outubro 05, 2014

O mundo maravilhoso de Shaun Tan

Acabo de ler "The Arrival" (2006) de Shaun Tan que me deixou num estado de total maravilhamento. De tan Conhecia apenas a magnífica animação, "The Lost Thing" (ver abaixo), vencedora do Oscar para curta de animação em 2011. Se tinha gostado da estilística visual de "The Lost Thing" agora amei aquilo que me pareceu ser um trabalho mais apurado dessa estilística. Parece-me que o facto de "The Arrival" ser dirigido a um público mais adulto deu permissão a Tan para elaborar e detalhar mais a particularidade deste seu universo visual. Apesar disso parece-me que ambos estes seus dois trabalhos foram fulcrais na atribuição em 2011 do Astrid Lindgren Memorial Award, o nobel dos livros para criança. Tan é um artista imensamente completo.



Capa e páginas de The Arrival

"The Arrival" é particularmente feliz porque faz da forma visual o enunciado do sentir dos personagens, fundindo assim mensagem e forma num todo que se exponencia. A estilística muito sui generis de Tan não podia ter encontrado melhor texto para se dar. Tratando a emigração, o livro dá conta de um mundo estranho a que se chega (arrival), mundo esse que segue formas próximas daquilo que conhecemos mas com variações muito particulares, por vezes bizarras ou insólitas. Não se ficando apenas pelo redesenho da representação da realidade, a própria linguagem de composição de vinhetas é renovada seguindo uma lógica de álbum de fotografias antigo, com os elementos de papel texturado e rasgado, transportando assim o leitor para todo um universo que tem apenas como objectivo dar a sentir. O leitor entra na pele de um verdadeiro emigrante e cruza dentro de si as emoções deste, estranheza e saudade.

"The Lost Thing" (2010) de Shaun Tan

Estive a ver algumas imagens do seu mais recente trabalho, que ainda não li, "Rules of Summer" (2013), lançado em livro e app para iPad, que para além de seguir regras deste seu mundo visual, promete mais um mundo maravilhoso, desta vez sobre óleo em tela.

"Rules of Summer" (2013) de Shaun Tan

Todo este trabalho, visual e narrativo, não será alheio ao facto de Tan Shaun se ter licenciado em Belas Artes e Literatura Inglesa. Como ele diz em entrevista recente, teve momentos da sua vida em que se dedicava apenas a escrever, e outros momentos em que se dedicava apenas a desenhar. Os artistas não podem, nem devem ser iguais, mas o que podemos percepcionar aqui é que ser capaz de criar o seu mundo de intenções, organizá-lo e enquadrá-lo enquanto história, e depois conseguir ainda dar-lhe uma forma, outra que não textual, não só enriquece profundamente o trabalho como dá maior liberdade e alcance à visão de um artista.

outubro 03, 2014

Ensinando Mentes, e a "inutilidade da matemática"

Roger Schank foi professor de psicologia, inteligência artificial e educação em Stanford, Yale e Northwestern mas abandonou tudo para se dedicar a tempo inteiro a ser, como ele próprio se define, um “revolucionário da educação”. Este seu último livro, “Teaching Minds: How Cognitive Science Can Save Our Schools” é apenas mais uma das pedras desta sua caminhada, mas que se apresenta de forma bem provocadora, capaz de perturbar até os mais incautos. Longe de ser um livro completo, no sentido em que muito fica por dizer, nomeadamente falha na apresentação de dados empíricos que suportem as ideias centrais, é ainda assim um livro capaz de gerar discussão, de nos obrigar a reflectir sobre o que é a escola, porque existe, porque a criámos, o que esperamos dela, e o que espera a sociedade dela.


"Teaching Minds" é assim uma espécie de livro inacabado, porque funciona mais como puro "ranting", uma espécie de discurso revoltoso contra as instituições e o status quo. Deste modo Schank em vez de produzir um documento organizado e capaz de enquadrar o pensamento subjacente e consequentes propostas, acaba por nos apresentar um trabalho em que atira contra tudo e todos, sem princípio nem fim, procurando enxertar as suas ideias a qualquer custo no sistema. Deitando, por vezes, por terra teorias milenares sem suficiente fundamentação, tudo em nome de uma revolução, de um movimento pela força.

