setembro 25, 2013

o fascínio da profundidade visual num plano a preto e branco

Quando acabei de ver "Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013), do Luís Oliveira Santos, fiquei sem palavras. Dez minutos em que nada se conta, tudo se mostra, num contraste de luz tão apurado, que levou o meu âmago a se abrir por completo à vontade do filme.



Conheço o Luís, mas descobri este trabalho por acaso nos feeds do Vimeo. Vi uma imagem a preto e branco dentro da janela do Vimeo, e depois vi um nome português, e depois pareceu-me ser o do Luís, fiquei surpreendido porque não conhecia este seu trabalho. Entrei na página do Vimeo Staff Pick, carreguei em "play", e fiquei ali estupefato, imóvel, a olhar, e a sentir. O brilho, o contraste daqueles primeiros minutos são absolutamente hipnotizantes. Só me apetecia dar os parabéns a quem tinha criado aquela pequena pérola. Nesse sentido, devo dizer que é um privilégio para mim conhecer pessoas assim, tão dedicadas à arte que amam, e por isso não resisti a fazer-lhe algumas perguntas em jeito de entrevista que deixo abaixo, depois do filme.

O selo Vimeo Staff Pick é atribuído por uma equipa de curadores do Vimeo, e é apenas atribuído a filmes de elevada qualidade. Para além do que também já disse, restam poucas dúvidas sobre essa qualidade, mas para complementar esta garantia, digo ainda que nos comentários ao filme, podemos encontrar comentários distintos, como os de Nabil Elderkin, realizador de videoclips para os Artic Monkeys, James Blake, Daft Punk, Seal ou ainda do fantástico Cut the World dos Antony and The Johnsons.

"Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013) de Luís Oliveira Santos


1 - Como surgiu a ideia para o filme? É um trabalho pago, ou simples hobby, vontade de fazer e de dar a conhecer? Quais as maiores dificuldades na realização, e quanto tempo levou a fazer, desde pré-produção à pós-produção?
:: O Manuel Gomes Teixeira é um fotógrafo que conheço há muitos anos e com quem mantenho uma boa relação de amizade. Ele nos últimos anos tem-se especializado na impressão de platinotipia e tem uma página electrónica onde se podia ver um pequeno filme que demonstrava o processo em laboratório.
Entretanto o Manuel foi convidado pelo representante da Leica em Portugal a testar a Leica M Monochrome, a desenvolver com a máquina algumas fotografias impressas nesse processo de ampliação. Este teste culminava com a apresentação em Lisboa e no Porto, perante um público convidado da Leica, dos resultados do teste.
O filme surge então de um pedido e de um convite que o Manuel me fez no sentido de realizarmos um pequeno filme que mostrasse o processo de laboratório, processo esse que não poderia ser recriado ao vivo nas sessões de apresentação. Não foi um trabalho pago dada a amizade que nos une há muitos anos e dadas as sucessivas "contribuições" que ambos fazemos ao trabalho mútuo.
Uma das maiores dificuldades na realização prendeu-se com o tipo de luz existente. O processo de platinotipia pode desenrolar-se à luz (uma vez que a emulsão apenas fica velada com grandes quantidades de ultravioleta). Contudo o laboratório do Manuel Gomes Teixeira possui uma iluminação de fraca intensidade que emite numa frequência que cria interferência com a frequência de captação da máquina fotográfica. É como se se filmasse o écran de uma televisão em que a frequência de transmissão colidisse com a velocidade do obturador e a quantidades de frames por segundo da máquina.
O filme levou sensivelmente uns três a quatro dias a realizar desde as primeiras filmagens até à entrega, já que a data para a apresentação do filme em Lisboa e no Porto era muito curta. Foi quase tudo feito à primeira. Contudo houve uma boa preparação (mesmo que não escrita em papel) do que se pretendia fazer.

2 - Já conhecias o Manuel Gomes Teixeira? Como se deu o contacto? O que pensa ele do filme?
:: Como disse atrás, o Manuel Gomes Teixeira é um amigo de longa data, alguém com grandes conhecimentos na área da fotografia e é uma pessoa com quem eu já aprendi imenso. Para o Manuel (e para mim também) o filme poderia ter um ou outro detalhe melhorado, mas como ambos considerámos que respondia bem ao que era o objetivo considerámos deixar assim, já que não havia tempo para grandes alterações.

3 - Existe aqui uma clara mescla conceptual entre o objeto tratado, a fotografia, e o media escolhido para o tratar, o filme. Como vês essa relação, no sentido, em que a fotografia apresentada, só pode ser aquilo que o filme consegue dar a ver dela?
:: Há uma incapacidade, que se poderia dizer quase que metafísica, de retratar a realidade. Esta é uma discussão presente, cada vez mais, e que é ainda mais presente no cinema documental que, pela sua própria natureza, tenta retratar a realidade. Esta incapacidade advém do acto de que, por mais relatos que tenhamos da realidade, e por mais camadas que se sobreponham dessa realidade, nós nunca a conseguimos captar verdadeiramente por a sua natureza ser sempre mais complexa e mais completa do que as descrições possíveis captadas em cinema. Ora, é nesta aparente dificuldade e nesta "impossibilidade" que reside o enorme espaço de criação do cinema documental, a possibilidade de cada um poder retratar a realidade de forma diferente, quer do ponto de vista do seu conteúdo quer do ponto de vista conceptual.
A filmagem da fotografia cria uma relação de contiguidade entre ambas, uma vez que cria níveis de "teoria da mente". Toda a subjetividade de verdade e mentira presentes numa fotografia aumenta enquanto objeto fílmico, aumentando a complexidade labiríntica do seu significado.

4 - Como se consegue criar uma imagem tão cristalina em vídeo digital, com um contraste preto e branco tão detalhado, diria que se sente uma espécie de quase pureza nesse contraste? É apenas, uma questão de hardware? tratamento por software? ou também daquilo que é captado do real?
:: Eu penso que é um pouco de tudo. Por um lado houve a possibilidade em filmar com lentes de boa qualidade da Canon, todas da série L e, nalguns casos consideradas o state-of-the-art das óticas para fotografia. Por outro lado a Canon 5D Mark II tem sido amplamente reconhecida como um "patamar acima" na qualidade de filmagem em Full HD, quer pela dimensão do seu sensor quer pelos processadores da DIGIC. Por outro lado todos os ficheiros foram primeiramente convertidos para um formato mais "editável" através do MPEG Streamclip, um conversor de formatos de altíssima qualidade, curiosamente freeware. Todo o filme foi editado em 720p e exibido neste formato. Curiosamente a conversão a preto e branco foi através do Adobe Premiere CS 5.5, sem grandes artifícios. Apenas uma conversão direta e uma ligeira correção de luz quando necessário. Por último, os próprios meios de conversão e apresentação da Vimeo também penso que ajudam na qualidade final.

5 - Que tecnologias (hardware e software) utilizaste para criar o filme?
: O filme foi feito com meios muito reduzidos. Foi utilizada uma Canon EOS 5d Mark II, uma lente Canon EF 16-35mm f/2.8L II USM, uma lente Canon EF 70-200mm f/2.8L USM, anéis de extensão para fotografia macro, um tripé Gitzo e um carril para deslocação lateral de construção artesanal. A edição foi feita com o Adobe Premiere CS 5.5 num MacBook Pro. Para a conversão intermédia dos ficheiros foi utilizado um software designado Mpeg Streamclip que converte os ficheiros MOV originais Full HD para ficheiros 720p de menor tamanho (mantendo a qualidade).

6 - Analisando agora à distância, o que terias feito diferente? Nomeadamente no campo do slide rail e da música, mas também outros elementos do filme.
:: Todos os filmes são para mim exercícios de aprendizagem. Mas encerram-se enquanto objetos de dúvida no momento em que são publicados. Neste filme há, de facto, cenas que que o slide rail poderia ter sido utilizado de outro modo e, num plano em concreto, hoje não o incluiria de todo no filme. Mas isto apenas significa que nos próximos projetos isto será pensado de outra forma. Mike Figgis, num livro que li posteriormente, defende um princípio muito interessante. Ele diz que "sempre que estiveres a filmar e sempre que estiveres a movimentar a câmara, pergunta-te porque o fazes. Se não tiveres resposta, então deixa a câmara parada"! E eu penso cada vez mais que isto é uma verdade que me interessa explorar.
A música para mim é fundamental num filme. E quando falo de música refiro-me também aos silêncios, ou aos planos vazios, pretos, sem nada. Cada vez gosto mais que as pessoas parem, que sintam que há momentos em que o filme tem momentos de ausência, pois penso que isto potencía o que vem a seguir, cria cadências, ritmos, etc... A música tem que estar perfeitamente sincronizada com a imagem, não pode ser um mero pano de fundo. Tem que ser mais um personagem do que estamos a ver e, para mim, é fundamental que os tempos da música estejam rigorosamente sincronizados com os tempos dos planos.

7 - Onde é que o filme foi exibido? Como têm sido as reacções?
:: O filme foi exibido em primeiro lugar nas apresentações públicas que o Manuel Gomes Teixeira fez em Lisboa e no Porto a convite do representante da Leica em Portugal. Após essa apresentação o filme foi colocado no Vimeo e neste momento apresenta mais de 64 mil visualizações e mais de 1800 "likes". Curiosamente o Manuel Gomes Teixeira foi contactado inúmeras vezes de países tão díspares como o Uruguai e a Itália para poder fazer workshops de platinotipia.

