junho 04, 2017

O Gosto não Existe (múltiplas ideias sobre a experiência).

Porque gostamos de algo? Porque sentimos diferente de outros os mesmos filmes, músicas ou livros? Existem fatores de qualidade, ou seja, uma obra pode ser melhor ou pior que outra? Questões que se resumem a uma questão maior com que me tenho debatido nos últimos anos: o que é a experiência humana? As mais recentes ideias que me ocorreram sobre esta problemática não advém de um livro de design nem de psicologia ou filosofia, mas antes de um livro de um jornalista sobre o sucesso e a popularidade.


Derek Thompson é editor senior na respeitadíssima The Atlantic, e apesar de contar apenas com 29 anos o livro que acaba de publicar, “Hit Makers: The Science of Popularity in an Age of Distraction” (2017) dá bem conta das suas competências no campo da pesquisa, interpretação e escrita. Não posso dizer que traga algo de muito novo, já que repete muitas das ideias que se têm escrito nomeadamente no campo da psicologia evolucionária da arte, mas o facto de construir um quadro imensamente rico de exemplos e aprofundar e cruzá-los tão bem, acabou por despontar em mim algumas ideias novas, ou pelo menos uma tentativa de desenho de uma nova abordagem ao gosto, e à experiência humana.

Thompson constrói quase toda a sua argumentação em redor de um conceito que tem servido os mais recentes estudos no campo da psicologia do entretenimento, a familiaridade. Paul Bloom na sua obra de 2010 explicava como o nosso prazer aumenta com a familiaridade que sentimos com a arte, e como gostamos mais daquilo que conhecemos previamente, o que explica o boom de sequelas e mais sequelas no cinema do século XXI.


Para reforçar esta ideia Thompson vai apresentar vários casos em sua defesa, como digo não trazem nada de novo ao trabalho de Paul Bloom, mas reforçam a ideia do que concluí e que darei conta imediatamente a seguir. Assim Thompson abre o livro com uma discussão em redor do Impressionismo, explicando o modo como esta corrente estética se tornou na mais celebrada do mundo da pintura. Para isso dá conta do historial do movimento, de como inicialmente recusado, viria a ganhar proeminência graças aos esforços de Gustave Caillebotte, que depois de reunir uma grande coleção, deixaria como testamento em 1894, a obrigatoriedade de o Estado Francês expôr metade da sua coleção — constituída pelos 7 principais nomes do cânone impressionista: Monet, Renoir, Degas, Cezanne, Manet, Pissarro, e Sisley. Não foi fácil cumprir este desejo testamentário, Renoir e a família de Caillebotte moveram mundos para tal, e em 1897, acabou por então acontecer no Museu do Luxemburgo, Paris, a primeira exposição de sempre do Impressionismo. Toda a discussão gerada em redor desta exposição iria atrair atenção infindável sobre estes mesmos artistas, que dura até aos dias de hoje.

"Woman with a Parasol", 1875, Claude Monet

Thompson explica como as obras desta coleção passariam a surgir em todo o lado, indo muito além das fronteiras da elite da arte, passando a ser objeto de discussão nos cafés, nas escolas, nos trabalhos. Surgindo as telas nos media, criando na sociedade uma impressão de familiaridade com os trabalhos ao longo da sua continuada exposição. Este é no fundo o mesmo efeito que viria acontecer anos mais tarde com o quadro de Da Vinci, "Mona Lisa", que por ter sido roubado por duas vezes do Louvre ganharia uma proeminência no imaginário colectivo até hoje inigualada por qualquer outra pintura.

Mas ser familiar não significa ser sempre igual. Qualquer novo sucesso precisa de partir do familiar para atrair o maior número de pessoas, mas precisa de algo no seu interior distinto, diferente de tudo o resto, inesperado e que cause surpresa. Todos gostamos das nossas rotinas, e do que conhecemos, mas todos atingimos a saturação, por isso é preciso que tudo vá mudando, só não queremos é que mude radicalmente. Neste sentido Thompson evoca Raymond Loewy, um dos designers mais populares da cultura americana — responsável por alguma iconografia como os logos da Shell, BP, os autocarros the Greyhound Scenicruiser, o maço de tabaco da Lucky Strike ou ainda o avião Air Force One. Loewy desenvolveria um princípio basilar que designaria por MAYA — as ideias devem ser “Most Advanced, Yet Acceptable”. Bem cedo na sua carreira compreendeu que as pessoas respondiam visceralmente a produtos desafiantes mas que fossem familiares, ou como Derek Thompson descreve ”algo novo que abre a porta ao conforto”.


Se dúvidas houvesse sobre o que as pessoas realmente preferem, sobre o familiar, o próximo, o confortável, a listagem das 10 histórias mais populares no Facebook em 2014 dá conta do pico dessa sede de reconhecer do que se fala. Dos 10 artigos, 9 falam do Eu, o último reduto da familiaridade. Nada nos interessa mais no mundo do que nós próprios.
"1 - He Saved 669 Children During the Holocaust . . . And He Doesn’t Know They’re Sitting Next to Him — LifeBuzz
2 - What Animal Are You? — Quizony
3 - How Observant Are You? — Playbuzz
4 - Can We Guess Your Real Age? — Bitecharge
5 - What State Do You Actually Belong In? — BuzzFeed
6 - What Color Is Your Aura? — Quiz Social
7 - How Old Are You at Heart? — Bitecharge
8 - How Old Do You Act? — Bitecharge
9 - What Kind of Woman Are You? — Survley
10 - How Did You Die in Your Past Life? — Playbuzz"
Os dez artigos mais populares no Facebook em 2014 

Thompson prossegue todo livro com imensas histórias, bem fundamentadas e com excelentes insights, percorrendo grande parte do mundo que nos rodeia: da música pop internacional criada pelos mestres da composição sueca; aos consultores de estatística que Hollywood emprega para pré-avaliar guiões; passando pela Disney, Seinfeld, Game of Thrones, Fifty Shades of Grey, Pokemon Go; ou ainda a loja Etsy a app Shazam, a Moda, os modelos de TV por cabo ou até mesmo os Vampiros Húngaros. Por outro lado, são tantas as abordagens e produtos laborados que torna impossível cumprir a promessa do título. No final não há ciência apenas muitas histórias, de qualquer forma, quem quiser pode aproveitar para extrair o melhor e refletir sobre o resto. Foi isso que tentei fazer nas seguintes linhas.

Hit Makers: The Science of Popularity in an Age of Distraction” (2017)

Depois de terminar o livro fiquei a pensar em tudo isto, a somar à leitura ideias que tenho lido aqui e ali e a questionar-me sobre o que isto tudo diz de nós, do modo como vivemos o mundo. Porque se existe algo com que me tenho debatido na última década é como definir a experiência humana. Para desenhar videojogos, ou qualquer outro artefacto, capaz de criar engajamento e estimular experiências em seres-humanos, precisamos de compreender como funciona a nossa percepção da experiência. Para isto existem múltiplas abordagens que nos permitem desconstruir a experiência, desde a filosofia — com a fenomenologia, o pragmatismo, etc. — à psicologia — com o cognitivismo, o behaviourismo, etc. Mas se todos estes quadros de conceitos nos permitem compreender, de modo organizado, como potencialmente a experiência decorre, nenhum destes nos permite compreender o porquê e isso é algo que sempre me tem atraído em toda a minha investigação.

Comecei então a questionar a base do que é Familiar, procurando perceber como é que algo se torna Familiar. O tal conceito MAYA já responde de certo modo quando desdobrado por Loewy: "Para vender algo surpreendente, torne-o familiar; e para vender algo familiar, torne-o surpreendente". O artefacto que se cria a partir do familiar, incluindo nele algo de novo, à medida que se repete no seio da sociedade torna esse algo novo em algo familiar. Podemos dizer que o MAYA funciona como um Cavalo de Tróia na criação do Novo Familiar. Por outro lado, podemos ter algo desconhecido, que não é familiar mas relevante (ex. Mona Lisa), que só pela surpresa, acaba por se tornar familiar (ex. a surpresa de dois roubos). Ou seja, a base da familiaridade pode ser reduzida a dois conceitos centrais: exposição e repetição.

