Mostrar mensagens com a etiqueta interactividade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta interactividade. Mostrar todas as mensagens

junho 17, 2016

“Fallout 4” (2015)

A melhor definição que encontrei para dar conta da experiência desenvolvida por “Fallout 4” foi, “intoxicante”, referida por Peter Brown. O mundo de jogo, os personagens, as quests, o storytelling interativo, tudo está desenhado e integrado no sentido de gerar uma das experiências mais imersivas que podemos encontrar nos videojogos. Peca por ir pouco além de "Fallout 3", no entanto consegue manter todos os seus atributos e gerar toda uma nova experiência capaz de nos fazer esquecer o nosso próprio mundo.




Começando pelo menos bom, e já tendo frisado a pouca transgressão face a “Fallout 3”, não posso deixar de apontar o dedo ao desenho de personagens, medíocre e inaceitável para um jogo AAA. Apesar do bom desenho 2d, é manifestamente insuficiente para as necessidades 3d, com má animação, fraca expressão corporal e facial, fraca interação, e acima de tudo os shaders, muito muito fracos, quase ao nível da computação gráfica dos final dos anos 1990, início de 2000. Fica a dúvida se foi propositado, este nível menos articulado do design de personagens, para se assemelhar ao mundo futurista-retro, ou se foi uma opção de produção, investir mais na componente narrativa e menos no esplendor visual.

Estranhamente muitos destes problemas não se replicam no ambiente virtual que consegue criar vários momentos de pura beleza visual, e aqui também indo para além de “Fallout 3”, nomeadamente no uso da cor, no detalhe do mundo e suas alterações atmosféricas. Temos áreas opressivas, carregadas de escuridão, nuvens ou chuva, mas temos momentos de sol aberto em que a natureza se dá, brilha com um fundo de céu azul  e dá gosto estar ali. Por outro lado, ora estamos no meio das ruínas e escombros dos restos deixados pela humanidade, ora encontramos restos muito bem mantidos, com seu sempre típico toque de design americano dos anos 1940, que dão conta de vidas normais, na praia, nos carros, nas salas de estar.

Mas se existe área em que "Fallout 4" se excede é em toda a camada de interação, no design de jogo e agência. A jogabilidade funciona em três grandes modos — exploração e criação; batalha e ação; e história — permitindo-se que o jogador defina qual dos modos é mais relevante para si. Desde logo a escolha do nível de dificuldade contribui para a  definição destas três abordagens — com o fácil dirigido à história e o difícil às batalhas — mas aquilo que vamos preferindo fazer no jogo acaba por ser aquilo que mais contribui para definir o modo, ou seja, o jogo não se impõe mas dá-se ao jogador.

No campo da “exploração e criação” temos o deambular por um mapa enorme, repleto não só de edifícios que se podem visitar por dentro, mas também as colónias que podemos ajudar a criar e a manter, para o que precisamos de coleccionar itens que otimizem não só os nossos recursos tecnológicos, mas também os das nossas colónias. Uma componente de jogo dirigida a quem gosta de jogos que apelem à criatividade, vontade de construir, e experimentar novas ideias.

Diria que o menos conseguido é o de ação, porque sendo um jogo de ação-aventura continua a manter muita da sua rigidez proveniente da base RPG, embora menos que o seu predecessor. Ou seja, apesar de termos um leque de armas imenso, e de podermos desenvolver muitas ações no reforço bélico, assim como termos de passar grande parte do jogo em lutas territoriais, as sequências de batalhas parecem sempre algo inarticuladas, falta uma base de stealth capaz de elevar as estratégias, embora com  a vantagem de serem dotadas de enorme agência, já que o jogador vai tendo grande liberdade no delinear das suas próprias estratégias de ação.

Por outro lado, o melhor de "Fallout 4" dá-se no modo história, nomeadamente, e porque tal como com as batalhas, permite atingir níveis de agência bastante elevados, não precisando sequer de nos colocar face a dilemas ou escolhas limite para nos fazer sentir parte do mundo, abrindo mão de muito controlo narrativo para garantir um verdadeiro sentimento de participação na construção do mundo-história.

Por muitos defeitos que possamos apontar a “Fallout 4” a sua elevação no campo da narrativa interativa, a capacidade para nos questionar e fazer refletir, muito depois de abandonar o jogo, sobre o mundo que ajudámos a criar, sobre as opções que tomámos, como teria sido se tivéssemos agido de modo distinto, é absolutamente brilhante. Temos um mundo ambiente habitado por imensas pequenas comunidades que acabam fazendo parte de um conjunto de quatro grandes grupos ou fações, com as suas próprias ideologias, sendo nós obrigados a passar por quase todas, conhecendo-as por dentro, até que somos obrigados a decidir onde nos queremos situar.

O jogo requer reflexão, que tipo de abordagem defendemos para um mundo a tentar renascer, que ideologia de comunidade nos fala, sendo que a escolha não se limita a seguir em frente, mas implica tomada de decisões territoriais para que a fação escolhida possa manter-se, implicando algumas decisões terminais sobre alguns dos amigos que entretanto criámos noutras fações. As comunidades em "Fallout 4" são autênticas redes de relações, e as nossas ações sobre estas produzem impactos ricos de significado, carregados subtilezas que nos obrigam a refletir sobre o que fazemos e porque o fazemos.

Jogar como personagem feminina é mais relevante do que a aparência, assumimos o papel de mãe, e não de pai, de um dos personagens principais, mudando radicalmente o nosso posicionamento em muitos dos diálogos, tornando a nossa opção relevante ao longo de todo o jogo.

“Fallout 4” obriga-nos a rever aquilo que somos, a questionar as nossas atitudes, valores e crenças. Ainda que por vezes nos force a determinadas atitudes, percebemos que elas são fruto de decisões nossas, tomadas previamente. Raramente "Fallout 4" nos coloca frente a decisões a preto e branco, temos sempre vários níveis de aproximação às decisões finais, várias sub-níveis de escapatória das tendências de decisão que vamos seguindo e que nos permitem antecipar o que se poderá passar, mas como na vida real essas decisões não são simples nem um fim em si mesmas, já que acabam por acarretar consigo sempre novas dependências, novos problemas, novos carmas.

março 11, 2016

"That Dragon, Cancer"

Esta semana aproveitei o texto para o IGN para escrever sobre um dos videojogos que há muito tempo aguardava poder jogar, "That Dragon, Cancer" (2016). Tendo sido anunciado em 2013, demorou a finalizar já que pelo meio foi necessário ainda encontrar financiamento, enfrentar o desaparecimento da criança, e terminar o jogo. Tudo isto foi sendo seguido pela rede, aumentando a cada nova informação mais e mais a expectativa, que agora posso dizer que não defrauda.




Sendo pai, talvez seja mais fácil entrar no jogo, do que para quem não é, ainda assim arrisco que o jogo tem capacidade para tocar todos, a integração de todos elementos da comunicação audiovisual e interativa é tão coesa e dirigida que dificilmente se consegue escapar ao tema e à mensagem.


O texto pode ser lido integralmente no IGN, sob o título, O Luto nos Videojogos (IGN 8.3.2016).

março 07, 2016

"2016 Interaction Design Today"

A Interaction Design Association criou um pequeno filme com entrevistas a alguns dos mais interessantes designers de interação, incluindo Brenda Laurel, e disponibilizou-o no Vimeo. Nada de muito novo, embora seja interessante olhar para as percepções dos outros, e compreender que estamos no mesmo comprimento de onda.


“a lot of people say they are bad at technology, but I think that a lot of technology is bad at humans” Amber Case
"2016 Interaction Design Today" da IxDA

janeiro 22, 2016

A linha da vida

Quando se começa a jogar “Lifeline” tem-se a sensação de se ter entrado no mundo de “The Martian” e ter começado a conversar com Mark Watney por SMS. “Lifeline” estabelece uma linha de contacto, via texto, entre nós e um astronauta perdido numa lua distante, pondo-nos na posição de assistente científico, moral e guarda-costas do mesmo.



Nos últimos dois anos o género de ficção interativa (jogos em texto) não tem parado de aumentar, desde “Device 6” a “80 Days” passando pelo "The Writer Will Do Something" de que aqui falei recentemente, são muitos os artefactos que têm sido criados, mais ainda desde que foi lançada a ferramenta open-source Twine, que está também por detrás deste “Lifeline”.