8 - Porquê lançar a obra em creative-commons?
:: A minha primeira preocupação em colocar o filme em creative-commons prende-se com o respeito pela licença de utilização das músicas envolvidas na realização. A utilização de músicas que se encontram neste domínio de livre utilização pressupõe, em muitos casos, que o produto final deva ficar também no mesmo domínio de utilização. Por outro lado, na realização deste filme, houve claramente a vontade de criar um produto que pudesse ser de livre utilização, para fins didáticos, científicos etc... Como não houve qualquer relação comercial na realização deste filme era um pressuposto que ele iria ficar em creative-commons.


Para fechar esta entrevista, devo dizer que o Luís está neste nomeado para os prémios Sofia, da Academia Portuguesa de Cinema na categoria, Melhor Curta-Metragem Documental, com o belíssimo filme, "A Luz da Terra Antiga" (2012) [trailer].

setembro 24, 2013

Moonbot, publicidade, e comida biológica

A Moonbot Studios, estúdio responsável por obras como "The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" (2011) e "Numberlys" (2012), traz-nos mais uma belíssima animação 3D. Scarecrow (2013) pretende ser um PSA (public service announcement), mas é aqui suportado por uma grande empresa privada, a Chipotle, o que desencadeou toda uma reação online contra o filme da Moonbot. Embora esta não seja a primeira animação da Chipotle sobre o tema. Para quem anda atento ao universo da animação online, ainda não se deve ter esquecido de "Back to the Start" (2011) com música dos Coldplay, interpretada pelo Willie Nelson.



The Scarecrow apresenta-se como uma animação belíssima, denotando claramente a marca dos criativos da Moonbot, ex-Pixar, tanto na leveza e suavidade dos cenários e personagens, como na forma como conta a história, com muito cuidado e detalhe. Não estando ao nível de Fantastic Flying Books, para anúncio publicitário tem uma qualidade extraordinária. A Moonbot lançou ainda um pequeno making of que vale a pena ver. Mas para não ficar por aqui, o filme utiliza como banda sonora, a música “Pure Imagination”, do filme “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), interpretada por Fiona Apple. E ainda... para suportar e fazer durar a ideia foi feito um pequeno jogo para iPad, algo em que a Moonbot se especializou. Sempre que realiza uma curta, lança em conjunto um artefacto interactivo de suporte, ou vice-versa.

The Scarecrow (2013) Moonbot para a Chipotle

No campo do tema, o assunto que aqui é trazido, é novamente o da produção biológica versus produção industrial. O filme mostra o lado negro da industrialização, das condições de produção, do processamento da comida, algo que neste momento já ninguém pode ignorar, e muito mais haveria a explorar sobre tudo isto. Fá-lo de um modo bastante informativo, mas procura atingir sobretudo o lado sentimental da questão, explorando a nossa empatia pela natureza. Ao ponto de alguns críticos acharem que se foi longe demais, e que o filme pode acabar por não conseguir promover o que se pretende, mas antes afastar as pessoas e levá-las a pensar em tornar-se vegetarianas. Por outro lado, outros alertam, que se queremos verdadeiramente mudar as coisas, não é substituindo uma alimentação por outra que vamos lá, precisamos de mudar os nossos comportamentos em termos de alimentação a um nível bem mais profundo que isso.

Outra grande questão que se colocou na rede, logo após o lançamento do filme, foi o facto de que a Chipotle pouco se diferencia das demais marcas que pretende aqui criticar, utilizando a mesma linguagem que estas, apenas subvertendo algumas ideias aqui e ali para assim procurar convencer um nicho específico de público. Ou seja, a sua preocupação não é a natureza, como nos quer fazer crer, mas a faturação. Por isso em poucos dias surgiu na rede um filme, Honest Scarecrow, que realiza uma paródia a The Scarecrow.


Honest Scarecrow (2013) de Funny or Die

Seja como for, a comida processada e alterada geneticamente é uma realidade com que temos de viver nos dias de hoje, e tudo o que pudermos fazer para nos afastar dela, será em nosso proveito. Basta ver a incidência de cancro, com Sobrinho Simões um dos mais respeitados especialistas internacionais na área do cancro, a apontar que nos próximos anos em Portugal, um em cada três portugueses sofrerão de um qualquer tido desta doença! Outro exemplo que lia agora pela manhã, os adoçantes provocam uma perturbação do modo como os nossos corpos reagem ao mundo externo em termos de gratificação. A ilusão do doce, é apenas isso uma ilusão da percepção, mas tal como acontece ao nível de todos as ilusões da percepção, podem acarretar enormes problemas para nós.

Ou seja, quando mudamos algo no universo natural, é sempre impossível prever todas as consequências dessas nossas ações. Na natureza é tudo de tal forma interligado e interdependente, que a mais pequena variação, provoca ondas de transformação onde menos se espera. Por vezes estas ondas são sofríveis, outras vezes são superáveis, mas quase sempre acarretam custos para alguém, que tem de sofrer para dar os primeiros sinais de alerta.

setembro 23, 2013

o rádio-documentário

Numa destas noites de sábado, estava eu deitado na cama, com os auscultadores à procura de uma estação de rádio que me ajudasse a adormecer, e parei na Antena 1... uma senhora falava, muito emocionada, do tempo em que era angolana, antes de Angola ser um país independente... o programa de rádio chamava-se “Começar de Novo”.


Não tenho sido um grande defensor do meio da rádio, passei uma fase em que não percebia já a sua utilidade, questionava-me porque continuava a existir... Hoje, e cada vez mais, acredito na máxima dos Estudos dos Media que diz, "os media não morrem, apenas se transformam". Este programa da RDP é uma prova disso mesmo.

"Começar de Novo", apresenta-se como uma dramatização para rádio dos eventos ocorridos entre 1975 e 1976, com a deportação de milhares de pessoas das colónias portuguesas – Angola, Moçambique, Timor, Cabo Verde - para Portugal. Muitas destas pessoas nunca tinham estado em Portugal, nem sequer portuguesas se consideravam. Na verdade, se os meus pais, e avós tivessem nascido noutro país, provavelmente sentiria o mesmo. Os portugueses não foram para as colónias no século XX, antes começaram a chegar ali no século XVI. É natural que, para muitos dos que se viram envolvidos na confusão destes anos, não se tratou de qualquer regresso à pátria, mas antes, apenas e só, de fugir à guerra, de ser expulso de um país em guerra.


Durante décadas ouvi, em surdina, a palavra Retornados. Hoje, e depois de conhecer este programa de Rádio, fiquei a compreender melhor, o que se passou nesta fase da história de Portugal. Na generalidade, estas pessoas de retornados tinham pouco, eram antes refugiados de guerra, que Portugal, enquanto responsável pelas colónias, necessitou de acolher.


"Começar de Novo" é um programa da RDP criado por Iolanda Ferreira, Inês Lopes Gonçalves, Madalena Balça e Manuela Silva Reis. São 15 26 rádio-documentários, de uma hora cada um, muito emocionantes e informativos. Cada episódio assenta a sua base na entrevista de uma pessoa, que revive os momentos mais marcantes do processo de vir para Portugal, deixando aquilo que possuía numa das ex-colónias. A construção sonora em redor da entrevista, é bastante rica, tanto utilizando música da época, como sons marcantes que acompanham cada um dos relatos. As revelações dos entrevistados são confrontadas com fatos da história, e ainda com historiadores a quem se pede confirmação e reflexão sobre essas revelações, enriquecendo assim tremendamente cada um dos episódios. É um trabalho de excelência que merece ser aplaudido, e discutido.

Todos os 15 26 episódios podem ser ouvidos na página da RDP e mais informação pode ser obtida na página Facebook do programa.
"Mais de meio milhão de pessoas chegou, de repente, a Portugal. Essas pessoas, porém, de uma forma notável,  conseguiram integrar-se na sociedade portuguesa sem conflitos de maior. Do número de retornados recenseados pelo INE em 1981, 61% eram oriundos de Angola, 34% de Moçambique e apenas 5% das restantes colónias."

setembro 19, 2013

Entrevista com Luís Belerique, environment artist de "RiME"

Conheci o Luís Belerique (35) há uns anos, quando lhe pedi para lecionar um workshop de Blender na Universidade do Minho. Na altura soube que era Licenciado em Astronomia, e que o 3d era uma coisa autodidata. Na semana passada descobri que estava agora em Madrid a trabalhar, como environment artist na Tequila Works, num dos jogos mais ambicionados para a PS4, RiME, e por isso não resisti a fazer-lhe algumas perguntas. Aqui ficam, juntamente com as respostas que ele teve a amabilidade de responder.

RiME (TBD) da Tequila Works para PS4

1 – Como é que foste parar à Tequila Works? Há quantos anos estás na empresa, e que funções já desempenhaste? 
:: Vim para Madrid estagiar ao abrigo do programa Inov-Art, e quando acabei o estágio aproveitei para melhorar os meus dotes artísticos, porque, embora antes já tivesse alguma experiência como artista e formador, sentia que o meu trabalho poderia e deveria ser melhor.
Então entrei num curso de escultura digital, para aprender a usar ZBrush, e também estive alguns meses numa academia de arte, para praticar desenho a carvão e assim obter uma fundação artística mais sólida.
Tinha o objectivo de trabalhar como artista 3D em jogos, e eventualmente fiz um teste de arte para Tequila Works, gostaram do que fiz e tenho tido a honra de ser um "hellworker" (o nome carinhoso que os trabalhadores da Tequila Works têm) desde 2011. Trabalho principalmente como "environment artist", modelando e texturizando objectos para colocar nos cenários e também como "world builder", montando esses elementos de modo a fazer os níveis. Mas também tive a oportunidade de trabalhar em coisas diferentes, desde fazer storyboards para cinemáticas até arte conceptual.