Vejamos então o que sabemos sobre a exposição e a repetição, começando desde já por duas citações das mais repetidas na história recente:
"Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade." Joseph Goebbels
“Primeiro estranha-se, depois entranha-se.” Fernando Pessoa
Questionamos então se a experiência humana sendo particular e íntima, pode ser mesmo formatada pelo que a rodeia. Nada de novo questiono aqui, já que essa é uma realidade incontornável que conhecemos bem da educação das crias humanas. Os sabores apreciados em criança permanecem até à idade adulta, assim como a música ouvida pelos pais/irmãos influência os gostos dos filhos. Mas estes podem mais tarde voltar a ser influenciados, haja suficiente exposição e repetição. Invoquemos um caso extremo, o Síndrome de Estocolmo, que define um estado psicológico em que um sujeito submetido por tempo prolongado a intimidação constrói simpatia para com o agressor.

Repetição e exposição, e isolamento, desenvolve o gosto pelo agressor.

Um dos elementos base do nosso sistema perceptivo que concorre para que isto aconteça dá pelo nome de “confirmação de viés”, ou seja a tendência que temos para procurar e interpretar a informação de forma a confirmar as crenças que já detemos (ver a banda desenha The Backfire Effect). Isto acontece desde logo no mundo da política, no qual vários estudos dão conta da nossa aversão por ler as opiniões políticas contrárias. Ou ainda num outro estudo recente sobre a nossa percepção visual que dá conta do modo como mentalmente preferimos as representações do mundo que já detemos, e como a nossa percepção nos engana misturando o que conhecemos com o que realmente existe para vir ao encontro do que preferimos.

Ainda para reforçar esta ideia, na psicologia existe uma abordagem ao tratamento de fobias, que dá pelo nome de Exposição Terapêutica. Neste tratamento as pessoas são expostas ao objeto dos seus medos, em contextos seguros e aos poucos, de modo a conseguirem ganhar resistência. Ou seja, a fobia vai deixando de o ser porque o desconhecido se vai tornando conhecido, porque se repete a exposição, e assim termina sendo familiar. Uma espécie de engenharia reversa do síndrome de Estocolmo.

Deste modo pergunto-me, a experiência individual única existe ou é construída? E já agora, o gosto pessoal existe? Podemos pensar que um artefacto existe enquanto objeto detentor de qualidades intrínsecas capazes de afetar diretamente a individualidade do sujeito recetor? Ou antes não passa tudo de um grande processo de construção conjunta de significações, em que o que é familiar é aceite, é gostado, enquanto o que não é tem de primeiro de passar por um processo de aculturação, até entrar no nosso imaginário, até passar a fazer parte das nossas referências de gosto?

Kant já nos tinha afastado do artefacto. Para ele o belo não existe como propriedade do objecto, podendo apenas ser concebido na mente do recetor. Mas para Kant o belo é algo intrínseco ao recetor, é ele quem avalia, ajuiza, o valor da obra. Para Kant, o belo, ou juízo de belo, ou ainda o gostar, advém por meio de algo puro e desinteressado que conseguimos descortinar nos objetos. Ora aqui inclino-me para ir além disso, por todas as evidências expostas acima. O que define o belo, aquilo de que mais gosto, não está nem no objeto nem dentro de mim, mas surge da construção de uma relação entre o sujeito e o objeto, no tempo.

Mas não é isto mesmo que procuramos fazer com os cânones da arte? Criar listas de obras que inculquem na sociedade uma visão familiar de cada uma das artes. Criar o gosto! E isto não é um princípio que decorre apenas das elites, os cânones são produzidos em todos os níveis, desde a chamada alta à baixa cultura. Porque o cânone, tal como os artefactos não tem valor intrínseco, o cânone vale na medida do conjunto de seguidores que tiver, o que nos leva à assunção de que a Qualidade de uma obra é aquilo que cada Comunidade quiser. Porque o cânone cultural está na base da comunidade, já que serve de cola entre os indivíduos, proporcionando-lhes materiais para comungar, ou seja familiarizar pela familiaridade dos artefactos.

Ou seja, gostar não é um processo intrínseco. Porque haveria de o ser, desinteressado ou puro teria de se formar de algum modo. Mesmo olhando à genética que nos individualiza enquanto seres, não podemos descartar que esta nos é oferecida pelos nossos primeiros influenciadores, os nossos pais e avôs, que por sua vez foram influenciados pelos familiares e comunidades em que viveram. E que como vimos, por meio da exposição e repetição podemos continuar a transformar ao longo de todas as nossas vidas. No fundo, não passamos de algoritmos como diz Harari, o que é inevitável para quem quer que siga uma perspectiva científica da arte, por exemplo Duttoniana, nas antípodas das filosofias tradicionais da arte, por exemplo as de Hegel.

Assim, mais do que assumir o gosto como subjectivo, devemos assumir o gosto como colectivo e mutante. A experiência humana, aquela para a qual queremos desenhar, é antes de mais uma experiência de comunicação, um processo de colocação em comum. Não admira assim que Hollywood gaste hoje mais dinheiro na promoção de um filme do que na feitura do mesmo, ou seja na construção de familiarização com o filme. Mas podemos então dizer que mesmo um filme/livro "mau" pode ser enfiado pela goela abaixo dos consumidores? Não, não podemos, porque o processo de familiarização leva tempo, provavelmente um primeiro filme "mau" não conseguirá, mas muitos filmes "maus" em sucedâneo poderiam acabar por criar um interesse por mais filmes "maus". Existem claro formas de acelerar os processos de familiarização, mas isto levaria-nos a uma outra discussão, a dos discursos de persuasão social.

junho 02, 2017

A Peste (1947)

Camus é um dos autores que mais admiro, muito provavelmente por o ter lido na altura certa, a minha adolescência, e nessa fase me ter dedicado aos seus escritos existenciais. Até hoje continuo a preferir o seu mundo ao de Sartre, nomeadamente pela sua capacidade de distanciamento, simplicidade e inovação narrativa. Por isso não fez muito sentido ter esperado tanto para ler “A Peste” já que é a par com “O Estrangeiro” e “A Queda” uma das suas principais obras.


“A Peste” segue o estilo de Camus, que se constrói por meio de um alheamento das trivialidades do dia-a-dia criando cenários de isolamento, que podemos dizer reflete um certo contraste entre a vida na Argélia e em Paris. Em “A Peste” somos situados numa cidade desse país, somos confrontados com o surgimento de uma peste que vai colocar toda uma cidade em quarentena, dedicando-se o autor a relatar o que acontece nesse período de isolamento forçado, as questões e problemáticas que daí emanam no sentir de cada personagem. Temos assim uma alegoria criada para questionar a condição humana, bem ao estilo daquilo que Saramago nos viria a habituar, muitos anos depois.

Para se poder compreender a alegoria é inevitável situar a obra no tempo, 1947, ou seja, muitas são as interpretações que colocam o sistema Nazi no lugar da peste, e a quarentena como a retirada de liberdade imposta aos franceses depois da invasão. Mas podemos abrir mais a interpretação, e qualificar a alegoria como qualquer processo no qual ocorra a perda de direitos e liberdades. A vantagem desta alegoria, a peste, é a sua inexplicabilidade que acaba por libertar a discussão para se focar apenas no que acontece a quem vive sob essas condições. Ou seja, não interessam os porquês mas os comos, o que de certo modo vai ao encontro do estilo camusiano. Camus apresenta a condição de sobrevida ali como ausente de livre-arbítrio, condicionada pela inevitabilidade da doença que dita quem morre e quem vive, sem nunca dar de si qualquer sinal sobre porque está ali, porque chegou ou porque se vai.

Neste sentido, apesar deste livro ser apresentado como parte dos trabalhos de resistência de Camus, continuo a senti-lo como intimamente ligado à sua inspiração máxima, o existencialismo. A discussão de fundo anda à volta das nossas pretensas enquanto seres individuais e daquilo que objetivamos enquanto o mundo pouco disso se dá conta, circunscrevendo-nos, delimitando o alcance das nossas rédeas sobre as nossas vidas. Por outro lado, a alegoria acaba por nos encostar às evidências da necessidade dos outros, da solidariedade e cooperação, como o caminho menos árduo na luta contra a reduzida liberdade que é a constante da vida:

“Mas o que quer dizer isso, a peste? É a vida, nada mais.”

maio 23, 2017

Somos aquilo que criarmos

Zen Pencils volta a dar-nos mais uma prancha de banda desenhada fascinante e inspiradora, desta vez baseada num curto texto do pianista James Rhodes. Mas se a pequena história de Rhodes nos quer fazer acordar e dar força para darmos início ao ato pessoal de criar, a sua história pessoal agita-se por debaixo do texto com uma força quase sobre-humana. Rhodes foi abusado sexualmente, enquanto criança e durante anos, tendo ficado com sequelas físicas e psicológicas profundas, referindo a música como a sua tábua de salvação. O grande pianista que hoje James Rhodes é deve-o a uma formação auto-didata, desistiu da escola de música e durante 10 anos não quis tocar, até que regressou ao instrumento.

