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fevereiro 26, 2016

Gentrificação

Sublime, é o que me vem à cabeça terminada a curta “Gentrification” (2015) de Alberto Mielgo, de quem já aqui tinha falado antes a propósito de uma outra curta, Innocent, in a way” (NSFW), na qual Mielgo entrava como personagem, dando vida a si mesmo, enquanto artista, e à sua expressão em pintura a óleo. Já nessa altura tinha dado conta do facto de Mielgo trabalhar a animação além da pintura, mas esta sua nova curta apresenta toda uma evolução no controlo da linguagem cinematográfica que merece toda a nossa contemplação.




Esta curta é toda uma obra autoral em busca da expressão de uma única ideia, um conceito. A gentrificação é uma tendência dos bairros urbanos, normalmente centrais e anteriormente plenos de vida, que por via do enorme aumento de valor dos imóveis, obriga ao deslocamento das famílias de baixos recursos e pequenas empresas para a periferia das cidades.

Meigo cria uma obra simbólica para dar conta do real, optando por trabalhar em profundidade a estética audiovisual, nomeadamente a arte da animação (multiplicação e movimento no After Effects), em conjunto com as técnicas de cinematografia (desfocagem, velocidade), usando como elementos da sua narrativa, bases pictóricas criadas por si, dotadas de enorme expressividade e das melhores técnicas de ilustração e pintura (“black Inks, pencil, watercolors”). Claro que o filme não é alheio ao poder da música, tendo Mielgo socorrido-se de Franz Schubert com o seu String Quintet in C Major, D. 956: ll. Adagio.

“Gentrification” (2015) de Alberto Mielgo

“Gentrification is a visual poem that expresses the mix of feelings Mielgo has about the way cities transform when new money moves in. “I’m not criticizing gentrification and I’m not promoting it—I have a lot of mixed feelings about it, and this is just one way to look at it,” he says.” (Adobe Creator)

janeiro 02, 2016

"É assim que começa"

Trago mais uma curta da Bezalel, a escola de animação israelita que continua a oferecer-nos, ano após ano, curtas dos seus estudantes, com enorme cunho autoral e poder impressivo. A curta "This is How it Starts" de Shahaf Ram já ganhou vários prémios em vários festivais, entre os quais a competição de estudantes na Monstra 2015.





Nesta obra Ram propõe-se dar conta de uma viagem à infância e sua inocência por meio de cassetes antigas de vídeo. O trabalho de rotoscopia realizado para algumas imagens captadas dessas cassetes é tão detalhado que nos deixa em dúvida se realmente estamos perante material previamente criado em vídeo, ou se é ilustração animada a imitar o movimento e os defeitos do vídeo. Uma abordagem que segue no resto do filme, por via de um uso barroco da texturização sobre o qual projeta verdadeiros excessos de exposição que depois dessatura, oferencendo-lhe assim uma tonalidade vítrea, tudo em busca de uma espécie de mundo irreal, fantasmagórico.

O texto é fragmentado e nem sempre seguimos Ram, mantendo-se o interesse mais colado ao virtuosismo da plástica, conseguindo contudo no final imprimir em nós um forte traço de melancolia.

"This is How it Starts" (2014) de Shahaf Ram 
[contém imagens de teor adulto]

dezembro 21, 2015

O primeiro falhanço da Pixar

Pensei que o momento de escrever este título tinha chegado quando vi "Planes" em 2013, contudo mais tarde percebi que o filme não era uma produção da Pixar mas do DisneyToon Studios, o estúdio da Disney especializado na produção de spins para DVD, e que por ter ficado acima do normal desse mercado, segundo eles, tinha sido considerado para lançamento em sala. Nessa altura achei incorrecto, o filme era demasiado fraco, e ainda bem que quase desapareceu dos catálogos de animação, tanto da Pixar como da Disney. Mas parece que chegou o dia de escrever o título, com "The Good Dinosaur".




Imagens tiradas do trailer a 1080p

Contada esta primeira parte, quero dizer que enquanto via hoje o filme pensava que a Pixar se tinha decidido a seguir a lógica Disney, criar uma série B para filmes menores, mas qual não foi o meu espanto quando cheguei a casa e verifiquei que não, que o filme tinha sido apresentado como uma obra regular da Pixar, e que figura no seu site ao lado dos restantes. Isto espanta-me, muito mesmo, mais ainda depois de ter lido "Creativity Inc." (2014).