2 - Podes explicar-nos o que faz um editor de níveis? E de que forma o teu percurso académico tem servido para o trabalho que desenvolves?
:: A edição de níveis de um jogo envolve vários departamentos, principalmente os designers de jogo, que definem a jogabilidade, layout do mapa, navegação, etc, criando um mapa básico com caixas. Depois, entram os artistas, para revestir com assets gráficos (como paredes, mobiliário, edifícios, plantas, etc)  e assim contextualizar o mapa; se é uma autoestrada, um hospital ou uma refinaria abandonada. E é nessa fase onde entro, quer modelando os vários objectos e módulos gráficos, quer colocando esses elementos no mapa e trabalhando na iluminação dos mapas, já dentro do editor de jogo, que na Tequila é o editor do motor Unreal.
A minha formação académica (Astronomia) normalmente não é muito relevante, porque são trabalhos de naturezas muito diferentes, mas ocasionalmente é útil.
Por exemplo, em Deadlight (2011), usei alguns conceitos básicos de astronomia para unificar a iluminação de alguns níveis, alinhando a posição do Sol de acordo com a hora do dia, pois esses níveis decorriam ao longo de uma noite e um dia, e a iluminação deveria reflectir esse avanço no tempo.

RiME (TBD) da Tequila Works para PS4

3 – Os videojogos são o teu interesse principal, ou são apenas um dos meios no qual tens a oportunidade de desenvolver o teu trabalho?
:: Quando era mais novo, jogava imenso, mas agora não jogo tanto, talvez algum jogo casual no telemóvel ou na tablet. Talvez porque agora tenha menos tempo livre, aproveito para regenerar energias vendo séries, filmes, desenhando ou (tentando) trabalhar em projectos pessoais. Além dos jogos, tenho outros interesses, como ilustração e banda desenhada, onde tive a sorte de trabalhar com vários artistas em projectos muito interessantes e indies, como Murmúrios das Profundezas (2008) e Voyager (2011).

 Murmúrios das Profundezas (2008), banda desenhada do colectivo R'Lyeh Dreams

4 - Quantas pessoas trabalham na empresa? São de que nacionalidades? Conheces mais portugueses aí em Espanha na área de jogos?
:: Trabalham cerca de 20 pessoas, entre trabalhadores que estão no escritório e trabalhadores à distância. A grande maioria são espanhóis, mas também temos pessoas dos EUA, Suécia, Alemanha e Argentina. Cá em Espanha não conheço mais portugueses a trabalhar em jogos.

5 – A Tequila trabalha apenas com financiamentos privados, ou também concorre a financiamentos públicos (ex. do governo espanhol ou da comunidade europeia)?
:: A Tequila é uma empresa autofinanciada, e RiME é um jogo first-party da Sony.

6 – Trabalhaste no primeiro jogo, Deadlight. Apesar deste apresentar um gameplay de plataformas 2d, todo o restante ambiente era notável em termos de arte 3d. Porque é que nessa altura não optaram por um gameplay que aproveitasse todo o investimento realizado na criação dos cenários?
:: Bem, quando entrei na Tequila já estavam no último ano de produção de Deadlight, e portanto já essas decisões já tinham sido tomadas há muito tempo, mas pelo que depreendi, uma das inspirações para Deadlight foram jogos antigos como Flashback (1992) e Another World (1991), na Tequila queriam fazer um jogo recuperando o espírito desses clássicos.
O estilo visual desde o princípio era muito marcado pelo contraste entre as silhuetas negras e o fundo mais claro e detalhado, mas era muito mais simples que o atual, e ao longo do tempo evoluiu para um aspecto mais hiperrealista, para melhor mostrar a "beleza" de um mundo decadente e pós-apocalíptico.

Deadlight (2011) da Tequila Works

7 – Em RiME parece que deixaram para trás o plano, no caso do gameplay, e avançaram para um jogo completo 3d em terceira-pessoa. O que é que isto representa em termos de valores de produção? O estúdio aumentou o seu número de pessoas, ou é a mesma equipa? 
:: Houve algumas mudanças na equipa, reforçámos o departamento de programação, mas no geral a equipa não cresceu muito mais do que era em Deadlight. Por isso, a produção de Rime é mais exigente que Deadlight, e para compensar o facto de construirmos um cenário mais aberto em 3D, escolhemos um estilo visual um pouco mais minimalista (mas não menos interessante), além de querermos fugir ao estilo hiperrealista que é muito comum hoje em dia. Afinal, um dos lemas da Tequila Works é fazer coisas pequenas mas com bom gosto.

Young girl in Silvery Sea (1909) de Joaquin Sorolla

8 – A Kotaku já disse que RiME é o jogo mais bonito até agora revelado para PS4. Mas também muito se tem falado no facto de RiME estar muito colado a ICO. O que é pensas sobre isto, em termos de estética e jogo? 
:: É um motivo de orgulho para a equipa que compararem RiME com ICO (2001) mostra como existem muitos jogadores que anseiam por experiências diferentes e mais evocadoras. Talvez seja por isso que se compare com ICO, o facto de haver poucos jogos com este tipo de ambientação, é um género muito pouco saturado, ao contrário de outros, como os FPS.
Contudo, a inspiração para o aspecto visual de RiME vem dos filmes de Hayao Miyazaki, por exemplo, Porco Rosso (1992), e de artistas como Joaquín Sorolla, muito conhecido pelos seus quadros onde captura a luz e ambiente da costa Mediterrânica espanhola.
Quanto a jogabilidade, quando tornarmos pública mais informação, vão ver que RiME será um jogo diferente, com uma identidade muito própria.


9 – Vais continuar pela Tequila, e por Madrid, ou tens intenções de voltar a Portugal?
:: Vou continuar pela Tequila, o ambiente é fenomenal e ainda parece um sonho trabalhar com colegas tão experientes e profissionais. Além disso, ver a reação a RiME também é muito motivador! Eventualmente gostaria de voltar a Portugal, as saudades da família e de conviver com amigos de longa data são muitas, mas a situação atual do país infelizmente faz com que o regresso seja algo mais longínquo. Pelo menos, Portugal está mesmo aqui ao lado e de vez em quando, dá para matar essas saudades.

Obrigado pelo interesse numa entrevista, sinto-me lisonjeado. Quero acabar agradecendo a Raúl Rubio, chefe da Tequila Works, e José Luis Vaello, director de RiME, pela colaboração dada nas respostas a esta entrevista.

setembro 17, 2013

Porque é inovador, "The Last of Us"?

"The Last of Us" (2013) é uma obra-prima, constituída por brilhantes momentos de cinematografia, jogo, e interatividade, que nos oferecem uma das melhores experiências dramáticas alguma vez apresentadas no formato de videojogo. É provavelmente o videojogo mais bem desenhado até hoje em termos de storytelling, com enorme coerência e unidade criadas através dos três arcos, perfeitamente delineados, de um conjunto de personagens fortes, dimensionais e extremamente empáticos. É tudo isto, mantendo a história encerrada, não permitindo qualquer controlo por parte do jogador, que assume um lugar de testemunha da história, próximo do espectador ou leitor, mas diferentemente acedendo de modo participativo à representação dessa história.

"The Last of Us" (TLOUS), é o natural sucessor de "Uncharted 2" (2009), e supera-o porque em termos dramáticos vai aonde "Uncharted 2" não tinha conseguido ir. Aqui temos aventura, mas temos essencialmente um conjunto de pessoas que vive e experimenta uma situação complexa, cheia de conflitos, dilemas e contradições, sendo capaz de nos fazer sentir por eles, e com eles. Temos aquilo que sempre nos prometeram, a emoção mais pura do drama misturada com a emoção da interatividade.

É uma obra carregada de pequenos detalhes, que criam momentos de deslumbramento deliciosos, que nos tocam e ficam colados ao nosso imaginário, muito depois de termos deixado de jogar. Não vou entrar na discussão dos detalhes, porque o jogo foi já amplamente dissecado pelos restantes media. Deixarei apenas algumas notas breves sobre alguns dos momentos técnicos mais impressionantes abaixo, e centrarei a minha análise na tentativa de enquadrar o videojogo no seio dos media interativos.

A primeira grande questão que nos colocamos é, será que TLOUS vai para além da perfeição? É meramente perfeito, ou existem aqui novas conquistas para o meio dos videojogos? Uma segunda questão passa por discutir o modo como o jogo permite a participação do jogador. De que tipo de interatividade estamos a falar? É este o tipo de storytelling interativo que queremos para os videojogos? Não era suposto os videojogos irem além?

Respondendo à primeira questão, julgo que se torna inevitável relembrar o último grande jogo da PS2, "God of War" (2005). Os discursos em redor de GoW e TLOUS assemelham-se bastante. GoW representou na altura, em termos técnicos, uma superação da tecnologia disponível, assim como TLOUS agora em relação à PS3. GoW foi aclamado, não por inovar o meio dos videojogos, mas por fazer tudo de forma perfeita, principalmente por seleccionar um conjunto de excelentes mecânicas de gameplay do género acção-aventura da época, e integrá-las de forma coesa e harmoniosa. Nesse sentido, lendo a maior parte do que se disse sobre TLOUS, julgo que se está a dizer o mesmo, embora em épocas diferentes, com diferentes tecnologias, e novas mecânicas entretanto desenvolvidas no meio. E se eu concordo com esta caracterização, tanto de GoW como agora de TLOUS, não concordo que TLOUS se tenha ficado pela mera da integração do conhecimento existente. TLOUS vai para além de GoW, vai para além de Uncharted 2, vai para além de Heavy Rain. TLOUS representa o atingir de um novo patamar para o meio dos videojogos. De que forma?