Durante 10 anos não quis saber do piano, trabalhou numa empresa que detestava até que: “Only when the pain of not doing it got greater than the imagined pain of doing it did I somehow find the balls to pursue what I really wanted and had been obsessed by since the age of seven – to be a concert pianist.

Nesta pequena história Rhodes coloca o dedo sobre as vidas diárias que criámos nesta nossa sociedade movida por objetivos de exteriorização das conquistas, secundarizando tudo aquilo que verdadeiramente nos move interiormente. Movidos por essas ânsias esquecemos o que somos, deixamo-nos zombificar, acabando por não colocar em prática nada daquilo que somos, limitando-nos a consumir aquilo que os outros são.

Não é fácil fugir a esta espiral de demência consumista que nos arrasta com uma força muito além da nossa vontade, é preciso parar, olhar à nossa volta, e ressignificar tudo aquilo que fazemos. Criar é a primeira condição porque existimos, muitos de nós conseguem grande parte disso pela procriação, mas isso diz apenas respeito à condição biológica. Aquilo que somos também está embebido em nós por meio de cultura, e desse modo, tal como para com a biologia, temos o dever de contribuir para com a Cultura.

Leiam a prancha "Is that not worth exploring?" e enquanto isso coloquem o vídeo abaixo como música de fundo.


maio 21, 2017

Realismo Duro

É poderosa a capacidade de Cristian Mungiu de colocar no ecrã as complexidades das vidas modernas, de a partir das suas superfícies de normalidade conseguir extrair interstícios das suas fragilidades. Algo que não pode ser estranho ao facto do filme ser dirigido mas também escrito pelo próprio, mas ainda mais ao facto de Mungiu ter pensado inicialmente seguir uma carreira como escritor em vez de cineasta, tendo começado por estudar literatura e só depois cinema. "Graduation" (2016) é um grande filme que podia ter sido um grande livro. Mungiu aborda a luta da família para suceder no meio de uma sociedade que exige competências e resultados aos seus filhos, tudo permeado pela fina linha que regula a moral entre a honestidade e o ‘danem-se todos os outros’, e por um país, a Roménia, que escapou ao comunismo e procura agora edificar-se numa nova filosofia de vida capitalista.




Mungiu não é nenhum novato, já nos deu os belíssimos “4 Months, 3 Weeks and 2 Days” (2007) e “Beyond the Hills” (2012). “Graduation” (2016) é um regresso ao contemporâneo urbano, do filme de 2007, ao desatar das teias sociais e dos sentires de cada ser individual em face das injustiças e das incapacidades de lidar com as mesmas. Mungiu apresenta-nos a história de uma família que lutou para dar o melhor à sua filha única, e chegados ao final do liceu vê como único caminho possível, numa Roménia degradada, mandá-la estudar para Inglaterra. O filme vai concentrar-se sobre o casal, os seus desejos e problemas, e o modo como a corrupção ainda contamina muitos dos meandros da sociedade romena. Contudo Mungiu não faz uma crítica de cima, Mungiu leva-nos para dentro dos problemas e obriga-nos a empatizar com os personagens, a sentir o que eles sentem, e a pensar no que faríamos no lugar deles, o que torna a experiência da obra densa e muito impactante.

Christina Mungiu na rodagem de "Graduation" dando indicações aos atores.

Em termos criativos, Mungiu consegue elevar a sua expressão por meio de um texto profundo, trabalhado muito bem pela montagem da obra nas suas intensidades, fazendo com que duas horas pareçam uma, e por uma direção de atores que assume uma naturalidade impressiva, tornando completamente real o texto. No campo mais plástico, a cinematografia apesar de naturalista é trabalhada com imenso cuidado, gratificando-nos com forte saturação, o que cria um contraste entre o deslavado comunista e o desejo do novo capitalista. Tudo isto é acompanhado por uma faixa de som na qual não existe música além da diegética (no carro e em casa), mas que está sempre carregada de sonoridades ambiente, como os telefones que tocam, as pessoas que conversam entre si, os carros, as portas, tudo mexe sonoramente, dando uma ideia de vida ativa e intensa, na qual temos de nos encontrar e trilhar as nossas difíceis escolhas. Impossível não pensar em Dardenne, Haneke ou Farhadi.

É melancólico, porque é profundamente humano, é verdade que existe vida para além dos problemas que se apresentam, porque em meio à tragédia existe sempre tempo e espaço para a comédia, mas o modo como termina o filme é bastante significativo, já que torna inevitável a comparação com o cinema americano, nomeadamente o modo como são tratados estes momentos de graduação, que nos questiona ainda mais sobre a diferença de mundos, de realidades e sentires. Por tudo isto, não admira que Mungiu tenha levado de Cannes o prémio para melhor realizador por este filme.

Trailer de "Graduation" (2016)

maio 19, 2017

Audiodrama animado

Uma curta de animação de estudante, realizada este ano, vem dar conta da capacidade e poder hipnótico da narração oral. Não fosse a ilustração e composição tão boas, e quase podíamos dizer que a componente visual servia apenas de suporte à voz e som, até porque no campo da animação temos apenas os mínimos.




"Winston" (2017) foi o trabalho de graduação de Aram Sarkisian na CalArts. O trabalho ainda não circulou em festivais, mas já recebeu o selo Staff Pick do Vimeo.

"Winston" (2017) de Aram Sarkisian

maio 17, 2017

A saga napolitana

Elena Ferrante desenvolveu uma forma particular de escrita assente em descrições simples mas viscerais do sentir feminino. Se serve o agarrar fácil do leitor pela emocionalidade, consegue a proeza de tocar em comportamentos e motivações que descrevem com particular acuidade os desejos do leitor feminino. Ou seja, mais do que a criação de universos de sentido, de lógicas e sistemas explicativos da realidade, Ferrante foca-se na instabilidade do relacional, nas fragilidades que sustentam as ligações humanas. Para acentuar esta focagem Ferrante cria um mundo em que tudo o que se diz é desdito logo a seguir, a obra constitui-se numa oscilação constante entre o desejo e a repulsa, tornando impossível a ligação empática com os personagens, apostando mais na gratificação pela visceralidade e voyeurismo.

A saga napolitana é um romance de Elena Ferrante, constituído em 4 volumes, editados em Itália entre 2011 e 2014.

A escrita de Ferrante não se faz de floreados nem rebuscados, é muito direta, muito assente no visível no imediato, são poucas as vezes em que se permite sair do concreto, criar abstrações do real e erudizar o discurso. Por outro lado, consegue ir ao fundo da psique feminina sem rodeios nem metáforas, descrevendo o interior da mente humana como quem descreve ações externas sem complexidade. E é deste modo que agarra o nosso sentido voyeurístico de querer saber o que vai dentro de cada um daqueles personagens. A esta forma, Ferrante junta uma estrutura clássica narrativa assente no mistério e suspense, que lhe serve para ir enredando o leitor, envolvendo-o na visceralidade das ações que o mantém focado continuamente na interrogação do que vai acontecer a seguir.

Se tudo funciona na perfeição em termos voyeurísticos e viscerais, não posso dizer o mesmo no campo empático. Ou seja, enquanto leitores queremos saber mais, queremos conhecer o interior e o exterior e chegar ao que se disse, ao que se pensou, ao que se sentiu, deixar-nos levar entretidos pela fluidez descritiva que nos agarra e praticamente sufoca. Contudo, as personagens e as suas relações, por um desejo de naturalismo procuram ser imperfeitas a ponto de se tornarem inconsequentes, impedindo o leitor de se colocar na pele dos personagens, de compreende-las antecipando o seu sentir. As personagens são próximas porque se nos abrem completamente, mas distantes porque não encaixam nos nossos modelos mentais do mundo.