Uma análise séria de "The Good Dinosaur", sem levar em conta as qualidades do estúdio por detrás da obra, tem quase tudo de negativo a apontar, e muito pouco de positivo, sendo talvez o maior problema da obra o storytelling, que é o domínio por excelência da Pixar, e por isso torna tudo isto ainda mais decepcionante. A premissa de partida é a única coisa digna da Pixar — e se os dinossauros não se estivessem extinguido, o que seria dos humanos? —, mas desde logo o tratamento dado à mesma é um enorme desastre — com os dinossauros a surgirem enquadrados tais quais agricultores das grandes planícies do interior dos EUA, e os humanos a assumirem o lugar de cães, animais de estimação! Se é mau no geral, no detalhe piora ainda mais, porque uma vez invertidos os papéis, tanto os personagens como os eventos, não são apenas cópias de múltiplas outras histórias, são verdadeiros clichês, a darem conta de uma total ausência de criatividade. "The Good Dinosaur" parece uma espécie de "Patinho Feio" cruzado com "Rei Leão", mas contado a partir de um conjunto de boas-práticas da psicologia da relação entre pais e filhos.

Houve quem dissesse tratar-se do primeiro filme da Pixar dirigido apenas às crianças, discordo, até porque para além de levar os meus filhos que ainda são crianças, estavam grupos grandes de crianças de ATLs e infantários, e praticamente nunca os vi reagir, tirando os momentos mais fortes de tristeza, repetidos n vezes em busca de emocionar a audiência, e claro da violência, que me surpreendeu — colocar uma criança 6-7 anos a arrancar, graficamente, a cabeça de uma espécie de besouro, quase do seu tamanho — pode parecer engraçado nesta era de videojogos, mas foram várias as crianças a reagir negativamente, e mesmo a chorar na sala.

Vi outras análises a tentarem desculpar o filme puxando pela beleza do seu fotorrealismo, o que mais uma vez me vejo obrigado a discordar. Fotorrealismo não é sinónimo de qualidade, dá apenas conta de mestria técnica. Existem poucos momentos de qualidade artística visual ao longo da hora e meia, começando desde logo pelos personagens, nomeadamente os dinossauros muito fracos — verdadeiros clichês, baços, simétricos, rígidos e infantis — dos quais o pequeno humano se destaca pela positiva, nomeadamente na animação, sendo que todos os restantes são ainda mais fracos que os dinossauros. No campo dos ambientes, os momentos de fotorrealismo que acontecem em cenas de água ou paisagens em planos gerais largos, destoam e retiram-nos do universo ilustrado da animação, por outro lado os cenários são tão simplistas, nada daquilo a que a Pixar nos habituou, tanto no detalhe da modelação como na seleção de cores que servem a vida de todo aquele suposto mundo-história.

Não se trata aqui de estar a comparar com a anterior obra-prima da Pixar, "Inside Out", mas antes com toda a história da empresa modelo. Mesmo indo às sequelas mais fracas, "Cars 2" ou "Monsters University", é difícil encontrar algo tão fraco, tão manta de retalhos e tão pouco cuidado, talvez só mesmo um "Planes". Existem várias notícias online que dão conta de problemas ao longo de toda a produção, contudo a Pixar falhou ao não ter abandonado totalmente o projeto, como fez antes com outros filmes.

novembro 29, 2015

Impressionismo animado

Com um atraso indesculpável de mais de um ano, por vir de um dos estúdios que mais respeito no mundo da animação, vi hoje "Song of the Sea" (2014), e o deslumbre esteve ao mesmo nível do que senti quando vi "The Secret of Kells" (2009). O estúdio irlandês Cartoon Saloon não precisa de fazer mais nada no cinema, estas suas duas obras são suficientes para que a sua identidade e legado fiquem acesos por muitos e muitos anos na arte. Não me alongarei muito, já que a impressão criada é intensa, mas pode apenas ser dada a compreender vendo, de modo que deixarei mais imagens do que palavras.












