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setembro 20, 2014

"Blankets", uma novela gráfica

Blankets” (2003) deixou-me profundamente emocionado. Craig Thompson fez do meio escolhido, banda desenhada a preto e branco, o seu meio natural expressivo, conseguindo por meio deste, chegar até nós com uma força impressionante. Aquilo que podemos experienciar em “Blankets” é algo raro, poucos trabalhos o conseguem, não só através deste meio, como através de qualquer outro. Thompson constrói um trabalho de grande detalhe - narrativo, dramático, visual e literário - dando-se por completo, colocando-se a si próprio nesse detalhes, impregnando-o de humanidade, de sentimento e racionalidade. “Blankets” é uma porta aberta para o interior de Thompson, porque é uma extensão visceral da sua imaginação, da sua consciência, do seu ser.


A essência do envolvimento narrativo define-se pelas suas capacidades dramáticas que por sua vez se definem no desenvolvimento dos seus personagens. Neste trabalho Raina e Craig são adolescentes em busca de si, que por meio de uma relação crescem e aprendem a lidar com o mundo e consigo próprios. Thompson criou não apenas duas personagens profundamente críveis, como profundamente humanas.

Craig e Raina

Não posso dizer que do ponto de vista narrativo ou dramático seja algo nunca feito, a literatura e o cinema são frutíferos neste domínio. Mas cada meio, por meio das suas próprias particularidades expressivas, enfatiza naturalmente diferentes substâncias. Neste caso o facto de “Blankets” ser uma novela gráfica cria, para além da surpresa de tratar um universo raro no meio, um acesso novo à experiência estética do que se quer dizer. Ou seja, o portal que a arte nos abre para compreender o sentir do autor, apresenta por meio da novela gráfica, dimensões que não estão ao alcance da literatura ou cinema. E é por isso que “Blankets”, para além de emocionante, é tão relevante.


Informações
Editora: Top Shelf Productions
Data: 2003
Páginas: 592
Prémios: Harvey Awards (2004) para "Best Graphic Album of Original Work", "Best Artist" e "Best Cartoonist"; Eisner Award para "Best Graphic Album" (2004), entre outros.

abril 21, 2014

Inovando o storytelling nos media interactivos

“CIA: Operation Ajax” é uma obra de leitura digital interactiva com uma forte base de banda desenhada (BD). Lançada em onze capítulos entre 2010 e 2012, não é propriamente uma novidade, mas posso dizer que é a melhor experiência que tive até hoje de BD digital. Através de uma lógica que vai para além do “motion comic” e do multimédia documental, faz um aproveitamento soberbo da plataforma tablet.



Ao contrário dos cd-roms dos anos 1990 “CIA: Operation Ajax” não se perde com deslumbramentos tecnológicos e multimédia, somos transportados para o reino da história que nos é contada, e tudo funciona em seu redor. Uma história centrada num evento político do século XX, o golpe de estado no Irão operado pela CIA em 1953. A obra é uma adaptação do livro “All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror” (2003) de Stephen Kinzer, acabando assim por trabalhar a realidade geopolítca atual que vivemos, em profundidade.

Nesta obra a narrativa é o cerne. Para isso contribui imenso a ideia de focalizar a estrutura narrativa na BD, servindo esta muito bem a progressão. Ou seja, a cada toque nosso sentimos o avanço no interior da estrutura de uma prancha, na verdade o conceito de prancha desaparece, o que temos é um “atravessar” das vinhetas, uma espécie de filme entrecortado, quadro a quadro, com animação e som, e a possibilidade de navegar para trás e para a frente. O conjunto cria uma sensação de leitura fluída, com o tempo controlado pelo leitor, mas com uma direcção narrativa capaz de imprimir ritmos e suspense. A isto adiciona-se ainda uma camada adicional de documentos fotográficos e vídeos de época que podem ser acedidos opcionalmente. Segundo Burwen o objectivo desta camada documental não era o mero aproveitamente técnico, mas tinha como objectivo aumentar o realismo narrativo,
"The features we provide will include anything we can find to augment the story we are telling, and to remind people that this stuff really did happen. That real people with personalities and families were making decisions that made a major impact on the way that we think and live today. To be able to be immersed in a narrative, and to have that narrative infused with evidence like photos or newspaper articles from the period in which the story took place, it adds an element of humanity to the drama and intrigue. I can’t go too far in revealing what we have planned, but I can say that I think it’s very exciting." [Link]
Componente documental multimédia

"Ajax" foi criado pela Cognito Comics, com a plataforma The Active Reader da Tall Chair, que funciona sobre Unity, e esteve 4 anos em produção. Parece exagero mas não é, se pensarmos que como livro de BD é desde logo enorme, com 212 páginas, a partir das quais foram produzidas 6 a 7 mil vinhetas animadas!

O que faz a diferença não é a plataforma, mas o facto da animação/interacção, de grande qualidade, ter sido desenhada quadro a quadro. Aquilo que a Marvel e outros têm tentado fazer, é criar um editor que permita rapidamente transformar pranchas em objectos navegáveis. O que temos aqui é um livro de 212 páginas, totalmente reconceptualizado, ou conceptualizado desde o início, para uma lógica de acesso interactivo, com movimento e som. A cada toque no ecrã avançamos um quadro, por vezes 2 ou 3, ou melhor avança-se uma cena. A progressão não está presa a quadros fechados, mas a ambientes que podem ocupar todo o ecrã (a antiga página) que podem desenvolver-se em vários quadros, ou um mesmo quadro no qual vão surgindo novos elementos, novos balões, etc. Não existem vozes, apenas sonoridade ambiente e música, a história continua a ser acedida através dos balões, base da linguagem BD. Ou seja, "Ajax" é todo um novo modo de contar histórias, porque não é livro nem BD, não é animação nem filme, não é site nem jogo, é um novo modo de contar histórias, é um modo integrado e interactivo, e por isso complicado de descrever sem se experienciar.