**** A partir daqui surgirão potenciais SPOILERS ****

Em termos temáticos temos uma saga napolitana, a história de uma comunidade de famílias de um bairro pobre de uma das cidades mais pobres de Itália, Nápoles. Dividido em quatro livros, mas fundamentalmente em duas partes, com a primeira centrada num “coming of age” de duas amigas, que trilham caminhos distintos — uma segue até à universidade, enquanto a outra tem de começar a trabalhar a partir do final da escola primária. A primeira, Lenu, limita-se a seguir as regras societais, subjuga-se ao imediato na esperança de conseguir algo melhor no futuro, enquanto a segunda, Lila, se destaca pela força interior criativa dotada pela total insubmissão. Já na segunda parte, com as amigas adultas, o “coming of age” acaba por dar lugar aos romances, e os caminhos previamente trilhados pouco ou nenhum valor parecem ter, com a promiscuidade a assumir a centralidade das vidas narradas, pondo de lado qualquer progresso civilizacional.

Tive um choque quando se deu a transição de uma parte para a outra, fui-me abaixo, passei muitos dias a pensar na saga. Questionei-me muito sobre como pôde Ferrante ter escrito uma saga que se contradiz. Uma primeira parte completamente contrária, ideologicamente, a tudo o que nos diz na segunda parte. Ao longo dos quatro livros escrevi muitas ideias, copiei muitas frases, mas nada batia certo com nada. Cheguei a escrever sobre os fundamentos neoliberais na base do discurso apresentado, a elevação do ser individual acima do colectivo. A busca desenfreada pelo direito de ser feliz e o completo desrespeito pelo outro. Realizei comparações com a saga “Corre Coelho” (1960) de Updike. Mas no final acabei por chegar ao que disse acima, de que tudo em Ferrante é imperfeito, nada é previsível e muito é inconsequente, o que acaba por configurar o seu discurso numa certa apologia do niilismo, que fica bem patente numa descrição de Lenu no último livro a propósito de Nápoles:
“o sonho do progresso sem limites é na realidade um pesadelo cheio de desumanidade e de morte” volume IV, p.297
Sendo progressista convicto, acredito que podemos progredir como seres humanos infinitamente, propulsionados pelo conhecimento de nós próprios e da ciência. Acredito que um ser humano consciente é um ser humano mais livre, mas ser mais livre, não quer dizer fazer tudo o que lhe dá na gana. Ser livre através de uma consciência do mundo quer dizer conhecer os direitos e os deveres através dos limites do mundo físico, social e psicológico em que se vive. Conhecer até onde podemos exigir que o planeta se nos ofereça, que os outros se nos ofereçam, e nós próprios nos ofereçamos, e compreender o que nos é pedido em troca por essas ofertas. Por isso não me revejo no mundo de Ferrante, nomeadamente quando diz:
“talvez as coisas tenham de ser mesmo assim com os homens: viver algum tempo connosco, fazer-nos filhos e acabou. Se fossem superficiais como Nino, ir-se-iam embora sem sentir qualquer tipo de obrigação; se fossem sérios como Pietro, não faltariam a nenhum dos seus deveres e em caso de necessidade dariam o melhor de si. De qualquer modo, o tempo das fidelidades e das vidas em comum sólidas acabara, tanto para os homens como para as mulheres.” volume IV, p.347
Acredito na condição social como condição essencial da nossa espécie. Como questão de edificação cognitiva e emotiva, porque acredito que o condicionamento social fez algo mais importante por nós, permitiu-nos descobrir a razão e passar a domesticar a emoção. A espécie que hoje somos é capaz de refrear os seus instintos animais porque aprendeu que tem mais a ganhar com isso. Porque aprendeu que se pode ser muito melhor humano se se conseguir balancear entre o seu eu e o dos outros.

É verdade que tudo isto é pedir demais a quem saiu de um bairro pobre da Europa do Sul na primeira metade do século XX. Mas era sobre isto que Ferrante nos falava durante a primeira metade, mas que acaba por fazer desaparecer por completo na segunda metade. O que me leva a questionar sobre o porquê de uma “amiga genial”? Existe mesmo algum génio aqui? Ainda assim, e contra a ponta que a autora procura atar no final da história, acabo a sentir que só Lila poderia merecer esse rótulo.

Lila não seguiu a escola porque tinha dois pais que nunca acreditaram nela. Lila começou a trabalhar desde criança. Lila tinha uma veia criativa enorme, despontada pela sede de risco, mas nunca foi ouvida por ninguém, nem a professora quis saber do seu primeiro conto ”A Fada Azul”, nem o pai quis saber dos seus modelos inovadores de sapatos. Depois disso arranjou um marido que a violou no dia de núpcias, e continuou a violar durante muito tempo. Juntou-se a um galã irresponsável que lhe fez um filho e a abandonou. Perdeu uma primeira gravidez, e penou para levar a segunda até ao fim. Fugiu sozinha com o filho nos braços, encontrou finalmente alguém que a respeitasse, mas teve de se submeter a um trabalho e um patrão imundos para sobreviver. Voltou, engravidou de novo, para acabar por perder essa filha com 4 anos…

Comparado com isto, a vida de Lenu foi um mar de facilidades. E poderia ter sido fruto dos estudos de Lenu, mas não o é. Lenu consegue o que consegue por mera sorte. A professora que convence os pais e lhe compra os livros, e a amiga que está lá sempre para a apoiar. Todos os namorados que encontra no seu caminho lhe querem bem e a tratam bem, apesar dela nunca deles gostar. A sogra abre-lhe o caminho editorial e transforma o sonho em realidade, mas ela decide ir atrás da paixoneta de adolescente que vai espezinhar todos os valores que tinha conseguido edificar. Consegue emergir novamente graças a um romance reciclado. O pai das suas filhas mais velhas continuou sempre a tratá-la bem, e a tomar conta das filhas, fazendo com que estas fossem estudar para grandes escolas. Lila não trabalharia menos que Lenu, por várias vezes consegue despontar, atingir picos, mas existe sempre algo que a puxa para baixo. Lila teve direito a todos os azares, Lenu a todas as sortes.

No final de todas as contas realizadas, aquilo que Ferrante tinha para nos dizer, com as suas tão distintas duas partes da saga, com as suas tão distintas duas personagens, é que a vida é uma roleta de casino, que por mais que a queiramos pegar pelos cornos e domá-la, ela não se verga, não se dá. E por vezes temos sorte, outras vezes temos azar. E isto acaba sendo o meu real problema com esta saga, a sua resignação, o seu niilismo que derruba qualquer tentativa de criar empatia com as personagens, porque na verdade a autora parece nada ter para dizer. Não adianta estudar, não adianta procurar um homem/mulher, não adianta construir uma família, não adianta procurar o trabalho perfeito, não adianta educar os filhos, não adianta ir atrás de amores, não adianta criar amizades, nada adianta nada. Acaba por saber a pouco. A saga napolitana acaba por ser uma mão cheia de sonhos decepada.


Uma nota final. Na comparação com "Os Dias do Abandono" (2002) sobrelevam-se dois elementos: a autenticidade e a empatia. Os discursos em ambas as obras são muito próximos — primeira-pessoa e confessional — contudo "Os Dias..." é bastante mais puro, sente-se mais a carne e o frémito. No campo das ideias, a personagem de "Os Dias..." é também bastante mais consistente, e repare-se que o é sem perder todos os contornos de imperfeição naturalista. A saga napolitana é mais trabalhada, o número de personagens, as suas teias, os seus sentires, os seus anseios, o mundo em que vive, o cenário sócio-político, é tudo muito mais amplo, muito mais rico, mas também parece a esparsos momentos ser tudo menos autêntico, mais fabricado. Fico a pensar, até que ponto esta saga não perde por Ferrante ter dado um passo maior que a perna. Ou seja, Ferrante ao longo de 15 anos, de 1992 a 2006, escreveu apenas 3 novelas, que juntas se resumem a um livro, e depois, de um momento para o outro, resolve escrever 4 livros inteiros de uma assentada em apenas 4 anos, de 2011 a 2014. Pensando sobre tudo o que li dela, e sobre o modo como diz que gosta de escrever, com pouca edição o mais próximo possível da primeira versão escrita, que estes livros teriam ganho imenso com um apurado trabalho de edição realizado após a publicação dos 4 tomos. Existem demasiadas pontas contraditórias que impedem a obra de se mostrar completamente.

maio 13, 2017

"Louder than Words" (2015)

Puro fluxo de consciência fílmico. Joachim Trier a usar a câmara como Woolf usava a caneta, para nos levar ao encontro das memórias e pensamentos de múltiplos personagens que se cruzam entre as primeira e terceira pessoas, e nos dão a conhecer um mundo humano de ideias, sentimentos e perplexidades sobre a realidade que os rodeia e lhes dá vida. Podia quase dizer-se uma efabulação do ato de estar consciente de existir.