Existem várias particularidades nestas obras da Cartoon Saloon, desde logo o seu conteúdo imbuído de mitologias celtas, ao qual se junta o facto de ambas as obras procurarem distanciar-se do mainstream, criando um universo visual muito próprio, seja pela fuga às regras da perspectiva, seja pelo forte contraste entre o geométrico e orgânico, seja pelo imenso detalhe tanto no traço como na palete de cores. A Saloon desenvolveu toda uma lógica estética que poderíamos facilmente catalogar de impressionismo animado.

novembro 28, 2015

O espírito natalício animado

Belíssima animação criada para o anúncio anual da lotaria espanhola de fim de ano, "El Gordo". A curta foi conceptualizada pela agência Leo Burnett (Espanha), produzida pela Blur (Espanha) e Passion Pictures (UK) e executada pela Milford (Suécia). Apesar de toda a polémica despoletada pela comunidade de animação espanhola, pelo não recurso a uma companhia espanhola, e em sua vez sueca, quero dizer que o traço de trabalho que aqui vemos sofre de uma clara influência da Passion, a "Pixar da publicidade".




"Justino" encarna todo o espírito natalício de uma forma bastante simples, sem maneirismos nem piruetas muito piegas, por via da personagem principal que nos conduz e faz sentir, sempre nos limites do humor e solidário. A modelação e animação são sólidas, sem grande exibicionismo, servem-nos um universo paralelo credível mas adorável. O making of não dá muita informação sobre a construção técnica, mas contribui para o conhecimento mais claro do modo como foi concebido o conceito pela agência.

Concordo com a comunidade de animação espanhola, que a execução deveria ter sido realizada em Espanha, já que isto é algo que também vemos acontecer muito em Portugal. Somos países de parcas oportunidades para este tipo de projectos, e por isso acaba por ser muito triste ver projectos desta envergadura, e ainda por cima com dinheiro público, voarem para outros países, sem que para isso se apresentem claras mais valias. Até porque não vejo os grupos suecos, como por exemplo a IKEA a tentar promover outras culturas que não sejam as do próprio país.



A música que serve de banda sonora é, "Nuvole bianche" de Ludovico Einaudi, retirada do álbum Una Mattina (2007). Einaudi vai estar em Portugal em Abril 2016.

novembro 17, 2015

No interior de uma mente autista

A brasileira Lobo criou mais um anúncio social brilhante para a ONG Autism Speaks. Recorrendo a uma mescla muito interessante de materiais ("mixed-media"), foi criada uma animação que consegue dar conta do mundo interior vivido por uma criança com autismo, de forma muito explícita e direta.




Se o resultado final é brilhante, todo o processo de design para chegar até ali não é menos, já que apesar de falarmos de um trabalho de foro artístico, ele é profundamente baseado numa lógica centrada no utilizador. No pequeno making of percebemos como decorreu o processo e a partir de onde surgiram as ideias centrais para o desenho daquilo que podemos ver ao longo do curto minuto de duração, algo que o próprio realizador confirma em entrevista ao Motiongrapher.

Toda a informação recolhida foi depois trabalhada em termos visuais e materiais, sobre os quais se desenhou então uma pequena história que desse coerência ao interior do mundo da criança, e conseguisse num breve minuto conferir uma experiência completa (com princípio, meio e fim) aos espectador, como se pode ver na imagem abaixo.

Design do fluxo emocional do anúncio [fonte]

Todos os cenários são reais, fabricados em estúdio, apenas os personagens foram criados em 3D por razões de tempo. Existe uma clara tentativa de misturar diferentes materiais, procurando assim dar vida à diversidade intrínseca da mente de cada um de nós. Neste minuto estiveram envolvidas 50 pessoas ao longo de 2 meses.

"Autism Speaks" (2015) da Lobo

novembro 10, 2015

Animação 3d: "Os Laços de Sangue"

Uma animação literalmente sumptuosa. Toda a direcção de arte trabalha de forma soberba a luxuria da relação de sangue em questão, criando todo um universo, que não sendo propriamente inovador é altamente eficiente e consistente na criação do sentimento que subjaz à personagem principal. Mais um belíssimo trabalho de alunos da escola francesa de cinema e animação George Méliès.




Temos todo um conjunto de cenários barrocos, cheios de folhos e formas curvas, cobertas por contrastes de luz intensa e volumosa, tudo toldado por tons de vermelho sangue. As personagens assumem uma caracterização particular, autoral, fina e detalhada, de grande coerência entre si.