Entristece-me que assim seja, já que concordo com muito do que Schank defende, muito mesmo. Desde o "learn-by-doing", ao "learn by experiencing" passando pelas metodologias de ensino assentes no "project-based". Mas isto não é razão para se avançar no sentido da destruição de tudo o que temos, menos ainda ignorar tudo o que foi conseguido com o que tivemos até aqui. Pior quando a construção retórica dos argumentos é sofrível, baseada em apontamentos básicos, e muitas vezes completamente ultrapassados sobre o funcionamento da escola/universidade.

Já que Schank não o faz no livro, vou procurar organizar aqui as suas ideias centrais, para explicar porque discordo da abordagem, embora não dos princípios. Assim o elemento central de Schank assenta no princípio do "Learn-by-Doing". Todo o livro está imiscuído desta visão da educação, porque segundo Schank, e muitos outros autores, os nossos processos cognitivos só entram verdadeiramente em acção quando fazemos, experimentamos. Quando simplesmente nos dizem, nos contam como fazer, e nós apenas ouvimos, não fazemos, o conhecimento passa por nós mas não permanece. 

Ora isto era o que acontecia na maior parte das horas passadas em salas de aula no passado, em que em vez de fazer, os alunos ouviam. Com o tempo isto foi mudando bastante, hoje desde a primária à Universidade, muito se faz, não apenas se ouve. Mas por saber isso mesmo, embora não o admita, é que Schank decide elevar a fasquia do "combate". Assim o elemento central do livro passa a ser, não o "learn-by-doing", mas os tópicos de conhecimento (disciplinas) - matemática, física, português, biologia, etc. Ou seja, Schank por não acreditar que os professores atuais podem ser capazes de ensinar verdadeiramente a fazer, ataca os tópicos escolhidos para serem leccionados nas escolas e universidades. Deste modo lança a ideia de que o centro nervoso da educação, deveria deixar de se basear em tópicos de conhecimento e passar a basear-se nos processos cognitivos. Apresenta assim, aquilo que se quer como o contributo mais relevante do livro:
Twelve Cognitive Processes that underlie all Learning:

Conscious Processes
1. Prediction: determining what will happen next
2. Modeling: figuring out how things work
3. Experimentation: coming to conclusions after trying things out
4. Values: deciding between things you care about

Analytic Processes
1. Diagnosis: determining what happened from the evidence
2. Planning: determining a course of action
3. Causation: understanding why something happened
4. Judgment: deciding between choices

Social Processes
1. Influence: figuring out how to get someone else to do something that you want them to do
2. Teamwork: getting along with others when working towards a common goal
3. Negotiation: trading with others and completing successful deals
4. Description: communicating one’s thoughts and what has just happened to others” 
E foi exactamente com a apresentação desta abordagem que Schank me perdeu. Não porque discordo dos processos, longe disso, mas porque discordo que se possam ensinar processos por processos. Mas Schank sabe disso, sabe que os processos cognitivos não se ensinam, porque são processos, não são tópicos, assuntos, conteúdos, factos. Por isso atira para a frente, dizendo que o centro devem ser os processos, mas adaptados aos assuntos que interessem ao estudante. Ou seja, no final de contas, o que Schank propõe é que se acabem com os tópicos de conhecimento existentes, e que cada aluno estude apenas aquilo que quiser. Para Schank não faz o menor sentido ensinar Matemática, um dos seus ataques de estimação ao longo de todo o livro, mas num post entretanto feito no seu blog, lista todas as disciplinas, desde a Física à Química, como inúteis

Ora isto não faz o menor sentido, e acaba por ser uma admissão por parte de Schank de que afinal as escolas já ensinam esses mesmos 12 processos cognitivos, só não o fazem sobre os tópicos de conhecimento que Schank considera serem os correctos! Mais, ao seguir esta via cria outros problemas, talvez ainda maiores. Isto é, como é que um aluno a quem não se apresentam caminhos de conhecimento, escolhe o caminho que pretende? Como é que um aluno sabe que tipos de conhecimentos básicos precisa de escolher, para mais tarde poder trabalhar sobre conhecimentos mais complexos? Como é que as escolas conseguem oferecer toda a diversidade de conhecimentos esperados pelos alunos? Como é que um empregador escolhe quem empregar se ele não apresenta nenhum tipo de especialidade geral? Etc.