O filme centra-se sobre uma família americana da costa este, quase-europeia, que perdeu uma mãe, fotógrafa de guerra, imensamente reconhecida. O pai que ficou com dois filhos, um adulto e um outro na pior fase da adolescência. Passados alguns anos todos parecem atravessar bem as suas existências, contudo tudo é muito parte das fachadas de que cada um se serve para continuar o seu caminho.

Trier faz um trabalho impressionante no modo como escreve o desenrolar narrativo, já que apesar do fluxo permanente de trocas entre consciências e não-consciências, o arco dramático consegue emergir, progredir e intensificar-se ao longo de todo o filme, mantendo-nos completamente absorvidos e expectantes. Contribui para a dramatização o brilhante trabalho de Huppert, assim como Byrne e Eisenberg, ao que se junta, o score de Ola Fløttum e cinematografia de Jakob Ihre, que repetem ambos a colaboração com Trier.

Como disse acima, é um filme para quem gosta de procurar compreender porque pensamos como pensamos, o que nos torna indivíduos e o que nos torna parte de um todo, mas é também um filme que fará as delícias de todos os que se interessam pela arte da fotografia, do que ela representa e espelha do nosso existir.

Ver também:
Trier e a solidão da arte

abril 30, 2017

Por que não conseguimos parar de olhar para os nossos Smartphones?

Adam Alter é doutorado em psicologia social e é professor de Marketing na NYU, o que só por si já nos diz um pouco sobre aquilo que podemos esperar encontrar nas páginas do seu mais recente livro “Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked” (2017). Ou seja, um trabalho de análise social e psicológica sobre as mais recentes estratégias de marketing e de design, utilizadas pelas grandes empresas tecnológicas, para agarrar os seus consumidores e mantê-los entretidos a ponto de os tornar viciados nos seus produtos. É um livro que toca sobre vários assuntos centrais do meu trabalho em design de interação e design de jogos.


O livro inicia-se com uma alargada discussão sobre a conceito do vício, sobre o modo como surgiu na história, como ganhou carga pejorativa, e como mais recentemente se veio a dividir em dois grandes ramos: comportamental e baseado em drogas. Enquanto o vício baseado em drogas está completamente estabilizado e é descrito pelos manuais de diagnóstico da psiquiatria, o vício comportamental (behavioural addiction) é ainda visto ainda como a necessitar de mais estudos. Ainda assim a variante de jogos de azar a dinheiro (gambling) foi uma das primeiras categorias a entrar nos manuais, tendo nos anos mais recentes surgido algumas evidências que levam a considerar casos como o vício: na internet, em sexo, em pornografia, comida, exercício, compras, computadores ou videojogos.

Apesar da clara separação entre o uso de drogas e os comportamentos, Alter escreve de forma um apouco atabalhoada, acabando por a certa altura parecer estar a defender que são a mesma coisa, ou seja, que em termos de efeitos e problemas poderão conduzir às mesmas situações. Isto porque Alter defende aqui que o problema da viciação, a dependência, é antes de mais um problema de contexto e auto-determinação, e menos da droga, o que me levanta muitas dúvidas. Para reforçar esta ideia avança com uma ideia, baseada num medo, que eu também tinha quando era pequeno: “As a kid I was terrified of drugs, I had a recurring nightmare that someone would force me to take heroin and that I’d become addicted”. Ao dizer isto Alter acaba por dizer que tal nunca aconteceria, porque a heroína precisa de um contexto para se tornar um vício. Para tal dá o exemplo dos combatentes  do Vietname, altamente viciados em heroína e que facilmente abandonaram o vício ao chegar aos EUA, ou seja, pela drástica mudança de contexto. Contudo, isto está longe poder ser assim simplificado. Não conheço o caso da heroína, mas conheço de outras drogas mais recentes, que são capazes de produzir dependência independentemente da vontade dos sujeitos. Sendo verdade que as mudanças de ambiente, de contexto, contribuem imenso para atenuação destes seus efeitos.

O problema do texto de Alter é que está claramente à procura de audiências. Aliás, não é por acaso que abre o livro com a discussão, já esgotada, de que os criadores de tecnologias de Silicon Valley, focando-se sobre o icónico Steve Jobs, proíbem o uso das próprias tecnologias aos seus filhos. Alter chega mesmo a dizer, o que me parece de mau tom, que os criadores de tecnologias no que toca aos seus filhos seguem a máxima dos traficantes: “never get high on your own supply”. De mau gosto, não só por brincar com as pessoas identificadas, mas porque ao esticar as ideias desta forma, acaba por ultrapassar a fronteira entre o informativo e o alarme. Se muitos dos criadores de tecnologias não colocam os filhos nas escolas mais avançadas em tecnologia, não é com certeza pelo medo de que estes desenvolvam dependências, mas é antes, e aqui sim recorrendo ao seu conhecimento tecnológico, por saberem que as crianças aprendem muito mais efetivamente com outros seres humanos do que com qualquer tecnologia.

Contudo, não é do meu interesse alongar-me aqui sobre esta discussão, já que o que me levou à leitura deste livro foi o modo como o design produz engajamento. Para tal aceitarei a definição de que o vício comportamental consiste numa compulsão para se envolver em comportamentos gratificantes, de tipo repetitivo, não relacionados com drogas, deixando de lado as questões de definição de dependência. Com isto não estou a minorar os seus efeitos, eles podem ocorrer, contudo, e tal como se pode ver pelas reticências da comunidade psiquiátrica, estão longe de se poderem considerar universais. Por outro lado, a auto-determinação terá maior eficácia quando utilizada contra um vício comportamental, como o sexo ou os jogos, do que num caso de vício numa droga, como muitos dos antidepressivos que são hoje amplamente utilizados. Mais, se assim não fosse, teríamos de esquecer tudo aquilo que escreve Alter ao longo do seu livro, já que no final do livro, esquecendo e minorando grandemente os efeitos ou capacidades da tecnologia e sua viciação, apresenta o uso controlado da Gamificação como uma potencial forma de combate dessa viciação!

Apesar de tudo isto, não quero esquecer o trabalho de Alter, e por isso mesmo me alongo a falar dele, porque julgo que a parte central do seu contributo é válido, e esse sustenta-se nos padrões, encontrados por ele na análise das tecnologias, que têm servido as grandes empresas para nos manter focados (ou viciados) nos seus produtos. E é sobre esses que me deterei agora aqui, e que são no fundo aquilo porque vale imenso a pena ler este livro. Porque tenho de concordar quando Tristan Harris, um especialista em ética do design, diz que o problema não está na falta de força de vontade das pessoas mas no facto de “there are a thousand people on the other side of the screen whose job it is to break down the self-regulation you have.