O menos conseguido, ainda que falemos de uma curta de 3 minutos, acaba sendo a história, pelo cliché, assim como pela tentativa gorada de sugestão, que acaba por passar mais como explicação. Ainda assim a narrativa trabalha em consonância com toda a restante arte, acabando por funcionar como a necessária cola e justificação da criação do universo.

"Les Liens de Sang" (2015) de Sophie Kavouridis, Manon Lazzari, Marion Louw, Simon Pannetrat e Thomas Ricquier

outubro 24, 2015

"Dimensões do Diálogo" de Svankmajer

Jan Svankmajer (1934) é um reconhecido animador checo com uma obra que remonta aos anos 1960, sempre polémico e desconfortável, ora pelos objetos a que recorre nas suas animações, ora pelas ideias que exprime com estes, sendo muitas vezes rotulado de surrealista grotesco. Contudo o filme de que aqui hoje dou conta, fica-se mais pelo grotesco, deixando o surrealismo à porta, uma vez que a mensagem é coesa, seguindo o molde base do processo narrativo.


Ainda que eu o apresente como de traço narrativo, a veia surrealista de Svankmajer impede-o de ser completamente objetivo, mesmo quando o título é direto e as secções do filme são entrecortadas com subtítulos, permitindo múltiplas leituras e interpretações. Estas acontecem e podem ser encontradas na crítica rede afora, direcionando a nossa leitura em função da experiência e conhecimento de quem interpreta. Nesse sentido, a interpretação que aqui vos ofereço deve funcionar como complemento, sendo lida apenas após visionamento do filme. Da minha perspectiva o filme é obrigatório para qualquer amante da Comunicação.

"O Bibliotecário" (1566) de Giuseppe Arcimboldo

Em termos meramente plásticos Svankmajer assume neste filme a influência direta de Arcimboldo, nomeadamente das obras, "As Quatro Estações" e o "Bibliotecário", entre outras. Como se Svankmajer entrasse pelas telas de Arcimboldo adentro e lhes desse vida, como compete à animação, mas indo além, conferindo-lhes desígnio, narrativa e sentido.

Dimensões do Diálogo” (1982) de Jan Svankmajer, Checoslováquia

A minha interpretação,

Parte I - A Evolução (subtítulo: "Diálogo Eterno")
A primeira parte surge como o início dos tempos, a criação e evolução do ser humano, do ser pré-histórico ao ser atual, construído pela via do Diálogo. Svankmajer oferece-nos aqui uma leitura particular do homo-sapiens e da sua inteligência como fruto da interação humana, responsável pela filtragem e aprofundamento de tudo aquilo que somos hoje.

Parte 2 - A sobrevivência (subtítulo: "Diálogo Apaixonado")
Se na primeira parte Svankmajer nos fala do processo de evolução e aprimoramento da consciência, aqui fala do corpo, do como a espécie depende do diálogo com todo o seu espectro emocional do amor à raiva, para a sobrevivência da carne, sua reprodução e manutenção.

Parte 3 - O fim (subtítulo: "Diálogo Desgastante")
Por fim, já cansados e gastos, o diálogo começa a perder-se, começam a surgir as primeiras indicações de que o diálogo não se está a efetivar, o desentendimento ou falha na comunicação, e assim começa a nossa degradação até à extinção do ser.

outubro 17, 2015

Profissão: Animador

Bruna Berford criou uma pequena animação, do tipo ensaio audiovisual, onde dá conta dos requisitos necessários ao cumprimento da profissão de animador. Um filme curto com excelente ritmo, no qual se dá conta, dos primeiros passos ao resultado final da acção do criativo. É um filme relevante por não assumir o deslumbramento que a profissão provoca, mas antes por enfrentar o esforço que a prática requer com grande honestidade.



Este filme é o resultado de um trabalho realizado por Berford para a disciplina de Stop Motion Experimental na Academy of Art University, onde se licenciou em Animação. Berford é atualmente Cinematic Artist na Telltale Games.

 
"Occupation: Animator" (2014) de Bruna Berford

outubro 11, 2015

Filmes da Gobelins 2015

Mais um ano, mais uma vaga de filmes de fim de curso da Gobelins chega à rede. Os filmes deste ano parecem-me um pouco mais introspectivos e reflexivos, apesar dos poucos minutos de que dispõem para tal (2 a 4 minutos). Em termos técnicos continuamos a poder ver do melhor que se faz no mundo académico da animação internacional. Dos 8 filmes agora publicados, seleccionei os 4 que mais me emocionaram, e que passo a apresentar.