A inovação de TLOUS realiza-se na forma como este potencia a criação de uma experiência interativa profundamente dramática no jogador, algo que até agora só podíamos encontrar no cinema ou literatura. Não falo apenas da história, da forma como nos é contada nas cutscenes, falo do todo. O que impressiona e surpreende em TLOUS, é a forma como os criadores conseguiram pegar em todas as dimensões do meio dos videojogos e as conseguiram unificar para trabalhar para um mesmo fim. A história, o enredo, os personagens, os diálogos, a direção de atores, o design de som, os cenários, a música, a interatividade, o gameplay, a cinematografia, a atmosfera, a IA, a modelação, a animação... Todas estas dimensões foram desenvolvidas segundo altíssimos padrões de qualidade. Mas essencialmente todas estas dimensões foram desenvolvidas com um mesmo objectivo, e integradas para atingir esse mesmo objectivo, contar uma história permitindo ao receptor que participasse na descoberta dessa história. Como é que o videojogo realiza isto?

O principal indicador da qualidade da inovação na experiência advém de um dos principais motores da linguagem dos videojogos, o sentimento de progressão, que aqui trabalha em total sincronia com a progressão dos arcos narrativos da história. Chegamos a um mundo novo, desconhecido, e ainda nem percebemos do que se trata e já nos tiraram o tapete com um prólogo devastador, a nós e ao nosso personagem, Joel. Damos assim início ao jogo a partir do zero, sem grande destreza, sem grande resistência, sem grandes competências, sem grandes armas, e tal como o nosso personagem, vamos ser obrigados a evoluir, a aprender, a crescer. Assim a história contextualiza e cria a motivação para as nossas ações, enquanto a jogabilidade condiciona e guia o nosso processo de aprendizagem e progressão. A história avança, e o nosso personagem vai-se abrindo, amadurecendo na sua relação com o companheiro, a personagem de Ellie. As nossas ações tornam o personagem mais forte, a história em seu redor adensa-se, ele cresce no jogo, e nós crescemos com ele. Ellie assume as nossas interrogações, espantos e expectativas para com Joel, dá-lhes corpo, conduzindo-nos através da dimensão psicológica de Joel. No final Joel é um homem novo, mais confiante, mais capaz, ultrapassou um vale de emoções negativas, e nós com ele. Ellie cresceu, ao tentar socorrer Joel das suas amarguras, passou de menina indefesa a mulher de armas, capaz de enfrentar as amarguras de uma vida cheia de condicionantes, como aquela que se vive nesta realidade alternativa.

Se existe algo em que TLOUS se afirma, e contribui para desenvolvimento do meio, é ao assumir que a progressão da jogabilidade deve ser síncrona com a progressão narrativa. O jogador precisa de sentir que progride nas suas competências de mestria do jogo, e precisa de sentir que estas se traduzem, de alguma forma, na progressão da narrativa. E isto só é possível, e tão efetivo em TLOUS, porque não se trata de uma mera aventura, como em "Uncharted 2" (2009) ou "Tomb Raider" (2013), em que é o enredo (plot) que comanda a progressão narrativa, mas antes é um drama, em que predominam as complexidades dos personagens, sendo estas a conduzir a progressão da narrativa.

Sobre a ausência de interactividade com a história, é verdade que TLOUS ao contrário de "The Walking Dead" (2012) não permite que o jogador participe em decisões narrativas. O jogador é muito mais testemunha do que criador da realidade narrada. Isso não torna TLOUS um videojogo menor. Um videojogo não é obrigado a proporcionar interação com a história, porque isso não o torna mais interativo per se, e certamente não o torna mais capaz de expressar as ideias que pululam na mente dos seus criadores. O medium dos videojogos pode perfeitamente seguir uma via em que proporciona interação apenas ao nível da representação da história, que é o que aqui temos, e temos na maior parte dos videojogos narrativos. Uma história linear, inalterável, a que nós acedemos por via da representação audiovisual, participando e contribuindo para a definição do seu modo de desvelamento, aproximando-nos, dessa forma, mais da mensagem que se quer contar.

Uma das áreas em que podemos apreciar a nossa interactividade a funcionar no desvelamento audiovisual da história, é exactamente no grau de violência experienciado no jogo. A violência gráfica apresentada é bastante elevada, acredito que poderia ser mais contida, apesar de compreender que garante um outro nível de realismo, que consegue criar um nível de imersão superior. Mas esta compreende uma escolha da nossa parte. Existe a opção de passarmos a maior parte dos inimigos sem os confrontar, em modo stealth, e posso dizer que por vezes, nesse modo, a ansiedade consegue ser superior à tensão dos momentos de luta. A violência está nas mãos do jogador, apesar de não poder mudar o rumo da história, o modo como participa nela, pode ser completamente diferente.

Precisamos de nos deixar do purismo da interatividade total, da liberdade total, porque uma história é sempre algo que alguém conta a outro alguém. A essência do ato narrativo, da produção de uma obra de arte, fundamenta-se na expressividade, no facto de alguém comunicar algo a outro. Quando entramos no reino da interatividade narrativa com a história, em que as nossas ações passam a moldar a história contada, começamos a abandonar o modo de recepção, e começamos a passar para o modo de criação. Passamos a querer testar, experimentar diferentes cenários e hipóteses, e analisar os seus resultados, entramos num modo criativo. Sendo este um modo que não só se afasta da ideia de história, como se afasta da ideia de jogo, para entrar no campo do brincar.

Não querendo dizer que é errado, de forma alguma, os videojogos são uma arte com um espectro estético muito alargado. Mas ao criarmos os nossos próprios mundos de história (ex. deambulando entre missões em Grand Theft Auto IV, 2008) ou mesmo universos completos (ex. Minecraft, 2011), tal como o fazíamos em criança no cantinho do nosso quarto com Playmobil ou Lego, passamos de receptores a criadores. Criamos novos sentidos, mas não podemos nunca esquecer, que o fazemos a partir do mundo de experiências que recepcionámos previamente. Por isso, para mim, a essência dos videojogos narrativos assume como principal função, o dar a experienciar novos mundos e ideias, no fundo contar uma história, de alguém para alguém. Experimentar com opções narrativas, agir sobre as motivações da história, decidir o caminho dos dilemas dos personagens, deve ser visto, não como videojogo narrativo, mas como brinquedo narrativo.

Isto não deve ser lido como algo de pejorativo, nem pouco mais ou menos, mas apenas e só como duas atividades distintas, da nossa forma de aceder ao mundo. Por um lado utilizamos as histórias dos outros, para aceder ao mundo exterior, para o compreender, para alargar a nossa compreensão do outro. Por outro lado, criamos histórias, brincando com as ideias, para nos obrigar a verbalizar o que se passa na nossa mente, e assim compreender aquilo de que somos feitos. São dois momentos distintos, receber e criar, e ambos de extrema relevância para os processos de aprendizagem e crescimento do ser.

Sobre as cutscenes. Tal como podemos parar e ler uma carta, parar e ouvir uma conversa num gravador de audio, também podemos parar para ver uma sequência cinemática, sem interação, que tal como o texto ou áudio, nos proporciona mais informação sobre o fundamento da história em questão. Aliás, TLOUS pode ser uma experiência completamente diferente se não pararmos para sorver esses elementos de história que nos vão sendo dados nas várias formas. A experiência foi desenhada como um todo, e é verdadeiramente multimodal, espera-se que o jogador entre no jogo, e o viva, tenha curiosidade em ler as notas, em ouvir os depoimentos, assim como parar para ouvir o que os personagens têm a dizer.

No final, TLOUS é um videojogo do género drama realista, que utiliza o subgénero das realidades alternativas como figura central, para encenar a dramatização da sobrevivência. E fá-lo de um modo sóbrio e maduro, abrindo uma enorme avenida para o futuro do storytelling, e principalmente do drama, nos videojogos.



Notas soltas finais, sobre alguns dos aspectos mais impressionantes: 

- No primeiro contacto com as imagens e vídeos do jogo, podemos sentir que a sua apresentação visual, detalhe, cor e luz, são de uma beleza absolutamente extasiantes. 20 anos depois do desastre, como estaria o planeta... É fácil sentir vontade de querer entrar por aquele universo adentro, em qualquer uma das estações... Mais detalhes no vídeo The Last of Us Development: Ep. 2 "Wasteland Beautiful", e para os interessados na concept art do jogo vejam o EP. 6 "The Beauty of Abandonement".

- O modo como o personagem responde à nossa interação. Poderá parecer até que ele não é 100% reativo, que reage mais lentamente por exemplo que Lara Croft. Mas isso é propositado. Pela simples razão de que visualmente é muito mais realista. Enquanto que Lara Croft parece um boneco de plástico a reagir às nossas interações, Joel, reage como se se tratasse de uma pessoa real, de carne e osso, com peso e inércia. Ainda há um ano tinha referido os problemas da animação de personagens jogáveis e agora a Naughty Dog parece estar a responder a esses problemas.