Alter apresenta então seis padrões que definem no fundo seis grandes estratégias de design: 1 - Goals, 2 - Feedback, 3 - Progress, 4 - Escalation, 5 - Cliffhanger, 6 - Social Interaction. Para complementar este trabalho aconselho vivamente a leitura de “Contagious: Why Things Catch On” (2013) Jonah Berger, no qual Berger apresenta também seis padrões, no caso de potenciação de partilha online, mas que se aproximam bastante do que aqui se discute: Moeda Social, Gatilhos, Emoção, Público, Valor Prático, Histórias. Muito provavelmente, aqui ou noutro lado, procurarei em breve estabelecer paralelos entre os padrões de Alter e Berger. Vejamos então cada uma das estratégias encontradas por Alter:


Estratégia 1 - Goals / Metas
As metas são, provavelmente, o mais eficaz modo de garantir a motivação humana em termos extrínsecos, já que recorrem a um elemento constituinte da nossa biologia, o factor de competição. Ou seja, a primeira condição do estabelecimento de uma meta assenta na comparação com os outros. Somos seres profundamente sociais, e necessitamos constantemente de nos comparar aos demais, para compreender se somos seres humanos completos. Como tal, as metas não são meros indicadores abstratos, elas representam todos os outros, e no fundo o grupo desses outros em que nós nos encaixamos. O melhor exemplo disto é dado por Alter com a análise dos comportamentos de maratonistas não se regulam apenas pelo completar dos 42 km, mas utilizam como motivador para conseguir tal feito metas de tempos. No gráfico abaixo podemos ver como as metas de 3h, 3h30, ou 4h, são usadas massivamente pelas pessoas para terminar as suas corridas. Tendo tomado a decisão de correr a maratona e preparando-se para entrar nesse grupo, começa a preocupação com saber em que sub-grupo me incluo. As metas permitem assim aos corredores, quantificar e dosear o investimento, conseguindo perto das metas ir buscar energia em si próprios que já não acreditavam existir, mas que despoletado pela adrenalina do objetivo constituído pela meta consegue chegar lá. Isso explica porque no gráfico temos tantas pessoas a terminar imediatamente antes de cada intervalo, e tão poucos imediatamente a seguir.

Tempos agregados de milhares de corredores que correram os 42km da maratona

Este pequeno exemplo, quando aplicado às tecnologias sociais que nos rodeiam, e aos videojogos, rapidamente nos fazem lembrar miríades de aplicações. Se no passado as metas serviram ao ser-humano como fundamento de sobrevivência (subir uma montanha com a meta de encontrar comida ou um novo abrigo), hoje as metas são a coroa da sociedade capitalista, que ao puxar por essas raízes biológicas de obter mais e mais, acabou por criar a sociedade mais competitiva que alguma vez conhecemos, algo que foi radicalmente acentuado com o surgimento das Tecnologias de Informação, que permitiram a criação e desenho de métricas em absolutamente tudo aquilo que hoje fazemos. Repare-se no modo obtuso como se passou a quantificar o número de amigos através do Facebook, o número de seguidores através do Twitter, o número de gostos através do Instagram, o número de passos no pedómetro da Nike. A gamificação não inventou nada, apenas libertou e descomplexificou o mundo para aceitarmos que a tecnologia passasse a controlar a nossa biologia.

As Universidades hoje vivem para atingir Metas

Repare-se como as universidades passaram a viver obcecadas por Rankings, que dependem do números de artigos que cada investigador publica, colocando pressão na publicação apenas para atingir metas completamente artificiais. Não surge inovação, nem qualquer melhoria para a sociedade através do cumprimento destas metas. Isso já foi amplamente debatido e discutido, inclusive com vários experimentos. Contudo, sem qualquer consciência dos seus efeitos secundários, as administrações universitárias em conjunto com os administradores políticos, continuam a colocar toda a sua ênfase governativa nestes indicadores. A razão é simples, é muito mais fácil vender a ideia de que estamos a subir a montanha para encontrar uma ilusão no topo, do que vender a subida da montanha porque faz parte da nossa caminhada.

Deste modo, as metas tornaram-se na estratégia número do design de qualquer atividade. As metas produzem um efeito visceral nos seres-humanos, e por isso o simples explicitar da mesma é suficiente para garantir o interesse dos sujeitos e colocá-los no caminho da sua obtenção. Claro que as metas só se tornam efetivas quando complementadas pelos devidos quadros comparativos, aquilo que nos jogos chamamos de 'quadros de honra'. Por isso, e com a entrada da gamificação, criou-se uma estratégia de design, que ficou conhecida como PBL (Points, Badges and Leaderboards), que já eram usada nas escolas, mas passou a ser utilizada um pouco por todo o lado como fundamento de motivação.

O lado negativo das metas, e no fundo de todos os sistemas de métricas, é que não funcionam como motivação intrínseca. São meros despoletadores externos que desaparecem no momento em que desaparece a sua quantificação. Ninguém vai passar a correr mais por usar o quantificador de passos da Nike, já que apenas o fará enquanto o quantificador de passos estiver ativo. No momento em que desaparecer, desaparece a motivação do corredor. O que não é mau de todo, já que explica porque dizia acima que a capacidade de criar verdadeira viciação ou dependência é residual. Mas afeta, quando se acredita que para mudar culturas basta a simples introdução de métricas para o transformar das pessoas.


Estratégia 2 - Feedback / Reação
As lógicas de feedback não se distinguem muito das metas, já que estão intrinsecamente conectadas, no sentido em que elas dependem do estabelecimento de metas para ocorrer. Ou seja, o Facebook só me pode dar feedback de um novo pedido de amigo porque quantificamos os amigos, ou do surgimento de uma nova mensagem porque quantificamos o número de mensagens. Como tal, o feedback funciona como amplificador do objeto de meta. Mais ainda, quando os estudos demonstram, que psicologicamente somos muito mais afetados, ou seja recompensados emocionalmente, pelo facto de estarmos quase a atingir uma meta, do que pelo facto de a atingir. A razão é simples, o estar quase, implica ainda investimento emocional, enquanto o atingimento da meta, corta abruptamente as sensações dessa atividade.

Da próxima vez que abrirem a página do facebook no vosso computador ou telemóvel, reparem como o vosso coração palpita no aguardo pelo carregamento dos dados até que verificam que os balões vermelhos de notificações estão acesos. E como no caso de estarem sentem um alívio, a recompensa, que pode ser aumentada no caso de estar não apenas um balão, mais dois, ou mesmo três ligados (notificações+mensagens+novos pedidos de amizade). O feedback é talvez o elemento mais importante do Design de Interação. Ou seja, é o garante da organicidade do sistema, da sua capacidade de se dar a quem com ele interage. No fundo, porque são sistemas que simplesmente emulam a comunicação humana. Reparem como nos damos mal com alguém que falha o feedback; se dizemos algo, esperamos sempre reação do outro lado, quanto mais não seja, um grunhido, dando conta da recepção daquilo que dissemos.

Por outro lado, se as metas se energizam pela necessidade de competição, o feedback energiza-se pela necessidade de colaboração. O feedback garante que não estamos sozinhos, e é por isso que tantas tecnologias se têm esforçado por encontrar formas de estarmos constantemente a debitar feedback, e tanto estudo tem sido dedicado a tentar compreender os melhores tipos de feedback (Like vs. +1, Reações do Facebook). Tudo isto explica também o crescimento insano nos últimos anos dos sistemas de notificações. Aliás, por reconhecer este poder invisível dos sistemas de notificação, na maior parte das tecnologias que uso — do telemóvel ao computador — só permito notificações do meu calendário pessoal e do alarme do relógio. O meu telemóvel tem todos os serviços de push desligados, e todas as aplicações têm as notificações inativas. No computador igual, nenhuma aplicação social me pode enviar e-mails, ou apresentar feedback nos ecrãs fora do âmbito da própria aplicação.


Estratégia 3 - Progress/o
Tendo em conta que já vai bastante longo este texto, não me vou alongar tanto nos próximos padrões, pela simples razão de que não são propriamente uma novidade para quem vai acompanhado este blog. No caso do padrão de progresso já aqui foi discutido várias vezes, nomeadamente aquando da recensão do livro "The Progress Principle" (2011) de Teresa Amabile.

O progresso diz respeito ao recortar do caminho para a meta em etapas (por exemplo os capítulos de um livro). A ideia passa por criar metas intermédias que funcionam como feedback em relação à meta final, deste modo desenvolve-se no sujeito a sensação de progresso. Este progresso é assim responsável por conferir motivação para se manter no caminho através das recompensas despoletadas pelo antingimento das metas intermédias. Um exemplo dado por Alter que é excelente, é o do “Dollar Auction Game”, que vale a pena analisarem no pequeno video da National Geographic (abaixo).

O experimento “Dollar Auction”.