A história de “Lifeline” não é propriamente inovadora, e apesar dum personagem rico peca por alguns eventos menos conseguidos, mas aquilo que a destaca das demais é a premissa interativa, o modo como a narração foi modelada para a criação de agência dramática. Ou seja, o facto de colocar o personagem ficcional numa situação de total isolamento, em que o jogador é o seu único contacto humano, colocando o âmbito ficcional do artefacto sob uma dependência do jogador extremamente credível e imersiva.

Em termos de interface podemos ficar com a ideia de que já vimos algo parecido, os chatbots, a diferença é que isto não é nenhum sistema de inteligência artificial tentando convencer-nos da sua humanidade, mas antes uma narrativa desenhada para nos convencer da existência de um espaço/tempo, convencer da ocorrência de um conjunto de eventos. O personagem com quem aqui interagimos não se limita a conversar connosco, está numa situação particular e tem objetivos que estão enredados por obstáculos, cabendo-nos oferecer apoio na sua ultrapassagem.

Deste modo temos um modelo narrativo capaz de desenvolver agência no plano existencial de cada jogador, porque no mundo ficcional em que participa continua a existir um protagonista que  por sua vez se relaciona com o jogador no seu mundo real. Ou seja, o protagonista depende do jogador mas o jogador não assume o seu lugar, o que permite ao herói continuar a existir, exercendo a sua personalidade, discordando por exemplo das decisões do jogador. Assim conseguimos não apenas criar envolvimento com o mundo narrativo, mas convencer o jogador a assumir a sua participação real, não meramente projetada numa qualquer identidade, mas sendo ele mesmo.

"Lifeline" apresenta ainda um último atributo (ou defeito), em parte responsável pelo seu sucesso, que é o facto de ter sido desenhado para o Apple Watch. Assim sendo a interação com o jogo acontece fundamentalmente por via do sistema de notificação, ou seja, o facto de o jogo estabelecer o tempo como variável real, obriga a que jogador tenha de esperar pelas respostas do personagem sempre que este tem de realizar uma atividade mais demorada, como por exemplo dormir. Aqui sou obrigado a discordar da abordagem, se no Apple Watch, e enquanto factor novidade, pode ser interessante, num telemóvel e mais ainda num tablet, este atributo transforma-se num problema porque a narrativa passa a controlar o tempo do jogador, fazendo-o sentir-se aprisionado, resultando em possível frustração. Ou seja, se enquanto jogador retiro tempo para me concentrar na obra, e depois esta não me permite a participação porque está em modo stand by, não existe realismo que salve a relação (o que fez sentir-me imensamente agradecido assim que o "fast mode" foi desbloqueado).

janeiro 10, 2016

O escritor desenrasca qualquer coisa

Se quiserem saber como decorrem as reuniões de trabalho durante a produção de um videojogo AAA (embora sirva de exemplo para reuniões de trabalho em múltiplos outros contextos), recomendo vivamente que experienciem a ficção interativa "The Writer Will Do Something" (2015).

"The year is 2012. You are the lead writer for the third game in the wildly popular ShatterGate™ franchise. Expectations are through the roof: fans of the series are waiting for the biggest, most bad-ass entry in the series yet, and your publisher is expecting the best-selling title in its history. But the game's development hasn't gone as smoothly as planned. One morning, just a couple months before E3 and six months before ship, an emergency meeting is called..."

É um artefacto simples, mais focado no relato do que na participação do leitor, ou seja os aspectos de agência são um tanto descurados, e se podemos por vezes sentir que somos ouvidos, nas poucas vezes que somos chamados a decidir, o efeito sobre o progresso narrativo é reduzido. Ainda assim, vale pelo conteúdo do relato, pelo modo como dá conta do vazio de que são feitas tantas reuniões de alto-nível, quando não se sabe propriamente o que se está a tentar fazer, porque já tudo saiu do controlo dos envolvidos.

Talvez, e aqui já sou eu em regime de interpretação do artefacto, os autores tenham desejado fazer-nos sentir alguma da importância do escritor nestas reuniões, do modo como não é ouvido, como procura a maior parte do tempo responder afirmativamente aos desejos de cada um dos responsáveis, para no final se ver como bode expiatório. Não sei se foi pensado assim, mas se o foi, é de génio, já que é isto que acabo por sentir no final por falta de mais agência.


Criado no Twine por Tom Bissel e Matthew S. Burns, ambos com experiência de escrita e produção em vários jogos AAA. Já aqui referenciei várias vezes Bissel, mais recentemente a propósito do seu livro "Extra Lives". Para quem não sabe o que é o Twine, é uma ferramenta open-source de criação rápida de ficção interativa, altamente recomendada para todos os que desejam iniciar-se na exploração da escrita interativa.


Experienciar "The Writer Will Do Something"

Até ser mau demais...

Until Dawn” é o típico jogo-filme, na senda de “Heavy Rain” (2010), um objeto quase-cinematográfico servido por um conjunto de escolhas dramáticas, às quais se acopla esparsamente alguma navegação e alguns “quick time events”, sendo que a jogabilidade se foca nas lógicas da estrutura narrativa. Até aqui tudo dentro do género, e para quem não gosta do mesmo o melhor será escolher outro género de jogo, mas para quem como eu adora, “Until Dawn” deixa imenso a desejar, talvez menos pela jogabilidade narrativa, e mais por tudo aquilo que a suporta.





Ou seja, o grande problema está no vazio dramático, uma história focada no decalcar do típico cinema de horror teenager, que apesar de constituído por muito lixo, tem bons títulos, tais como “Scream” (1996), “Final Destination” (2000), “The Cabin In The Woods” (2012) ou exemplos mais pesados, mas ainda assim focados em grupos de jovens, “Hostel” (2005), “Frontier(s)” (2007) ou até o mais recente “It Follows” (2015). Talvez “Until Dawn” tenha procurado ir mais no sentido de um “Evil Dead” (1981) ou de um “A Nightmare on Elm Street” (1985), ao qual tentou colar um pouco de “The Butterly Effect” (2004), mas o seu grande problema é mesmo originalidade, ou seja ausência de criatividade. Não existe aqui nada, absolutamente nada de novo a acrescentar ao género.

Sim, não é um filme, e poderia estar a inovar no seio dos videojogos, mas não chega, esperava-se mais, muito mais. No final o que vemos é apenas uma brincadeira interativa, uma espécie de artefacto que serve apenas o propósito de experimentar com a interatividade, nada mais. Ou seja, a história é profundamente básica, com clichés aos molhos, não conseguindo nunca surpreender-nos, ou sequer fazer-nos questionar, “o que irá acontecer a seguir?”, tal o enfado.

A juntar a um enredo fraquíssimo, como seria de esperar os personagens, que não são o forte do género, estão completamente ausentes. Como não há um bom enredo, e os personagens neste género são invariavelmente peões, fica-se sem nada. Como se não bastasse, a machadada final advém pela brincadeira com a agência, que na ânsia por sustentar a diferença face ao cinema, nos coloca no controlo de todos os personagens principais, indiferenciando-os ainda mais, tornando impossível qualquer construção de empatia, simpatia ou antipatia com o grupo. Sim posso fazer escolhas, até posso de certo modo escolher o destino de cada um deles, que é o no fundo o que seria o forte desta proposta, mas pergunto, se não sinto nada por nenhum deles que me interessa os seus destinos?

Na estética, apesar dos ambientes bem construídos, seguindo todas as lógicas do horror cinematográfico, a tradução para ambiente interativo falha completamente, já que de tão obcecados com os artifícios audiovisuais do cinema, se esquecem completamente dos artifícios próprios dos videojogos para criar horror. Sendo o pior a cinematografia em conjunto com a navegação. Percebe-se o que pretendiam, mas falham em toda a linha. Ou seja, temos uma câmara estática e uma navegação rígida, que deveria conduzir à emoção de medo. A nossa incapacidade de poder mover a câmara, a incapacidade de mover rapidamente os personagens, tudo é dirigido para uma resposta emocional de medo, mas acaba por em sua vez fazer surgir a frustração e o aborrecimento.

A título de exemplo, é horrível ver a câmara ficar parada enquanto me movo no espaço em profundidade, por mais que deseje manter-me atento ao personagem e ao que lhe pode acontecer, só consigo focar-me no facto de o jogo não me aproximar do mesmo, sentir-me irritado e não com medo, não funciona, e é por isso que o género “survival horror” abandonou estas técnicas, existem tantas outras que o género possui muito mais eficientes.