"Que Dalle" (2015) de Caroline Cherrier, Hugo De Faucompret, Eva Lusbaronian, Arthus Pilorget, Johan Ravit

É um belíssimo trabalho de cinema que se socorre da ilustração e animação para criar um universo de realismo enfatizado, trabalhado ritmicamente para estimular em nós as distintas emoções da história que vai construindo. Os cenários são envolvidos por um imenso trabalho de luz e sombras, e a animação catapultada por meio da montagem e composição. Impressionante do ponto de vista técnico, tanto na coerência da estética da ilustração, como na criação da obra audiovisual como um todo, nomeadamente montagem e cinematografia. Vale a pena passar pelo TheCab, blog de concept art, para saber mais sobre o processo de criação de "Que Dalle".


"Made in China" (2015) de Vincent Tsui

Um trabalho que opta por uma linha de ilustração autoral, no sentido de servir o aprofundamento da mensagem, como garante de intenção expressiva. Se por vezes nos rimos, outras somos convidados à contemplação em profundidade sobre a sociedade que habitamos.


"Wildfire" (2015) de Hugues Opter, Pierre Pinon, Nicole Stafford, Valentin Stoll, Arnaud Tribout, Shang Zhang

O filme, apesar de curto procura dar um lampejo das ansiedades que trespassam a mente de uma mulher-bombeira, na sua relação com o trabalho e família. A animação segue um trabalho tradicional, com a ilustração a fugir para traços a óleo, de modo a contribuir para um extrapolar da complexidade da mente da personagem.


"Ama" (2015) de Liang Huang, Mansoureh Kamari, Julie Robert, Tony Unser

É o filme lírico da série, por meio de uma base a óleo somos levados pela mão no sonho de uma senhora num mar do Japão.


[via Short of the Week]

setembro 22, 2015

o movimento da metamorfose

Para quem gosta de animação, a última curta de Masanobu Hiraoka é um verdadeiro doce, com o movimento a surgir a partir de metamorfoses fluídas, criando toda uma experiência escapista e perceptivamente líquida. Hiraoka está ligado ao colectivo francês Je Regard, no qual colabora Carlos de Carvalho, de quem já aqui falei antes, esta sua animação foi-me enviada pelo Nuno Folhadela a quem fico imensamente grato.





Interessante como Hiraoka vai desenhando todos os seus elementos a partir da base do desenho - o ponto, a recta, o plano, as formas - e depois as vai metamorfoseando, umas nas outras, criando um bailado de movimento gráfico que nos seduz e compele a ir atrás de cada nova forma, de cada novo traço, de cada nova cor. No campo da cor a coerência é grande, com um equilíbrio contido, e ao mesmo tempo uma palete que lhe confere uma enorme peculiaridade visual.

setembro 15, 2015

"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" (2014)

A animação de Michael Bidinger e Michelle Kwon é mais um resultado de tese de fim de curso, desta vez do Ringling College of Art and Design (Florida, EUA), e que arrecadou em junho o prémio da melhor curta do SIGGRAPH 2015, em competição com curtas profissionais.



"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" usa uma linguagem perfeitamente standard, seguindo todas as convenções impostas nos últimos anos pela Pixar, por outro lado demonstra um excelente nível técnico no cumprimento dessas convenções, mas onde se destaca e deslumbra é no campo da experiência, no modo como apenas em 3 minutos nos consegue arrancar vários sorrisos, fazer desfrutar e ao mesmo tempo levar a reflectir sobre o que andamos por cá a fazer.

"Jinxy Jenkins & Lucky Lou" (2014) de Michael Bidinger e Michelle Kwon


Sobre o processo podem ver ler a entrevista ao Creative Bloq.

setembro 09, 2015

O robô e a sua criadora

"NO-A" (2015) é o mais recente trabalho de animação e VFX de estudante a chegar a rede e a ganhar admiração unânime. Criado como trabalho de fim de curso, no Savannah College of Art and Design, por uma equipa de 8 alunos liderada por Liam Murphy, arrecadou desde logo, na própria SCAD, o prémio de melhor Animação de 2015.



