamos continuamente a lançar hipóteses mentais sobre o que vai acontecer a seguir. A nossa curiosidade guia-nos e mantém o nosso interesse desperto. Por isso tendo a definir muitas vezes a arte do storytelling como a arte de gerir expectativas.

2 - Momento de reflexão
A sequência de acções, que nos colocou dentro de um comboio em movimento, tem de nos conduzir a algum lado, tem de nos questionar e surpreender, tem de dizer alguma coisa.
"Why am I wasting time hearing this story... you have the two parts of the structure, you have the anedocte and the moment of reflection... and often you'll have an anedocte that just kills, that is so interesting... but in the end it means absolutely nothing... it doesn’t tell you anything new...
And sometimes we know we have something here, something kind of compelling but it just doesn’t seem to become together... and often it's your job to be kind of ruthless and understand that either you don't have a sequence of actions or you don't have a moment of reflection, and you're going to need both."
Primeira parte da entrevista

Em suma, os dois blocos que Ira Glass considera centrais para a construção de qualquer história, são os mesmo que se consideram centrais desde o início dos estudos da narratologia, a Fabula e o Syuzhet, ou seja o conteúdo e a forma, a história e o discurso. Aquilo que Glass aqui faz diferente, é que lhes dá um tom específico, não fica pelo discurso seco e objectivo do nosso discurso académico. Glass concretiza como deve funcionar o syuzhet e a que deve responder a fábula.


Encontrar uma boa história
Na segunda parte da entrevista Glass fala dos problemas de se encontrarem boas histórias, ou seja boas fabulas para contar. E apesar de parecer um queixume da profissão, acaba por ser imensamente relevante, já que tão poucas vezes se fala da mesma:
“Often the amount of time it takes to find a good story, takes more  time than to produce it.”
Uma frase que vem totalmente de encontro ao que não me canso de repetir, a propósito dos aspectos criativos, da criatividade, e da produção e partilha de conteúdos, que é que nada podemos criar, sem muito antes consumir.
"You’ll have to get rid of a lot of crap before you get to anything special. Because you don’t want to do mediocre work. The only reason you want to do this, is because you want to do something memorable, something special."

A evolução do processo criativo
Na terceira parte Glass vai apresentar um dos pontos altos da entrevista, e que mais tem sido partilhado online a propósito do processo criativo ao longo da vida. Mais uma vez, não é nada de novo, mas sim a forma como é exposto, a sinceridade e autenticidade da apresentação.
"Nobody tells people who are beginners — and I really wish somebody had told this to me — is that all of us who do creative work … we get into it because we have good taste. But it’s like there’s a gap, that for the first couple years that you’re making stuff, what you’re making isn’t so good, OK? It’s not that great. It’s really not that great. It’s trying to be good, it has ambition to be good, but it’s not quite that good. But your taste — the thing that got you into the game — your taste is still killer, and your taste is good enough that you can tell that what you’re making is kind of a disappointment to you, you know what I mean?

A lot of people never get past that phase. A lot of people at that point, they quit. And the thing I would just like say to you with all my heart is that most everybody I know who does interesting creative work, they went through a phase of years where they had really good taste and they could tell what they were making wasn’t as good as they wanted it to be — they knew it fell short, it didn’t have the special thing that we wanted it to have.

And the thing I would say to you is everybody goes through that. And for you to go through it, if you’re going through it right now, if you’re just getting out of that phase — you gotta know it’s totally normal.

And the most important possible thing you can do is do a lot of work — do a huge volume of work. Put yourself on a deadline so that every week, or every month, you know you’re going to finish one story. Because it’s only by actually going through a volume of work that you are actually going to catch up and close that gap. And the work you’re making will be as good as your ambitions. It takes a while, it’s gonna take you a while — it’s normal to take a while. And you just have to fight your way through that, okay?"

"The Gap" (2014) de Daniel Sax, é um pequeno filme que procura dar corpo a este momento da entrevista de Ira Glass. Algo que já tinha sido antes também transposto para visualização tipográfica por David Liu

Glass expressa tudo isto a propósito daqueles que querem criar vídeo, mas serve para qualquer atividade criativa. O que Glass aqui fala é do desenvolvimento da mestria, um processo moroso, o qual ficou conhecido nos últimos anos como as 10 mil horas necessárias para nos tornarmos especialistas. Mas mais uma vez, Glass apresenta isto de uma forma tão vívida, e sentida, que se torna impossível para nós, não nos revermos naquilo que ele diz.