- O mesmo se pode dizer do modo como a câmara segue atrás do personagem, se coloca no lugar certo para dar indicações. A câmara aqui não está simplesmente ligada ao personagem seguindo-o para todo o lado, ela é autónoma, ela balança-se constantemente, contribuindo para o stress que o próprio jogo quer imprimir. É todo um trabalho de minúcia, cena a cena, jogando com as possibilidades dadas ao jogador, com aquilo que queremos garantir que ele vê, e com a emocionalidade que se quer passar em cada momento do jogo.

- Um outro campo em que TLOUS consegue criar alguns dos momentos de jogo mais sublimes é na Inteligência Artificial dos nossos companheiros (seja a Ellie, Tess, Bill, o irmão de Joel, ou Henry e o seu irmão Sam). Algo que me fez lembrar Yorda em "Ico" (2001), que por acaso foi utilizado como fonte de inspiração. Alguns desses momentos são discutidos no The Last of Us Development: Ep. 4 "Them or Us".

- A complexidade e maturidade narrativa em TLOUS fica em total evidência quando se arrisca a realizar auto-crítica dentro do próprio jogo. Falo de uma cena inicial em que Ellie se passa com a leitura de um livro de banda desenhada porque ele termina abruptamente com a expressão “To be Continued”, e ela diz que detesta “ganchos” narrativos. Algo que naquele momento faz todo o sentido, já que atravessamos uma fase em que somos levados de gancho em gancho, na história.

- Não sendo um jogo de espaço aberto, em muitas situações ao longo do jogo são-nos dadas várias opções de caminhos a seguir, não que tenham impacto na narrativa, mas servem para criar uma maior credibilidade e realismo espacial. Não sentimos tanto o confinamento artificial natural dos jogos lineares, que nos obrigam sempre a seguir um caminho único. Comparando com o excesso de marcas brancas largadas no espaço, para nos guiar em "Tomb Raider" (2013), só podemos concluir que o design do espaço em TLOUS é absolutamente perfeito.

- Um momento de interatividade de excelência acontece logo no início, quando passeamos pela cidade de carro à noite, e controlamos a cena a partir da filha de Joel. É brilhante, o modo como o mundo decorre à nossa volta e nós vamos passando por ele, mantendo a interatividade, decidindo o que ver, como ver e quando ver. É algo que já tínhamos visto em Uncharted, mas continua a impressionar.

- Mais perto do final temos uma outra sequência interativa, que apesar de parecer menos importante, é do melhor que o jogo tem para oferecer. Primeiro o jogo transfere-nos de um personagem jogável para outro, sem pedir licença, nem avisar, numa atitude pós-moderna em que dá por adquirido um jogador evoluído capaz de processar as descontinuidades. Aqui inicia-se a narrativa paralela que depois nos vai atirar para um espaço labiríntico, com visibilidade reduzidíssima pela neve que cai. Nesse ramo da narrativa, sentimos que estamos num espaço aberto, mas somos acossados por todo o lado, apesar de podermos ir em qualquer direção, desejamos que o jogo nos indique o caminho, nos dê alguma pista como parece ter dado até ali, mas sentimos que aqui estamos entregues a nós próprios, sentimos que o jogo nos abandonou. Estamos sós, o nosso personagem está só. À medida que avançamos, os diferentes ramos da narrativa paralela, vão-se aproximando, reunificando no final ambos os personagens jogáveis, fazendo-nos compreender que estes são o centro do nosso jogo, que são eles quem mais importa, e não o enredo.


Atualização 20.12.2013
"The Last of Us" é o jogo do ano no Top 10 Virtual Illusion, publicado na Eurogamer Portugal. Os restantes jogos jogados este ano podem ser vistos aqui.

Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

setembro 16, 2013

The Art of Stop Motion

A web série, OffBook, dedicada às novas tendências artísticas, da PBS, publicou recentemente um interessantíssimo episódio sobre a Arte do Stop Motion. Ao longo dos 8 minutos podemos reviver uma arte "antiga" criada pelo meio do cinema, que nunca deixou propriamente de ser moderna. Hoje, mais que nunca, o stop motion é um sinal de evidência de valor estético.


O facto de ser feito à mão, de requerer do ser humano uma dedicação excepcional, continua a provocar um enorme fascínio nas pessoas. Porque na verdade, o que procuramos na arte, não é o objecto em si, mas uma relação com o seu criador. E o facto deste ter investido tanto tempo na sua produção, e não ter sido uma mera máquina a processar o objecto final, cria essa sensação de proximidade, de compreensão, de ligação directa àquilo que a obra tem para nos dizer.

setembro 13, 2013

Em defesa das Guildas

Este texto surge no seguimento da leitura de The Craftsman” de Richard Sennett. As Guildas surgem na Idade Média alta (século XI) e vão durar até à Revolução Industrial. Em Portugal ficaram conhecidas como Mesteirais ou Mesteres (de mestres). As Guildas eram organizações que ligavam os criadores de cada arte ou profissão, por um juramento de entreajuda e de defesa mútua. Uma espécie de confraria, associação profissional, ou aquilo que hoje podemos designar de Ordem (Ordem dos Arquitetos, etc.).

The Sampling Officials (1662) de Rembrandt. Retrato dos oficiais de uma guilda de desenho de roupas de Amsterdão.

As guildas tinham vários objectivos, mas essencialmente garantiam a estabilidade da arte. Para isso definiam regras para a relação entre Mestre e Aprendiz, tal como a duração da aprendizagem, o seu custo, NDAs, e as provas a prestar no final. As provas finais consistiam na criação da chamada Obra-Prima, ou seja no melhor que estes conseguiam desenvolver após os 5 anos de aprendizagem, e que era depois avaliado pelos oficiais da guilda. Esta avaliação tinha efeitos para o aprendiz, assim como para o mestre. Esta relação de proximidade, estabelecida ao longo do tempo, permitia que o conhecimento acumulado de modo tácito pelo mestre, pelo saber-fazer, fosse passado através do exemplo e da imitação. Por outro lado, as guildas impediam que quem não lhes pertencesse pudesse praticar a arte. Deste modo garantiam que fazia sentido investir anos na relação com um Mestre, para depois conseguir o seu próprio meio de subsistência.

Carta de Ligação entre Mestre e Aprendiz, regulamentada pela guilda “The Goldsmiths’ Company”, criada em 1300 e ainda existente hoje em UK.

A duração da aprendizagem
A média de 5 anos instituída desde a Idade Média, responde à questão que recentemente foi levantada por vários estudos (Ericsson, 1993), e que tem sido amplamente citado por vários autores, como Gladwell, Colvin, e Sennett. Ou seja, para se poder pertencer a uma guilda, precisávamos de passar 5 anos no nível de Aprendiz, já estávamos a falar das 10 mil horas. No final destes anos, o Aprendiz passava à condição de Assalariado, podendo exigir dinheiro ao dia, pelo seu trabalho, para tal tinha de partir em busca de trabalho por outras cidades. Precisaria de realizar trabalho consecutivo durante mais 3 anos, dando provas no terreno, da sua arte, que eram avaliadas pelos oficiais da guilda, para poder então assumir o lugar de Mestre, ou seja abrir o seu próprio estabelecimento, e passar a ensinar outros.

O nascimento da universidade europeia
Ao mesmo tempo que surgem as Guildas, vão também surgir as Universidades, que mais não eram do que Guildas Escolásticas (Bolonha 1088, Coimbra 1288). As guildas escolásticas tinham como objectivo, alargar o pensamento crítico. Baseavam-se na análise conceptual em profundidade de ideias, construindo-se numa base de racionalidade dialéctica. O seu fundamento ficou conhecido como o Trivium - gramática, retórica, e lógica – ao qual se juntaria mais tarde o Quadrivium - a aritmética, a geometria, a música, e a astronomia – perfazendo assim as 7 artes base da Universidade Medieval.

As Sete Artes da Universidade Medieval (Ilustração do manuscrito Hortus Deliciarum de Herrad von Landsberg, do século XII)

Como guilda, a Universidade adotaria a mesma duração das demais. O primeiro grau de Bacharelo seria atribuído após provas públicas, ao fim de 5 anos, e permitia praticar cada uma das áreas escolásticas – Teologia, Direito e Medicina. Para se poder tornar num mestre, e ensinar na Universidade, era preciso fazer mais 3 anos, e assim obter o grau de Mestre.

O declínio das guildas
As guildas entraram em declínio em 1700, com o surgimento da revolução industrial. O conhecimento detido pelos artesãos foi traduzido para processos mecânicos, que eram depois realizados por máquinas de modo repetitivo e contínuo. Assim deixava de ser necessário a um ser humano, investir 5 anos a aprender uma arte, para além de que se podia produzir muito maiores quantidades.

Nos anos 1970 o mesmo aconteceria com o surgimento da computação. O conhecimento começava a ser traduzido para sinais digitais, com grandes capacidades de computação, o que permitia que muitas artes que ainda não tinham sido afectadas pela mecânica, fossem afectadas pela computação.

Atualmente atravessamos uma nova fase de revolução, com a robótica, automação em conjunto com a IA, a atingir níveis de processamento e de precisão muito superiores ao que tínhamos no passado. (ex: e-David)

Porque deveríamos preservar o espírito das Guildas?