Mas os problemas da abordagem não se ficam por aqui. Apesar de eu ser um enorme defensor do learn-by-doing, não acredito nessa abordagem a funcionar de modo exclusivo, ou seja sem suporte de aprendizagem da teoria, porque só ela pode alargar o âmbito de aplicabilidade do "doing" através da elaboração da camada mental de abstracção. Isto é, aprender num determinado contexto a fazer algo - ex. programar um software de gestão numa linguagem determinada - não me garante bases suficientes para por si, me permitir a seguir transferir esse conhecimento para outro domínio, com problemas totalmente diferentes da gestão, e com outra linguagem de programação. Para isso é preciso compreender a base da lógica da programação, mas é preciso acima de tudo domínio do pensamento matemático, capacidade de abstracção, para laborar os modelos mentais e apresentar as novas soluções requeridas.

Aliás um dos exemplos mais básicos e que demonstram cabalmente como não chega aprender-fazendo, é o do Inglês (o nosso Português). Schank refere que a disciplina de Inglês é boa, mas que não se deve ensinar a ler Dickens, apenas que se deve ensinar a escrever bem. Ora não é possível que alguém aprenda a escrever bem, se não perceber o que lê, e se não ler muito. Ou seja, não basta escrever, escrever, escrever, é preciso ler, ler, ler, e é preciso discutir e aprofundar o que se lê. E atenção que estou a defender a discussão, não a memorização para depois responder num teste escrito.

Isto vem de encontro ao meu argumento final sobre estas abordagens educativas, tendo em conta o elemento central do século XXI, a criatividade. Não pode alguém almejar ser criativo, inovar, rasgar novos horizontes, se não conhecer o que foi feito antes de si. O nosso cérebro não funciona no vazio, quanto mais fuel (conhecimento, factos, casos, elementos, etc.) lhe for dado mais condições ele terá para vingar num mundo de profunda complexidade como aquele em que vivemos hoje. Por isso as velhas ideias de que a escola mata a criatividade, porque formata as crianças, as obriga a ver o mundo da mesma forma, é apenas em parte verdade. É verdade naquilo que toca o reino dos exames nacionais, dos testes estandardizados, da necessidade de medição do conhecimento do aluno, e da necessidade de avaliar se o professor cumpriu os objectivos definidos pelo Ministério. Mas em tudo o resto, a escola é uma fonte de oportunidades, porque é um tempo no qual se cresce, aprendendo e buscando em si o que os outros esperam de nós.

Este meu apontamento final fez-me chegar à essência da mensagem de Schank, porque é isto no fundo que ele tanto aqui discute, um problema que tem sido imensamente debatido, e que eu sigo sem dúvidas. O problema das disciplinas de conhecimento para Schank não são assim os factos, mas antes aquilo que se faz com eles. O seu uso para medir o conhecimento dos alunos em exames obtusos, que não medem, porque não podem medir, a verdadeira capacidade cognitiva dos alunos, mas se limitam a medir uma memorização temporária. O problema da educação é um problema político, administrativo, que se impõe à educação obrigando-a a funcionar como fábrica de resultados, dando conta da tão afamada "accountability". Por isso, se concordo com os princípios de Schank não concordo com as propostas, acredito que escolheu o alvo errado a abater, a escola e os professores, esquecendo no fundo quem verdadeiramente manda no sistema, e quem continua a impor este colete de forças.

outubro 02, 2014

Videojogos contribuem para a diminuição da violência

Esta semana publico no IGN um texto a propósito da violência nos videojogos e dos seus efeitos sobre os jogadores. É um assunto já por demais discutido, com estudos de suporte divergentes ao longo da última década. Por isso se resolvi voltar a ele foi porque novos dados, bastante interessantes, foram apresentados por uma equipa de investigadores americanos.