Três ecrãs que concorrem para criar uma cena, que é uma página completa.

Visão completa de uma cena que comporta vários quadros sobre um quadro geral.

Como é que surge um objecto destes? O seu principal mentor veio da indústria dos videojogos, Daniel Burwen, que trabalhou na EA e Activision, na área da ilustração. Depois de ter estalado a guerra no Iraque, em 2002, e depois de ler o livro de Stephen Kinzer, Burwen encarou o projecto BD como uma forma de dar voz ao que sentia sobre o assunto. Nesse sentido convenceu Kinzer a avançar com a adaptação do seu livro para BD. Mas em 2010, com o anúncio do iPad, resolveu mudar para o formato digital. O guião ficou a cargo de Mike de Seve que depois foi adaptado para BD por Jason McNamara (The Martian Confederacy, Full Moon). Na ilustração as capas foram feitas por Steve Scott (conhecido por Batman Confidential, X-Men Forever), o design dos personagens foi criado por Jim Muniz (X-Men, Hulk), e Steve Ellis (Iron Man, Box 13, High Moon) desenvolveu um capítulo completo. Burwen refere a propósito da complexidade da integração,
“I think the hardest part was learning how to make comics. Ajax is entirely built off traditional comics, and it’s because the traditional compositions work in print that the animation and interactivity works in the iPad version. Figuring out how to create a compelling animation style that honored the print page legacy was key. It was very easy to over-animate the content, and I discovered it’s a fine line between creating a poor film experience versus a rich reading experience.” [link]
Fluxogramas do design de interacção (a qualidade não é a melhor)

Temos aqui um trabalho movido por uma forte vontade de fazer, de comunicar e expressar, e isso faz mover montanhas. Além disso tenho poucas dúvidas em afirmar que Burwen apresenta nesta obra um talento muito especial no que toca à direcção e design de narrativa e interacção. O trabalho contém uma miríade de componentes de grande qualidade, mas a singularidade da obra emerge da direcção, da forma como foi imprimido sentido narrativo e acesso interactivo ao todo.

O maior problema deste formato de contar histórias é que uma produção com este nível de detalhe e qualidade fica muito cara. Se a produção de BD já é hoje considerada cara e de difícil rentabilização, muito por conta do online (pirataria), quando entramos neste detalhe multimédia os preços disparam, tal como diz Don Norman, “What is the future of the book? Very expensive.” Inicialmente cada capítulo era vendido por $7,99 mas recentemente o projecto foi colocado na íntegra grátis na AppStore. Este projecto acaba demonstrando várias coisas, essencialmente que a criatividade e imaginação conseguem ir muito além daquilo que por vezes temos acesso no mercado, mas que a inovação por si só não chega, é preciso que o mercado esteja pronto para a receber.

Trailer

Podem descarregar a obra, para iPad e iPhone, completamente gratuita, na App Store (484 mb).


Links de Interesse
Do comic para a animação interactiva, in Virtual Illusion
Comunicação visual digital, in Virtual Illusion
Brandon Generator, animação interactiva online, in Virtual Illusion
Reinventing the Graphic Novel for the iPadpalestra de Daniel Burwen no SXSW 2012
Narrative Mechanics - The Elements and Spaces of Interactive Storytelling, [Slides] Palestra de Daniel Burwen na React 2013

março 21, 2014

Da banda desenhada para animação

O artista de banda desenhada Rafael Grampá (Brasil) desenvolveu uma belíssima curta 3d, Dark Noir (2014), com a dupla de criativos Mario Ucci e Rick Thiele (Red Knuckles), para o Facebook e para a Absolut. A Absolut patrocina o evento, #NextFrame, através do qual a curta foi produzida, e o Facebook facilitou o processo criativo, no sentido de permitir a Grampá entrar num processo colaborativo de discussão da ideia de toda a animação com os seus fãs.



Se o processo criativo acaba sendo aquilo que mais promove a discussão à volta do trabalho, a mim o que mais me chamou à atenção foi o trabalho visual 3d conseguido pela dupla Mario Ucci e Rick Thiele, conhecidos pelo seu trabalho nos videoclips dos Gorillaz, assim como participação em inúmeros efeitos visuais para o cinema e spots publicitários. Chegaram a estar na Passion Pictures como Directores Criativos, mas saíram entretanto para continuar a trabalhar na área da animação.

Olhando para os portefólios de cada um será fácil de perceber que a assinatura da estética dos personagens 3d é de Mario Ucci, principalmente se olharmos para os seus trabalhos à óleo. A sua abordagem, na senda de Francis Bacon, confere-lhe uma abordagem visual particular que de alguma forma transpira para os personagens 3d de Dark Noir. Estou a falar claramente da impressão realista criada pelos shaders e luz na pele dos personagens que os faz parecerem reais, feitos de cera. Além disso a combinação que é depois realizada com os personagens 2d de Grampá é muito boa, sem qualquer dificuldade a diferença de registo estético permite-nos perceber que estamos a falar de dimensões do universo distintas.

Dark Noir (2014) de Rafael Grampá 

outubro 22, 2013

Entrevista com Nuno Plati, ilustrador da Marvel

Nuno Plati é mais um ilustrador nacional a obter reconhecimento internacional, trabalhando para empresas como a Marvel, a EA Games ou a Axis Animation. Frequentou Design Gráfico na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, e trabalhou entretanto como ilustrador no design de personagens, para storyboards, e livros de banda desenhada. Em 2012 desenvolveu para a Marvel a mini-série “Marvel Universe: Ultimate Spider-man” e foi aí que fiquei a conhecer o seu trabalho. Desde então tenho seguido o seu trabalho, através do deviantArt e do seu Plati's Blog, o que me levou a considerar lançar-lhe algumas questões aqui no Virtual Illusion.