1 - Porque, apesar da mecânica, da computação e da robótica, continuamos a precisar de ter pessoas altamente qualificadas, com grandes níveis de competência. A diferença entre uma sociedade desenvolvida, e uma subdesenvolvida, está exactamente na quantidade de competências detidas pela sua população.
A Alemanha foi o único país que não aboliu as guildas com o advento da Revolução Industrial. Talvez não seja por acaso que a Alemanha seja o país que manteve até hoje o sistema escolar mais entrosado com o sistema produtivo. Já aqui falei amplamente dos seus ganhos, nomeadamente da qualidade dos seus produtos, reconhecida mundialmente. Ainda recentemente estive a trabalhar em Moçambique, e pude verificar in loco, que o maior problema da sociedade, é a falta de competências. Por isso continua a ser tão verdade, o ditado, “não dês peixe, ensina antes a pescar”.

2 - Porque apesar de termos sido capazes de proceder ao registo de muito conhecimento tácito, continua a faltar-nos muito daquilo que está implícito nesse conhecimento. Começámos por registar o conhecimento sob linguagem escrita, e vimos quão difícil era fazê-lo (ver as 4 receitas de 4 chefs, em Sennett). É verdade que o surgimento da linguagem audiovisual no final do século XIX, resolveu muitos dos problemas da linguagem escrita. E não menos verdade, que o surgimento da linguagem de interactividade resolveu muitos dos problemas da linguagem audiovisual. Mas nada disto pode substituir a relação Humano-Humano.

3 - Porque nas profissões criadas depois do desaparecimento das guildas, como por exemplo quase todas as Indústrias Criativas baseadas em Tecnologias de Comunicação (Design, Animação, Programação, etc.) as pessoas têm sido exploradas e desprezadas pela sociedade. A ausência de uma forma de comungar os mesmos valores, seja Guilda, Ordem, Aliança, Confraria, conduz o sujeito individual à condição de descartável da sociedade (ver os problemas atuais dos profissionais de criação de VFX). É assim necessário, não apenas algum tipo de instituição que regule o trabalho, mas mais do que isso que regule a aprendizagem, os fundamentos base, assim como os modos de acesso à profissão.

Claro que existem problemas. Uma guilda, tal como um sindicato, procura além do melhor para a profissão, o melhor para os seus praticantes, e nem sempre isso coincide com o melhor para a sociedade como um todo. Basta relembrar o episódio dos Ludditas que destruíam durante a noite as máquinas da revolução industrial, porque queriam impedir o avanço tecnológico e a modernização dos hábitos. E em Portugal, quantos se têm levantado contra os poderes das várias Ordens existentes, acusando-as essencialmente de corporativismo.

Mas não é por acaso que chamamos pontos de Revolução aos vários momentos de mudança na nossa história, porque as transformações são dolorosas. Aquilo que está neste momento a acontecer com a Robótica, que já rouba empregos à mão de obra mais barata do globo, é uma revolução que já começou. A Organização Mundial do Trabalho, fala numa escassez de 200 milhões de empregos. Esta crise que Portugal atravessa, não é uma crise criada por políticos portugueses (apenas), é antes fruto dos impactos de mudanças mundiais, que atingem primeiro, e mais violentamente, os menos bem preparados.

Mas esta revolução, tal como as outras estabilizará, e dará lugar a novos momentos de abundância. E cada um de nós encontrará novas formas de se tornar útil, e necessário. Neste sentido, defendo as guildas, como uma necessidade, mas guildas capazes de evoluírem, e de se adaptarem à evolução do conhecimento humano.

setembro 12, 2013

"The Craftsman", ou O Artesão

Esta é uma obra prima sobre a filosofia da educação. Sennett vai além do conhecimento atual sobre a criatividade, a arte, o jogo, o valor da educação e do conhecimento tácito. Este livro é um manifesto, cheio de conhecimento, conhecimento pragmático aqui teorizado pela primeira vez.

"A mão é a janela para a nossa mente." Immanuel Kant

1. Análise Geral 

O mantra que guia Richard Sennett em “The Craftsman” é simples, e resume-se à constatação de que "fazer, é pensar". Sennett passa a maior parte do livro a demonstrar exatamente isto, como é que fazendo, nos transformamos, evoluímos. Um dos exemplos mais arriscados, mas mais interessantes, é dado com Wittgenstein, que segundo Sennett mudaria a sua abordagem filosófica do mundo, depois de se ter envolvido na arquitetura da casa da sua irmã. Mas o livro está carregado destes exemplos, que se esforçam por iluminar como a "mão" tem poder sobre a "mente". Como a mão, não é apenas uma ferramenta ao serviço da superioridade do intelecto, mas antes trabalham num conjunto, criando uma dialética que permite à pessoa evoluir e transformar-se. Sennett apresenta-nos aqui uma espécie de neo-iluminismo no qual a mente não é mais o centro, e cita Kant “The hand is the window on to the mind”.

O livro em si, não é fácil de seguir, começa de forma muito apetitosa, revelando factos e atividades sobre os modos de transmissão de conhecimento desde a Idade Média. Depois o miolo do livro está carregado de discussões que se enredam, sem um propósito claramente definido, pelo menos para o leitor. Sennett atira em várias direcções desde a política à psicologia, passando pela história de arte. É no final, após as várias digressões, que Sennett entra de novo no espírito, e discute em profundidade, a Mão, a Preensão, a Percepção e as Competências.

Sennett segue as pisadas de Morris e Ruskin, na defesa dos valores do artesanato, nas competências e saberes do artesão, enaltecendo os seus impactos sobre o ser humano, a comunidade e a sociedade. Mas diferentemente, não dirige a sua raiva para com a máquina, a revolução industrial do séc. XIX, mas antes para a sociedade como um todo, que não tem sabido, ideologicamente, respeitar o trabalho manual. Criaram-se na sociedade métricas que hierarquizaram os sujeitos segundo coeficientes de intelectualidade. São as letras e a ciência que hoje mais se valorizam, enquanto o saber-fazer, fazer com as próprias mãos, é protelado para segundo plano, visto como algo de somenos, irrelevante.

Esta é uma discussão que trespassa todo o trabalho de Sennett, aluno de Hannah Arendt, responsável pelo tratado “A Condição Humana” (1958), no qual se eleva o estatuto do ser racional à condição de realização última do ser humano. Sennett faz aqui apologia do contrário, defendendo o “Animal Laborans” contra o que é defendido pela sua professora, acusando-a de ter contribuído para a criação de um discurso que subjugou a cultura do fazer, e a atirou para as franjas.
“Every good craftsman conducts a dialogue between concrete practices and thinking; this dialogue evolves into sustaining habits, and these habits establish a rhythm between problem solving and problem finding. The relation between hand and head appears in domains seemingly as different as bricklaying, cooking, designing a playground, or playing the cello…” (p. 9) For good craftsmen, routines are not static; they evolve, the craftsmen improve…” (p.266) This study has sought to rescue Animal laborans from the contempt with which Hannah Arendt treated him. The working human animal can be enriched by the skills and dignified by the spirit of craftsmanship.” (p.286)
Como diz Sennett é muito mais fácil conseguir donativos para Universidades de topo, do que para escolas vocacionais. A vocação é vista como uma antítese do iluminismo, do caminho "sagrado" da formação do ser. Porque, supostamente pré-existe, não precisa de ser construída. Um erro, um erro que só muito recentemente começou a ser corrigido. Um erro que se veio sobrepor ao conhecimento adquirido no passado através das Guildas (ver texto: Em Defesa das Guildas). Daí que as escolas vocacionais sejam absolutamente vitais, mas não só.
“[Weber] called the sustaining narrative a “vocation”. Weber’s German word for a vocation, Beruf, contains two resonances: the gradual accumulation of knowledge and skills and the ever-stronger conviction that one was meant to do this one particular thing in one’s life.”
Mas não são apenas as escolas do secundário. A Universidade ao ter-se alargado em termos de matérias, não pode continuar a pretender chegar a todos os assuntos da mesma forma. Sennett exemplifica com o curso de Medicina. Depois de 5 anos de estudos teóricos, nenhum médico, o é ainda, sem pelo menos 2 anos de prática sob orientação de um "mestre". O mesmo acontece na Advogacia e na Arquitectura. Não por acaso, que nestes domínios do saber não baste deter uma Licenciatura, mas seja necessário pertencer a uma Ordem, que não é mais do que uma Guilda.

O que eu me questiono, é porque é que isto não acontece com mais nenhum curso superior!!! Nas Artes, na Comunicação, no Design, na Informática... Serão estes cursos superiores, ou serão menos relevantes para a sociedade, ao ponto de não ser importante que quem ali se forme apresente verdadeiras competências? Porque é disso que se trata nas restantes licenciaturas. Algumas teorias vêm defendendo que a Universidade não deve preparar a pessoa para o fazer, mas antes para o pensar. Concordo com a ideia de que o essencial da base de um curso universitário deve ser o de preparar um sujeito para a autonomia, para "aprender a aprender". Mas não concordo que seja suficiente. Ainda que o conhecimento que o mercado hoje necessita, seja diferente daquele que vai precisar amanhã, o sujeito que atravessou 15 anos de estudo tem de saber fazer, não pode no final de tantos anos apenas saber aprender, porque corre o risco de cair num limbo de indefinição de si próprio. O saber-fazer, como Sennett nos diz aqui, trabalha exatamente esta componente, a construção do Eu, porque mais do que as competências do pensar, as competências do fazer formam-nos.

Claro que aqui joga-se um problema de fundo sobre o que deve ser uma Universidade. Mas no século XXI e após tantas modificações ocorridas no cenário da Universidade, mais do que nunca, esta tem de ser o centro de formação dos cidadãos, e não apenas de académicos.

