outubro 21, 2013

animação nacional: pedagogia e entretenimento

Ao longo do último ano surgiram em Portugal duas novas séries de animação nacional com qualidade para serem exibidas em qualquer país, falo dos Nutri-ventures e dos Visiokids. Ambas as séries assumem um posicionamento pedagógico, muito provavelmente por razões de financiamento, por ser mais fácil convencer quem investe.



Apesar destas imposições, que se colocam a quem tem de convencer outros a financiar primeiros projectos de carácter lúdico, tenho a dizer que comparando estes dois projectos com muitos outros projectos nacionais do passado - animação, multimédia ou videojogos - denota-se que já estamos num patamar distinto. No passado os trabalhos lúdicos nacionais que arriscavam integrar a educação no entretenimento acabavam por se perder no caminho, desistindo do entretenimento para assumir apenas a camada da educação. Mas Nutri-ventures e Visiokids conseguem a proeza de serem trabalhos profundamente pedagógicos, sem nunca deixarem de se assumir como objectos de puro entretenimento.

Nutri-ventures iniciou-se em Setembro de 2012, tendo conseguido ao longo de um ano chegar a mais de vinte países, incluindo o Brasil, Espanha e EUA onde foi já elogiada pela própria primeira-dama, Michelle Obama, exactamente pela sua componente pedagógica no campo da alimentação. O tema da nutrição tinha sido recentemente explorado também com bastante sucesso, pela islandesa Lazy Town (Vila Moleza). Nutri-ventures acaba ainda assim por conseguir ir além, porque consegue passar mais informação relevante no campo, mantendo sempre um carácter muito lúdico. Por outro lado o trabalho da Bang! Bang! está muito bem estruturado em termos de marketing, porque não se limita à série, traz consigo um pequeno jogo gratuito para iOS, os NV Runners, caixas de puzzles editados pela Science4You, e imensa informação dirigida às crianças e especialmente aos pais que pode ser acedida online.


Entretanto em Setembro deste ano saiu a Visiokids, estando para já ainda limitada ao território nacional, mas que a julgar pelo que vi, acredito que em breve poderemos contar também com a sua exportação para outros países. O seu foco é a ciência, daí o nome que está ligado ao parque de ciência nacional, o Visionarium. Em termos temáticos a série aproxima-se bastante da conhecida série americana, Sid, the Science Kid (Sid Ciência). Visiokids foi criada pela Insizium uma empresa especializada no campo da Realidade Virtual que conta com capital de uma das mais importantes empresas de RV americanas, a EON Reality. Ao contrário da Bang! Bang!, a Insizium tem um leque muito mais alargado de acção, o seu foco não é propriamente a arte da animação, mas antes as tecnologias 3d. Nesse sentido é natural que o resultado estético final, não consiga ombrear com Nutri-ventures. Apesar disso e como dizia, a série denota um interesse por manter o espírito lúdico, não se deixando levar pelo mero apelo educativo, o que é já por si uma vitória, tendo em conta o tema tratado.


Em termos gerais julgo que em Portugal ainda temos caminho a fazer. Porque lidar com produtos como a animação, cinema ou videojogos não é propriamente compatível com a sobreposição com outras linhas de acção empresariais. São domínios com exigências de competências alargadas, e em profundidade. Em Portugal por falta de meios, temos vindo a optar por tentar este formato, de 2 ou 3 em 1, mas a verdade é que isso complica muito as nossas possibilidades no mercado internacional. Além disso a Insizium começa também por assumir um risco mais elevado, ao desenvolver os Visiokids em 3d, que por tratar-se de um produto para televisão tem exigências nos timings de produção, muito limitativas. É verdade que já vamos encontrando muitas séries internacionais em 3d, e com bastante qualidade, mas estamos a falar de investimentos maiores, que permitem ter equipas muito mais alargadas, muitas vezes contando com apoio de outsourcing da China e/ou India.

Apesar de tudo, é com muito prazer que vejo ambas as séries nas nossas televisões, e a serem exportadas para outros países. Também é muito bom ver que começamos a saber lidar com toda a cadeia de marketing em redor destes produtos, e não nos deixamos ficar apenas pela excelência do produto em si. Seja como for, muito sucesso para ambas as equipas que estão por detrás destas séries, e que muitas mais possam surgir nos próximos tempos. Acredito que existe talento e empreendedorismo para o fazer por cá. É verdade que nos últimos 3 anos muito desse talento foi obrigado a sair do país, mas este pode ser o caminho para o trazer de volta...

outubro 19, 2013

ilusão e compositing analógico

Elgin Park é o nome de uma cidade americana ficcional, criada por Michael Paul Smith. Paul Smith (1950) dedicou os seus tempos livres, nos últimos 25 anos, à paixão pela criação de modelos em escala. Com um pano de fundo baseado na sua obsessão pela atmosfera americana dos anos 1950, a cidade impossível foi surgindo através de diferentes edifícios e muitos carros. Um detalhe, esta cidade inexistente, tornou-se famosa, não pelas maquetas, mas pelas fotografias criadas a partir desses modelos, que contribuíram com um grau de realismo tal, capaz de nos fazer duvidar da não existência de Elgin Park.



Paul Smith é de base um ilustrador, tendo trabalhado na ilustração de livros assim como na direcção de arte de espaços para museus e lojas, assim como maquetista de arquitectura. Como tal o seu hobby, a construção da cidade Elgin Park, revelou-se o ideal por estar em total sintonia com o seu trabalho e a sua vida diária.