Existem dois elementos em "NO-A" que o destacam do patamar do trabalho de estudante, a ilustração no tratamento dado às texturas, shaders e iluminação, e o controlo emocional narrativo. Vários planos denotam um perfeccionismo no modo como se compôs o detalhe da composição, em que cada cor parece ter sido alinhada com cada sombra, em que cada movimento parece pronto a surpreender e a deixar-nos a desejar por mais. Por outro lado, a montagem e a música, aliadas ao laço desenhado entre o robô e a menina, são capazes de agarrar as nossas emoções e colar-nos ao ecrã, fazendo-nos acreditar, suspender a descrença, e escapar para aquela irrealidade. Um pequeno filme que tão simples parece mas que está repleto de minúcia e paixão pela arte.

"NO-A" (2015) de Liam Murphy

"The world is a desolate, unforgiving place in this action sci-fi with a surprising amount of heart. We follow NO-A (Noah), as he attempts to rescue Aixa, the young woman that created him. In his desperate attempt to save her, he must face an unknown enemy force and fight to keep them both alive."

agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

agosto 11, 2015

“Dom Quixote de la Mancha” (1605 & 1615)

Dom Quixote” é uma viagem por uma geografia de nós tão próxima, ainda que num tempo tão distante, mas capaz de nos levar a conhecer gente que tão pouco de nós difere e assim nos dar a conhecer mais sobre nós mesmos. Se isto não bastasse, ler "Dom Quixote" é ler a pauta da história da literatura, encontrar o berço da forma e estrutura daquilo que hoje assumimos simplesmente como, o Romance.

Sancho Pança e D. Quixote, Alcalá de Henares, Madrid, Espanha


1. O significado do meu Dom Quixote

“O Cavaleiro de Triste Figura” é este o título que D. Quixote adota a meio da narrativa, sendo este central na compreensão do personagem, dos seus motivos e desígnio, e que sustentando todo o universo choca com o reconhecido género cómico de que se compõe a obra.


Série de animação “Don Quijote de La Mancha” (1979)

Tive o meu primeiro contacto com a personagem de D. Quixote através da série de animação para televisão, “Don Quijote de La Mancha” (1979) , que passou em Portugal em 1984, nas manhãs de sábado, na RTP 1. A marca foi forte, e desde então nunca mais me abandonou, ficando na memória alguns dos episódios marcantes que agora pude revisitar ao ler o livro. Em essência guardo dessas manhãs mais questões que respostas, o que evidencia desde logo toda a importância do universo criado por Cervantes. D. Quixote não tinha propriamente um desígnio, além da sua Dulcineia, que nunca surge, que não existe, tal como quase tudo apenas existe na sua cabeça. O desenho animado foi aqui crucial por poder mostrar o fantástico e o impossível,  permitindo-nos entrar pela mente adentro do personagem, obrigando-nos a questionar a diferença entre o real e o imaginário.

O primeiro volume (1605) é bastante mais cómico, centrado em acções concretas e delimitadas - exemplos como: os Moinhos, as Ovelhas ou o Elmo de Mambrino - e aquele de que tenho mais memórias, ainda que televisivas. O segundo volume (1615), apesar de servir uma Busca/Demanda também, a terceira saída de D. Quixote, é também a sua última, mas mais do que isso, é muito mais madura, o personagem D. Quixote está envelhecido, porque a própria pena de Cervantes tem agora mais 10 anos. Notamos que a escrita e a estrutura é bastante mais robusta, mas notamos que o universo quixotesco se complexifica, ganha densidade e profundidade. Relendo estas palavras percebo que aquando do visionamento da série, a minha idade não me terá permitido atingir o fundamento da segunda metade.

O “cavaleiro-andante” que servia de rótulo ao tipo de cavaleiro dos romances medievais, o senhor seguidor das normas do cavalheirismo, em Cervantes, pela crítica desse modelo, e por via de uma abordagem anti-herói, assume o lugar de todos nós, errantes nesta vida. O cavaleiro não quer seguir apenas as regras e convenções, antes procura respostas, busca um sentido para a vida. D. Quixote é apresentado como alguém extremamente lúcido mas que sofre de uma mania (ser cavaleiro-andante) que o deixa louco a esparsos momentos, mas não teremos todos momentos destes, com manias nossas? Daí que ler "Dom Quixote" exija um esforço da nossa parte, sermos capazes de nos revermos no personagem para o podermos compreender, porque a todo o momento Cervantes nos vai rasteirando, lançando a dúvida sobre se o próprio D. Quixote acredita naquilo que diz.