Until Dawn” é provavelmente um dos primeiros jogos que me obrigo a levar até ao fim só para justificar o dinheiro que me custou, tão chateado estava comigo próprio de não ter conseguido interpretar as críticas que li a respeito do mesmo. A demonstrar claramente que não basta tentar uma formula diferente, se não houver nada de novo para dizer mais vale ficar calado.

dezembro 27, 2015

"SOMA" (2015)

"SOMA" junta-se a um lote de videojogos que marcam o ano de 2015 como um dos mais relevantes dos últimos anos em termos de videojogos narrativos, nomeadamente no que toca a quantidade, diversidade e maturidade. "SOMA" apresenta uma história de ficção-científica de nível literário, não se limitando para tal a templates narrativos, apresentando toda uma nova abordagem ao contar de histórias jogáveis. Deste modo qualquer análise da obra para estar completa precisa de se dividir entre a crítica ao texto e a análise do design.






Design da Narrativa e Jogo

"SOMA" começa por identificar-se com uma das grandes tendências atuais dos jogos narrativos, os walking simulators ("Dear Esther", “Everybody’s Gone to the Rapture”), jogos de pura navegação virtual, evoluindo depois para o environment storytelling (ex. "Gone Home", “The Vanishing of Ethan Carter”), jogos que requerem manipulação, acabando por se aproximar depois do género survival/stealth sem armas, que era uma marca que já vinha dos jogos anteriores da Frictional (ex. "Amnesia: The Dark Descent"). Assim temos um design que trabalha o espaço narrativo por via do ambiente (cenário, luz e som) e pistas (logs, fotos, videos e audios), incluindo a sua manipulação (puzzles), e o tempo narrativo por via do survival (tarefas com janelas temporais) e do stealth (a fuga de inimigos).

Esta mescla de géneros surge da tentativa do diretor Thomas Grip, em fazer avançar o contar de histórias nos videojogos, tendo para tal criado um método de design de narrativa, que intitulou de 4-Layers. Nessa sua definição começa por definir os extremos — “Heavy Rain”, quase ausente de jogabilidade, e “Bioshock” quase só focado nos tiros — apontando a sequência final de “Brothers: A Tale of Two Sons” e a da girafa em “The Last of Us” como exemplos da perfeição do entrosamento entre narrativa e jogo. Grip diz que essas sequências serviram como inspiração para criar todo o método 4-Layers, já usado em “The Vanishing of Ethan Carter” e "SOMA", considerando eu depois de ter jogado ambos, que ele é verdadeiramente eficaz em SOMA". Este método busca desenhar o jogo em camadas, por forma a evitar a focagem na história pela história. Vejamos cada camada, e como elas atuaa em "SOMA".

"Layer 1: Gameplay". No caso de "SOMA", isto é conseguido por via de puzzles espaciais não demasiadamente complexos (encaixar ferramentas e dados entre máquinas, abrir portas), assim como por via da fuga em labirintos, ou os puzzles pressionados pelo tempo e medo. Cada uma destas mecânicas é desenhada em consonância com a história, não se centrando sobre si, mas antes procurando dar resposta a questões narrativas, o que vem de encontro ao segundo layer.

"Layer 2: Narrative Goal". Aqui Grip defende que a narrativa, tal como acontece no cinema, não pode estar apenas cingida ao arco principal que liga o início ao final, mas precisa obrigatoriamente de gerar eventos narrativos que suportem o interesse do recetor ao longo de todo o jogo. A essência deste interesse assenta no dito acima, as questões narrativas, ou seja o mistério e o suspense, capaz de motivar o receptor para a narrativa, impossibilitando assim que este se foque nas tarefas ou ações de modo isolado. Em SOMA a narrativa vai-se desvelando, mas muito devagar, vamos acedendo aos computadores e dados, falando com as pessoas, para ir percebendo o que se passa ali, mas mais importante para perceber o que se espera de nós. Cada área, e cada nível, comporta em si mesmo um trecho narrativo que por si captura o nosso interesse, sem estarmos agarrados ao objetivo final da história. A ideia é focalizar a atenção nesses objetivos narrativos intermédios e assim evitar que o jogador se foque na mecânica das suas ações, focando-se na busca de respostas.

"Layer 3: Narrative Background". Se o “objetivo narrativo” pretendia mudar o modo do jogador de “fazer coisas para avançar na história”, para, “fazer coisas por causa da história”, com o background narrativo procura-se levar o jogador a “fazer coisas para fazer a história aparecer”. Ou seja, o log que leio ou o audio que ouço em "SOMA", não são longos nem obrigatórios, para evitar que se transformem em tarefas, aquilo que tenho de fazer para chegar ao nível seguinte (isto é puro design de narrativa, já que se quisermos ler os textos originais, podemos ir à secção Files no site e ver como são longos, perceber que textos daquela dimensão no interior do jogo deturpariam a jogabilidade). Assim os textos são antes objetos que fazem a história emergir, tais como fotos que vamos encontrando, ou diálogos que decorrem enquanto fazemos outra coisa, tudo isto são momentos entremeados no jogo que vão construindo a história, mas vão acima de tudo dotando a mesma de uma base contextual.

"Layer 4: Mental Modeling". Nesta camada Grip entra adentro do cerne da relação entre narrativa e interação, a partir do conceito base do design de qualquer interação, o modelo mental. Ou seja, falamos de construir um objeto de interação que vá de encontro ao modo como o jogador vê o mundo, porque o jogador não se baseia exclusivamente no que vê ou ouve no jogo, mas antes se socorre de modos de ver o mundo que já detém, ou seja modos que determinam a sua intuição para compreender o que lhe está a ser mostrado. Claro que o jogador usa o feedback do jogo para se orientar, mas não está todo o tempo a processar tudo o que aparece no ecrã, antes carrega todo o modelo de jogo na sua mente e age por intuição, recorrendo à racionalização apenas quando o jogo não opera como esperado. Deste modo o jogador está continuamente a jogar cognitivamente, a imaginar e a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, tentando antecipar as necessidades, o que não é muito diferente do que acontece no cinema ou literatura. Isto é extremamente importante na navegação (ex. seguir o caminho debaixo de água em "SOMA"), assim como na manipulação (ex. o modo como abrimos portas, ou gavetas, ou usamos as ferramentas), assim como claro na participação na narrativa, em que assumimos diferentes modelos mentais, que geram expectativas consoante o género narrativo (ex. terror, comédia, aventura, etc.).

Quero aproveitar este 4-Layers e o caso do "SOMA", para trazer de novo a questão que me coloquei quando acabei “Witcher 3”, por comparação a “The Last of Us”. Será que poder escolher o desenlace de uma história, impacta de forma diferente a minha experiência narrativa? Se à medida que avanço em "SOMA", vou criando o mundo história, compreendendo as suas razões e fazendo destas os meus objetivos e motivações, quer dizer que passo a incluir-me nesse! Assim apesar de não poder alterar as ações da história, sinto que elas têm valor, porque se encaixam e incrementam o significado daquilo que já sei sobre aquele mundo. Não estou simplesmente a abrir e a fechar portas, a descobrir chaves e puzzles, mas estou a dar sentido à história, a procurar compreender o que está por detrás daquela porta, como se encaixa o que está ali com aquilo que já sei. Como diz Grip,
"The mental model and the narrative lie on the same level, they are the accumulation of all the lower level stuff. And if we can get them to work together, then what we have is the purest form of playable story where all your gameplay choices are made inside the narrative space." [source]
Repare-se que apesar de "SOMA" ser linear, não permitir alterar a história, ele oferece decisões ao jogador, algumas limite, como deixar viver ou morrer. E nesse caso mesmo sabendo que isso não alterará em nada o trajeto do jogo, o modo como está encapsulado, o modo como nos é feito acreditar o que vale ou não vale essa "vida", faz com que a nossa tomada de decisão seja difícil. Isto demonstra que o valor das decisões não se prende com as consequências no jogo, mas antes com o valor que atribuímos às mesmas. De certo modo é isto que se passa no final de “The Last of Us, mesmo não nos sendo permitido tomar a decisão de agir ou não agir na sala hospitalar, a perplexidade com que agimos dá conta da importância dessa ação, e mesmo quando somos obrigados a fazer o que o jogo requer para simplesmente avançar na história, não deixamos de continuar a questionar-nos sobre esse momento e o modo como nos marca.

Voltando ao 4-Layers, Grip cataloga a tomada de decisões por parte do jogador sobre a narrativa, como uma variante do “objetivo narrativo”. Ou seja, aqueles momentos em que o jogo, a nossa ação, está umbilicalmente conectada à história, em que jogamos motivados por razões narrativas, e não de jogo. No fundo, o que Grip está aqui a dizer é que mais do que colocar decisões na mão do jogador, é preciso fazer o jogador acreditar que as suas ações fazem parte da narrativa, e não são apenas um adereço para fazer funcionar o jogo. Mais uma vez recordando “The Last of Us”, o crafting de armas não surge como jogo de construção de armas, mas antes como necessidade de fazer frente aos mortos-vivos que vivem naquele mundo-história, ou seja, ajo motivado pela história, e não apenas porque quero avançar.