Eu próprio fico a questionar-me, quando há quase 15 anos tomei a decisão de abandonar a realização/edição video, para me dedicar exclusivamente à investigação. Nessa altura, dei-me conta que tudo aquilo que tinha conseguido fazer até ali, estava longe de me satisfazer. Conhecia à minha volta quem fosse capaz de fazer melhor, e na confrontação, não consegui continuar aquele caminho. Talvez tivesse precisado de investir mais tempo, como diz Glass. Por outro lado, não me arrependo. Julgo que tudo passa por decisões que tomamos em certos momentos da nossa vida, e decidimos avançar. Podemos olhar para trás e questionar como teria sido, mas não adianta ficar parado a questionar.

fevereiro 07, 2014

Problemas das teorias de Gottschall sobre o Storytelling

“The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human” (2012) é um livro de Jonathan Gottschall que procura apresentar uma teorização do ato de contar histórias (storytelling) a partir de uma abordagem evolucionária. Gottschall traça a partir da universalidade da presença das histórias na espécie humana, alguns factores que contribuíram, e continuam a contribuir, para a sua centralidade nas nossas vidas. Apesar de ser um bom livro, que traz algumas ideias interessantes e algumas deduções inovadoras, não deixa de apresentar alguns problemas que procurarei aqui discutir.


A minha maior objecção ao livro está na abordagem absolutista seguida por Gottschall na busca por uma única resposta à função primordial das histórias, questionando tudo aquilo que sabemos. Colocando em causa, muitas vezes sem qualquer razão para tal, apenas porque precisa de preparar o caminho para a resposta que tem em mente. Esta problemática acontece essencialmente porque Gottschall não delimita o conceito de história, cometendo um dos maiores erros que se pode cometer numa pretensa análise científica de um objecto/conceito, a ausência de delimitação do objecto. Gottschall trabalha assim ao longo de todo o livro, o conceito de história, como se ele pudesse ser sinónimo de: Ficção, Cognição, Teoria da Mente ou Simulação Mental. Deste modo, a encruzilhada a que chega é pior do que um enredo não-linear, com múltiplos finais.

Para agravar este problema, Gottschall trabalha toda a sua problemática a partir de um único modelo de histórias, o dos contos de fadas, seguido por Hollywood. A razão porque o faz, é porque segundo ele, as alterações a esse modelo de contar histórias, realizadas por Proust ou Joyce na Literatura, e posso acrescentar por exemplo Jarmusch no Cinema, interessará apenas aos “English professors, no one much wants to read them”. Isto é de uma boçalidade, sem sentido. Uma incapacidade de compreender a evolução da formação do gosto. Sim, nascemos desenhados para nos questionar sem parar, sobre “o que vai acontecer a seguir”, a isso chamamos curiosidade. Mas ela é apenas rudimentar à nascença, à medida que crescemos, e consumimos histórias, a nossa percepção e cognição vai-se alterando, porque cada vez mais educada. O mais ridículo, é que a meio do livro Gotschall até define a importância das histórias, embora limite isso à ficção,
“The constant firing of our neurons in response to fictional [sic] stimuli strengthens and refines the neural pathways that lead to skillful navigation of life’s problems. From this point of view, we are attracted to fiction [sic] not because of an evolutionary glitch, but because fiction [sic] is, on the whole, good for us. This is because human life, especially social life, is intensely complicated and the stakes are high. Fiction [sic] allows our brains to practice reacting to the kinds of challenges that are, and always were, most crucial to our success as a species.” (p.124)
É isto que podemos encontrar em Brian Boyd em “On the Origin of Stories: Evolution, Cognition, and Fiction” (2009), as histórias são o brincar virtual, um brincar em potência. Aquilo que nos prepara para a vida adulta, mas continua sempre connosco depois de deixarmos de brincar fisicamente. Mas Gottschall insatisfeito, quis ir mais longe, e determinar que as histórias, são mais do que isto, que
“Story enculturates the youth. It defines the people. It tells us what is laudable and what is contemptible. It subtly and constantly encourages us to be decent instead of decadent” (p.237)
Um argumento sem qualquer sustentação. A história não tem moral, a história é um modo de organização de informação. Se essa informação é moralmente correcta ou incorrecta, não é relevante para a estrutura. Se as histórias tivessem como função essencial humana a moralidade, não existiriam histórias sem moral, nem contra moral, e assim os filmes de Goebbels nunca teriam existido.