Para se chegar ao coração de toda esta busca e errância, que define o quixotismo, temos de olhar para história de vida do próprio Cervantes. Nascido de boas famílias, mas sem grandes posses, teve uma vida atribulada (cativo durante anos, em tempo de guerra em Itália, e mais tarde preso por falta de pagamento de dívidas), viveu em Lisboa dois anos, mas foi em Espanha que viveu como verdadeiro nómada, passando por imensas cidades ao longo da sua vida. Os empregos medianos que teve nunca lhe agradaram, e as vezes que procurou outros lugares, foi sempre preterido. No amor passou por amores proibidos pelas famílias, nunca encontrando um amor que lhe permitisse assentar. Apesar do sucesso dos seus livros em vida, nunca pôde viver da escrita.


2. Do nascimento da Prosa Narrativa

Antes de “Dom Quixote” existiram várias formas narrativas, porque é que então consideramos este como a origem do livro de ficção (romance), tal como hoje o conhecemos? Para tal é preciso olhar à história e procurar compreender como contávamos histórias, nomeadamente com livro como meio. Essencialmente tivemos três formas: o Poema, o Drama e a Prosa.

As histórias na forma de Poema, ou seja em que história vai sendo contada por meio de versos estruturados para a produção de efeitos estéticos. Iniciados com os fundacionais épicos “Gilgamesh” (~-2100), “Ilíada” (~-800) e “Odisseia” (~-800) que serviram de modelo a “Eneida” (~-30), “Metamorfose” (~800), “Beowulf” (~900), “Divina Commedia” (~1300) e “Lusíadas” (~1500).

As histórias na forma de Drama, ou seja, em que a história vai sendo contada por meio de diálogos, aqueles que poderão ser colocados em cena por atores. Iniciadas com as tragédias gregas de Ésquilo , Eurípides e Sófocles à volta de -450, e que atingiriam o pináculo da sua forma com Shakespeare, no tempo de D. Quixote, em ~1600. Aliás Shakespeare morreu 10 dias depois de Cervantes, dois génios das letras, viveram na exata mesma época a poucos quilómetros entre si, mas nunca chegaram a conhecer-se.

As histórias na forma de prosa começaram antes dos Poemas e Drama, mas no início serviram apenas a não-ficção. Costumamos reportar na nossa noção histórica ocidental à Grécia antiga, nomeadamente ao seu legado filosófico, com a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles. Esta nunca desapareceu e continua até aos dias de hoje, nas várias disciplinas académicas. Aqui usa-se a prosa, mas o objetivo não é elaborar uma história, antes reportar um problema real, preocupando-se apenas com o fundamento do problema, esquecendo a forma, assumindo-a o mais próximo possível da oralidade e do suposto pensamento. Assim na Grécia antiga era fácil distinguir o real do ficcional olhando apenas à forma dos escritos.

A prosa como ficção surge muito mais tarde, no final da Idade Média (~1300). Os primeiros escritos surgem como registos de lendas, em que o ficcional se mistura com o real. Das lendas não se sabia o que era verdade, e o que era inventado, daí que os registos que vão acontecendo sofram dessa ambivalência na própria forma. Estas lendas escritas iniciam um novo género que se intitularia de “Romances de Cavalaria”, sendo estes a base daquilo que viria ficar conhecido como simplesmente Romance. O pioneiro, ou o mais recordado, dos registos destas lendas, é marcado por Rei Artur, responsável por vários romances em França e Inglaterra (~1300), e o final por “Dom Quixote” (1605 e 1615), pelo meio muitos houveram, tais como o imensamente citado em "Dom Quixote", “Amadis de Gaula” (1496), que ainda hoje se discute se terá sido escrito por espanhol ou português.