Fica a faltar ainda a discussão sobre o sistema de stealth que não inclui armas, o qual se torna responsável pela gestão do desafio e medo ao longo de todo o jogo, no fundo uma das grandes motivações para corrermos de um lado para o outro, por vezes sem tempo para pensar, apenas agir visceralmente. Mas voltarei a esse tema num texto próprio, já que levanta todo um conjunto de questões sobre os jogos exploratórios e os walking simulators.


A História

Não é possível falar da história sem desvelar detalhes da mesma (spoilers), já que como explico acima, o modo como a narrativa foi desenhada obriga a que não se conheça nada da história, essencialmente porque é o querer conhecer o que se passa e do que nos falam, que nos vai motivando a jogar, ao mesmo tempo que mantém todo o mundo de jogo crível. Por isso se ainda não jogaram, não leiam o resto deste texto.


---------- SPOILERS ----------------------

De forma genérica, temos uma história que roda à volta de questões existenciais, nomeadamente a identidade, que nos leva numa viagem filosófica de 10 horas em busca do propósito da vida, tendo por base a dualidade mente/corpo de Descartes. Em concreto, o planeta tornou-se inabitável e como solução propôs-se uma forma de digitalizar as consciências humanas, colocá-las dentro de uma arca e enviá-la para o espaço, uma espécie de Arca de Descartes. A linha de história é nova, embora a premissa tenha sido já muito discutida, nomeadamente nos trabalhos de Philip K. Dick. O que torna a história no jogo interessante é o fato de nos colocar de frente ao processo, e seus efeitos, de nos fazer passar por decisões sobre esse processo.



Ora, diferentemente do tempo em que Descartes escreveu os seus trabalhos, hoje sabemos que a consciência não é algo autónomo, sabemos que ela é apenas aquilo que o corpo permite que seja, nomeadamente a configuração física das ligações neuronais, mas também a configuração dos marcadores somáticos em todo o nosso corpo (desde os sentidos às vísceras). Sabendo isto, poderíamos atirar borda fora toda a história, contudo isso não é tão simples, já que aquilo que alimentou a teorização de Descartes continua presente, a ideia de que no interior de nós mesmos existe algo, existe um “Eu”, e esse "Eu" é tão profundamente obsessivo no que toca à sua emancipação, que por mais que "lhe" digamos que não existe individualmente "ele" continua a querer fazer-nos acreditar que existe. Diria quase, e aqui seguindo à letra Descartes, que o "génio maligno" existe, é o nosso próprio "Eu", sempre insatisfeito, sempre produzindo a volição que nos mantém insaciáveis, vivos. Por isso todo o tema de "SOMA" continua tão atrativo, em termos de teorização e discussão filosófica, mesmo se do meu lado a paciência para Freud, Lacan ou Jung se tenha esgotado há muito!

Tirando esta problemática, uma outra surgiu-me com mais força durante o jogo, e que cheguei a colocar como o grande problema de todo o mundo história, o Wau, a personagem que se desenvolveu a partir da IA e tomou conta de todas as instalações submarinas. O Wau surge desde o início como uma espécie de praga, que toma conta de todas as máquinas, robôs, inclusive criando monstros. Isto colocou-me o problema da credibilidade, porque parecia ser apenas um motivo para criar as dinâmicas de survival que os autores precisavam para o tipo de jogo idealizado, não tendo qualquer base científica. Contudo, isto viria a desvelar-se no final do jogo, de um modo perfeitamente científico e filosófico (os monstros são os corpos abandonados/suicidados, mantidos vivos por Wau, na sua tentativa por manter vivos os humanos a qualquer custo), com a discussão a evoluir para a relação entre máquinas e humanos, entre a moral que regula as suas relações, e a capacidade de uma máquina poder entender a imperfeição de que são feitos os humanos.

Para terminar, que este texto já vai longo, embora pudesse continuar a falar sobre o mesmo, tal a riqueza especulativa despoletada pelo jogo, quero ainda deixar uma lista dos momentos altos da minha experiência no jogo, que em certa medida dão conta da intensidade e diversidade da mesmas:



Momentos marcantes da minha experiência de "SOMA"

  • Catherine, a sua escrita e contexto de jogo, enquanto companheira única num território árido de vida, é capaz de fazer sentir o desejo de buscar ansiosamente a conexão da Omnitool apenas para poder conversar com ela.
  • A opressão das sequências debaixo de água.
  • As passagens para dentro e para fora de água, o realismo da espera da compressão e descompressão, e o stress envolvido, de não querer sair, e por vezes ter medo de entrar.
  • Toda a envolvência audiovisual, nomeadamente sonora.
  • Quando me vejo ao espelho pela primeira vez, e percebo que já não sou humano.
  • Quando mudo de corpo e sou chamado a decidir desligar o meu “outro”.
  • Quando encontro o último ser humano vivo.
  • Quando lanço a arca e fico para trás.
  • Quando acordo dentro da arca, já depois do genérico.

dezembro 17, 2015

Videojogo do Ano [Indie:2015] - “Her Story”

Na semana passada dei aqui conta do videojogo do ano criado pela grande indústria, hoje dou conta do que considero ser o videojogo do ano criado por uma pequena equipa, os chamados independentes. Existem vários outros trabalhos que poderia aqui referir, e espero ter tempo de fazer uma listagem mais alargada de títulos deste ano, mas se escolho um é porque realmente marcou para mim o ano. Já tinha falado de “Her Storyno IGN quando ganhou o IndieCade 2015, e com o aproximar do fim do ano podemos ver como o jogo vai surgindo nas mais variadas listas, desde a Time ou New Yorker ao Guardian (as listas dos sites de videojogos ainda não começaram a sair), tornando-o num dos videojogos incontornáveis deste ano. Do meu lado, as razões que sustentam esta escolha são essencialmente três: inovação, guião e interpretação.




Her Story” é um pequeno jogo baseado em vídeo interativo, que disfarçado de experiência estética dos anos 1990 cria algo completamente novo que não se dá à superfície, mas que da mera exigência de abertura ao formato, desenvolve uma experiência que nos suga para o seu interior, fazendo-nos esquecer o mundo e o meio, concentrando toda a nossa cognição e emoção na interação com o labirinto narrativo.

Somos convidados a analisar uma base de dados em vídeo, criada pela polícia em 1994, pouco ou nada nos é dito sobre os vídeos, assim como sobre o que estamos à procura, sendo que toda a mestria do jogo emerge do modo como, a partir da total liberdade de procurar e ver o que se quer, nos consegue manipular e conduzir verdadeiramente a jogar com as palavras-chave. A primeira palavra-chave está escrita, “Murder”, clicando em “Search” e visionando o primeiro vídeo que surge, somos de imediato atirados para o meio de uma história de mistério que nos atiça fortemente a curiosidade. Daí em diante, a cada nova palavra, que intuitivamente o guião do jogo nos vai convencendo a procurar — palavras que formam a base do storytelling: locais, nomes (personagens), e ações (eventos) — a curiosidade segue em crescendo, até que damos por nós a procurar diferenciar múltiplas linhas de tempo no enredo, por meio do texto que vai sendo debitado e das datas fixadas no ecrã de cada vídeo, algo que se adensa mais quando nos começamos a questionar sobre quantas personagens centrais existem verdadeiramente, e que relacionamentos têm entre si.

A inovação de “Her Story” surge da enorme capacidade para repescar um formato de videojogo tentado mas falhado dos anos 1990, dando-lhe uma nova vida por meio de uma mescla poderosa entre os artifícios da linguagem do cinema e o poder algorítmico do texto interativo, criando assim um novo género de videojogo, totalmente capaz de nos envolver. Temos aqui o melhor do cinema, o seu intrínseco apelo ao voyeurismo, juntamente com o melhor da literatura, a desconstrução psicológica dos personagens. Do lado da interação, somos levados a acreditar numa limitada possibilidade de ação motivada pela sua superfície plástica, mas que ao entrar no jogo nos vamos apercebendo que é todo o seu contrário. A aparente simplicidade da interface serve apenas de filtro visual para um mundo altamente complexo e intrincado de possibilidades e escolhas, no qual nos cabe a nós encontrar o fio que tudo liga por meio do diálogo com o próprio sistema.