O que mais me impressionou e levou a falar aqui deste trabalho, foi sem dúvida o enorme realismo que podemos experienciar a partir das suas imagens, criadas com as maquetas. Um realismo particular, porque aquilo que podemos aqui ver é conseguido através de um método especial de construção da representação da realidade na fotografia. O método não é propriamente complexo, nem novo, mas suficientemente eficaz, para que as pessoas se ponham a questionar sobre a realidade da representação. Aliás, o método é tão simples que as pessoas depois de o conhecerem, duvidam mesmo que possa ser apenas tal como descrito por Paul Smith.

O que temos aqui então, é como dizia o colega Leonardo Pereira, e muito bem, uma espécie de "compositing analógico". Uma composição, uma construção, da imagem final a partir da mistura de um pedaço fotografado da realidade - luz, atmosfera, partes de arquitectura real - misturado com um pedaço de irrealidade - as maquetas. Tudo isto é composto num espaço físico, sem qualquer trabalho de iluminação artificial, e fotografado com uma câmara fotográfica básica, compacta, sem qualquer tipo específico de objectiva, inicialmente com apenas 6MP. A imagem que sai da máquina, é o que vemos aqui, não existe qualquer tratamento fotográfico sobre as imagens, não existe qualquer Photoshop, e isso impressiona, e muito.



Ora para Paul Smith conseguir obter este resultado final através de uma qualquer máquina fotográfica, e sem pós-produção, existe apenas uma condição para chegar a esta qualidade, a composição criada no mundo real tem que ter uma qualidade incrível. Falo nomeadamente do detalhe das maquetas, da forma como estas são justapostas aos ambientes reais, e claro sem dúvida do ângulo e momento de luz da realidade escolhida para fotografar. Numa entrevista, à Fstoppers, Paul Smith dá mais detalhes sobre a ciência por detrás do efeito, e mais à frente nessa entrevista explica os problemas por detrás de se fotografar com demasiada resolução:
"The whole forced perspective process was used extensively in early movie making back in the 1920′s. Because it was too expensive to create massive full size sets outside, detailed models were created and placed at the correct distance behind the actors to create the illusion of a city or some fantasy location. It was a very effective special effect.The use of models in Cinema is still happening today. As a matter of fact, audiences are tiring of CGI and model making is getting a resurgence. The actual math that is involved to create a consistently good forced perspective shot is something I can’t figure out because I am math challenged.  Over the years I’ve been doing this, I’ve developed a sense of how far I have to be away from any given background to make the scene work. There are still times when I have the shot set up, look through the camera and discover the distance is incorrect. In a very unprofessional way, I drag the table with the diorama on it until the scene lines up correctly.
What I have found is that 14 megapixels is almost too much for what I need to take convincing diorama shots. There is too much information being recorded which makes every little detail show up in the photographs. When working with miniatures, at least for myself, too much detail distracts from the total scene. Also, to capture a “retro” feeling, there needs to be a blur of sorts. If you go through old photos there is a slight lack of clarity to them. I think psychologically it gives them some emotional distance." 


Impressiona o nível de detalhe do trabalho aqui executado. Demonstra que a paixão por algo pode conduzir à criação de obras que por vezes nos transcendem. Por outro lado, olhando para a carreira de Paul Smith, percebemos que não se chega aqui apenas porque se gosta, mas porque se investiu nesta atividade toda uma vida. Que o investimento em produção criativa ao longo do tempo, nos pode conduzir a um grau de mestria, por vezes único.





Mais fotografias podem ser vistas nas contas SmugMug e Flickr do autor.

outubro 18, 2013

storytelling sem costuras

The Chaser (Chugyeogja), de Hong-jin Na, é um filme sul-coreano de 2008, brilhante em termos de storytelling. Para quem está habituado a consumir as recentes séries de TV (como "The Walking Dead", "Homeland", etc), está já muito habituado a todo este artesanato do storytelling, que por vezes faz lembrar a perfeição da arte da costura sem deixar marcas visíveis. Ainda assim aquilo que poderão ver em The Chaser vai para além do que estamos habituados a ver na ficção tradicional ocidental, porque é um trabalho que inova, conseguindo ser original.


The Chaser tem a capacidade de nos ligar emocionalmente a personagens que à partida não nos diriam muito. Aliás até meio do filme, parece que estamos meramente a ser empurrados pelo enredo, mas é a partir do meio do filme que os personagens se tornam familiares para nós, e em que a nossa empatia começa a funcionar. A uma certa altura, deixamos de seguir as tropelias do enredo, para nos fixar apenas no destino dos personagens. E aí The Chaser brilha, porque apresenta um domínio total da mestria de gestão das nossas expectativas. A história vai-se desvelando, mas passo a passo vamos sendo surpreendidos, pelo não usual, pelo não cliché, pelo não estereótipo. E quando aos poucos acreditamos que os esterótipos parecem começar a fazer sentido, em que conseguimos compor tudo na nossa cabeça, e que tudo se vai fechar como em mais um filme americano, é-nos tirado o tapete.

Hitchcock não teria feito melhor, estamos perante um magistral exercício de manipulação das audiências. A informação é-nos dada, ficamos a saber mais do que os nossos personagens, e isso joga contra nós, e contra as nossas emoções, como muito bem sabia Hitchcock.