Debato-me com este problema todos os anos nas cadeiras que lecciono, que compreendem uma fusão entre teoria e prática acentuada, por isso mesmo, as minhas cadeiras são denominadas de “Ateliers”. O problema é que o contacto em atelier com o docente, é demasiado reduzido. Não posso dizer que um semestre seja pouco tempo, mas é-o, quando falamos de 3 ou 4 horas semanais ao longo de 15 semanas. Estamos a falar de 45 horas, ou seja de uma semana intensiva de prática, nada mais. Além disso, numa relação de 1 para 20 (e já me devo regozijar) torna impossível qualquer aprendizagem por exemplo e imitação.

Sennet exemplifica como a arte de saber fazer melhora o sujeito, o torna autónomo,
  • através da negociação entre autoridade e autonomia, enquanto no processo de aprendizagem (no workshop do mestre)
  • através da construção de simbiose com a acção e objecto, trabalhando com as forças do objecto, usando a menor força e a melhor acção, antecipando o que fazer (exemplos detalhados no livro: construção de túneis por baixo do rio Thames; chefs de cozinha no corte; o vidreiro que antecipa o estado seguinte do vidro quente)
  • através do brincar, porque “in play, is the origin of the dialogue the craftsman conducts with materials (..) a school for learning to increase complexity.” (p.272)
Porque na verdade, apesar de termos sido capazes de proceder ao registo de muito do conhecimento tácito, continua a faltar-nos muito daquilo que está implícito nesse conhecimento. Começámos por registar o conhecimento sob linguagem escrita, e vimos quão difícil era fazê-lo. Sennett dedica um capítulo inteiro a este problema, “Expressive Instructions” (pp179-193), que é para mim um dos pontos mais altos do livro, capaz de exemplificar os problemas reais do conhecimento tácito, e da sua dificuldade de transmissão e apreensão. Como diz Sennett, é preciso "mostrar, não contar".
“Language struggles with depicting physical action, and nowhere is this struggle more evident than in language that tells us what to do. In the workshop or laboratory, the spoken word seems more effective than written instructions. Whenever a procedure becomes difficult, you can immediately ask someone else about it, discussing back and forth, whereas when reading a printed page you can discuss with yourself what you read but you cannot get another’s feedback. Yet simply privileging the speaking voice, face-to-face, is an incomplete solution. You both have to be in the same spot; learning becomes local. Display translates into a craft command frequently given young writers: ‘‘Show, don’t tell!’’ In developing a novel this means avoiding such declarations as ‘‘She was depressed,’’ writing instead something like ‘‘She moved slowly to the coffee pot, the cup heavy in her hand.’’ Now we are shown what depression is. The physical display conveys more than the label. Show, don’t tell occurs in workshops when the master demonstrates proper procedure through action; his or her display becomes the guide.” (p.179)
Neste capítulo um dos pontos mais altos na exemplificação dos problemas reais do conhecimento tácito, e da sua dificuldade de transmissão e apreensão, surge com as 4 receitas escritas por 4 chef's diferentes. Cada um dos chef's tenta explicar como se preparar o famoso prato francês “Poulet à la d’Albufera”, uma receita que implica desossar a galinha e depois levá-la ao forno. Sennett classifica cada uma das descrições da seguinte forma

1 – “Denotação Morta”, Chef Richard Olney (p.182)
Excerto descrição: “Sever the attachment of each shoulder blade at the wing joint and, holding it firmly between the thumb and forefinger of the left hand, pull it out of the flesh with the other hand...”

Análise de Sennett da receita: “Olney tells rather than shows. If the reader already knows how to bone, this description might be a useful review; for the neophyte it is no guide (..) The language itself harbors a particular cause for this looming disaster. Each verb in Olney’s instruction issues a command: sever, pull, loosen. These verbs name acts rather than explain the process of acting; this is why they tell rather than show. For instance, when Olney counsels, "Force the flesh loose from the breastbone, working along the crest", he cannot convey the dangers of tearing the chicken’s flesh just below the bone crest. In their sheer number and density the verbs cast an illusory spell; in reality, the verbs are at once specific and in- operative. The problem they represent is dead denotation.”

2 – “Ilustração por Simpatia”, Chef Julia Child (p.184)
A receita segundo Sennett: “Stretching over four printed pages, her recipe divides into six detailed steps (..) In each stage she expresses forebodings. For instance, she imagines the neophyte picking up the knife and counsels: "Always angle the cutting edge of knife against bone and not against flesh".”

Análise de Sennett da receita: “Child’s recipe reads quite differently than Olney’s precise direction because her story is structured around empathy for the cook; she focuses on the human protagonist rather than on the bird. The resulting language is indeed full of analogies, but these analogies are loose rather than exact, and for a reason. Cutting a chicken’s sinew is technically like cutting a piece of string, but it doesn’t feel quite the same. This is an instructional moment for her reader; ‘‘like’’ but not ‘‘exactly like’’ focuses the brain and the hand on the act of sinew cutting in it- self. There’s also an emotional point to loose analogies; the suggestion that a new gesture or act is roughly like something you have done before aims specifically to inspire confidence.”

3 - "Cena Narrativa", Chef Elizabeth David (p.187)
A receita segundo Sennett: “David describes the making of Poulet à la Berrichonne as though it were a tale from Ovid, the transforming journey from a tough old hen flopped on the butcher’s cutting board to the tender poached dish nestling inside its cushion of parsleyed rice (..) The long recipe works as a once-read procedure: it is an orienting short story one would read before cooking; one might then go to work without referring again to the book. It’s a safe bet that even now not one in a thousand of David’s readers had ever visited the province of Berry, where her recipe originates. But like her mentor the travel writer Norman Douglas, David believed you need to imagine first and fore- most what it’s like to be somewhere else in order to do the sorts of things people do there.”

Análise de Sennett da receita: “This is the scene narrative, in which "where" sets the scene for "how". If you have the estimable privilege of a Middle Eastern uncle (..), you will immediately understand the instructional point of the scene narrative. Words of advice are introduced with the phrase, "Let me tell you a story". The uncle wants to grab your attention, get you outside of yourself, rivet you in an arresting scene. (..)
Effective scene narratives are not perfect encapsulations of a point (..) the more he [your uncle] wants to drive home an indelible message, the less direct will be the connection between the scene he sets and the moral; you’ll work that out for yourself once the frame is set. This is the provocative function of any parable. (..)
In her defense it could be said that David’s purpose is to jolt the reader into thinking gastronomically. Gastronomy is a narrative, with a beginning (raw ingredients), a middle (their combination and cooking), and an end (eating).”

4 - "Instrução através de Metáforas", Chef Madame Benshaw (p. 189)
Receita completa: “Your dead child. Prepare him for new life. Fill him with the earth. Be careful! He should not overeat. Put on his golden coat. You bathe him. Warm him but be careful! A child dies from too much sun. Put on his jewels. This is my recipe.”

Análise de Sennett da receita: “This is a recipe conceived entirely in metaphors. ‘‘Your dead child’’ stands for a chicken straight from the butcher, but making this simple substitution takes away the gravity Madame Benshaw evidently wishes to convey about slaughtered animals; in classic Persian cuisine, animals have an inner being, an anima, no less than human beings. Certainly the command ‘‘Prepare him for new life’’ is a charged image...
Each of her metaphors is a tool to contemplate consciously and intensely the processes involved in stuffing, browning, or setting the oven. The meta- phors do not prompt us to retrace and reverse, step by step, the manner in which a repeated action has already become tacit knowledge. Instead, they add symbolic value; boning, cooking, and stuffing create together a new metaphor of reincarnation. They do so for a point: they clarify the essential objective the cook should strive for at each stage of the work.”

A grande questão que se nos colocam estas receitas, estas verbalizações do acto de fazer, é que a sua aprendizagem não é fácil de transmitir. Não basta apenas a informação, como já tinha aqui discutido antes, mas é necessária uma prática repetida, para que a informação se transforme finalmente em conhecimento, e depois em competência.

O livro de Sennett é de extrema relevância, porque o ser humano não é feito apenas de intelecto. Sem competência técnica, como é que se externaliza esse intelecto? Preocupa-me imenso todo este plano do ensino e aprendizagem, mais ainda quando ouço interesses defender uma universidade baseada no ensino à distância e para milhares de alunos em simultâneo. Porque se queremos que as pessoas internalizem processos, assumam a identidade da profissão, transformem essa profissão e a desenvolvam, não basta passar informação, é preciso mais do que isso. É preciso o contacto humano, a interacção humana, a imitação, a repetição, e o tempo. A criatividade não brota do nada, a formatação é necessária, porque é através dela que surge a educação, um nível de auto-controlo dos instintos. E é desse auto-controlo que surge o conhecimento de si, e do saber. É desse auto-controlo que surge a capacidade para ver além, e ser capaz de criativamente subverter processos. Mas tudo isto demora tempo, e o tempo é algo que a nossa sociedade cada vez menos preza. A propósito de tudo isto falei no texto sobre as Guildas da idade média.


2. Excertos
Tendo em conta a riqueza enorme do livro, deixo mais alguns excertos que sintetizam o que de mais importante, para mim, é dito por Sennett neste livro.