É deste diálogo que emana do sistema à medida que progredimos no jogo, que emerge o segundo elemento que me levou a escolher “Her Story”, o seu guião, ou a sua escrita. Toda a interface funciona em sintonia com os diálogos da personagem do jogo, que por sua vez respondem diretamente às palavras-chave pelas quais interagimos verdadeiramente com o sistema. A grande questão da escrita começa no imaginar do que cada pessoa procuraria numa base de dados policial, quando tentando desvendar um crime. Algo que se complexifica quando temos de pensar um desenho do texto de modo a garantir que as pessoas — procuram e encontram — os textos que dão sentido ao que estão a ser levadas a pensar. Este segundo nível assume forte complexidade porque o texto não é apresentado como um todo, nem tão pouco de forma linear, mas antes recortado em pequenos clips de video, que podem ir dos 5 segundos a um minuto. Ou seja, o guião tem de garantir que os jogadores irão procurar um conjunto de palavras centrais, que lhes irão permitir começar a descascar a fábula da narrativa, sem contudo forçar o jogador, mas ao mesmo tempo gratificando-o, dando conta de que está a progredir no caminho correto.

O criador Sam Barlow, designer e guionista de "Silent Hill: Shattered Memories" (2009), já tinha aí dado conta de todo o seu fascínio pela psicologia humana. Aqui vai ao âmago dos nossos processos de cognição, conseguindo manipular as nossas escolhas e antecipar não raras vezes as nossas conjecturas mentais, desmontando-as logo a seguir para assim nos lançar na dúvida constante. Quando pensamos que nos estamos a aproximar da verdade e jogamos tudo numa palavra-chave, um novo indício surge e fura toda a teorização que vínhamos desenvolvendo até ao momento. Se toda a progressão está escrita de forma soberba, o seu desenlace eleva toda a experiência, porque munido de um forte twist narrativo capaz de ainda assim manter um final totalmente em aberto, o que só por si, dá conta de toda a mestria de storytelling interativo que temos aqui patente.

Na sua componente mais plástica a obra não se socorre apenas da interface de base de dados, que diga-se está brilhantemente concebida com todo o detalhe visual e sonoro — até às fluorescentes que piscam, zunem e se reflectem num ecrã CRT — a dar conta dos anos 1990, mas centra-se essencialmente numa personagem que é interpretada por Viva Seifert, que não sendo atriz profissional, com um passado de ginasta olímpica, realiza um trabalho absolutamente impressionante. Se todo o sistema de jogo é inovador e o guião é brilhante, o todo só emerge porque quando colocado nas costas de Seifert, esta deslumbra. Poderíamos ser levados a pensar que ela está simplesmente a ser ela, e não existe um verdadeiro trabalho interpretativo, mas estaríamos a ser profundamente injustos, sendo algo que obrigatoriamente temos de descartar quando percebemos verdadeiramente a dimensão, ou dimensões, do personagem que Seifert está a interpretar.

O resultado final é uma obra original, que abre todo um novo género no mundo dos videojogos, e que não tendo a profundidade de agência de “Papers, Please” (2013) consegue ir além no campo da emocionalidade, o que não deixa de trazer à liça o velho debate entre os problemas e vantagens do grafismo vs. imagens reais.


Por fim, mas não menos impressionante, temos acesso a toda esta magnífica experiência por apenas cinco euros.

dezembro 15, 2015

Janet Murray: agência dramática

O primeiro livro de Murray, "Hamlet on the Holodeck: The Future of Narrative in Cyberspace" (MIT Press, 1998), é umas das obras mais importantes do campo de estudos das narrativas interativas, capaz de dar conta de uma revolução que apenas despontava nessa altura, tocando em quase todas dimensões da área. Já o seu segundo livro, "Inventing the Medium"(MIT Press, 2011) é bastante menos conseguido, porque traz pouco de novo, demasiado colado a alguns conceitos ultrapassados, algo que se espelha um pouco neste pequeno vídeo da série Future of Storytelling.



O modo como Murray apresenta a agência, nomeadamente a dramática, parece quase dizer-nos que está presente na experiência de qualquer narrativa em qualquer meio. Ainda assim resolvi aqui dar conta do vídeo, pelos belíssimos exemplos que vão servindo de ilustração, mas essencialmente pela ideia central que fecha o filme, e que tem que ver com o propósito da agência, que Murray defende como estando na base da repetição que a interatividade proporciona. Ou seja, o facto de poder repetir escolhas e ações, e ver os diferentes resultados dessas escolhas, permite aos recetores diferentemente de num livro ou filme, aprender pela experiência, pela tentativa e erro.

Enquanto no romance ou filme preciso de ver vários trabalhos para encontrar múltiplas perspectivas sobre um mesmo tema, nos videjogos narrativos, posso ter acesso a essa multiplicidade toda num único artefacto. É uma abordagem interessante, e que acaba por dar conta da importância reflexiva do valor das escolhas numa narrativa, nomeadamente da importância das estruturas em árvore. Repetindo aqui o elogio à boa escolha da imagens de ilustração, friso que neste momento do vídeo, estas palavras são acompanhadas por imagens do, muito relevante para o tema, "Edge of Tomorrow" (2014).

"Janet Murray - Dramatic Agency" (2015)

dezembro 13, 2015

Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt"

A escolha de um jogo capaz de representar o melhor que se fez ao longo de todo um ano é impossível de realizar-se de modo objetivo, por isso aquilo que aqui apresento é como não poderia deixar de ser, subjetivo. Aquilo que é relevante para mim num videojogo não o é para outra pessoa, seja um jogador, um criador ou crítico. Cada um de nós tem abordagens e motivações distintas sobre o meio, logo os relevos que encontramos são também distintos. No meu caso, a principal razão para escolher “The Witcher 3: Wild Hunt” (W3), como o videojogo AAA de 2015, assenta na sua contribuição para a inovação formal do meio, destacada pela sua escrita interativa e mundo aberto.

1. Modo de Jogo
O primeiro elemento a considerar aqui é o modo de jogo. Quando entramos em “W3”, somos convidados a escolher um de 4 modos — Just the Story!"; "Story and Sword!"; "Blood and Broken Bones!"; "Death March!". Pode parecer apenas mais um tradicional sistema de escolha entre fácil e difícil, mas é bem mais do que isso, a escolha entre os dois extremos comporta verdadeiramente dois modos distintos de aceder ao universo de W3. Fundamentalmente o primeiro modo centra a nossa experiência na história, enquanto o último centra a nossa experiência no jogo. Como sabemos os videojogos são constituídos a partir destes dois ingredientes, a história e o jogo que se entrelaçam para criar uma experiência.

Assim ao jogarem no primeiro modo todas as batalhas, puzzles espaciais, e bosses são desenhados para encaixar no ritmo progressivo de uma história. A nossa passagem por estes raramente nos obriga a voltar a repetir sequências, porque dificilmente morremos. Exceptuando claro quando entramos em áreas em que temos “experiência” insuficiente, e aí somos totalmente abalroados, uma componente de extrema relevância na manutenção do foco num mundo aberto. Por outro lado, torna secundário toda a componente de poções, óleos, bombas e signos, permitindo que se jogue todo o jogo sem preparar qualquer poção, nem nos preocuparmos muito com as capacidades específicas de cada signo. O foco na manutenção e atualização da armadura e armas é suficiente. Deste modo consegue-se concentrar toda a atenção do jogador na história de Wild Hunt com Ciri, fazê-lo focar-se nos personagens, e jogar muito mais com as decisões que se vão tomando. Esta experiência do jogo, quase sem morrer, perfaz uma viagem de mais de 50 horas (apenas a história principal).

Por outro lado no quarto modo, todas as sequências de ação assumem um lugar central no jogo. É impossível ultrapassar cada batalha, ou eliminar monstros no terreno, sem primeiro se focar nas suas fragilidades, para as quais é preciso desenvolver as poções correctas, e desenhar a melhor estratégia de signos para conseguir ultrapassar o obstáculo. Neste modo, mais do que a história de Wild Hunt ou Ciri, estamos focados em ser um Witcher (um caçador de monstros), temos de aprender a arte, das poções e espada, para conseguir progredir no jogo. Deste modo, se o jogador não passar à frente as partes narrativas, poderá estar a apontar para uma história principal com cerca de 100 horas, dificilmente se poderá fazer em menos.