O filme é violento, apesar disso não existem tiros, não existem explosões, mas o lado naturalista na representação da violência, confere-lhe um grau ainda mais duro pela crueza e proximidade à nossa realidade. As perseguições a pé e as lutas são bastante realistas, com um design de som capaz de nos faz sentir ali mesmo, ao pé daquelas pessoas, naqueles lugares. Esta capacidade de fazer parecer tudo tão natural, os polícias, as perseguições, os acidentes de carro, as dificuldades de encontrar a que casa pertence um molho de chaves, tornam tudo muito mais familiar, mais cognoscível para o espectador. Não existe aqui um distanciamento criado pelo espetáculo antes pelo contrário, isto acaba funcionando na criação de uma maior imersão no universo apresentado.



outubro 17, 2013

emoções por detrás das últimas imagens de um filme

A minha respiração está muito mais rápida, sinto o meu coração a palpitar... Acabei de experienciar, durante cinco minutos seguidos, as últimas cenas de setenta grandes filmes dos últimos cinquenta anos. Para ser honesto, estou em pleno choque emocional. Falo do efeito deixado por The Last Thing You See: A Final Shot Montage (2013) da Plot Point Productions, baseado no magnífico trabalho levado a cabo pelo blog The Final Image.



Em certa medida isto parece-se quase com o que acontece quando entramos numa perfumaria e experimentamos vários perfumes, a uma determinada altura são tantas as emoções que já não conseguimos experienciar mais nada através do olfacto. Aqui aconteceu-me o mesmo. Sinto-me agitado visceralmente, mas não me consigo focar, para já, em nada em concreto de tudo aquilo que acabei de ver.

Em termos mais técnicos diga-se que estamos perante um filme que é um ensaio académico sobre cinema, ainda que seja apresentado na forma audiovisual, com um investimento de algumas centenas de horas no seu processo de criação. Porque primeiro foi necessário ver os filmes, depois foi necessário obter todos em HD, depois foi necessário extrair os últimos segundos de todos, e só a seguir é que começou o verdadeiro trabalho que aqui podemos ver. Ou seja, o trabalho de análise e categorização das sequências, não em função dos filmes, mas em função do que é representado em cada cena.

  • PART I: Awakening/Creation
  • PART II: The Natural World
  • PART III: Youth
  • PART IV: Love
  • PART V: The Journey
  • PART VI: Triumph
  • PART VII: Celebration
  • PART VIII: Transcendence

Como se pode ver, aqui acima, a categorização foi ordenada de forma a construir um arco narrativo perfeito, em que temos um prólogo, uma introdução, um desenvolvimento, um fechamento e ainda um epílogo. Desmontado desta forma percebe-se muito melhor porque é que o impacto emocional é tão forte. É natural que o impacto emocional se faça sentir mais em quem viu todos aqueles filmes, mas a forma como foi feita a construção narrativa, permite-nos enquanto espectadores ir entrando, e assimilando o que se nos vai apresentando, e as emoções vão subindo em redor de cada novo mundo ficcional que nos é apresentado.

A juntar a tudo isto, note-se o imenso cuidado na sincronização entre a narrativa visual e a narrativa musical, suportada por uma música apenas, "Gathering Storm" dos Godpseed You Black Emperor. Posso dizer que temos aqui uma sincronia perfeita, com os decrescendos e os crescendos a serem verdadeiramente aproveitados pela sucessão de imagens. O todo impregna-se em nós, não nos deixando escapar nem por um segundo.

Para fechar, deixar uma palavra sobre o tema em si, as últimas imagens de um filme. É evidente que estas imagens carregam consigo toda uma enorme carga emocional, porque sintetizam em si mesmo, uma multiplicidade de variantes emocionais. O simples vislumbre de cada uma trás à tona da nossa consciência emocionalidades experienciadas ao longo de cada um desses filmes. Não é por acaso que comecei por dizer que sentia uma espécie de esgotamento emocional, é que cada imagem não se representa apenas a si própria, mas ao todo de cada filme. Ou seja, assistir a estes cinco minutos, é um pouco como viajar por uma montanha russa, mas sem protecção, porque as imagens apanham-nos desprevenidos a cada mudança...

The Last Thing You See: A Final Shot Montage (2013) da Plot Point Productions

Posso dizer que de todos os supercuts que vi na rede, nos últimos anos, este é sem dúvida o mais trabalhoso, mais estruturado, e mais impactante que já vi. Podem ver a listagem de todos os filmes aqui presentes na informação deixada pelos criadores no Vimeo.

outubro 15, 2013

memórias das luzes da noite

Viajando de carro no banco de trás, antes de fazer seis anos, fiz vários milhares de kilómetros entre Portugal e o centro da Europa, com os meus pais. Ainda hoje guardo memórias dessas viagens, não são imagens claras, são movimentos de luz, de luz alaranjada dos candeeiros da noite, que atravessava por entre reflexos, as janelas do carro. A entrada em Portugal era mais triste, porque nessa altura os candeeiros nacionais eram de luz branca, uma luz fria, que contrastava com o aconchego quente do laranja. De madrugada começava a entrar pelas janelas do carro o clarear, ainda azulado do início da alvorada, e eu abria os olhos, despertando com a sensação de estarmos mais perto do nosso destino.


Boulet, ilustrador francês, pegou também nas suas memórias de infância, e resolveu externalizá-las na obra "Our Toyota was Fantastic" (2013), através do formato de banda desenhada com movimento, ou motion-comic. O resultado é estrondoso, porque Boulet desenha todo o universo, e depois anima apenas a luz, dando uma maior vida e presença a essa mesma luz, destacando-a das nossas memórias. Pode-se dizer que este trabalho é um hino de nostalgia para muitos dos que tiveram estas experiências em pequenos.