Como se percebe, este jogo demonstra muitos dos problemas criados pelas metas e feedbacks, e pela noção de progresso, e como podem ser usadas contra nós. Muitas das atuais apps sociais aproveitam-se de tudo isto, e alguns dos sistemas que mais têm tirado vantagem deste design são os jogos “free-to-play”, daí que no meio dos estudos de game design, se tenha começado a definir muitos destes jogos como jogos predadores. Ainda assim o jogo que mais efetivamente soube rentabilizar todas estas técnicas foi “World of Warcraft”, acima de tudo pela sua forte componente social, tendo-se tornado num dos jogos que mais pessoas obrigou a recorrer a centros de ajuda na luta contra a dependência. Ou seja, apesar de continuar a defender os videojogos como pouco capazes de criar dependências reais, o cenário muda de figura quando falamos de jogos online, principalmente jogos massivos online. Nesses casos, não temos apenas sistemas desenhados para engajar jogadores, temos os jogadores incluídos num sistema em que se influenciam uns aos outros, criando sistemas de pressão social que vão muito além daquilo que a tecnologia consegue fazer per se.


Estratégia 4 - Escalation / Escalar
Provavelmente se utilizar a palavra que é utilizada no mundo da Educação e dos Videojogos, Scaffolding, reconhecerão mais facilmente do que trata este padrão. A discussão deste ponto realizei-a já bastante em detalhe no artigo académico "Elementos do design de videojogos que fomentam o interesse dos jogadores".

De forma resumida, o scaffolding consiste no desenho de “andaimes” por forma a ajudar os sujeitos no processo de escalada. Ou seja, toda a atividade tem as suas dificuldades, contudo os seres-humanos são mais facilmente motivados para a sua realização, quando o nível de dificuldade está ao seu alcance. Deste modo, o design deve levar em conta as necessidades dos utilizadores, e providenciar ajuda, garantindo contudo que não torna tudo demasiado fácil. Isto foi primeiramente definido por Vygotsky num modelo que ficou conhecido por Zona Proximal de Desenvolvimento.

Ao desenhar as atividades por meio de andaimes, garante-se a criação de flow (uma área em que a satisfação é otimizada) criando-se o desejo nos sujeitos de permanecerem envolvidos com as criações indefinidamente.


Estratégia 5 - Cliffhanger / Ganchos
Neste ponto Alter vai evocar o efeito de Zeigarnik, assente na Gestalt, para desconstruir a magia do envolvimento com as narrativas, dedicando assim grande parte da sua discussão às séries televisivas. Este efeito diz-nos que as experiências incompletas nos envolvem mais do que as completas, algo que já aqui tinha falado a propósito do livro de Cialdini "Pre-Suasion" (2016). Ou seja, enquanto não atingimos a completude do sentido de uma história somos envolvidos por esta, deixando-nos levar pela tensão e suspense, até que a resolução se dê, tudo se explique, e a tensão desapareça.


Um gancho é na gíria do audiovisual um elemento narrativo que se apresenta para prender o espetador. Por exemplo, numa história surge uma mãe num supermercado que rouba um pacote de bolos para os filhos que esperam lá fora. A seguir passamos para os miúdos e enquanto a mãe não sai da loja, o espetador fica agarrado sem saber se ela será apanhada ou não, se ela conseguirá trazer a comida às crianças. Os ganchos são utilizados sempre que se fecha um episódio de uma série, por forma a manter o interesse do espetador em procurar o episódio seguinte para responder ao gancho que ficou aberto. No fundo, um gancho é um elemento narrativo que se abre mas não se fecha no imediato, impedindo as pessoas de se libertarem da história enquanto não souberem como se resolve o conflito aberto.

O efeito de "Closure" da Gestalt diz-nos que o nosso cérebro não consegue evitar dar sentido ao que vê, por isso procura fechar o que está aberto.

Neste padrão encontra-se o fundamento da recente descoberta, por parte de uma grande fatia da sociedade, do storytelling, que passou a ser visto como a arma número um para garantir o interesse das pessoas, dos colaboradores, dos alunos, dos pacientes, etc. etc. A quantidade de livros que saíram nos últimos anos a defender a aplicação dos princípios do storytelling a praticamente toda a atividade humana é impressionante. Nesse sentido, é natural que muitas das tecnologias que nos rodeiam, tenham de algum modo procurado aqui também alguma da sua força. Não foram apenas os videojogos que se obrigaram a incluir histórias até nos jogos de lutas, carros e futebol, foram ferramentas como o Instagram que passaram a incluir modos de história para a partilha de fotografias, assim como o surgimento de dezenas e dezenas de aplicações para ajudar as pessoas a contar histórias.


Os ganchos são profundamente viciantes e explicam como as séries de televisão se tornaram no produto audiovisual mais influente da era atual, fazendo com que empresas como a Netflix se tenham transformado em colossos multinacionais.


Estratégia 6 - Social Interaction / Interação Social
Não há muito a dizer sobre este tema, ou melhor há mas implicaria todo um artigo completo, já que é de todas, a estratégia mais complexa, no sentido em que não se resume a uma componente, mas antes enquadra toda uma área. Enquanto Alter na estratégia anterior elegeu dentro da Narrativa apenas os Ganchos, aqui optou por apresentar todo o domínio da interação social como parte do padrão. Sobre este mesmo tópico escrevi já bastante no artigo "Social interaction design in MMOs" (2014).

Assim o que está aqui em questão, em essência, é a web social, uma web na qual as aplicações já não existem sem uma camada de Interação Social. Ou seja, o Instagram nunca se teria tornado o monopólio da fotografia digital se não viesse integrado com uma rede social. O Bookings ou o Trip Advisor nunca se teriam tornado nos centros de marcação de hotéis e viagens sem a interação social dos seus utilizadores. Os jornais que não foram capazes de desenvolver as suas próprias redes sociais, viram-se obrigados a despejar os seus artigos no Facebook para que estes pudessem ganhar tração. Tendo o próprio Facebook assumindo proporções inimagináveis para um simples site de internet, possuindo neste momento nas suas base de dados, informação relativa a mais de mil milhões de utilizadores, ou seja mais do que os EUA, Europa e Brasil juntos.

A interação social toca em vários pontos daquilo que nos define como seres humanos, e é por isso que se tornou numa espécie de 'santo graal' do engajamento na internet. Um desses pontos é a necessidade de comparação com os outros, outro é de colaboração, outro é de partilha, outro de competição, outro de compreensão, no fundo tudo aquilo que nos define, e que podemos simplesmente ir buscar ao Interacionismo Simbólico de Mead, quando diz que nos definimos a partir do modo como interagimos com o outro. Ou seja, a interação social é tão fundamental para o ser humano como a comida, a água, ou o respirar, já que sem ela definhamos enquanto seres. Daí que não possamos admirar-nos com a quantidade de pessoas que admite passar tempo excessivo no Facebook, enquanto outros admitem mesmo não conseguir desligar.


No final do livro, Alter procura apresentar algumas ideias interessantes sobre como podemos aprender a lidar com tudo isto, ou sobre como as companhias poderiam rentabilizar as suas técnicas de design sem afetar tão intensamente os sujeitos. Mas não passam de um conjunto de dicas, que acredito que cada um poderá desenvolver melhor à medida que se for tornando mais e mais consciente das manipulações de que é alvo. O livro de Alter e o desvelar destas técnicas, é em si mesmo o melhor antídoto para lidar com tudo isto.


ADENDA, 4 maio 2017
Depois de algumas conversas a propósito deste texto, resolvi deixar aqui quatro notas que podem contribuir para o controlo dos efeitos do envolvimento com as tecnologias de comunicação. A primeira já a tinha aflorado no meio do texto como princípio.

1- Não permitir que sistemas, aplicações, ou sítios web notifiquem, bloquear ou desativar tudo. Sei que dá jeito, mas refletindo sobre os prós e contras, é muito mais nefasto que benéfico. Ou seja, eu não quero os outros a determinar quando é que eu devo ler, aceder ou fazer algo, quero ser eu a decidir, sou eu quem determina o meu tempo. O meu pensamento não pode ser capturado por outros, mesmo que tenham coisas importantes a dizer-me, porque cada interrupção contribui apenas para me retirar daquilo em que estou empenhado no momento. Considero todos os sistemas de notificações como profundamente invasivos, e por isso não os permito no meu espaço.