Existe muita discussão sobre qual o melhor modo, mas mais uma vez volto à subjetividade que referi no início deste texto, não existe um modo melhor, já que existem jogadores diferentes. Não podemos, como se faz nestas discussões, esquecer que falamos de uma obra interativa, não de um filme ou livro. A obra deve trabalhar com o interator, e não forçar a experiência que o designer imaginou. Se acredito que o aqui temos representa uma evolução séria e refletida desta adaptabilidade à participação do jogador no mundo, acredito mais ainda que dentro de alguns anos deixaremos de precisar de fazer estas escolhas à entrada de cada jogo. Os jogos irão interpretar a forma como jogamos, e estruturar-se em função daquilo que estamos a fazer no mundo de jogo. Porque na verdade, apesar de podermos apontar aqui variações no desenho da jogabilidade, se as virmos a funcionar em conjunto com as acções que cada jogador está disposto a realizar, poderemos ver como a experiências que se retiram acabam por no final se aproximar para ambos os tipos de jogadores, congregando-os em redor do mesmo do jogo. Construir uma poção ou uma bomba pode garantir uma enorme gratificação para alguns, mas não lhes dá mais conhecimento sobre a profissão do personagem, já que tudo não passa de metáforas de representação muito distantes do real. E assim, se para uns ajuda a criar a ilusão de proximidade, o tornar-se no personagem, para outros funciona como uma desconexão da história, já que as acções se configuram como meras tarefas sem apelo narrativo.


2. O género e a consequencialidade
W3 é um videojogo que vai além dos rótulos existentes, não existindo ainda uma forma única capaz de categorizar o tipo de experiência aqui em questão, precisando nós de recorrer a 4 etiquetas para definir o género: Ação, Role-Playing Game, Terceira-pessoa e Mundo Aberto.
Em termos de género W3 faz parte do grande processo evolutivo da forma plástica dos videojogos. A capacidade para mesclar jogo e história esteve desde o início muito mais ao alcance do texto do que do audiovisual. A chamada ficção interativa dos anos 1970 abriu todo um mundo de possibilidades à integração do jogo de papeis dramáticos nos videojogos, que por trabalhar apenas elementos de texto, facilmente manipuláveis por algoritmos, conseguiu atingir picos de interação com o interator, que o vídeo interativo por essa altura nem sequer imaginava. Com a evolução tecnológica avançámos imenso na capacidade expressiva do meio, nomeadamente com o surgimento do CGI 3D, que permitiu começar a manipular a plástica visual com o mesmo nível de detalhe que manipulávamos palavras e letras de um texto.

Existem várias obras que são dignas de menção nesta tentativa de fusão entre RPG (a participação narrativa) e Ação (manipulação e navegação virtual) de entre os quais “Fallout 3” (F3) e a série “Mass Effect” (ME), ainda que tanto F3 como ME1 mantenham uma impressão RPG muito forte, o que se alterou bastante no tomo seguinte da série,  ME2 o mais equilibrado, resvalando já demais para a ação em ME3. Ao contrário destes, temos por exemplo “Walking Dead” capaz de nos levar a participar na história, mas à custa da nossa imersão no mundo (baixa manipulação e navegação), ficando ainda muito colado ao tipo de experiência criada pelos textos interativos. Por outro lado temos “The Last of Us” capaz de criar um nível de manipulação e navegação do mundo que funciona em perfeita sintonia com a história que vai sendo relatada, sendo no entanto totalmente incapaz de se abrir à nossa participação, porque limita a nossa interação à Plástica (manipulação e navegação), forçando o linear no Enredo.
Diagrama da narrativa interativa nos videojogos

Deste modo, W3 é uma espécie de sucessor de F3 e ME2, mas mais do que isso, uma coroação desta abordagem artística à linguagem do meio, capaz de nos oferecer um mundo história audiovisual que reage às ações do jogador, criando uma experiência de profunda consequencialidade. Isto torna-se possível por dois componentes fundamentais: a narrativa interativa e o mundo aberto.


3. Consequencialidade: Narrativa interativa
O resultado do trabalho narrativo efetuado em W3 é tão impressionante, que a meio do jogo dediquei-lhe um texto, que criei a partir de uma entrevista com um dos escritores principais da obra. Se estiverem interessados nesta componente do jogo, recomendo a leitura e a visualização da entrevista. Focar-me-ei aqui apenas naquilo que ainda não disse nesse texto.

A estrutura da história principal resume-se nos três actos clássicos, para os quais trabalham dezenas de quests principais, mas que funcionam em plena sintonia com as quests secundárias, e em parte tornando mesmo quase obrigatório fazer muitas das secundárias, para se ganhar o aprofundamento completo da história. Ou seja, as ações secundárias, não são aquilo a que nos habituámos em ME2 ou F3, são mesmo dotadas de consequencialidade na narrativa principal, nomeadamente na forma como conseguimos compreender e sentir todo aquele mundo. Em termos de história, subscrevo a descrição do Aníbal Gonçalves no IGN, de que temos aqui por um lado o poder da fantasia de "The Lord of the Rings" a funcionar com a força da intriga humana e familiar de "Game of Thrones", o que torna W3 num dos jogos mais maduros em termos de história, na linha "The Last of Us". Apesar da abordagem interativa, W3 não deixa de seguir o modelo dramático em 3 atos, no sentido de potenciar ao máximo a experiência emocional dos jogadores, e que passo a elencar:
[Prólogo: Introdução ao mundo pelo sonho

Ato 1: Iniciamos a nossa busca por Ciri (a jovem feiticeira, imensamente poderosa, treinada por Geralt, o nosso witcher/bruxo), que nos vai permitir conhecer quase todos os personagens do jogo, assim como ficar a conhecer quase todo o território [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 2: Encontrado o rasto final de Ciri, teremos de reunir todos os nossos amigos de viagem do Ato I, para impedir que Ciri seja levada [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 3: Aqui chegados, é necessário encontrar uma solução final para dar conta de quem pretende raptar Ciri [cerca de 12 horas no Modo História].

Epílogo: Erradicação da superstição]
O nível de detalhe da escrita da história - composta de 450,000 palavras, o equivalente a 4 romances - é fundamental na capacidade de resposta do jogo. Ao longo das 50 horas de jogo encontramos milhares de diálogos, na sua maioria dotados de escolhas que geram caminhos narrativos específicos, no sentido de atender à participação concreta do jogador. Por aqui desenvolve-se um sentido de conversação plena com a obra, em que apesar de muito ser desenhado e delimitado pelos criadores, muitas são as possibilidades que se abrem na nossa frente para decidir o que fazer, para realizar escolhas que se aproximam do modo — como eu em concreto vejo o mundo, como eu na especificidade acredito que as pessoas se devem relacionar, colaborar e cooperar. W3 é um mundo imaginado por um colectivo de criadores, mas cabe-me a mim, no momento da minha experiência, colaborar com este colectivo na criação daquele universo.
A experiência final que retiro de ter passado 50 horas naquele mundo, não é de mero relato, mas de ter vivido, porque contribuí para o modo como aquele relato se concretizou e fechou. Fui eu que resolvi salvar uns, deixar à sua sorte outros, assim como matar outros; fui eu que decidi romancear com uma e não com outra; fui eu que decidi destronar uns e coroar outros; fui eu que decidi salvar o planeta ou em sua vez proteger aqueles que me eram mais queridos. Isto é participação narrativa, é colaboração autoral na experiência que se desenvolve. Isto é fazer acontecer, e não simplesmente aceder ao que já aconteceu. Isto é a linguagem dos videojogos, agir no presente, em vez de simplesmente testemunhar o passado. Mais do que aprender com os outros que já viveram experiências, aprendemos fazendo, assumindo as responsabilidades de cada uma das nossas ações.
A tentativa falhada de criar uma moral difusa em "Mass Effect"

Se ME2 tinha todo um sistema de impacto das escolhas — Renegade/Paragon — que procurava tornar difusa a moralidade das nossas ações, e assim impossibilitar o jogar estratégico para a construção de um ideal de personagem, W3 simplesmente opta por eliminar qualquer feedback diagramático da moral. Esse feedback por muito difuso que seja, será sempre motivo de manipulação por parte do jogador. Em W3 não existe uma árvore moral das nossas opções, nem sequer somos confrontados com feedback bruto a cada uma das nossas escolhas. Porque mais do que escolher e decidir, é do diálogo que emerge a especificidade da nossa experiência, tal como no mundo real — posso optar por mentir agora, ser honesto daqui a pouco, manipular as crenças das pessoas, ou simplesmente dar-lhes o que elas pedem. Como seres humanos, somos tudo menos binários, somos um caos moral que vive do acaso do contexto em que nos encontramos em cada momento.