Tecnicamente foi desenvolvido num formato bastante simples, o GIF animado, um formato que ganhou toda uma segunda vida recentemente com os cinemagraphs. Apesar disso o formato acabou por suscitar toda uma discussão com alguns colegas no Facebook, especialistas no campo das tecnologias digitais - Luis Frias, Pedro Monteiro e João Gonçalves - a propósito da sua razoabilidade técnica. Segundo o João, o GIF Animado apesar da atractividade retro e low-tech, não é propriamente aconselhável para uso em plataformas móveis. O que se confirmou depois de testar a leitura da prancha de BD em plataformas móveis. Nesse sentido seria antes aconselhável utilizar o PNG, um formato muito mais recente, com as mesmas capacidades do GIF mas muito mais optimizado. Fora os problemas técnicos, fica sempre aquela ideia de que apenas fazendo uso de simples tecnologias como os gifs animados, se podem criar obras com este poder evocativo, o que só por si é motivo de um enorme regozijo.


outubro 11, 2013

a Ciência por detrás da Arte

“The Art Instinct” de Denis Dutton é um livro de grande relevância, pela forma revolucionária como discute o complexo conceito de arte. Para dar uma ideia da extensão do interesse que este livro gerou, posso dizer que extraí doze páginas de excertos e notas do mesmo. O livro saiu em 2009, e apenas um ano depois, Denis Dutton deixava-nos, vítima de cancro, com apenas 66 anos.


Começando pelo título, Dutton assume que este é uma espécie de homenagem ao trabalho de Steven Pinker, e ao sua obra The Language Instinct (1994). As referências ao longo do livro a Pinker são muitas, diria quase na mesma proporção em que se cita Darwin. Por isso não é de estranhar que Pinker se apresente como um dos mais fervorosos adeptos da teorização da arte apresentada por Dutton, sendo citado na contracapa dizendo,
"This book marks out the future of the humanities - connecting aesthetics and criticism to an understanding of human nature from the cognitive and biological sciences."
Não posso deixar de estar em acordo com Pinker. O trabalho levado a cabo por Dutton é de uma relevância enorme, quando vivemos tempo complexos no seio das humanidades. Quando as humanidades lutam pela sua afirmação, e até manutenção no mundo académico. É chegado o tempo das humanidades avançarem e abraçarem o pensamento científico. Nada me tem incomodado mais ao longo da minha investigação científica, do que a frustração vivida com a impossibilidade de aproximar o discurso académico das artes ao discurso científico. Sempre acreditei, e temos aqui um trabalho que vem suportar esta ideia em toda a linha, que as artes, assim como as humanidades em geral, precisavam de se suportar num forte discurso científico. Que não era sustentável a simples ideia de se apresentar como uma abordagem diferente ao pensamento. Porque na verdade, um investigador, ou desenvolve ciência, ou limita-se ao discurso popular, sem necessidades de evidência, lógicas dedutiva ou indutiva, empirismo quantitativo ou qualitativo... Para quem estiver interessado nesta discussão de fundo sobre as Humanidades e a Ciência, aconselho vivamente o artigo "Science is not your Enemy" (2013) de Steven Pinker no New Republic.

Quando analisamos muito do trabalho académico nas artes, nomeadamente no estudos de cinema, fotografia, pintura ou videojogos o que vemos são meras discussões tópicas carregadas de subjetivismo, sem qualquer suporte de base científica que possa aferir o que se vai dizendo. A escrita académica nestas áreas, só se separa da escrita popular sobre os mesmos temas, na quantidade de texto e erudição apresentada. É verdade que alguns destes textos se destacam por apresentar pensamento, por digerirem ideias e assunções sobre o mundo em muito maior profundidade, e por vezes com um carácter profundamente pedagógico. Mas a sua validade deixa sempre muito a desejar, porque quase tudo se baseia no ínfimo ponto de vista, que é o de quem analisa, que se limita a apresentar a sua visão, e a dizer aos outros, ‘acreditem em mim, porque eu consigo ver o que os outros não conseguem’.

Foi exatamente contra isto que se moveram os estudos fílmicos nos últimos 20 anos, fartos de tanta diarreia mental e orgasmos em prosa. Um dos seus maiores impulsionadores, David Bordwell trouxe a psicologia e as ciências cognitivas para o estudo do cinema, e desde então estes nunca mais foram os mesmos. Hoje podemos estudar o cinema, analisar um filme, estudar a carreira de um realizador, seguindo abordagens e metodologias de base científica, apresentando evidências muito objectivas daquilo que queremos demonstrar na obra.

Ora Dutton vai neste livro muito mais longe que Bordwell. Dutton não se limita à psicologia tal como a discutimos hoje, mas arrisca a entrar numa das áreas da psicologia mais controversas das últimas duas décadas, a Psicologia Evolucionária. Este ramo da psicologia preocupa-se essencialmente em encontrar evidências que suportem os comportamentos humanos na biologia. Ou seja, estuda-se de que forma aquilo que somos mentalmente, é o resultado de adaptações ao longo do processo evolucionário, baseado na teorização da Selecção Natural e Sexual de Darwin. No fundo, começámos a perceber que tudo aquilo que somos é fruto de uma necessidade adaptativa ao mundo que nos rodeia, no sentido de garantir a nossa sobrevivência como espécie. Daí os instintos básicos de comer para manter vivo, de reproduzir para impedir a extinção da espécie, e das emoções que nos alertam para os perigos e dão cola aos laços sociais que são essenciais para uma espécie mamífera que só consegue sobreviver em grupo. O que se pensa é que todo o nosso comportamento instintivo foi moldado tendo por base estas necessidades. Mas porque é controversa esta abordagem?