2.1 Competências e o Artesão 

2.1.1 Repetição e o logro da Inspiração (p.37..)
"Skill is a trained practice (..) The lure of inspiration lies in part in the conviction that raw talent can take the place of training. We should be suspicious of claims for innate, untrained talent. ‘‘I could write a good novel if only I had the time’’ or ‘‘if only I could pull myself together’’ is usually a narcissist’s fantasy. Going over an action again and again, by contrast, enables self-criticism. Modern education fears repetitive learning as mind-numbing. Afraid of boring children, avid to present ever-different stimulation, the enlightened teacher may avoid routine—but thus deprives children of the experience of studying their own ingrained practice and modulating it from within.Skill development depends on how repetition is organized. This is why in music, as in sports, the length of a practice session must be carefully judged: the number of times one repeats a piece can be no more than the individual’s attention span at a given stage. As skill expands, the capacity to sustain repetition increases. In music this is the so-called Isaac Stern rule, the great violinist declaring that the better your technique, the longer you can rehearse without becoming bored. There are ‘‘Eureka!’’ moments that turn the lock in a practice that has jammed, but they are embedded in routine."

2.1.2 Qualidade das competências (p.50)
"Embedding stands for a process essential to all skills, the conversion of information and practices into tacit knowledge. If a person had to think about each and every movement of waking up, she or he would take an hour to get out of bed. When we speak of doing something "instinctively", we are often referring to behavior we have so routinized that we don’t have to think about it. In learning a skill, we develop a complicated repertoire of such procedures. In the higher stages of skill, there is a constant interplay between tacit knowledge and self-conscious awareness, the tacit knowledge serving as an anchor, the explicit aware- ness serving as critique and corrective. Craft quality emerges from this higher stage, in judgments made on tacit habits and suppositions."

2.1.3 Artesãos e emoção (p.20)
"All craftsmanship is founded on skill developed to a high degree. By one commonly used measure, about ten thousand hours of experience are required to produce a master carpenter or musician. Various studies show that as skill progresses, it becomes more problem-attuned, like the lab technician worrying about procedure, whereas people with primitive levels of skill struggle more exclusively on getting things to work. At its higher reaches, technique is no longer a mechanical activity; people can feel fully and think deeply what they are doing once they do it well. It is at the level of mastery, I will show, that ethical problems of craft appear
The emotional rewards craftsmanship holds out for attaining skill are twofold: people are anchored in tangible reality, and they can take pride in their work. But society has stood in the way of these rewards in the past and continues to do so today. At different moments in Western history practical activity has been demeaned, divorced from supposedly higher pursuits. Technical skill has been removed from imagination, tangible reality doubted by religion, pride in one’s work treated as a luxury. If the craftsman is special because he or she is an engaged human being, still the craftsman’s aspirations and trials hold up a mirror to these larger issues past and present."

2.2 O Artesão transforma-se no Artista (p.65)
“Probably the most common question people ask about craft is how it differs from art. In terms of numbers this is a narrow question; professional artists form a mere speck of the population, whereas craftsmanship extends to all sorts of labors. In terms of practice, there is no art without craft; the idea for a painting is not a painting. The line between craft and art may seem to separate technique and expression, but as the poet James Merrill once told me, ‘‘If this line does exist, the poet himself shouldn’t draw it; he should focus only on making the poem happen.’’
The contrast still informs our thinking: art seems to draw attention to work that is unique or at least distinctive, whereas craft names a more anonymous, collective, and continued practice.
The two are distinguished, first, by agency: art has one guiding or dominant agent, craft has a collective agent. They are, next, distinguished by time: the sudden versus the slow. Last, they are indeed distinguished by autonomy, but surprisingly so: the lone, original artist may have had less autonomy, be more dependent on uncomprehending or willful power, and so be more vulnerable, than were the body of craftsmen.”
 2.3 A Mão (p.150)
“The Intelligent Hand” - “Frederick Wood Jones (1942) wrote, ‘It is not the hand that is perfect, but the whole nervous mechanism by which movements of the hand are evoked, coordinated, and controlled’’ which has enabled Homo sapiens to develop.
One of the myths that surround technique is that people who develop it to a high level must have unusual bodies to begin with. As concerns the hand, this is not quite true. For instance, the ability to move one’s fingers very rapidly is lodged in all human bodies, in the pyramidal tract in the brain. All hands can be stretched out through training so that the thumb forms a right angle to the first finger.
The fingers can engage in proactive, probing touch without conscious in- tent, as when the fingers search for some particular spot on an object that stimulates the brain to start thinking; this is called ‘‘localized’’ touch.”
2.3.1 Preensão (p.157)
“The technical name for movements in which the body anticipates and acts in advance of sense data is prehension. Prehension gives a particular cast to mental understanding as well as physical action: you don’t wait to think until all information is in hand, you anticipate the meaning.
Thomas Hobbes sent the young Cavendishes into a darkened room into which he’d placed all sorts of unfamiliar objects. After they’d groped about, he asked them to leave the room and describe to him what they ‘‘saw’’ with their hands. He noted that the children used sharper, more precise language than the words they used when they could see in a lit space. He explained this in part as a matter of them ‘‘grasping for sense’’ in the dark, a stimulus that served them to speak well later, in the light, when the immediate sensations had ‘‘decayed.’’
This is therefore also the moment when error becomes clear to the musician. As a performer, at my fingertips I experience error—error that I will seek to correct. I have a standard for what should be, but my truthfulness resides in the simple recognition that I make mistakes. Sometimes in discussions of science this recognition is reduced to the cliché of ‘‘learning from one’s mistakes.’’ Musical technique shows that the matter is not so simple. I have to be willing to commit error, to play wrong notes, in order eventually to get them right. 
In making music, the backward relationship between fingertip and palm has a curious consequence: it provides a solid foundation for developing physical security. Practicing that attends to momentary error at the fingertips actually increases confidence: once the musician can do something correctly more than once, he or she is no longer terrorized by that error. In turn, by making something happen more than once, we have an object to ponder; variations in that conjuring act permit exploration of sameness and difference; practicing becomes a narrative rather than mere digital repetition; hard-won movements be- come ever more deeply ingrained in the body; the player inches forward to greater skill.”

2.3.2 Mão e Olho (p.172)
“The Rhythm of Concentration (..) In learning to make a Barolo goblet, O’Connor passed through stages that resemble those we’ve explored among musicians and cooks. She had to ‘‘untape’’ habits she’d learnt in blowing simpler pieces in order to explore why she was failing, discovering, for instance, that the easy way that had become her habit meant that she scooped too little molten glass at the tip. She had to develop a better awareness of her body in relation to the viscous liquid, as though there were continuity between flesh and glass.
Barolo goblet
Now she was better positioned to make use of the triad of the ‘‘intelligent hand’’—coordination of hand, eye, and brain (..) But she still had to learn how to lengthen her concentration. (..) This stretch-out occurred in two phases. First, she lost awareness of her body making contact with the hot glass and became all-absorbed in the physical material as the end in itself: ‘‘My awareness of the blowpipe’s weight in my palm receded and in its stead advanced the sensation of the ledge’s edge at the blowpipe’s mid-point followed by the weight of the gathering glass on the blowpipe’s tip, and finally the gather towards a goblet.’’
The philosopher Maurice Merleau-Ponty describes what she experienced as ‘‘being as a thing”. The philosopher Michael Polanyi calls it ‘‘focal awareness’’ and recurs to the act of hammering a nail: ‘‘When we bring down the hammer we do not feel that its handle has struck our palm but that its head has struck the nail. . . . I have a subsidiary awareness of the feeling in the palm of my hand which is merged into my focal awareness of my driving in the nail.’’
If I may put this yet another way, we are now absorbed in something, no longer self-aware, even of our bodily self. We have be- come the thing on which we are working.
We might think, as did Adam Smith describing industrial labor, of routine as mindless, that a person doing something over and over goes missing mentally; we might equate routine and boredom. For people who develop sophisticated hand skills, it’s nothing like this. Doing something over and over is stimulating when organized as looking ahead. The substance of the routine may change, metamorphose, improve, but the emotional payoff is one’s experience of doing it again. There’s nothing strange about this experience. We all know it; it is rhythm. Built into the contractions of the human heart, the skilled craftsman has extended rhythm to the hand and the eye.
Rhythm has two components: stress on a beat and tempo, the speed of an action. In music, changing the tempo of a piece is a means of looking forward and anticipating. The markings ritardando and accelerando oblige the musician to prepare a change; these large shifts in tempo keep him or her alert. The same is true of rhythm in miniature.”

2.5. O Workshop Filosófico (p. 286)
Pragmatismo – O artesanato da experiência
"Craftsmanship finds a philosophical home within pragmatism (..) Philosophically, pragmatism has argued that to work well people need freedom from means-ends relationships. Underlying this philosophical conviction is a concept that, I think, unifies all of pragmatism. This is experience, a fuzzier word in English than in German, which divides it in two, Erlebnis and Erfahrung. The first names an event or relationship that makes an emotional inner impress, the second an event, action, or relationship that turns one outward and requires skill rather than sensitivity (..) craftwork, as presented in this book, emphasizes the realm of Erfahrung. Craftwork focuses on objects in themselves and on im- personal practices; craftwork depends on curiosity, it tempers obsession; craftwork turns the craftsman outward. Within the philosophical workshop of pragmatism, I want to argue for this stress more largely: the value of experience understood as a craft.
What does the "craft of experience" imply? We would focus on form and procedure—that is, on techniques of experience (..) the craft of making physical things provides insight into the techniques of experience that can shape our dealings with others (..) I recognize that the reader may balk at thinking of experience in terms of technique. But who we are arises directly from what our bodies can do. Social consequences are built into the structure and the functioning of the human body, as in the workings of the human hand. I argue no more and no less than that the capacities our bodies have to shape physical things are the same capacities we draw on in social relations."