4. Consequencialidade: Mundo aberto
Li várias discussões que procuravam pôr em causa o interesse do desenho de W3 em mundo aberto, dando conta que uma jogabilidade mais linearizada, poderia ser mais relevante para os jogadores, nomeadamente porque evitaria a dispersão, mas também porque garantiria um mundo mais coeso e detalhado, já que os criadores não teriam de investir massivamente na criação de um mundo que muito de nós não verão. Ora, parece-me que tudo isto é um contrassenso, já que joga em desfavor do meio, nomeadamente da sua expressividade.
Voltando ao que falei acima, sobre os três grandes domínios da interatividade de um videojogo - manipulação, navegação e participação - só o mundo aberto pode permitir os três. Um jogo como “The Last of Us”, que funciona linearmente, seguindo a abordagem espacial de túnel de storytelling, permite belíssimos níveis de manipulação e navegação, mas impede a participação. Não falo aqui das escolhas e decisões nas árvores de diálogos, mas das escolhas e decisões no espaço. Ou seja, o mundo aberto não se vem tornando standard por mero capricho, ou por tentar competir no marketing de quem faz o maior mundo como se acusa, ele é um elemento vital. Veja-se um dos casos mais emblemáticos na demonstração da participação espacial, o “Dishonored” (2012), em que a navegação e manipulação do espaço é aberta obrigando-nos a tomar decisões, que por sua vez produzem consequencialidade ao nível da jogabilidade, podendo mesmo resultar em alterações narrativas. Isto foi também explorado mais recentemente na série “Assassin’s Creed”, que começou por ter um mundo aberto apenas nas áreas jogáveis, sem efeito prático nos momentos de cutscene, e mais recentemente em “Assassin's Creed: Unity” (2014) apesar de continuar de portas fechadas à participação especificamente narrativa (com os diálogos), abriu-se a este modo participativo por via do espaço no momento de cada grande assassinato.

Sendo a participação o mais importante no design de mundos abertos, temos ainda o factor de imersão por via da credibilidade. Poder navegar por mapas espaciais sem impedimento, escolhendo as quests que se fazem a meu bel-prazer e não por imposição linear, operada pelos autores do jogo, garante para além da minha participação no desenrolar da progressão da experiência, a credibilidade da minha ação, que por sua vez oferece a credibilidade no universo de jogo, e assim a imersão. É verdade que por vezes entramos em áreas adjacentes em que os inimigos nos matam com um único golpe, porque estão muito acima da minha experiência, mas isso faz parte do design de mundos abertos, e na vejo isso como um problema para a experiência, apenas diz ao jogador que é melhor não ir já por ali, não o impedindo de tentar ir se assim o desejar.

Dou o exemplo da primeira travessia para Skellige que é suposta só acontecer depois de várias quests principais em Novigrad, e consequentemente elevação do XP, mas que eu de tanto insistir acabei por conseguir realizar mesmo não tendo os supostos XP necessários. Claro que notei no fim de passar as duas sequências, que existia ali um clímax narrativo a que eu tinha chegado antes do tempo, mas na verdade foi para mim muito interessante ter lá chegado antes, já que a primeira passagem por Novigrad é talvez dos momentos menos conseguidos em todo jogo, pela sua calma e quests demasiada tarefeiras. Ou seja, o mundo aberto permitiu-me criar toda uma experiência em função da minha volição no jogo, e não do que me ditam os seus criadores.
Numa outra situação, menos relevante mas contudo impactante, fruto do mundo aberto e persistente, abandonei um barco meio partido por sereias voadoras junto a uma ilha pequena numa determinada fase do jogo, tendo depois, muito mais tarde e por outras razões, voltado a passar por esse local, e encontrado esse mesmo barco, identificado porque partido tal como o tinha deixado, criando a estranha impressão "é o meu barco", uma sensação de posse, mais do que de um barco, do território de jogo, o que só por si funciona como um poderoso argumento de credibilidade, diria quase um afrodisíaco de imersão.

É deste conjunto, participação narrativa e espacial, que emerge aquilo que consideramos ser o elemento fundamental da expressividade dos videojogos, a agência, ou consequencialidade. Ou seja, o sentimento de que a minha atuação sobre aquela obra é consequente, de que eu, enquanto indivíduo sou levado em consideração. É isto que andamos há 30 anos a tentar desenvolver no campo dos jogos narrativos, e é isto que W3 faz bem, não querendo dizer que atingimos o último estágio deste processo, mas estamos cada vez mais perto de poder dizer "missão cumprida".

O menos bom do jogo anda à volta da arte visual, principalmente a animação. W3 tem bons artistas visuais, tecnicamente muito dotados, mas não tão bons artisticamente como por exemplo a equipa de “Assassin’s Creed: Unity”. Já os seus animadores, por culpa própria ou das equipas de programação, raramente conseguem brilhar. Não podendo de forma alguma dizer que é mau, longe de mim tal ideia, o trabalho é muito bom, só não consegue chegar ao nível excepcional que apresenta a escrita e o design de jogo. Contudo, esta equipa merece todo o nosso respeito, tanto pelo trabalho brilhante que apresenta como pela forma humilde como o faz, veja-se o texto abaixo que vem dentro da caixa do jogo, inspirador.
Nota de agradecimento da equipa CD Projekt que vem no interior da caixa de W3


Saber mais:
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa
Videojogos de 2015.

dezembro 06, 2015

"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa

Estou a 2/3 da história principal de “The Witcher 3: Wild Hunt”, mas posso dizer desde que já que estou apaixonado pela sua escrita, não apenas pela profundidade psicológica imprimida à história, mas pelo seu discurso, a forma ou o "como", a história está a ser contada, é impressionante. Jogando Witcher 3 podemos sentir como todo o universo narrativo nos videojogos evoluiu ao longo dos últimos 20 anos, não apenas a sua construção, mas também nas expectativas que temos face a estes. Witcher 3 não está apenas interessado em criar jogo ou interatividade, em criar uma relação sensorial, existe uma vontade enraizada na equipa de criadores de desenvolver algo capaz de tocar o imaginário semântico dos jogadores, de criar nestes, novas formas de ver o mundo, nomeadamente de aprender mais sobre o modo como nos relacionamos enquanto espécie. Witcher 3 pode até partir de um universo de pura fantasia, mas fá-lo com profundas preocupações humanas, e foi por isso que procurei saber mais sobre quem estava por detrás de tudo isto, tendo encontrado na rede uma belíssima entrevista com Jakub Szamałek, um dos escritores principais de Witcher 3, e da qual darei conta nas próximas linhas.



Antes de entrar nas questões relacionadas com o jogo em si, queria dar conta do contexto, que se por um lado parece estranho que um jogo desta dimensão, em termos financeiros (o custo de produção rondou os 75 milhões de dólares), surja num país do leste da Europa, a Polónia, é provável que isso seja aquilo que justifica que tenhamos aqui algo bastante diferente, com um posicionamento que vai buscar inspiração fora de Hollywood, procurando antes beber nos clássicos da literatura europeia.
We show people in Poland that it’s a serious business, that you can produce works of culture that are a hit globally… this is something that up until now has been very difficult, there are a lot of books and films that are written or produced in Eastern Europe but they usually don’t become terribly popular in the west. I think video games are the only medium in which we have been able to produce something that has been appreciated on a global scale. It’s very satisfying.”
Mas se isto é possível a partir da Polónia não é por acaso, e as suas razões devem servir na reflexão da indústria portuguesa de videojogos, não apenas esta, mas de toda a nossa indústria criativa. Porque as razões não passam pelo clima, como ainda há pouco tempo se discutia numa entrevista da GameReactor a José Teixeira que trabalhou nos Efeitos Visuais de Witcher 3, embora possa ter a sua influência, mas assenta essencialmente na formação e cultura da massa cinzenta que suporta estas indústrias. Veja-se o caso do responsável pela escrita do jogo,
“Jakub is a former Oxbridge student with a PhD in ‘Ancient Mediterranean and Near Eastern Studies and Archaeology’. If that doesn’t sound impressive enough, he has authored two (soon to be three I hear) critically acclaimed novels, while also writing for developer CD Projekt Red on a small project called The Witcher 3: Wild Hunt. With all of those credentials under his belt you could suppose that he’d be doing something like lecturing at universities or researching the origins of mankind. The reality is that he predominantly writes for video games — a pretty great profession if you ask me.”
Desta frase ressaltam dois elementos de grande relevância para o caso português: a necessidade de formação; e sua valorização/aceitação. Ou seja, trabalhar nas indústrias criativas em 2015 requer das mais altas competências algumas vez exigidas por alguma indústria, além da investigação científica. Não basta jogar muitos jogos, consumir muito produto criativo, embora ajude, assim como não basta paixão e querer fazer, embora seja fundamental. É necessária toda uma estrutura de base capaz de potenciar, catapultar, tudo o que se consome juntamente com toda a vontade de fazer, para se poder ir verdadeiramente além. Não nos podemos esquecer que estamos competir a um nível global, e não com os nossos vizinhos de bairro.