Capa de "Amazing Spider-man Family" #8 (2009)

1 - Como é que se chega a ilustrador de um personagem principal da Marvel? De que depende mais? Tiveste de apresentar esboços ou fazer algum estágio?
:: Para se chegar à Marvel há várias maneiras. Podes apresentar o teu trabalho a editores indo a convenções, podes conseguir o contacto de algum editor e enviar-lhe um e-mail com um link para o teu trabalho, ou simplesmente ter uma presença forte na net em termos de portefólio, ou teres algum trabalho publicado que se destaque e que faça com que o editor te contacte a ti. Mas geralmente o processo mais habitual será apresentar o trabalho pessoalmente a um editor numa convenção, como mencionei anteriormente. Comecei a colaborar com a Marvel em 2007, 2008, e desde então tenho trabalhado esporadicamente com eles ao longo dos anos. No meu caso foi através da net e do meu portfolio online que comecei o contacto com Editores Marvel.

2 - Como é que funciona o processo, recebes um guião, desenhas as pranchas, pintas? E os balões?
:: Recebo o guião, que tem descrições painel a painel do que se passa na página, faço “roughs”, envio-os ao editor para aprovação, e a partir daí desenho sensivelmente uma prancha por dia, idealmente. Tive situações em que tive de desenhar mais do que uma por dia, mas também tive outras em que demorei 2 dois a desenhar algumas páginas. Até agora só tive um comic em que trabalhei pintado por outra pessoa. Não sou eu que faço os balões, é a Marvel.

Pranchas de "Marvel Universe: Ultimate Spider-man" #2 (2012)

3 - O que te dá mais gozo fazer em todo o processo e porquê?
:: Desenhar as páginas em si, talvez a fase do layout, que é onde defino o storytelling e o ritmo da prancha.

4 – E como é definido esse ritmo e storytelling?
:: Explicar o processo de construção de uma prancha é um pouco complicado, porque tem muito de intuitivo e subjectivo. Ou seja, se tiver uma prancha com 5 vinhetas e esta consistir de um diálogo entre uma mãe e um filho numa cozinha, a escolha dos ângulos da "câmara", e a abertura dos mesmos dependerá de cada desenhador. É claro que como é um diálogo, provavelmente a maioria dos shots serão os chamados "talking heads", planos próximos em que geralmente se estabelece um jogo de campo e contracampo, de pergunta e resposta, digamos assim. Mas se não tivermos estabelecido anteriormente a cozinha, provavelmente um dos shots será mais aberto, um establishing shot, que nos mostrará o "set" da cena. E como não se quer que os shots sejam demasiado repetitivos, (apesar de haver ocasiões, onde se quererá que eles sejam repetitivos, por culpa do ritmo do diálogo, por exemplo), provavelmente poderá haver um shot médio, em que se afasta a câmara e se mostram os dois protagonistas, possivelmente da cintura para cima, e por aí adiante, vamos shot a shot adaptando o que o guião quer ao nosso estilo e mesmo às nossas limitações artísticas, para tentar criar algo que nos satisfaça minimamente e sirva bem o guião e os personagens.

Prancha de "Alpha", #3, p.14 (Abril, 2013)

5 - Tens tido feedback à tua arte dos fãs? Tem sido bom, como é que lidas com isso?
:: Sempre tive bom feedback dos fãs, apesar de fazer a ressalva que sou "um nobody" no mundo dos comics. Ou seja, isso vale o que vale. É claro que como em tudo há quem goste do meu trabalho e há quem deteste. No caso particular da mini-série que fiz mais recentemente do Alpha, o infame "sidekick" do Spider-man, e devido ao "ódio" que havia relativamente ao personagem e às suas aparições anteriores, e provavelmente porque o meu trabalho não os agradou, tive um feedback particularmente negativo. Quando estava a meio da série e vi que havia muitos fãs que estavam a detestar o que estava ser feito fiquei bastante desmoralizado, porque honestamente acho que estava a fazer algum do meu melhor trabalho, e como tal deitou-me abaixo um pouco. No geral o feedback dos sites de comics e dos editores foi muito positivo, mas a raiva dos fanboys de vez em quando é um pouco avassaladora. E obviamente não têm em conta que se trabalhas sozinho, a desenhar 12 ou mais horas por dia, e lês criticas sem o mínimo de critério, ou sensibilidade, isso pode ser difícil de gerir.

6 - Desenhavas em miúdo, consideras um talento natural a arte de desenhar? Quantas horas desenhas por dia?
:: Desenho desde que me lembro, e frequentei a Faculdade de Belas Artes de Lisboa durante uns anos. Provavelmente há pessoas que terão um "dom" natural, não sei, mas falando por mim, apenas continuei a desenhar quando muitos dos meus amigos pararam. Quando tenho um comic para fazer desenho o dia todo, desde as nove da manhã até às 9, 10 da noite. Não desenho à noite, e tenho por norma não fazer directas.

7 - Já trabalhaste com a EA e a Axis Animation, trabalho similar, muito diferente? O tipo de exigência era o mesmo, que diferenças notaste?
:: Geralmente o trabalho ou envolve “character design” ou ilustrações relacionadas com a temática do jogo em si, como tal pode variar muito. Acabei de trabalhar num jogo dos X-Men em que basicamente tive de desenhar personagens em dois modos diferentes, um de acção, e outro em pose relaxada.

Cena de Marvel Girl #1 (2010)

8 - A Marvel é o topo da carreira de um ilustrador de BD? Gostarias de continuar a trabalhar para a Marvel ou tens outros sonhos relacionados com a área?
:: Não sei se é o topo. Num certo sentido, sim, porque no campo especifico dos comics americanos mainstream, trabalhar com a Marvel ou a DC é capaz de ser o topo, agora isso não quer dizer que seja onde farás o teu melhor trabalho.

