Assim o fundamento que suporta todo o livro, e é o seu contributo mais interessante, passa pela apresentação da provável razão pela qual as crianças falham na escola, acabando por fracassar nas suas vidas, incapazes de concretizar os seus sonhos, contaminando as gerações que os rodeiam. Durante décadas acreditámos, e os estudos demonstravam isso mesmo, que as crianças provenientes de lares mais pobres tinham menor sucesso escolar. As razões prendiam-se com a falta de estimulação cognitiva em casa, tanto pela pobreza expressiva dos pais, como pela falta de acesso a cultura e abertura à diferença.
O grande problema desta análise é que ela estava baseada numa única causa do sucesso, aquilo que Tough, chama de "Hipótese Cognitiva". Esta hipótese assenta a causa do sucesso exclusivamente em competências cognitivas do tipo verbal, matemáticas, análise de padrões, no fundo aquilo que avaliamos nos chamados Testes de Inteligência. Aquilo que Tough aqui apresenta são vários estudos realizados nos últimos anos nos campos da psicologia, economia, educação e neurociência que vieram acrescentar um novo ingrediente a esta análise, o "carácter", e que é constituído por qualidades, ditas não-cognitivas, como a preseverança, consciência, otimismo, curiosidade e auto-controlo. Para suportar esta ideia, Tough apresenta dois estudos que por si só são suficientes para demonstrar toda a racionalidade por detrás desta teorização.
1 – A hipótese cognitiva: QI
O Programa GED, é um programa americano que permite aos alunos que desistiram no secundário, ter acesso a um diploma do secundário, mediante a realização de um exame que avalia se estes possuem as mesmas competências cognitivas dos alunos que frequentaram o secundário. O fundamento deste exame é a hipótese cognitiva, que acredita que um aluno que possua as mesmas competências cognitivas de um aluno do secundário, não deve perder tempo a fazer a escola, pode realizar o teste e obter o mesmo reconhecimento do estado que o outro aluno.
O que confere com os estudos realizados à posteriori, em termos de QI, que demonstraram que os alunos que fizeram o GED não se diferenciavam dos alunos que tinham feito toda a escola. O problema surge quando analisamos o desenvolvimento e progresso destas pessoas para além deste patamar. Nos estudos realizados por James Heckman, este encontrou que
“just 3 percent of GED recipients were enrolled in a four-year university or had completed some kind of post-secondary degree, compared to 46 percent of high-school graduate (..) that when you consider all kinds of important future outcomes—annual income, unemployment rate, divorce rate, use of illegal drugs—GED recipients look exactly like high-school dropouts, despite the fact that they have earned this supposedly valuable extra credential, and despite the fact that they are, on average, considerably more intelligent than high-school dropouts” (p.13)Ou seja, o que podemos ver a partir daqui, é que os alunos que realizaram o ensino secundário, ao terem persistido na escola, obtiveram algo mais do que as competências cognitivas, que os levou a suceder no seu futuro. Heckman conclui que
“what was missing from the equation... were the psychological traits that had allowed the high-school graduates to make it through school. Those traits - an inclination to persist at a boring and often unrewarding task; the ability to delay gratification; the tendency to follow through on a plan - also turned out to be valuable in college, in the workplace, and in life generally” (p.13)Visto apenas através deste estudo, estamos no reino da pura especulação, o número de variáveis não controláveis é demasiado grande. Contudo os estudos sobre esta hipótese, não se resumem a isto. São muitos os estudos conhecidos sobre a relação entre as competências de auto-controlo e de sucesso na vida, nomeadamente o experimento do Marshmellow de Walter Mischel, mas não só. Tough apresenta ainda vários estudos referentes ao carácter que suportam estas evidências. Mas antes de entrar nesses, quero apresentar o segundo ponto que foi para mim imensamente revelador desta hipótese, mas também daquilo que está em jogo na educação das crianças desde tenra idade.
2 – Hipótese Biológica: Stress
Um estudo realizado em 2009 por Gary Evans e Michelle Schamberg da Cornell University procurava estudar as diferenças entre as crianças provenientes de estratos diferenciados, tendo como metodologia testes das funções-executivas (as funções cognitivas responsáveis pelo planeamento e execução de atividades). Usaram como corpo de estudo, 195 jovens com 17 anos, que já seguiam desde que tinham nascido. Metade viviam em ambientes abaixo da linha de pobreza, e a outra metade em típicas casas de classe-média. O teste consistia no simples jogo “Simon Says” (na foto abaixo).