Illustração de Jimmy Turrell

Podem ler o texto completo, Videojogos contribuem para a diminuição da violência, no IGN.

setembro 25, 2014

"Far Cry 3", puro escapismo virtual

"Far Cry 3" é mais uma experiência virtual do que um videojogo. Passadas algumas horas de estarmos em "Far Cry 3", e apesar da violência, começamos a sentir que estamos verdadeiramente numa ilha paradisíaca. Ou seja, os momentos de jogo e os momentos narrativos contribuem para nos fazer entrar no mundo virtual, imergir, levando-nos a desfrutar, com o passar tempo, das delícias de deambular livremente pelo mundo aberto. Assim o melhor é sem dúvida a atmosfera e o design de jogo, o pior a história e a primeira-pessoa, passo assim a detalhar cada um destes elementos.




"Far Cry 3" conseguiu desenvolver um cenário magnífico, usando como fundo um conjunto de ilhas paradisíacas, tratando-as em termos visuais de forma deslumbrante, nomeadamente pelo verde e pela luz que as banham. Este cenário, envolto pela música, contribui para gerar uma atmosfera poderosa e impregnante, que marca o jogador, levando-o a querer voltar ao jogo sempre que possível, como se sentisse o apelo da evasão, do escape da realidade para o virtual. A ilha é suficientemente grande para durante a primeira vez que se joga a main quest praticamente não se repetirem caminhos, praias, lagos, cavernas, ruínas, ou montanhas.

No campo de jogo, temos um trabalho tecnicamente perfeito, não fosse esta a equipa responsável por "Assassins Creed". Estamos muito longe de um mero FPS, temos além de muito stealth, elementos de RPG como: XP, skills, equipamento, criação de drogas, caça e desenho de materiais com peles de animais, etc. A jogabilidade está colada à narrativa dos personagens, nomeadamente de Jason. O nosso protagonista começa como um mero jovem-adulto da Califórnia, habituado a ter tudo, que depois de feito prisioneiro por um gangue que controla a ilha, vai ter de aprender a desenrascar-se sozinho, vai ter de crescer. Assim no início os tiros nem sempre acertam, morremos muito facilmente, os animais matam-nos a par e passo, e o nosso stealth pouco adianta. Com a progressão do jogo, vamo-nos tornando num sobrevivente, não apenas Jason, mas nós jogadores, que enfrentamos e crescemos no controlo das variáveis de jogo. Quanto mais controlamos o jogo, mais o queremos controlar, assim como mais para ele queremos voltar.

Peca na história, básica e inconsequente. Serve a insanidade para tudo justificar, nomeadamente o modo como foi desenhada a morte dos dois grandes vilões. Uma insanidade que não joga com aquilo que acabo de descrever acima, já que quanto mais progrido no jogo, mais vontade tenho de o fazer, sabe-me bem, é bom, não estou louco, nem o desejo estar. As tribos existentes na ilha não apresentam qualquer densidade, parecem ter caído do céu para nos receber no jogo, acabando por quase nem se diferenciarem dos piratas de Vaas e Hoyt.

O pior de tudo, e como venho dizendo, é a primeira-pessoa. Não precisaria de dizer mais além do simples facto de “Far Cry 3” ser uma espécie de “Assassin’s Creed” em primeira-pessoa. Por isso basta compararem o que sentiram pelas personagens de Ezio Auditore ou Connor, e aquilo que sentiram por Jason Brody. Mais um dado, reparem como o marketing de “Far Cry 3" explorou a presença de Jason nas imagens publicitárias, lhe deu vida e o mostrou em acção, algo que nunca se vê no jogo, nem sequer nas cutscenes!!!