9 -  Para terminar o que é o projecto Mia?
:: É um projecto “creator owned” com um amigo meu, o João Lemos, e que eventualmente verá a luz do dia.

Mia, Tales from the Lost Islands


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outubro 15, 2013

memórias das luzes da noite

Viajando de carro no banco de trás, antes de fazer seis anos, fiz vários milhares de kilómetros entre Portugal e o centro da Europa, com os meus pais. Ainda hoje guardo memórias dessas viagens, não são imagens claras, são movimentos de luz, de luz alaranjada dos candeeiros da noite, que atravessava por entre reflexos, as janelas do carro. A entrada em Portugal era mais triste, porque nessa altura os candeeiros nacionais eram de luz branca, uma luz fria, que contrastava com o aconchego quente do laranja. De madrugada começava a entrar pelas janelas do carro o clarear, ainda azulado do início da alvorada, e eu abria os olhos, despertando com a sensação de estarmos mais perto do nosso destino.


Boulet, ilustrador francês, pegou também nas suas memórias de infância, e resolveu externalizá-las na obra "Our Toyota was Fantastic" (2013), através do formato de banda desenhada com movimento, ou motion-comic. O resultado é estrondoso, porque Boulet desenha todo o universo, e depois anima apenas a luz, dando uma maior vida e presença a essa mesma luz, destacando-a das nossas memórias. Pode-se dizer que este trabalho é um hino de nostalgia para muitos dos que tiveram estas experiências em pequenos.

Tecnicamente foi desenvolvido num formato bastante simples, o GIF animado, um formato que ganhou toda uma segunda vida recentemente com os cinemagraphs. Apesar disso o formato acabou por suscitar toda uma discussão com alguns colegas no Facebook, especialistas no campo das tecnologias digitais - Luis Frias, Pedro Monteiro e João Gonçalves - a propósito da sua razoabilidade técnica. Segundo o João, o GIF Animado apesar da atractividade retro e low-tech, não é propriamente aconselhável para uso em plataformas móveis. O que se confirmou depois de testar a leitura da prancha de BD em plataformas móveis. Nesse sentido seria antes aconselhável utilizar o PNG, um formato muito mais recente, com as mesmas capacidades do GIF mas muito mais optimizado. Fora os problemas técnicos, fica sempre aquela ideia de que apenas fazendo uso de simples tecnologias como os gifs animados, se podem criar obras com este poder evocativo, o que só por si é motivo de um enorme regozijo.


outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.

agosto 01, 2013

Dicotomia em banda desenhada

Mused é uma série de banda desenhada criada por Kostas Kiriakis, que funciona segundo ele, como uma "espécie de diário" narrativo visual das ideias que o vão assombrando no dia-a-dia. Dessa série, fiquei bastante impressionado com a novela gráfica, A Day at the Park (2013), porque é profundamente filosófica, o que é algo pouco habitual de se ver tratado no formato de banda desenhada.

A Day at the Park (2013) de Kostas Kiriakis

A Day at the Park, lança-nos numa complexa dicotomia que pretende separar, e classificar as diferenças entre "Questões" e "Respostas". Quais são mais relevantes? e porquê? A discussão assume os contornos clássicos das dicotomias filosóficas, desde o querer distinguir entre corpo e alma, ao querer distinguir entre forma e conteúdo. É uma novela gráfica, que nos prende na discussão, nos "questiona" e obriga a reflectir, deixando-nos a pensar, muito para além da sua leitura.

Muito interessante também é depois de ler, ficar a conhecer como decorreu o processo criativo de construção da novela. Kiriakis diz-nos na sua página, que normalmente define um plano com um princípio, meio e fim para o que vai desenvolver, mas neste caso não foi assim. Aqui o processo foi profundamente exploratório, sem qualquer noção do que viria a suceder no quadro seguinte. Nas suas palavras, esta é uma forma de trabalhar com elevado risco, e bastante complexo a nível interno,
"Turns out the most difficult thing about that, is fighting that constant urge to get back in control. Which is another way of saying ‘I desperately need to get back in my comfort zone’. Playing it safe all the time though isn’t  a very expansive strategy. Especially in a creative process. So in a way it boils down to an exercise in courage really. Remembering that it’s ok to let go. Make mistakes. Play around. Go nuts. Have fun." [fonte]

julho 29, 2013

a Fé dos Comics

Acabou mais uma Comic-Con, e para quem não pôde estar presente, nada como ver o documentário que Morgan Spurlock fez há dois anos, Comic-Con Episode IV: A Fan's Hope, (2011). É um documentário feito para quem já conhece o evento, não procura dar explicações, antes nos leva adentro do evento através da perspectiva de oito pessoas, que ali vão por motivos diferentes. Desde do vendedor de BD de coleção, aos desenhistas que procuram um lugar na indústria mostrando os seus portefólios, até aos fãs de cosplay que investem todo um ano a construir a melhor máscara.


Na verdade o que me interessava mais neste documentário era compreender porque é que uma convenção de banda desenhada criada nos anos 1970, passou nos anos 2000 para a ribalta, e se tornou num evento que merece a atenção de toda a imprensa mundial. Nisso o documentário é prolífero, desde os fãs de primeira hora que se queixam de que a Comic-Con já não é a Comic-Con, até às enumeras estrela de Hollywood que aproveitem o evento, para autopromoção, e promoção de filmes em cartaz. Tenho poucas dúvidas que para tudo isto terá contribuído imenso todo o sucesso que a Marvel conseguiu nos últimos 10 anos, passando de marca consagrada do mundo da BD, para grande marca de Hollywood.