2 - Uso de ferramentas guilhotina. Tendo em conta o poder de atração de muitos sítios web, passei a utilizar a ferramenta SelfControl (existem muitas outras) que me permite desativar o acesso a uma lista de links criada por mim. Quando ativa, durante o período de tempo escolhido, todos esses sites ficam impossíveis de ser acedidos, mesmo que se apague a ferramenta. Uso-a de momento para vedar o acesso ao Facebook, Twitter, GoogleNews, GoodReads —mas posso ir adicionando o que quiser. Deste modo, o que estou a fazer é a criar uma barreira ao alimento da procrastinação que assenta muitas vezes na sedução criada pela informação infinita presente nestes sítios.

3 - Privilegiar o e-mail em detrimento do telemóvel. Ou seja, o e-mail é uma ferramenta de comunicação assíncrona, permite-me gerir o momento em que recebo e respondo, enquanto o telemóvel pela sua sincronia tende a atuar como as notificações, a invadir o meu espaço mesmo que eu não esteja naquele momento disposto a tal. Deste modo, o que faço é não atender muitas chamadas, na maior parte do tempo porque não tenho ativa a notificação sonora, mas muitas vezes porque não as quero atender naquele momento. Comunico posteriormente às pessoas que é preferível tentarem contactar-me por e-mail.

4 - Limitação das redes sociais no telemóvel. Não uso aplicações de redes sociais no telemóvel — Facebook, Twitter, GoodReads — a única excepção é o Instagram, porque apenas a uso no telemóvel. Deste modo reduzo o uso do sistema à gestão do meu tempo — telefone, e-mail, calendário, agenda e tarefas — e algum entretenimento.



Textos de interesse
How technology gets us hooked, um excerto do livro criado pelo próprio autor para o Guardian
Contagious: Why Things Catch On” (2013)  in Virtual Illusion
The Progress Principle (2011) in Virtual Illusion
Social interaction design in MMOs (2014) in Routledge
Elementos do design de videojogos que fomentam o interesse dos jogadores, in Educação, Sociedade & Culturas, n48
A Manipulação das Reações do Facebook, in IGN
Story-Game Design for Learning, in TicEduca 2014

abril 23, 2017

A Ciência não é Crença é Conhecimento

Sei que não devia partilhar o texto publicado pelo jornal Público, "Crença na Ciência", mas não o fazer não serve o propósito que me leva a escrever estas linhas. Não adianta esconder um texto a que qualquer um pode aceder, que ainda por cima lança ideias com que muitos comungam. É antes mais relevante dá-lo a conhecer e explicar porque está errado. Enquanto membro da comunidade científica é meu dever contribuir para a formação da sociedade, devo a esta o manter-me alerta e vigilante quando a mentira é apresentada como verdade. Se o jornal Público publica um texto carregado de falsidades sem qualquer contextualização, alerta ou filtragem, cabe-nos a nós fazer aquilo que o jornal, que já foi referência nacional, se coibiu de fazer.


Rui Devesa Ramos não é alguém que resolveu mandar uns bitaites, é Doutor em Psicologia, e como tal tem responsabilidades para com a comunidade que habita. Podemos questionar a obtenção do título, mas tendo-o obtido perante um júri reconhecido, interessa-me mais concentrar no que diz neste texto do que no modo como obteve o título.

Ramos começa por dizer que “Do ponto de vista antropológico a ciência nunca será mais do que uma crença civilizacional”, o que não está errado. A antropologia dedica-se ao estudo do homem, a compreender como se fez, de que se fez, e como continua a fazer. Deste ponto de vista, referir que a ciência é uma das grandes crenças da humanidade contemporânea nada tem de errado. A ciência é hoje o principal ideário das nossas ações, e por isso define grandemente aquilo em que acreditamos enquanto humanos. Mas a frase que se segue, e que acaba por dar mote a todo o restante texto, apesar de parecer ser do mesmo teor, é totalmente distinta:
“o que faz com que a ciência “funcione” deriva determinantemente da crença que temos nela” 
Isto não é verdade, é uma mentira atirada com areia, acima descrita, aos olhos de quem lê. A ciência não funciona porque se acredita nela, a ciência funciona porque a sua ação é observável e experienciada pelos membros da comunidade. A areia continua pelo resto do texto, porque Ramos dedica-se apenas ao tópico que lhe interessa atingir, a medicina, que como sabemos é uma das áreas que apesar de ter evoluído drasticamente, tem de lutar permanentemente contra as forças da natureza que se vão alterando com o tempo e atuação humanas. Ou seja, muitos dos cancros que hoje conhecemos não existiam há 100 anos, porque não existiam as comidas processadas que hoje comemos, nem tínhamos hábitos sedentários como hoje temos. Mas em contra-partida foi a medicina que eliminou a tuberculose que tantos milhares de nossos antepassados consumiu ao longo do século passado.

Não, não foi a crença que eliminou a Tuberculose, foi a ciência. Não foi a crença que eliminou a Peste Negra, a Rubéola, a Lepra, a Tosse Convulsa, a Difteria, o Raquitismo, a Poliomielite ou a Escarlatina. Foi a ciência, porque não é teoria, nem sequer mera ideia, é antes experimentação e validação de opções de tratamento. Sim, para encontrar o tratamento certo é preciso errar, errar muito, mas encontrado e validado, pode ser utilizado por todos os restantes membros da comunidade, de modo a que possam evitar ser acometidos pelos mesmos males. Sim a medicina não é uma religião, é uma ciência, e é por isso que não cura tudo, temos muito ainda para fazer — Sida, Cancro, Alzheimer, Parkinson, etc. Se bastasse acreditar, estas doenças também teriam sido já erradicadas, mas não chega acreditar. Não há crença que salve uma criança acometida de um cancro de leucemia, a ciência pode falhar, e falha muito, mas sem ela nem sequer de taxas de sucesso poderíamos falar.

Mas e saindo da área da medicina, será que a crença tem uma palavra mais importante a dizer que a ciência. Podemos dizer que um avião voa porque as pessoas que lá vão dentro acreditam no ato de voar? Podemos dizer que a televisão dá imagens, ou o frigorífico refrigera, porque as pessoas acreditam em algo que nem sequer sabem como funciona? Podemos dizer que quando aplicamos força sobre os pedais de uma bicicleta e as rodas desta se movem, tal acontece porque acreditamos nessa força?

O problema de Rui Ramos é querer atirar areia para os olhos de quem o lê. É usar conceitos abstratos, tais como crença e vontade individual, para definir conceitos concretos como ciência, mas obviamente que ao fazê-lo induz-se a si próprio em erro, como quando diz:
“Toda a crença emanada pela vontade individual é necessariamente boa, devendo, contudo, ser bem informada – vale mais que toda a ciência.” 
A crença pressupõe uma convicção, mas se é informada deixa de ser crença, porque passa a ser sustentada, e logo passa a valer o mesmo que ciência. Ou seja, acreditar que posso curar uma dor de dentes simplesmente eliminando a dor do meu pensamento, é uma convicção que resulta da falta de informação, e que quando aplicada faz com que a dor regresse sempre que o pensamento da dor se apresenta. A convicção individual não resolve o problema, e a realidade demonstra-o passado pouco tempo. Já acreditar que a dor passará depois de morto o nervo que alimenta o dente, é uma crença baseada em informação presente na comunidade, que efetivamente depois de experimentada faz a dor desaparecer. Mas não desaparece apenas para mim, desaparece para todos os humanos que se submetem a esse mesmo tratamento. Ou seja, a crença deixou de o ser, porque informada pela experiência da comunidade passou a ser conhecimento, que não se baseia em convicções mas em experimentações.

Por isso a crença não vale mais do que a ciência. A crença pode servir para nos conduzir a aceitar a ciência, pelo desconhecimento da sua complexidade, mas só o facto desta funcionar é que transforma a crença em conhecimento. Não acreditamos cegamente, acreditamos porque vemos funcionar. Não entramos num avião para voar porque acreditamos, mas porque conhecemos. Um conhecimento criado pela experiência da realidade do voo feito, do que vemos pela janela e pelo facto de em duas horas estarmos num ponto situado a dois mil quilómetros do ponto de partida. Do mesmo modo não tomamos uma vacina porque estamos convictos do seu efeito, tomamos porque tendo visto quem as tomou não sofrer de doenças que os nossos antepassados sofreram, acreditamos nesse conhecimento. A ciência não exige crença, a ciência exige experimentação.