Imagens de Jason Brody, o protagonista que apenas existe nas imagens publicitárias

*** SPOILER ***
A primeira-pessoa não funciona quando queremos contar histórias, não se consegue levar o jogador a empatizar com o protagonista. Dou um, de vários exemplos gritantes em que isso acontece, não por culpa do storytelling, do jogo ou cutscene, mas apenas porque falta Jason. Quando a meio do jogo nos é anunciado com grande surpresa que o nosso irmão está morto, o que sentimos? Nada. Os colegas de Jason reagem violentamente, com choro e tristeza, mas Jason não reage, porque simplesmente não existe. O Jason, sou eu, ou supostamente devo ser eu, mas eu estou a ouvir uma história, apesar de participar nela. O irmão não é meu, é do Jason, era ele quem deveria estar em cena e reagir, para que eu compreendesse o quanto este evento o afectou. Mas não está, porque estamos em primeira-pessoa.
***************

A primeira-pessoa é mais visceral em termos de ambiente e acção, mas apenas isso, visceral, não serve para ir além das emoções de superfície, que só a narrativa pode conter. Por outro lado a primeira-pessoa é excelente para quem produz, porque fica imensamente mais barata a produção do jogo.

Resumindo, "Far Cry 3", é uma belíssima experiência, mas não esperem grande história, ou grandes momentos narrativos, vivam o videojogo pelo jogo, sintam a atmosfera, e deixem-se levar.

setembro 24, 2014

Do outro lado do muro

"Greenfields" (2013) é mais uma belíssima animação de licenciatura da escola Supinfocom. Realizada por Luis Betancourt, Benjamin Vedrenne, Joseph Coury, Michel Durin e Charly Nzekwu em Junho de 2013.



Uma pequenina história que toca num ponto central da discussão sobre modelos e ideologias de regimes políticos. A distopia é apresentada, fazendo-nos lembrar os países por detrás do muro soviético de outrora, dado o salto, somos dados a ver o outro lado da realidade, da potencial sociedade capitalista. Simples, mas forte, capaz de nos questionar sobre muito daquilo que fazemos todos os dias, e porque fazemos...

Em termos técnicos temos um bom trabalho de fusão entre 3d e texturas com sabor a 2d, tudo renderizado com efeitos de outline 2d, criando toda uma estética analógica, autêntica e autoral. O melhor acaba por ser a própria realização que nos conduz e nos entrega o mundo, surpreendendo-nos e sugando-nos para a discussão que se quer lançar.

"Greenfields" (2013)

setembro 21, 2014

a convergência de linguagens

Edge of Tomorrow (2014) é um filme realizado por Doug Liman (“Bourne Identity” (2002); “Jumper” (2008)) escrito por Christopher McQuarrie (“The Usual Suspects” (1995); “Valkyrie” (2008), Jez Butterworth e John-Henry Butterworth, adaptado do livro “All You Need Is Kill” (2004) de Hiroshi Sakurazaka. “Edge of Tomorrow” é um filme notável, essencialmente pela história que tem para contar. É ficção científica no seu melhor, que os hard core gamers e criadores de videojogos sentirão como ninguém, assim como todos os amantes de “time travel”.



*** SPOILERS *** Não ler, se ainda não viu o filme ou leu o livro ***

Edge of Tomorrow” (EoT) abre como apenas mais um filme de acção militar, misturando alta tecnologia e extra-terrestres, envolvido por muito espetáculo e Vfx. Mas ao fim de 20 minutos somos brindados com uma reviravolta completa de cenário, com o filme a ganhar todo um novo tema, atirando-nos para um novo universo narrativo. Por isso aconselho a que vejam o filme, sem ler este texto.

Doug Liman realiza um trabalho tecnicamente perfeito, com uma velocidade e ritmo muito próximos da série “Bourne”. Por outro lado o guião de adaptação da obra de Sakurazaka é também muito bom, conseguindo transformar em experiência sensorial o fundo da sua obra, e mais do que a sua obra, a sua visão. Sakurazaka antes de se dedicar à escrita trabalhou na área da informática, apresentando um gosto influenciado pela cultura da computação e videojogos. Estas influências estão nesta história, e o filme consegue dar-lhes uma representação que o livro não pode, nomeadamente aproximar-se da premissa da raiz, que é a experiência dos videojogos. Passo a explicar.