Mais interessante é perceber porque aconteceu isto com a Marvel, e as razões são várias, embora duas delas me pareçam determinantes: a computação gráfica, e o universo criativo de storytelling. Ou seja, nunca até hoje tinha sido possível passar para o ecrã, de modo "realista" aquilo que tínhamos nas páginas da BD. Só a recente transformação plástica do cinema, que deixou de tratar a realidade através da fotografia, e passou a tratá-la antes como pintura (ver crítica a Hobbit), tornou isto possível. Por outro lado nos últimos anos o cinema vinha acusando falta de histórias, falta de novos universos narrativos, imaginativos e criativos, e o mundo da BD surgiu como um verdadeiro novo fôlego.

Mas a Comic-con não é apenas BD e Cinema, a Comic-con é hoje um evento de congregação e festejo de todas as Artes do Entretenimento, aquilo que alguns denominam de arte popular, ou artes de consumo. De entre as quais os videojogos se destacam por terem assumido um papel determinante em termos de importância financeira na última década. Mas não aceito a ideia de que possam ser artes distintas, que se possam rotular de mero consumo, comercial ou popular, porque são-o tanto como todas as outras. Acredito que o que mais caracteriza este domínio artístico específico, e o distancia das outras formas de arte, é o facto de se assumir como de entretenimento puro e livre de pretensões. É um movimento genuíno, sentido, e acarinhado por toda uma comunidade muito diversificada. Não existem tabus quanto aos temas a ser tratados, mas provavelmente o tema mais comum que podemos encontrar na congregação de todos estes meios artísticos, seja o Escapismo.


No final do documentário, é difícil não nos questionarmos o que leva tantos milhares de pessoas a fazerem o que fazem, a seguir o que seguem, tão cegamente. Do meu lado, não consigo ver qualquer diferença entre esta meca, e as anteriores criadas pelas várias religiões no planeta. O ser humano precisa desesperadamente de motivos para acreditar em algo superior a si, seja de que ordem for.

maio 30, 2013

A Filosofia de Miyazaki

Deixo aqui um trabalho de banda desenhada de estudante absolutamente delicioso. Ashely Allis é estudante de Belas Artes na Universidade do Michigan, na área da Modelação e Animação 3d. Numa das cadeiras do curso, Visual Storytelling, o projecto final passava por criar uma banda desenhada de cinco páginas sobre a vida de uma pessoa famosa. Ela escolheu Hayao Miyazaki.


Allis diz-nos que depois de pensar sobre o assunto decidiu que em vez de tentar traçar a história de Miyazaki iria falar antes sobre a forma como o autor pensa o mundo que o rodeia e como incorpora essas ideias no seus filmes. O resultado surge quase como uma resposta a muitos dos problemas de representação de género e moral que temos no cinema ocidental, daí que o título da história seja The Flawed Concept of Good and Evil. Sobre o género falei aqui ainda há pouco tempo a propósito do Viés do Storytelling contemporâneo. Sobre o bem e o mal, para nós ocidentais a realidade tem de ser a preto ou branco, temos dificuldade em lidar com zonas cinzentas no storytelling, queremos certezas, heróis bem definidos e coerentes, queremos princípios e queremos fechamentos fortes. Isto faz parte do modo como vemos o mundo, o nosso storytelling não é indiferente às nossas concepções de realidade. Já Miyazaki autor japonês, escreve a partir da cultura envolvente japonesa, assumindo as diferentes percepções do mundo face ao ocidente. Daí que ele se surpreenda e com razão que os seus filmes sejam bem aceites no ocidente. Estas cinco belíssimas páginas sintetizam muito bem estas diferenças entre culturas, e ajudam-nos a reflectir não apenas sobre o que é o nosso cinema, mas sobre aquilo que nós próprios somos.

Allis não usou textos directos do autor, antes criou uma história em volta de entrevistas, textos e ideias que foi lendo dele e sobre ele. Ou seja, a narração que surge no comic não é uma citação directa de Miyazaki, mas antes uma adaptação do que ele diz de modo a facilitar o ficcionar da narrativa visual. Desse modo, o que temos aqui é uma reflexão de Allis sobre as ideias de Miyazaki transposta para o formato de história gráfica. Deixo a explicação da autora, e a seguir as cinco páginas.
"these are not direct quotes from Miyazaki. I read, listened to, and and watched many, many interviews of Miyazaki, and the words in my comic are paraphrases / translations / simplified summaries of all of the notes that I took on the things that he said during the interviews. Due to the constraints of the assignment, I was challenged to find a way to word and present his whole philosophy in five short pages. I took careful, and much-considered artistic liberties when creating the narrative of this comic, and all decisions were made based upon the importance of maintaining cohesiveness between statements, so that Miyazaki's message and philosophy would be well-translated, and clearly understood through my comic." [Allis]

[Para conseguir ler, clicar na imagem que abre o visualizador de imagens do browser sobre o blog, para seguir para as páginas seguintes basta ir clicando sobre as imagens.]






maio 23, 2013

"Punk Rock Jesus" (2012), o amadurecimento das narrativas

Os videojogos ainda têm um longo caminho a percorrer ao nível das histórias e ideias que discutem. Assim como os comics evoluíram, os videojogos acabarão por conseguir contar histórias mais maduras, que nos façam reflectir e questionar o mundo em que vivemos. Ler hoje os comics tradicionais da Marvel ou DC, sabe ao mesmo que jogar um videojogo AAA, falta densidade, profundidade, risco e autenticidade. A marca Vertigo pertence ao universo DC, mas foi criada especificamente para um público adulto, com o objetivo de tratar temas mais complexos. Espero ainda um dia ver aparecer uma editora destas no mundo dos videojogos.