Porque não pode demonstrar experimentalmente a evidência daquilo que afirma. Não podemos regressar ao tempo em que a espécie humana foi gerada, nem podemos mostrar com provas físicas os processos. Aliás, este problema é o mesmo de que padece a teoria da Selecção Natural, e por isso vai sendo atacada aqui e ali, nomeadamente por interesses mais ligados à religião. Apesar disso, esta abordagem da psicologia é respeitada por muitos de nós, porque apesar de não possuirmos evidência empírica, as teorias apresentadas são fruto de todo um raciocínio lógico de base dedutivo. Além disso, não se limitam a um mero exercício de dedução, estes exercícios são depois ainda validados em confronto com os casos inter-culturais. Ou seja, cada evidência de adaptatividade de comportamento humano na espécie é sempre confrontado com a universalidade do comportamento no planeta, para poder aferir se este tem uma base biológica ou não. Esta abordagem fica desde logo explícita na abertura do livro de Dutton quando este diz,
“The universality of art and artistic behaviors, their spontaneous appearance everywhere across the globe and through recorded human history, and the fact that in most cases they can be easily recognized as artistic across cultures suggest that they derive from a natural, innate source: a universal human psychology.”
Esta universalidade do fenómeno da arte na espécie humana, é algo a que Dutton dedica os primeiros dois capítulos. No primeiro começa por introduzir-nos à ideia do "gosto universal" através do estudo de Alexander Melamid, "Painting by Numbers". No segundo realiza uma colagem ao trabalho de Pinker sobre a linguagem, mas não se limita a colar os discursos, porque pega na linguagem como gramática instintiva e desenvolve-a para um sentido artístico instintivo. Depois Dutton dedica uma boa parte a encontrar também evidências desta universalidade no discurso de alguns dos maiores estetas da história, como Aristóteles e David Hume.

Mas é depois no capítulo seguinte (3) que vamos poder encontrar o cerne do livro. Depois de defender a universalidade do ímpeto criador artístico, Dutton lança-se na sua definição da arte, sem antes disso convocar e criticar as definições de grandes nomes da estética como Kant, Tolstoi e Clive Bell. Para dar resposta às suas críticas e objeções às definições da arte, Dutton apresenta uma definição pouco usual, mas provavelmente a mais completa que podemos encontrar. A sua definição é espartilhada por 12 critérios que permitem aferir se uma obra é arte, ou não é. Com isto procura tornar o discurso mais sustentado e objectivo possível. E como ele diz, o importante de qualquer definição filosófica de arte, não deve ser procurar responder às grandes obras, mais difíceis, esotéricas ou inqualificáveis (como os readymades de Duchamps ou o 4'33” de John Cage), mas antes se deve centrar sobre uma “abordagem que trate a arte como um campo de atividades, objetos e experiências que aparecem de forma natural na vida humana”. Dutton, defende claramente a arte de um ponto de vista naturalista, destituído de preâmbulos que procuram justificar o aparente inexplicável. Assim os 12 critérios apresentados por Dutton, são,
"1. Direct pleasure.The art object - narrative story, crafted artifact, or visual and aural performance - is valued as a source of immediate experiential pleasure in itself, and not essentially for its utility in producing something else that is either useful or pleasurable.

2. Skill and virtuosity.The making of the object or the performance requires and demonstrates the exercise of specialized skills. These skills learned in an apprentice tradition in some societies or in others picked up by anyone who finds that she or he “has a knack” for them.

3. Style.Objects and performances in all art forms are made in recognizable styles, according to rules of form, composition, or expression. Style provides a stable, predictable, “normal” background against which artists may create elements of novelty and expressive surprise.

4. Novelty and creativity.Art is valued, and praised, for its novelty, creativity, originality, and capacity to surprise its audience. Creativity includes both the attention-grabbing function of art (a major component its entertainment value) and the artist’s perhaps less jolting capacity explore the deeper possibilities of a medium or theme.

5. Criticism.Wherever artistic forms are found, they exist alongside some kind of critical language of judgment and appreciation, simple more likely, elaborate.

6. Representation.In widely varying degrees of naturalism, art objects, including sculptures, paintings, and oral and written narratives, and sometimes even music, represent or imitate real and imaginary of the world.

7. Special focus.Works of art and artistic performances tend to bracketed off from ordinary life, made a separate and dramatic focus experience.

8. Expressive individuality.The potential to express individual personality is generally latent in art practices, whether or not it is fully achieved. Where what counts as achievement in a productive activity is vague and open-ended, as in the arts, the demand expressive individuality seems inevitably to arise.

9. Emotional saturation.In varying degrees, the experience of works of art is shot through with emotion. 

10. Intellectual challenge. Works of art tend to be designed to utilize combined variety of human perceptual and intellectual capacities to the full extent; indeed, the best works stretch them beyond ordinary limits. 

11. Art traditions and institutions.Art objects and per for mances, as much in small-scale oral cultures as in literate civilizations, are created and to a degree given significance by their place in the history and traditions of their art.