EoT baseia a história numa invasão realizada por uma espécie extra-terrestre que possui, além de poder bélico extremo, a capacidade para fazer reset ao tempo. Ou seja, sempre que morrem, voltam ao ponto imediatamente anterior no tempo. O mesmo que nos acontece quando jogamos um videojogo, quando morremos voltamos atrás, e podemos tentar de novo. Deste modo, sempre que se lançam na conquista de um novo planeta, o seu poder de reset do tempo permite-lhes voltar atrás e tentar as vezes quanto as necessárias até que a conquista aconteça. Como em todas as histórias, o sistema apresenta um glitch, que acaba por dar acesso aos humanos ao mesmo poder. Desse modo, ultrapassado o glitch, temos o nosso herói a voltar no tempo sempre que morre, o que inevitavelmente nos remete para filmes como “Groundhog Day” (1993) ou “Source Code” (2011).

Se “Groundhog Day” tem servido o discurso académico para abrir as possibilidades do storytelling proporcionadas pelas narrativas interactivas, EoT atira connosco para dentro de um autêntico videojogo sandbox FPS. Somos brindados com a experimentação, repetição, progressão, domínio e mestria. EoT mostra claramente o que acontece na mente de um jogador quando este joga um videojogo. O jogador repete as mesmas acções para conseguir ultrapassar obstáculos, procurando perceber as fraquezas do sistema, procurando perceber as alternativas, gerando hipóteses sobre como poderá resolver da próxima vez, procurando solucionar e avançar, avançar sempre até ao objectivo final. EoT é brilhante, porque não se limita a mostrar isto apenas uma vez, e numa única direcção, fá-lo de um modo atual, ao estilo sandbox, dos mundos de jogo abertos, abrindo múltiplos caminhos de resolução. O sandbox obriga Cage, o protagonista/jogador, a rever várias vezes todas as soluções, incluindo as de sucesso, voltar atrás, deixando cair hipóteses experimentadas e válidas, mas que o levaram até um beco sem saída.

All You Need Is Kill”, o livro, só poderia ter sido escrito por alguém que joga, alguém que gosta muito de jogar, porque se respira videojogos. Sinto, sem ter dados para tal, que a premissa de Sakurazaka terá surgido exactamente a partir da sua experiência com FPS, aliás o próprio título a isso aspira. Terá pensado que seria interessante explorar essa possibilidade numa história, e tudo o resto na narrativa terá surgido para dar suporte a essa premissa.

Entretanto acabei por encontrar suporte para a minha suspeita. No livro, no final do mesmo, está um Afterword de Sakurazaka, do qual transcrevo um excerto,
“I like video games. I’ve been playing them since I was a snot-nosed kid. I’ve watched them grow up along with me. But even after beating dozens of games on the hardest difficulty mode, I’ve never been moved to cheer until the walls shake. I’ve never laughed, cried, or jumped up to strike a victory pose. My excitement drifts like ice on a quiet pond, whirling around somewhere deep inside me.
Maybe that’s just the reaction I have watching myself from the outside. I look down from above and say, “After all the time I put into the game, of course I was going to beat it.” I see myself with a shit-eating grin plastered on my face—a veteran smile only someone who’d been there themselves could appreciate.
The ending never changes. The village elder can’t come up with anything better than the same, worn-out line he always uses. “Well done, XXXX. I never doubted that the blood of a hero flowed in your veins.” Well the joke is on you, gramps. There’s not a drop of hero’s blood in my whole body, so spare me the praise. I’m just an ordinary guy, and proud of it. I’m here because I put in the time. I have the blisters on my fingers to prove it. It had nothing to do with coincidence, luck, or the activation of my Wonder Twin powers. I reset the game hundreds of times until my special attack finally went off perfectly. Victory was inevitable. So please, hold off on all the hero talk.”
 Hiroshi Sakurazaka, excerto do livro “All You Need Is Kill" (2004)
Assim “All You Need Is Kill” é provavelmente o livro que mais longe levou a convergência de discursos, entre a literatura e os videojogos, já por sua vez “Edge of Tomorrow” eleva essa convergência ao desenho da linguagem, com o cinema a colar-se intimamente aos videojogos, a demonstrar que também pode contar histórias com base na linguagem criada pelos videojogos. Acredito que EoT realiza mesmo melhor, de forma mais completa, a visão de Sakurazaka. EoT foi criado por Doug Liman como uma experiência sensorial, não se limita a contar a história, cria toda experiência capaz de nos levar a sentir algo muito próximo daquilo que sentimos quando jogamos. Aliás, a ideia de que a visão fica mais próxima, acaba por se confirmar nas palavras do próprio Sakurazaka em entrevista, a propósito de uma possível adaptação de um outro livro,
“in my novel Slum Online EX (Hayakawa Bunko), I wrote a story about a game. My intention with that novel was to challenge myself to depict things in a way that could only be done through the written word. I would be happy if it were put on screen, but something that is important is that there are things that only novels can depict as novels.
So, when something is shown that can only be depicted in a film, like with this adaptation, it becomes amazing.” (
Hiroshi Sakurazaka em entrevista)