Punk Rock Jesus é uma série de 6 livros (que podem agora ser adquiridos todos num único volume) criada por Sean Murphy em 2012 e que rapidamente se tornou num bestseller. A narrativa oferece-nos algo já visto mas enquadrado de uma forma diferente e apelativa. A ideia do retorno de Jesus através da clonagem de DNA é muito interessante, e arriscada. Tendo em conta todo o potencial dessa clonagem, tudo é montado no formato de reality show, e todo o mundo passa a acompanhar o crescimento do pequeno em directo nos ecrãs de TV, tal qual Truman Show (1998). A arte é apresentada sem cor, com traços tipicamente comic, com bastante qualidade mas sem qualquer procura por inovação na forma. Tudo aqui se centra na ideia, na história que se quer contar.


A revolta de Jesus é o momento mais interessante, no qual o conflito sobe de tom e podemos ver o novo Jesus assumir o papel do antigo, mas de uma forma totalmente atualizada. Tudo é aqui colocado em causa, tanto as perspectivas pró-religião como as anti-religião, dá-se espaço à discussão e inclusão, questiona-se em profundidade. Não se procura evangelizar, procura-se apenas questionar. Murphy diz em entrevista,
I didn't want the book to read that way. The trick was to write something that pushed believers to question their religion, but not in a way that abandoned them. (Amazon)
E um simples comic consegue fazer isto tão bem, mas se o faz bem deve-o muito ao modo como os personagens foram tão bem desenhados em termos sociais e psicológicos, é-nos dado a ver e a sentir o que lhes atravessa a mente, e isso facilita a nossa empatia com estes. Num outro excerto, Murphy diz-nos,
Punk Rock Jesus is actually an autobiography in disguise, because most of the characters are based off different aspects of my personality, or different roles I've inhabited over the years. For example, Thomas is a lot like me when I was Catholic—very black and white in how I viewed the world. And Chris is a lot like me when I first lost my faith—angry and militant about my new found atheism. Luckily, I've cooled off a lot since then, otherwise PRJ would have been a very (atheistically) preachy book. (Amazon)
Em certa medida está aqui tudo aquilo que devemos esperar dos videojogos no futuro. Em parte foi isto que a Telltale Games já conseguiu com The Walking Dead (2012) que já era uma adaptação de um comic com o mesmo nome, da Image Comics.

abril 04, 2013

"Civil War", extenso e desaproveitado

Finalmente acabei de ler um dos arcos narrativos da Marvel mais badalados da última década, Civil War, e um dos maiores, espalhado por mais de 100 livros e 3000 páginas. Já não lia comics com esta continuidade desde os anos 1990, e se o fiz agora novamente, deve-se essencialmente ao iPad e ao acesso online. Se existe conteúdo para o qual o iPad parece ter sido desenhado propositadamente, é o dos comics. O brilho e o tamanho do ecrã, e a usabilidade deste, tornaram-no num perfeito leitor de comics. A PSP tinha um ecrã demasiado pequeno, o Kindle era monocromático, o iPad abriu uma nova janela para o meu passado!

Civil War (2006-2007), atravessa mais de 100 livros, num total de mais de 3000 páginas

Civil War tornou-se um arco de peso capaz de saltar as fronteiras dos comics, dado que o assunto de fundo tratado tem uma relação directa com o momento da história em que vivemos. É inevitável comparar o fundamento de todo o conflito, o Superhuman Registration Act (registo governamental de todos os que detém super-poderes) com toda a paranóia e nova legislação que atenta contra a liberdade individual nos EUA, o Patriot Act, criada na sequência dos ataques do 11 de Setembro 2001. Se logo após o 11/9 a comunidade aceitou que o governo usasse de todos os poderes para garantir a segurança, com o passar dos anos começou a questionar-se sobre o que é que o governo andava a fazer com tanto poder conferido. Com Guatanamo a manter pessoas indefenidamente prisioneiras sem acusação, com a invasão do Iraque sem fundamento, com milhares de deportações dos EUA por meras razões raciais/religiosas. A ideia de proteção a qualquer custo começou a deixar de ter o sentido que aparentemente parecia ter. Deste modo a Marvel aproveitou todo este sentimento generalizado na comunidade para lançar o arco da Civil War em 2006 que se estendeu até 2007.


Civil War centra-se num conflito extremamente simples, o choque entre dois grupos de heróis, um por e outro contra o registo de todos perante o governo. Os problemas começam com as implicações da descoberta de identidades que isso tem sobre a vida de cada um, o que vai servir de mote para discutir muito mais sobre a informação e controlo da informação em sociedade e pelos governos. Do lado por, o grupo é liderado pelo Homem de Ferro, do lado contra, é liderado pelo Capitão América. Neste evento acaba por ser envolvido praticamente todo o universo de heróis Marvel, mesmo alguns que tinham entretanto desaparecido, regressam ao mundo dos vivos para dar o corpo e surpreender. Assim como vários heróis acabam por perder a vida ao longo desta saga, servindo assim a dramatização de tudo o que vai acontecendo. Em termos de nós principais, estes estão centrados sobre um grupo mais reduzido de personagens, num primeiro plano temos Homem de Ferro, Capitão América, Homem-Aranha e Reed Richards (Senhor Fantástico). Num segundo plano temos ainda Pantera Negra, Thunderbolts, os Novos Vingadores, Namor e os Atlantes e Wolverine.


Julgo que o primeiro plano funciona muito bem, mas o segundo é um mero aproveitamento narrativo para expandir o tema e o tornar maior do que aquilo que seria necessário, e assim também garantir mais história e mais vendas. Nesse sentido Civil War acaba por perder face a outros eventos do passado que conheço bem - Secret Wars - nomeadamente por se perder entre tantas ramificações. Um dos maiores problemas apontados pelos fãs foi exactamente a desarticulação do arco geral. Muitos dos livros que iam surgindo pareciam falhar na coerência com os eventos centrais, tanto em termos cronológicos como em termos de causalidade. Eu senti isso também mas era algo quase inevitável tendo em conta a dimensão, distribuição e a duração do arco. É preciso ter em conta que estão aqui em jogo várias equipas de escritores e desenhistas que normalmente trabalham nos seus projectos, seguindo as suas linhas temporais.