Estas ideias acabam por surgir a Gottschall a partir de outras ideias que vai defendendo ao longo do livro, como o facto das histórias servirem de pouco em termos biológicos já que apenas servem de entretenimento e evasão. Ou seja cometendo a gafe de equivaler as histórias a ficção, esquecendo que toda a não-ficção continua a servir-se do modelo de história. Algo que bem se vê no exemplo hipótese que estabelece entre a tribo prática e a tribo contadora de histórias. Ali só cabem as histórias de evasão, esquecendo toda a restante forma de passar conhecimento entre gerações. Esquecendo, que se a nossa espécie progrediu foi apenas porque foi capaz de transmitir e acumular conhecimento de geração para geração, e o modo como essa transmissão aconteceu foi totalmente fundamentado no contar de histórias.

Gottschall enreda-se numa circularidade, na busca pelo fundamento biológico, do qual acaba por não conseguir sair, dizendo a certo ponto mesmo:  “It suggests that the human mind was shaped for story, so that it could be shaped by story”. O que dizer disto? Pela teimosia absolutista de encontrar o fundamento funcional, acaba a defender o acaso evolutivo! O que incomoda, porque o brincar mental, com ideias organizadas em modo história, não é um acaso, foi aquilo que permitiu a esta tribo sobreviver num ambiente hostil, ser selecionada pela natureza, por causa da sua capacidade de verbalizar ideias, e passá-las de geração em geração.

As histórias não surgiram porque sim, nem porque as pessoas queriam um cinema privado na sua mente. Assim como as histórias não são tábuas de mandamentos, que dizem aos seres humanos como se devem comportar. As histórias são bocados de conhecimento, que cada um de nós possui sobre algo que experienciou, e que cada um de nós transmite, de forma mais ou menos abrilhantada, ao próximo, através de uma estrutura que convencionámos apelidar de história. Essa é no fundo a essência da arte, transmitir algo que conhecemos, recontado da realidade ou inventado por nós, ainda que sempre baseado em vestígios de realidade, ao próximo.

No último capítulo Gottschall procura responder ao futuro do storytelling, dizendo que este não desaparecerá, assim como nunca houve tanto como existe hoje, apesar de muitos reclamarem que as pessoas não leem, ou que a poesia desapareceu. O que dizer do sucesso de Harry Potter, ou Game of Thrones, ou Dan Brown, entre muitos outros! Ou das dezenas de séries de TV, dos milhares de novos filmes por ano! Na poesia, como diz Gottschall, o que dizer da canção, do rap! Concordo, só não concordo quando concretiza as suas ideias de futuro.

Gottschall agarra-se aos videojogos, em particular aos MMORPG, e às suas encarnações anteriores, Live Action RPG (LARP), para avançar para um suposto novo mundo de histórias no qual todos contamos a nossa própria história, encarnando personagens, improvisando, e fazendo-de-conta. Aqui mais uma vez mistura coisas distintas, o improviso, o fazer-de-conta, e a ação efetiva. Esquece que as histórias são diferentes do Brincar, e são diferentes do Jogar. Que não são algo menor, que todas estas componentes são necessárias e que até podemos cruzar as mesmas para criar abordagens mais completas e ricas. Mas isso não quer dizer que o futuro será apenas e só esta fusão, uma fusão que no fundo foi aquela que deu origem à tribo que contava histórias.

Para fechar, é um livro interessante, que se lê muito rapidamente, e permite ficar a conhecer alguns conceitos mais alargados sobre a ciência das histórias, mas deve ser lido com alguma parcimónia, já que no que toca a conceitos, existe aqui muita coisa colocada no mesmo prato da balança, que em termos científicos não é aceitável, e pode causar alguma confusão.