setembro 20, 2014

A força criativa vem de dentro

O festival Trojan Horse was a Unicorn ainda decorre em Troia, onde marcam presença algumas das mais importantes figuras do mundo da arte digital, aos quais se juntam alguns portugueses que trabalham pelo mundo, reencontrando-se ali por estes dias. Não vou falar da importância deste evento, embora não possa deixar de dar os parabéns ao André Lourenço e equipa, pela magnificência do mesmo.


O que me leva a escrever estas linhas é um pequeno filme criado para o evento, em jeito de manifesto, por Victor Hugo Queiroz, com texto de João Leitão e voz de Scott Ross. Finding your magic is an inside Job, com apenas um minuto e meio resume a essência do espírito criativo do mundo da arte digital, do sentir de quem trabalha nesta área. Em poucos frames podemos perceber, de onde vêm e o que os move. Compreender a essência do que suporta, impulsiona e motiva um artista digital. Tudo isto está resumido nos verbos utilizados no manifesto, que aqui replico:

"Dream, Learn, Make, Build, Create, Design, Venture, Imagine"

"THU Manifesto - Finding your magic is an inside Job" (2014) por Victor Hugo

IGN #2

Esta semana escrevi para o IGN a propósito da manipulação do real por via do Facebook, comentando o caso de Zilla van den Born, a holandesa que foi para a Ásia sem ter ido.

A Hiperrealidade do Facebook, 17.09.2014, IGN Portugal

"Blankets", uma novela gráfica

Blankets” (2003) deixou-me profundamente emocionado. Craig Thompson fez do meio escolhido, banda desenhada a preto e branco, o seu meio natural expressivo, conseguindo por meio deste, chegar até nós com uma força impressionante. Aquilo que podemos experienciar em “Blankets” é algo raro, poucos trabalhos o conseguem, não só através deste meio, como através de qualquer outro. Thompson constrói um trabalho de grande detalhe - narrativo, dramático, visual e literário - dando-se por completo, colocando-se a si próprio nesse detalhes, impregnando-o de humanidade, de sentimento e racionalidade. “Blankets” é uma porta aberta para o interior de Thompson, porque é uma extensão visceral da sua imaginação, da sua consciência, do seu ser.


A essência do envolvimento narrativo define-se pelas suas capacidades dramáticas que por sua vez se definem no desenvolvimento dos seus personagens. Neste trabalho Raina e Craig são adolescentes em busca de si, que por meio de uma relação crescem e aprendem a lidar com o mundo e consigo próprios. Thompson criou não apenas duas personagens profundamente críveis, como profundamente humanas.

Craig e Raina

Não posso dizer que do ponto de vista narrativo ou dramático seja algo nunca feito, a literatura e o cinema são frutíferos neste domínio. Mas cada meio, por meio das suas próprias particularidades expressivas, enfatiza naturalmente diferentes substâncias. Neste caso o facto de “Blankets” ser uma novela gráfica cria, para além da surpresa de tratar um universo raro no meio, um acesso novo à experiência estética do que se quer dizer. Ou seja, o portal que a arte nos abre para compreender o sentir do autor, apresenta por meio da novela gráfica, dimensões que não estão ao alcance da literatura ou cinema. E é por isso que “Blankets”, para além de emocionante, é tão relevante.


Informações
Editora: Top Shelf Productions
Data: 2003
Páginas: 592
Prémios: Harvey Awards (2004) para "Best Graphic Album of Original Work", "Best Artist" e "Best Cartoonist"; Eisner Award para "Best Graphic Album" (2004), entre outros.