Aliás esse foi talvez o pior sentimento produzido pela série, as diferenças estéticas tanto na arte visual como na escrita. As abordagens são tão diferentes, e o modo como cada um toca certas cordas emocionais é muito distinta. Desse modo acaba por ser muito natural que estejamos a ler um dos livros, e adoremos pelos diálogos, e logo a seguir noutro apenas nos detanhamos sobre a arte gráfica.

Por outro lado passados mais de 6 anos sobre o lançamento de Civil War o seu mote continua imensamente atual. Aliás é muito relevante que a Marvel tenha ousado entrar numa discussão tão política e tão atual. A série começa por nos confrontar com discussões, por vezes profundas sobre o que está em causa. Nomeadamente as discussões sobre a luta pela Lei e a luta pelos Princípios é o melhor. A justificação para a tomada de posição a favor de Reed Richards é também muito boa. Mas depois o guião acaba por se perder na segunda parte, a luta mantém-se porque tem de se manter, e o conflito acaba porque tem de haver um fechamento. Esta série tinha potencial para se tornar em algo verdadeiramente inesquecível, algo capaz de elevar as qualidades humanas, mas acaba por falhar tudo isso. Claramente o seu escritor, Mark Millar, não consegue dar respostas, limita demasiado o alcance daquilo que está em causa, talvez com receio da falta de bagagem do seu público alvo. Falhou, porque tendo sido capaz de lançar-se numa jornada destas deveria ter sido capaz de a assumir até ao final.


Para quem quiser ler, não aconselho a leitura de todos os cento e tal livros, aconselho apenas os 7 livros principais, que podem ser encontrados num único tomo (TPB) Civil War. Se quiserem mais leiam também The Road to Civil War que dá detalhes sobre muitas das questões discutidas ao longo dos 7 livros. Para os fãs de cada personagem existem vários TPB que reúnem as histórias de cada herói relacionadas com o evento.

novembro 24, 2012

Brandon Generator, animação interactiva online

The Random Adventures of Brandon Generator (2012) é um trabalho de ficção colaborativa produzido pela Microsoft para promover o Internet Explorer 9 e o HTML5. A Microsoft juntou talentos incontornáveis em várias áreas, Edgar Wright na escrita, Tommy Lee Edwards na ilustração, Scott Benson na animação, Julian Barratt na narração e David Holmes na música e criaram um artefacto online memorável.


É difícil definir exactamente o que é Brandon Generator. Wright define-o como um "crowd sourced animated film", enquanto Tommy o define como "interactive online animated graphic story". Julgo que ambas as designações estão correctas. Em termos de trabalho audiovisual temos uma animação com sabor a motion comics, mas mais elaborada do que isso. Ao contrário dos motion comics, em que o trabalho provém de ilustração previamente impressa, aqui tudo foi desenvolvido para este formato final. Como diz Tommy o objectivo passou por "elevar o modo como as histórias são contadas online".


O que posso dizer é que esse objectivo foi conseguido em toda a linha, nomeadamente no campo estético. A ilustração de Tommy com toque Marvel é de todos o que mais se evidência, e controla grande parte da nossa relação com o artefacto, por outro lado a animação simples de Benson cria um ritmo específico para o universo narrativo que é depois fortemente suportada pela belíssima narração de Barrat e a música de Holmes. Ou seja, se o artefacto funciona é porque nada foi deixado ao acaso, a Microsoft não se ficou pela simples vontade de criar um trabalho demonstrativo da tecnologia, mas quis investir na criação de algo capaz de ficar na história da ficção online.


No campo interactivo, apesar de existirem algumas interacções possíveis com cada episódio, a interatividade joga-se quase toda no plano da comunicação assíncrona com a ficção. Ou seja, no final de cada episódio os espectadores eram convidados a participar, escrevendo trechos de continuidade para o episódio seguinte, desenhando elementos para fazerem parte do universo gráfico, ou deixando mensagens telefónicas para o personagem principal que depois poderiam entrar na banda sonora do episódio seguinte. Tudo isto era depois assimilado pelos criativos para fazer evoluir a história e a animação no sentido da participação deixada pelos milhares de espectadores. Consequentemente os espectadores sentem-se envolvidos na narrativa, a sua participação origina consequências reais sobre a narrativa. A participação contrói-se a partir de uma parceria real entre os criadores e os receptores, colocando-os num plano horizontal criativo, elevando fortemente o envolvimento de todos.





Imagens que mostram arte produzida pelos participantes, e na última imagem os nomes dos vários contribuintes só do episódio 3.

A história de Brandon Generator anda à volta do bloqueio criativo o qual leva um escritor a desmaiar de cansaço, quando este acorda descobre que todo o trabalho foi feito enquanto esteve inconsciente. E aqui começam as interrogações, quem terá feito as misteriosas contribuições, quem terá deixado as mensagens no gravador, quem terá desenhado no seu caderno de notas. A narrativa está brilhantemente desenhada no sentido em que a interacção do espectador está em sintonia total com o conteúdo da história, permitindo que cada elemento narrativo que nós acrescentamos enquanto espectadores possa fazer parte daquele universo sem propriamente o distorcer ou corromper. Wright conseguiu assim criar, nas suas palavras "an internet head trip where the users become co-writers, where they can help Brandon or punish him". Na minha interacção com o trabalho aconteceu algo interessante que me levantou algumas questões, sobre tudo isto. No final do ep1 deixei uma contribuição escrita para uma potencial continuação que não se revelaria muito distante daquilo que depois vi acontecer, em traços muito genéricos é claro. Aqui fica o escrevi,
"One day, the lack of coffee, made Brandon go out, in search for a coffee shop. In the walking he found a beautiful a girl. They took a coffee together, they laughed, and then he disappeared... "
Esta imagem aparece apenas no Episódio 3

Esta pouca diferença, levou-me a questionar sobre o poder do escritor e criadores para nos sugestionarem. Ou seja, até que ponto a nossa participação é de algum modo fortemente condicionada por aquilo que acabamos de ver. Somos enredados pela atmosfera, pelo personagem, e talvez dada a qualidade da imersão narrativa criada pelo trabalho somos como que conduzidos para um determinado universo ficcional do qual dificilmente nos conseguimos desprender. Continuamos a ter liberdade, mas somos sugestionados a pensar a dentro de um determinado quadro de convenções, o que homogeneíza os discursos!