A primeira descoberta, foi que os miúdos que tinham passado mais tempo abaixo do limiar da pobreza, apresentavam menor desempenho no jogo. Ou seja, uma criança que tivesse vivido 10 anos abaixo do limiar, desempenhava pior do que um que tivesse vivido apenas 5 anos. Até aqui nada de novo. A novidade do estudo aconteceu quando eles levaram em conta a medição de variáveis biológicas – pressão sanguínea, índice de massa corporal, e níveis de hormonas ligadas ao stress, tais como o cortisol – que tinham realizado aos 9 anos de idade, e novamente aos 13 anos, para determinar os níveis de stress, ou em termos científicos, a "carga alostática" (“allostatic load”) das crianças. Interessava analisar os níveis de stress fortes, causados por situações como,
“physical and sexual abuse, physical and emotional neglect, and various measures of household dysfunction, such as having divorced or separated parents or family members who were incarcerated or mentally ill or addicted” (p.29)Assim conseguiram correlacionar as três variáveis: os resultados dos testes do jogo; com o historial de pobreza; e com a carga alostática. Mas foi ao aprofundar a análise estatística, que se deu o choque: a variável de pobreza era irrelevante. Não era o fator do tempo vivido na pobreza que condicionava a capacidade cognitiva no jogo, mas antes era o stress vivido. Ou seja, até aqui podíamos pensar que a criança de classe média alta, apresentava melhores resultados na memorização de padrões, por ter genes provenientes de pais bem sucedidos, por estar numa escola melhor, por ter acesso a mais jogos, livros e informação. Mas o que descobrimos foi que uma criança que viva no seio de uma família pobre, mas tenha estabilidade emocional, proporcionada por uma família carinhosa e protetora, que não tenha de atravessar situações de grande stress na sua vida, pode apresentar o mesmo desempenho da criança dita rica.
O stress afecta o crescimento do nosso cérebro. Em confronto com uma situação stressante, o nosso cérebro manda libertar hormonas no sangue, que produzem emoções de ansiedade e medo. Quando estas ações acontecem muitas vezes, e nomeadamente com grande intensidade, sem qualquer atenuação por parte dos seres próximos, família, o corpo vai ganhando habituação a viver sob stress, ou seja passa a reagir de forma muito mais carregada, por não poder antecipar apaziguamento. Os sujeitos passam a conseguir controlar com menor eficácia os seus níveis de stress, e os seus impulsos descontrolam-se muito mais facilmente. Deste modo quando são confrontados com novas situações, como a realização de provas, testes, exames ou responder a um pedido ou ordem de um colega ou professor, tendem a reagir de forma mais impulsiva, já que a ansiedade sobe, e o medo toma conta das suas ações. Esta impulsividade nem sempre é exteriorizada, certos indivíduos tornam-se agressivos, outros simplesmente bloqueiam interiormente.
Assim, a carga alostática, torna-se na variável mais importante a controlar, para garantir o acesso ao estágio inicial, isto é a permanência e realização da escola por parte da criança. Num estudo no Cook County Juvenile Temporary Detention Center, encontraram-se as seguintes variáveis,
“84 percent of the detainees had experienced two or more serious childhood traumas and that the majority had experienced six or more. Three-quarters of them had witnessed someone being killed or seriously injured. More than 40 percent of the girls had been sexually abused as children. More than half of the boys said that at least once, they had been in situations so perilous that they thought they or people close to them were about to die or be badly wounded” (p.49).3 – Treinando o Carácter
O resto do livro é passado a discutir formas, métodos e modelos para treinar o carácter. Tough acaba socorrendo-se da Psicologia Positiva, dos trabalhos de Martin Seligman. No livro Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (2004) Christopher Peterson e Martin Seligman apresentam uma primeira abordagem para identificar e classificar os traços psicológicos positivos dos seres humanos. Aí são descritos os caracteres essenciais, categorizados em 6 grandes virtudes. Desse modo criaram uma tabela e testes que permitem apontar o carácter, e permitem definir objectivos a atingir, que como diz Tough, não são imbuídos de moral nem ética, mas antes de efeitos práticos de realização na vida. As seis virtudes aqui apresentadas, são fruto de vastos estudos através do tempo e de forma inter-cultural.
Tough investe bastante tempo a trabalhar dois exemplos de escolas americanas, uma delas a academia KIPP, reconhecida pela sua capacidade para pegar nos alunos e conduzi-los até a Universidade. A discussão em redor dos elementos essenciais que definem o caráter é grande, e sem consensos, no entanto todos reconhecem a sua enorme importância. Deixo aqui uma tabela de diagnostico de carácter aplicada na KIPP.
Nesta tabela da KIPP fica bem evidenciado que a solução para formar miúdos para seguirem um caminho bem sucedido, está longe de se determinar pela mera lecionação de disciplinas de matemática, línguas ou outras. A formação do ser humano, ao nível do carácter, é extremamente relevante para que este consiga potenciar o melhor de si. É claro que muito disto devia vir de casa. E eu continuo a acreditar que a função da escola, é educar a mente, enquanto a da família é educar o carácter. Mas sei também, que uma grande parte das famílias não está preparada para dar esta bagagem aos seus filhos. Não chega ter estudado, ter dinheiro, ter acesso, é preciso mais do que isso, é preciso compreender o mundo em que se vive, e acima de tudo, educar todos os dias para a vivência com o outro. Cada vez acredito mais, que tudo se resume à interação social, que é aí que reside o cerne que alavanca todo o nosso desempenho nas restantes áreas.