12. Imaginative experience. Finally, and perhaps the most important characteristics on this list, objects of art essentially provide an imaginative experience for both producers and audiences. Kant insisted that a work of art is a “presentation” offered up to an imagination that appreciates it irrespective of the existence of a represented object: for Kant, works of art are imaginative objects subject to disinterested contemplation."
Ao longo do livro Dutton vai insistir na primazia do último critério. Porque para ele, a arte só pode existir enquanto capacitadora de experiências. Algo que não é alheio a um grande grupo de estetas, como Kant, mas como ainda esta semana tivemos oportunidade de ver numa frase que circulou na web, de Brian Eno, e que deixo aqui a imagem como referência:

“Stop thinking about art works as objects, and start thinking about them as triggers for experiences.” 
UPDATE: Esta frase foi originalmente proferida por Roy Ascott.

Mas Dutton não nos fala do mero prazer que a experiência reproduz em nós, das descargas de dopamina despejadas sobre os nossos neurónios que nos satisfazem a felicidade. Dutton afirma o valor da experiência, como um processo que se constrói, não como um mero momento resultante.
“The arts intensify experience, enhance it, extend it in time, and make it coherent. Even when they replace it, they do not jump to a pleasure-moment of the human organism and provide that as a surrogate everything else (..) Every great work of art is, like climbing a mountain, about specific process of experiencing it - it is not about inducing some momentary pleasure experience that results from experiencing it. Were the case, pills really would do the trick.”
Para suportar esta ideia de experiência imaginada, Dutton suporta grandemente a sua conceptualização nos mais recentes trabalhos que se têm desenvolvido à volta do storytelling, e dos estudos evolucionários sobre a importância deste para a nossa espécie. Neste sentido faz um resenha muito interessante do valor da ficção para o humano, que acaba suportando o valor da própria arte para a espécie.
"1. Stories provide low-cost, low-risk surrogate experience. They satisfy a need to experiment with answers to “what if?” questions that focus on the problems, threats, and opportunities life might have thrown before our ancestors, or might throw before us, both as individuals and as collectives. Fictions are preparations for life and its surprises.

2. Stories - whether overtly fictional, mythological, or representing real events - can be richly instructive sources of factual putatively factual) information. The didactic purpose of storytelling is diminished in literate cultures, but by providing vivid and memorable way of communicating information, likely had actual survival benefits in the Pleistocene.

3. Stories encourage us to explore the points of view, beliefs, and values of other human minds, inculcating potentially adaptive interpersonal and social capacities. They extend mind-reading capabilities that begin in infancy and come full flower in adult sociality. Stories provide regulation for behavior."
Mas o mais interessante, acaba sendo a forma como Dutton, seguindo Pinker, vai juntar à Selecção Natural de Darwin, uma das teorias mais contestadas de Darwin, a Selecção Sexual enunciada num dos seus últimos livros, “The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex” (1871). Darwin acreditava que a mente não passava de um ornamento sexual, no sentido em que ela vai sendo selecionada num processo evolutivo, através das suas capacidades para exercer charme, fascínio e sedução. Pinker também realiza este trabalho sobre a evolução do instinto da linguagem, percebendo a sua evolução como fruto de um processo de seleção sexual, em que o mais hábil e capaz no exercício da linguagem acaba sendo preferido para acasalar. Mas é Dutton quem acaba a dar uma espécie de remate final para a sustentação desta teorização, quando centra sobre este ponto as razões pelas quais a beleza remete constantemente para o opulento e para o desperdício,
“• Works of art will frequently be made of rare or expensive materials: silver and gold, clear jade, marble that is difficult to transport, jewels, fine hardwoods, unusual pigments, and rare dyes, such as the Tyrian purple of classical antiquity.

• Works of art should be very time-consuming to create. In that sense, they may demonstrate that the maker has leisure — conspicuous leisure — in a way that indirectly indicates that possesses wealth or status.

• Even if a work of art is quickly executed, the skills to make it should have been time-consuming or difficult to acquire. (skills are often manual, showing fine motor control or dexterity: “He’d painted every hair” or “She never missed a note.”)

• The created work of art may be more impressive if it is remote from any possible use. Expensive and useful can be very pleasant, but expensive and useless might well be much better.” 

• A sense of waste, and therefore handicap, can be emphasized channeling resources into work that is this fleeting: the perfect centerpiece for an expensive dinner party may be a poignantly lovely ice sculpture. Marble is fine, but ice can be even better from the standpoint of signal theory. 

• In addition to time, works of art will have required special intellectual or creative effort to create. The sheer brains and energy needed to produce Picasso’s or Wagner’s oeuvre is bound, the Pyramids, to impress us. “
Dutton não fecha esta abordagem sem antes aprofundar mais o tema e ir ainda mais longe na base de todo o processo para o qual contribui a selecção sexual, defendendo que no processo da arte, não está apenas em causa um contributo para o acasalamento e reprodução, mas acima de tudo um processo de comunhão, e de selecção do mais capaz, não apenas fisicamente mas também mentalmente.
“We find beautiful artifacts - carvings, poems, stories, arias - captivating because at a profound level we sense that they take us into the minds that made them. This sense of communion, even of intimacy, with other personalities may be erroneous - even systematically delusional - but the self-domestication of sexual selection was not about truth; it was about living the richer sociality that would carry on the human species and allow it to flourish. That too defines success, for the survival not just of the physically strongest but of the cleverest, wittiest, and wisest. If along the way this amazing process has given us Lascaux, Homer, Cervantes, Chopin, Stravinsky, and The Simpsons, as well as minds to appreciate and take pleasure in them, then so much the better."
Quase no final do livro Dutton volta ao tema, que é para mim muito caro, o da comunhão e comunicação, afirmando algo com o qual não poderia estar mais de acordo,
“Extending Darwin’s original suggestion, I believe that this intense interest in art as emotional expression derives from wanting to see through art into another human personality: it springs from a desire for knowledge of another person.”
A Arte é assim fruto de um processo evolutivo, que se originou lá atrás no processo de desenvolvimento da nossa espécie. A arte, tal como todas as outras tecnologias que fomos desenvolvendo, serve assim de elemento essencial na sobrevivência da espécie. A arte não é dispensável, a arte não é uma perda de tempo, a arte é um bem da humanidade, capaz de nos elevar mentalmente e levar aonde nenhum outro processo mental consegue. Aliás, não é por acaso, este mais recente interesse das academias de ciências pela arte. A necessidade de juntar a arte à tecnologia, revela que é na arte que reside a nossa capacidade para nos transcendermos intelectualmente.
We remain like our ancestors in admiring high skill and virtuosity. We find stylish personal expression arresting, well as the sheer wonder of seeing the creation of something new. Art’s imaginary worlds are still vivid in the theater of the mind, saturated with most affecting emotions, the focus of rapt attention, offering intellectual challenges that give pleasure in being mastered. And over all this, we still share with our ancestors a feeling of recognition and communion with other human beings through the medium of art.