Em termos de desenvolvimento, o trabalho web foi desenvolvido pela LBi, e no site de making of é possível obter mais informação técnica sobre o HTML5, CSS3 e Js usado. Mais interessante de tudo é a afirmação de Tommy a propósito de tudo isto quando ele diz "This whole thing would not exist without the internet." e suporta a afirmação referindo,
"Not only is Brandon Generator co-created by the online community's input, the whole process of creating the finished project is quite virtual. I live in rural North Carolina, where I storyboard, illustrate, design, and direct the animation for Brandon Generator. My CG modeling team (Don Cameron & Daryl Bartley) are in Los Angeles. Scott Benson handles all the animation and composite After Effects work up in Pittsburg. But through using skype, our smart phones, email, and various file-sharing methods, the four of us work hand-in-hand to create a seven or eight minute animated film. Edgar spends most of his time between Los Angeles and London. Same with composer David Holmes I think. Al the sound guy is British, but I'm actually not sure where he is at the moment. LBi builds the Brandon Generator website and handles all the tech from London. It's quite the little global effort." [link]
Impressiona. O mundo é cada vez mais global porque existe uma rede electrónica que suporta e mantém uma comunicação humana em modo contínuo. E daí que nos vejamos confrontados com a necessidade de repensar os modelos narrativos que temos, repensar não apenas os modelos de produção, mas também os modelos criativos. Não que eu acredite que estes possam transformar-se nos modelos dominantes. Como ainda há pouco tempo aqui referia num estudo de Zac, estamos muito formatados pelo modelo linear de contar histórias. Mas o que Brandon Generator nos mostra, é que a participação assíncrona pode ser um caminho muito interessante a explorar no storytelling interactivo (não que seja uma total novidade, mas está muito bem feito), porque mantemos a estrutura linear tradicional, adicionando uma camada participativa não disruptiva dessa linearidade.

Trailer do primeiro episódio

Experienciem The Random Adventures of Brando Generator, depois percam-se na página do making of.

novembro 04, 2012

do comic para a animação interactiva

The Art of Pho (2012) nasceu como uma história de banda desenhada criada por Julian Hanshaw e chega-nos agora na forma de motion comic. Antes da banda desenhada Julian Hanshaw trabalhou como animador em algumas das séries infantis mais premiadas de sempre, nomeadamente Charlie & Lola e Yoko! Jakamoko! Toto!. Mas agora o trabalho de animar o comic de Julian Hanshaw ficou a cargo da fantástica Lois van Baarle de quem tenho vindo a seguir o trabalho aqui.


Em termos de motion comic trata-se de um formato em ascenção à custa da web, e que procura de algum modo criar uma nova linguagem na área dos comics. A variabilidade do formato é grande, temos tido desde simples movimentos atribuídos a objectos e personagens mantendo os quadros dos livros, até trabalhos com grande detalhe de animação e som. No caso de Art of Pho para além da excelência de animação que se desenvolve a partir de um cruzamento perfeito com a gramática do comic, temos ainda a qualidade da banda sonora que contribui imenso para a atmosfera, mais mais interessante que isso, foram ainda desenhados acessos interactivos à obra que desenvolvem um sentido participativo no espectador/leitor.


A componente interactiva joga aqui um papel fundamental no modo como a linguagem da animação e dos comics se cruzam, facilitando esse processo, colando a estática de uma com a dinâmica da outra, e em cima de tudo isso contribuindo para engajar mais fortemente o espectador/leitor/jogador. Podemos chamar de animação interactiva, dificilmente se pode qualificar de jogo, mas é simplesmente arte da interactividade. Mesmo a forma como o layout é desenhado é feito no sentido de criar espaço para a participação do interactor. Não temos uma tela cheia, temos muito espaço negativo que vai sendo preenchido de forma animada, e em que por vezes somos chamados a contribuir.

Making of "The Art of Pho"

O tema da banda desenhada surgiu de uma viagem de Julian Hanshaw ao Vietnam em 2006 aonde ele se sentiu envolvido por toda uma outra cultura que mexeu consigo, e o levou a criar o livro The Art of Pho. Pho é o nome dado a uma espécie de sopa vietnamita, e é à volta dela que a narrativa se desenrola, construindo toda uma lógica de análise das relações humanas e da descoberta das raízes de cada um.

Prancha do livro, The Art of Pho (2010)

Em termos visuais é uma obra de autor com uma clara marca na atmosfera, cor e traço. Sentimos que entramos ali, e nos deixamos perder no mundo de Pho. Por outro lado e como diz o próprio Julian, a Lois conseguiu muito bem capturar o essencial da série, e dar-lhe vida, não apenas dinâmica, mas criar pequenas participações com o espectador que o ligam mais ao coração da narrativa. O livro era já muito visual, mas aqui essa dimensão ganha ainda mais relevo, juntamente com a música e a interação.


Vejam os 8 episódios no site do Submarine Channel, e depois vejam o Making Of. E se quiserem mandem vir o livro da Amazon.