Temos que nos deixar de frases bacocas como — “Portugal tem licenciados a mais” ou “somos um país de Drs” — fundamentadas apenas no preconceito, sem qualquer suporte empírico, e que apenas servem para nos atirar mais para o fundo no cenário global. Em 2015 já passou tempo suficiente para termos uma democracia amadurecida, para nos deixarmos de tiques salazarentos, e assumir que para enfrentar o mundo em que vivemos, o ponto de partida começa numa simples licenciatura. Que se queremos verdadeiramente enveredar pelo desenvolvimento de indústrias criativas como solução para a nossa falta de matérias primas, teremos de investir na educação, não apenas financeiramente, mas essencialmente em vontade de aprender, de aprofundar o real, ser capaz de abstrair mais e mais camadas da sua estrutura constituinte.

Dito isto, que me parece relevante, e não é novo para quem segue este blog, tenho vindo a falar disto com outros exemplos, como a clássica Escandinávia ou a Coreia do Sul e as suas indústrias electrónica e automóvel (2011, 2013, 2013) ou até no caso por exemplo da artista nacional Capicua. A Polónia é apenas mais um exemplo, é verdade que é um país muito maior que o nosso, podíamos alegar fatores de escala, mas estaríamos apenas a iludir-nos, já que no caso da indústria de videojogos, a escala nunca pôde depender do país de origem. Verdade que um país maior gera maior fricção criativa, mas cabe-nos a nós encontrar a melhor forma de potenciar essa fricção, por exemplo tendo menos grandes cidades, concentrando mais os esforços nas que temos.

E agora o sumo da entrevista da Forerunner a Jakub Szamałek. Podem ver o vídeo realizado ou ler desde já os pontos que me pareceram mais relevantes na conversa, com algumas considerações sobre as mesmas.

Entrevista com Jakub Szamałek, escritor principal de Witcher 3


Sobre a complexidade da escrita
A escrita nos jogos é completamente diferente da escrita para um livro, desde logo por duas razões: a repetição e a avaliação. Ou seja, os personagens podem interagir repetidamente com o jogador, gerando repetição de um diálogo ou monólogo que pode perder todo o seu efeito dramático, enquanto num “book you don’t have to worry about how to make a repetitive conversation interesting”. Por outro lado, como o texto segue em estruturas em árvore, é necessário testar todos os caminhos possíveis e analisar se os seus elementos constituintes continuam a fazer sentido depois das múltiplas interações permitidas.

Sobre a agência e criação de personagens credíveis em Witcher 3
Os personagens com quem interagimos, não são adereços do mundo de jogo, todos eles possuem os seus objetivos e motivações intrínsecas, o que faz com que se tornem sujeitos, vão além da caracterização gráfica. O objetivo, como descreve Jakub passa por eliminar aquela sensação estranha que temos muitas vezes nos jogos, de que os personagens estão ali apenas para debitar informação, de forma a realizar a progressão da narrativa.

Acaba sendo desta vontade dos criadores que emana uma outra característica menos positiva, que por vezes surge mais acentuada: a constante necessidade de dar algo em troca de algo. Ou seja, sempre que vamos falar com alguém que pode ter algo que nos interessa, já sabemos que vamos ter de proceder a uma troca de favores, o que se torna em si repetitivo do ponto de vista da interação e escrita. Contudo, nem sempre é visível este efeito, já que o guião não se limita a este ciclo de interação com o jogador. Ou seja, existe desde logo uma preocupação de desenhar as trocas por via de verdadeiras necessidades e preocupações dos personagens, mas o que garante a envolvência assenta no modo como os personagens tomam conta da relação connosco e procuram, em diversos ciclos interativos, ganhar a nossa confiança e obter de nós o que não estávamos inicialmente preparados para dar. No fundo temos uma escrita profundamente entrosada graças ao desenho de ciclos de conversação, dotados de acessos participativos ou de interação pelo jogador, em que as nossas escolhas no diálogo e ações vão influenciando os personagens e a sua relação connosco, servindo assim um aprofundamento da nossa relação com estes, e por sua vez com todo o universo de jogo. Falamos essencialmente de agência, da consequencialidade da nossa presença naquele mundo.
“It’s very gratifying to see how people get invested in the game, the other day I saw I giant thread on Reddit about a quest that I wrote and people were discussing what they did and why they did it… something that I think is unique to video games is that people identify more strongly with characters because they assume the role of that character while they are playing. The decisions that you face in a game touch you more profoundly than choices you read about in a book for instance; in a video game it’s more personal to you.”
O mais interessante que Jakub nos diz sobre tudo isto é o quão barato é na verdade construir todo este sentimento de agência, tudo aquilo que os jogadores verdadeiramente procuram extrair de um jogo está ao alcance de uma simples caneta e papel. Basta saber ativar a imaginação dos jogadores,  o que claramente requer, como diz Jakub, “competência na escrita”, e que se pode ver em abundância em Witcher 3, mas que ainda se vai vendo pouco no mundo dos videojogos, o que facilmente se percebe, já que uma grande parte das pessoas que está na indústria domina muito pouco a componente da escrita. Aliás basta recordar os tempos áureos dos videojogos, que o entrevistador aqui relembra, com Carmack a lançar uma das mais ridículas frases de sempre do meio, mas que tanto sentido fazia e continuou a fazer durante muitos anos depois: “Story in a game is like story in a porn movie. It’s expected to be there, but it’s not that important”. Como tudo mudou, e em tão pouco tempo.



Sobre a não-linearidade e multilinearidade
Desde logo Witcher 3 apresenta um problema que poucos outros videojogos ou projetos de narrativa interativa apresentaram até agora, uma gigantesca dimensão de estrutura de eventos, algo provavelmente apenas comparável com as séries de televisão e telenovelas. A estrutura central, a chamada “main quest”, é enorme, mas as “secondary quests”, que se revelam aqui ao contrário da grande maioria dos outros jogos, partes integrantes da narrativa central, ao serem dotadas de consequencialidade bidireccional, tornam todo o jogo insanamente gigante. Como diz Jakub, o desenho dos diálogos acaba por dar origem a “massive flowcharts e branching trees”, o que eleva a complexidade do que está a ser feito em Witcher 3 a um patamar que vai muito além da mera boa escrita, sim tem de ser boa, mas tem de existir todo um trabalho de lógica e racionalidade na gestão do sistema que dá estrutura a tudo o que vemos no ecrã. Ou seja, não se trata de um simples trabalho imaginativo, tudo isto assume uma complexidade de abstracionamento que exige dos criadores elevadas competências.

Não deixa de me impressionar a quantidade de personagens e diálogos que se podem encontrar ao longo do mundo de jogo fora da narrativa principal, mas que se interligam perfeitamente com esta, mais ainda quando percebemos que por não serem centrais, serão acedidos por uma minoria de jogadores, e no entanto não deixam de apresentar um enorme cuidado no seu desenho.



Sobre a história e tema
Como disse na abertura deste texto, e apesar da entrevista com Jakub versar mais sobre o discurso e forma, Witcher 3 não deixa de nos impressionar profundamente em termos de história, nomeadamente nos vários temas chamados à discussão, mais ainda quando sabemos que o território de Witcher 3 não deveria ir além da fantasia. Assim temos que Witcher 3 é muito mais do que bruxos e monstros, poções e alquimias, aliás arrisco mesmo a dizer que a contrário da restante fantasia, tudo isso é aqui apenas decorativo. O cerne de Witcher 3 acaba por emergir das pequenas histórias profundamente humanas que vamos desvelando ao longo da nossa viagem pelo seu território fantástico. Ainda tenho de finalizar o jogo para chegar à sua essência, assim espero, mas encontrar e interagir ao longo destes 2/3 com — personagens vítimas de violência doméstica, famílias destroçadas pelos efeitos da guerra, abusos de poder, suicídios por amor, fanatismos religiosos, abortos espontâneos ou discriminação por homosexualidade — tudo tratado com imenso cuidado, detalhe e enorme credibilidade narrativa é para além de inovador, profundamente inspirador no alimentar do sonho de tudo aquilo que este meio ainda tem para nos oferecer.


Ler mais
Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt",  VI, 2015