Notas finais:
O livro apresenta ainda mais alguns pontos interessantes, mas que me parecem de algum modo colaterais ao centro da discussão. Apesar disso julgo que podem interessar a quem estuda cada um dos temas.
  • Autenticidade, e o falso na obra de arte. Este assunto é tratado em profundidade, porque pelo que percebi foi um dos assuntos em que Dutton investiu bastante do ponto de vista académico.
  • Análise do sentido do Olfacto. Um assunto muito interessante, nomeadamente para quem se move no campo do multimédia. Sinto que Dutton tem alguma razão na maior parte da sua argumentação sobre as impossibilidades estéticas dos aromas e cheiro. Nomeadamente quando compara este sentido aos demais, destacando a dificuldade em discernir escalas de valor, e em separar experiências.

Mais informação sobre o livro na página www.theartinstinct.com.

Para esta análise foi utilizada a edição da Oxford, mas entretanto o livro foi traduzido e lançado em Portugal pela Temas e Debates, sob o título "Arte e Instinto".

outubro 10, 2013

impressionismo poligonal

La Nuit de l'Ours (2011) foi apresentada já há três anos em Annecy, no Anima Mundi e na Monstra, mas como só agora a vi, aqui a trago para quem ainda não conhece. O filme foi criado num workshop de animação na Bélgica por três alunos - Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard.



Existem vários elementos a destacar neste filme, mas o que mais me tocou foi, sem dúvida, os cenários criados por Pascal Giraud em Photoshop. São absolutamente soberbos na forma como trabalham uma espécie de impressionismo no digital, no sentido em que constroem o esbatimento ou desfocagem do real a partir da manutenção de um aspecto poligonal das formas. Ao ponto de por vezes ficar a dúvida se o filme tem, ou não, alguma base 3d. Depois sobre a camada da forma escorre toda uma luz e um brilho que quase nos ofusca, e cria um deslumbre perante a atmosfera que se gera ali. Por outro lado este brilhantismo perde no lado dos personagens, que são claramente criados por um outro elemento do trio, e seguem uma outra estética, muito mais recortada e delineada.

A animação em si é bastante fluída, contribuindo com um ritmo pausado para a melancolia própria que o filme procura imprimir. A animação foi trabalhada no TVPaint, com algum suporte de After Effects, e ainda algum Cinema 4d para agilização das câmaras.

No campo narrativo, o filme apresenta um história forte, uma espécie de parábola sobre o confronto entre espécies, denotando os efeitos das diferenças e semelhanças, e os seus territórios.

La Nuit de l'Ours (2011) de Pascal Giraud, Alexis Fradier e Julien Regnard

outubro 09, 2013

como ser criativo

O último episódio da OffBook fala-nos sobre a criatividade, um tema que diga-se começa a apresentar alguma saturação. Ainda assim, e para quem trabalha na área, é importante estar atento ao que se vai dizendo, pois encontram-se se sempre pequenos apontamentos relevantes. Neste episódio procura-se definir a criatividade, e perceber o que torna um sujeito criativo.


Nas definições lançadas podemos encontrar atualidade nas afirmações realizadas que procuram desfazer alguns mitos como: a funcionalidade dos lados direito e esquerdo do cérebro; o artista excêntrico; ou ainda o das ideias surgirem de um ponto desconhecido no interior do nosso cérebro. A criatividade é complexa, mas não cai do céu, como nos diz Kirby Ferguson,
"Creativity is a very messy affair, this notion that its coming from nowhere, I think is false." Kirby Ferguson
Essencialmente ser criativo, implica um trabalho continuado de absorção do mundo que nos rodeia, em paralelo com uma constante motivação para fazer, transformar e modificar esse mesmo mundo.

outubro 08, 2013

Catherine (2011), pecados do storytelling interactivo

Tinha demasiadas expectativas em relação a Catherine (2011). Li vários textos que apontavam este videojogo como capaz de elevar o nível do estado da arte do storytelling interativo. As razões apresentadas para a inovação, tinham que ver com o facto da obra trabalhar questões do nosso foro íntimo, e através destas conseguir atingir níveis emocionais pouco usuais no storytelling interactivo. No entanto, e apesar de apresentar alguns pontos interessantes, a experiência acabou por se fechar numa desilusão.