3. A importância de “Dom Quixote

Dom Quixote” (1605 e 1615) de Cervantes, à semelhança de “The Birth of a Nation”  de D.W. Griffith no cinema, não inventa propriamente nada, antes consolida, solidificando conhecimentos previamente distribuídos em várias obras. Os processos criativos não emergem no vazio, mas antes da complexidade e imensidade de caminhos de cada movimentação artística. Obras como “Dom Quixote” ou “The Birth of a Nation", surgem como marcos de viragem porque dão sentido ao caos de possibilidades criativas, criando uma base sólida a partir da qual todos os que lhe sucedem, ali se ancoram.

Na verdade o século XVII é considerado como o século de ouro espanhol por tudo aquilo que o país deu à humanidade em termos artísticos e científicos. Não foi apenas um efeito tardio da Renascença, embora também, mas foi um um claro efeito da imensa riqueza extraída das colónias da América Latina. O mais visível destes efeitos surgiu na forma arquitectónica das suas catedrais, assim como na pintura de Velázquez, El Greco, Murillo, Alonso Berruguete ou Luis de Morales, mas tudo em redor beneficiou desta erupção intelectual, sendo "Dom Quixote" um dos melhores exemplares desse período.

Em termos da prosa narrativa “Dom Quixote” estabelece convenções e parâmetros estéticos centrais no contar de histórias elaboradas que se mantém até hoje. Desde logo pela troca de lugares entre a relevância do enredo pelos personagens. Aristoteles considerava o enredo a primeira força motriz do drama, no entanto Cervantes vem demonstrar como só pela assunção dos personagens como dominantes se pode construir uma história de eventos longa e complexa, capaz de eliminar a impressão de meros quadros delimitados e sucessivos de acções. Com a história a progredir pela força dos personagens, e não estes a serem empurrados pelas acções narrativas, o entrelaçar da estrutura de eventos torna-se mais fluída, porque mais coerente, mais próxima da estrutura de que se compõem o modo como vemos as nossas próprias vidas. Isto nota-se logo no primeiro volume, mas é no segundo que a estratégia é mais bem desenhada, e a estrutura assume toda a sua evidência. Mesmo fazendo uso do recorte em pequenos capítulos, estes nunca são desligados, Cervantes esforça-se por manter uma coesão completa entre cada momento, como se um fio de realidade nos fosse sendo servido, e não apenas um conjunto de cenas ou momentos.


4. Da escrita e tradução

A escrita em "Dom Quixote" apresenta dois problemas que a tornam ligeiramente difícil, a erudição e os arcaísmos. Os livros são do século XVII, como tal o espanhol escrito é bastante distante do que hoje se escreve, não apenas alguns dos termos, como expressões e artifícios gramaticais que foram caindo em desuso. Por outro lado Cervantes apresenta um enorme background literário que lhe permite não apenas chamar ao seu texto citações de muitos clássicos e seus contemporâneos, e ao mesmo tempo apresentar uma linguagem bem elaborada, entrosada e trabalhada. Tudo isto dificulta a leitura, mas antes disso dificulta o trabalho de tradução.


Em português existem várias traduções, uma das mais conhecidas é a do escritor Aquilino Ribeiro, que de tanto ter trabalhado a tradução acabou por criar uma nova versão, em vez de uma tradução. Li apenas os primeiros capítulos nesta versão, e pareceu-me demasiada arcaica, existe uma clara tentativa de traduzir do espanhol antigo para o português antigo, o que dificulta imenso a leitura. No Brasil existem várias traduções recentes, li vários capítulos da nova da Penguin Brasil, realizada por Ernani Ssó, no qual este procura realizar o inverso, trazendo a obra para um português contemporâneo. O texto fica muito mais acessível, assumo mesmo que as partes cómicas ficam com mais graça, mas o texto perde em erudição, e acaba criando-se uma nova versão da obra, já que muitas vezes Ssó transforma completamente aquilo que o autor escreveu. A versão na qual acabei por ler praticamente todo o texto foi a de Miguel Serras Pereira, premiada em 2006 pelo PEN, e agora re-editada numa edição especial para a comemoração dos 50 anos da editora D. Quixote. Comparando alguns trechos com a versão espanhola, mais recente da Real Academia Española, o texto segue quase totalmente o original, obrigando-nos muitas vezes a recorrer ao dicionário pelo uso de vocábulos já fora de uso, ou provenientes do castelhano. De qualquer modo a leitura, apesar de menos escorreita que a versão de Ssó, é ainda assim bastante fluída, com a vantagem de podermos sentir por vezes a proximidade temporal por via do texto.