Começando pelo melhor do jogo, a sua estética. Aqui o jogo é um autêntico sopro de frescura no panorama atual. Catherine aparece em várias listas como um dos jogos mais esquisitos de sempre, mas não concordo. O que Catherine faz, é tão simples como colar-se completamente ao manga e anime, elaborando todo o seu universo temático, tanto visual como em termos de história, a partir desses outros dois universos bastante conhecidos. Ou seja, o mundo de Catherine não é estranho por ser novo, pode dizer-se que é estranho por no ocidente estarmos pouco habituados à estética japonesa, nada mais.

Depois no campo narrativo, Catherine segue alguns dos cânones tradicionais da anime. História semi-adulta, com personagens nos 30 anos ainda a enfrentar a vida com muita ingenuidade, típico de quem está ainda a acordar para a vida. A relação amorosa apresentada, e o modo como é trabalhada encaixaria na perfeição no meio da maioria das séries anime do género. Depois o universo dos sonhos, ou pesadelos, apresenta a componente mais estranha mas que vai totalmente de encontro também ao chamado universo anime, que busca sempre a introdução de um qualquer elemento estranho que induza ao desconforto da familiaridade dos personagens, apesar disso, continuando sempre sob um tom bastante humorístico.

O pior vem mesmo quando chegamos ao chamado storytelling interactivo e à capacidade para entrosar história e jogo. Ao início sentimos que os pesadelos, ao serem apresentados sob a forma de um puzzle complexo (com a mesma mecânica de Boxxle (1989) mas em 3d) que temos de resolver para escapar ao pesadelo, fazem sentido. Cada vez que vamos dormir, entramos naquele mundo estranho cheio de decisões a tomar, e em que temos de escapar à pressão dos desafios e do tempo. Mas ao fim de algumas vezes, começamos a sentir o universo do sonho, ou de jogo, totalmente separado do universo de acordado, ou de história. Se conceptualmente a ideia é forte, no videojogo faltou engenho para dar vida à progressão do entrosamento. A meio do jogo já percebemos que tudo passa pelo jogo, e se queremos saber mais da história, temos de continuar a resolver puzzles, e que a única coisa que nos aguarda são mais puzzles, e cada vez mais complexos.

Acordado - História

A sonhar - Jogo

Esta falta que notamos na consequencialidade entre jogo e história, acaba por trespassar para o domínio do próprio storytelling interactivo. Catherine limita-se a fazer perguntas ao jogador, é verdade que sobre assuntos extremamente íntimos, mas não chega usar um tema impressivo. Precisamos de sentir que as questões, e as nossas respostas, estão também elas intimamente ligadas ao destino do jogo. Que tudo não passa de um mero questionário, com check-boxes, para que o algoritmo do jogo vá decidindo o caminho a seguir, vá escolhendo os trechos de animação a tocar de cada vez que respondemos a uma pergunta. E é isso que começamos a sentir, à medida que nos aproximamos do fim do jogo. Cheguei a sentir, que estava ligado naquelas linhas telefónicas de apoio à saúde, em que a pessoa que está do outro lado nos vai lendo um questionário, e nós vamos respondendo, e no final o computador emite um diagnóstico. Impessoalidade, foi o que acabei a sentir no final da experiência.

A uma determinada altura no videojogo começo a questionar-me sobre as respostas que vou dando. Será que devo responder aquilo que verdadeiramente sinto; será que devo responder aquilo que acredito que o jogo espera de mim; ou será que devo responder aquilo que quero que o jogo faça por mim? Como já falei aqui a propósito de The Last of Us, estamos já no reino do brincar, e não do jogar. Dou por mim a improvisar, a testar o sistema, a brincar com as ideias dos autores do jogo. E se inicialmente me dá algum gozo, ele esvai-se quando percebo que o algoritmo que regula as minhas respostas é demasiado retorcido, para eu conseguir fazer sentido dele, e por isso todas as minhas tentativas de jogar verdadeiramente com ele, saem goradas. Por isso desisto, e avanço respondendo ao que me é pedido, apenas com vontade de ver o final do jogo, de perceber o que me espera.

Mas aquilo que me espera, já não é aquilo por que eu anseio. Porque sei que aquilo que me aguarda no final do "meu" jogo, é apenas um dos múltiplos finais possíveis. Tudo o que investi no jogo, está longe de ter um sentido, de me oferecer uma visão do mundo, porque pretende apenas e só ir de encontro à minha visão pessoal do mundo. Ou seja, não me surpreende, não me emociona, porque não existe diferença suficiente entre o que eu sou, e aquilo que se me apresenta, não existe mundo novo a desbravar. E mesmo que o faça, sei que noutro final não o fará, se eu voltar a jogar e der respostas diferentes. O jogo cai então em pedaços, e transforma-se num brinquedo. Um brinquedo em que apenas interessa a interação constante, o processo de experimentar, e não o fim, o que ele tem para nos dizer, porque nada tem, não há verdadeiramente um objectivo, não há uma ideia que o autor tenha para nos comunicar.

Catherine apresenta 8 finais distintos (IGN)

Talvez este seja o maior pecado do storytelling interactivo, acreditar que por meio de bulas de questões pode gerar experiências personalizadas que dirão muito mais a cada um de nós. Quando na verdade aquilo que interessa ao receptor, não é a personalização, mas antes a crença num mundo ficcional, a empatia com os personagens desse mundo, e a ligação directa ao sentir do criador desse mundo...



Declaração de interesses: Joguei uma cópia do videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores ou editores do jogo.