setembro 11, 2015

“V8ORS – Flying Rat” (2015)

Os últimos dois anos têm sido muito felizes para a produção independente de videojogos nacionais, são imensos os trabalhos que têm surgido, não sendo já fácil acompanhar tudo e todos. Hoje trago aqui este novo jogo nacional, porque tive o prazer de acompanhar partes do seu desenvolvimento, o que de certo modo fez com que acabasse por lhe ganhar um carinho extra. "V80RS", ou aviadores, foi criado por uma pequena equipa de Aveiro, liderada por Deivis Tavares, mentor da ideia e responsável pela arte, uma das áreas em que jogo mais se destaca. Em poucos segundos, "V80RS" consegue despertar memórias nostálgicas de múltiplos jogos de arcada dos anos 1980 e garantir a nossa ânsia pela sensação de progressão.




Da oportunidade que tive de acompanhar o desenvolvimento fui agradavelmente surpreendido com a liderança e gestão do projecto realizada pelo Deivis que optou, desde o início, por uma abordagem bastante simples do shoot 'em up, e que apesar de ter uma arte bastante enriquecida que facilmente se prestaria a jogabilidades mais ricas e complexas, soube manter o controlo da ambição e o foco no projecto final. Deste modo “V8ORS” pode até parecer oferecer pouco para os dias que correm, mas se o faz não é por acaso, fruto de uma estratégia que assenta numa primeira fase free-to-play, que pode vir a ser ampliada dependendo da aceitação do público.

Na jogabilidade temos os elementos mais comuns do shoot 'em up muito bem balanceados, com a dificuldade que enfrentamos a progredir a bom ritmo, com a evolução em agressividade das naves a darem o mote do incremente de dificuldade, assim como os upgrades que a nossa nave pode ir ganhando a garantirem a possibilidade de nos mantermos em jogo. O jogo torna-se rapidamente viciante e aos poucos vamos percebendo que existe mais para oferecer além da superfície da jogabilidade, como as manobras que a nossa nave pode executar garantindo evasões mais eficazes. Por outro lado, a componente publicitária foi implementada de forma muito inteligente na manutenção da progressão, já que só tendo uma vida estamos sempre a recomeçar do zero a não ser que aceitemos ver um spot publicitário.





Voltando à arte, é ela que faz deste pequeno jogo algo distinto, uma espécie de pequena jóia que dá vontade de tocar e jogar, contribuindo fortemente para o sentimento que emana de toda experiência de jogo. A opção por tudo ser desenhado em 3d low-poly, mas dotado de excelentes contrastes de cor, fornece um tom peculiar ao ambiente de jogo, gerando um ambiente fresco, solto e leve, muito em contra-corrente com muito do que se vai vendo. Ainda dentro da arte, a componente de animação está muito bem conseguida, com a nave a sofrer latência na movimentação garantindo todo um realismo extra à nossa ação, assim como toda uma gratificação visual por via das manobras de evasão que podemos executar.

Vídeo do gameplay de "V80RS"

O pior, só mesmo estarmos limitados a jogar em Android, ficamos à espera da versão iOS. Podem seguir o jogo no Facebook, ou obter mais informações na sua página oficial.

setembro 10, 2015

Criatividade em remix no “Hell’s Club”

Antonio Maria Da Silva, provável lusodescente, residente em Paris, criou um trabalho brilhante de montagem e composição vídeo a partir de dezenas de sequências de diferentes filmes chave de Hollywood. O filme conta com quase 10 minutos, nos quais somos convidados a viajar até ao “Hell’s Club”, um clube ficcional criado por Antonio Maria Da Silva, por meio de uma edição e correcção de cor tão perfeitas que tudo parece ter sido verdadeiramente filmado para este filme.



A base do trabalho consiste num apanhado de sequências cinematográficas passadas em discotecas, retiradas de filmes como: “Star Wars", "Saturday Night Fever", "Hellraiser", "Scarface," "Carlito's Way", “The Terminator", "Matrix", “Trainspotting” "Pulp Fiction", "Robocop”, “Collateral Damage” entre outros. Com as sequências em mão o autor terá procurado uma linha condutora de acção e conflito, que acaba por resultar plenamente, ao contrário de muitos outros trabalhos de remix que se ficam pelas simples piadas ou fragmentos narrativos.

Para tornar credível todo o cenário de "Hell’s Club” foi necessário proceder a um enorme trabalho de correcção de cor, já que as luzes da discoteca de "The Matrix" são completamente distintas das de "Saturday Night Fever", e mesmo quando aproximadas, são-no apenas na nossas recordações, já que o clube de Tony Montana sendo filmado nos anos 1970 não tem qualquer afinidade com um clube filmado nos anos 2000, para parecer um futuro distante em "Star Wars Episode II: Attack of the Clones". Sobre tudo isto existe toda uma quantidade de pequenas composições internas nas imagens, com sequências de filmes a surgirem em reflexões de outras sequências, com personagens a surgirem em profundidade de campo, ou ainda no uso de sombras que simulam personagens que passam por outras que nos mantêm ali fixados, seduzidos, e crentes na existência do Hell's Club.



Se a edição de cor é o garante da unidade audiovisual, aquilo que verdadeiramente garante a cola narrativa de todo o filme é o trabalho de enorme minúcia realizado sobre o "gaze" (o olhar de cada personagem no enquadramento). Toda a história é construída com base nos olhares dos personagens de cada filme, com Antonio Maria Da Silva a trabalhar cirurgicamente o cruzamento constante de olhares entre os diferentes actores, indo mesmo além, quando coloca o mesmo actor mas em diferentes filmes, como que a olhar para si próprio, sem dúvida daqueles momentos que marcam qualquer trabalho na mente do espectadores.

"Hell's Club" (2015) de Antonio Maria da Silva

Analisando o canal YouTube de Antonio Maria Da Silva podemos verificar como tudo isto pode ser novo para nós, mas não é algo recente, nos seus trabalhos anteriores podemos notar que há vários anos que ele vem trabalhando a imaginação de conflitos cinematográficos por meio de remontagens e remisturas de filmes tais como Bruce Lee vs. Bruce Lee (2013), ou Terminator vs. Robocop (2010). Aliás, o seu canal Youtube revela-se interessantíssimo para compreendermos o processo evolutivo das suas competências de edição e composição audiovisual. São várias dezenas de vídeos, essencialmente mashups, que podemos aí encontrar, criados ao longo dos últimos sete anos, que funcionam como uma evidência clara de o talento resulta da prática, da persistência, da vontade de continuar a fazer mais, e sempre melhor.

setembro 09, 2015

O robô e a sua criadora

"NO-A" (2015) é o mais recente trabalho de animação e VFX de estudante a chegar a rede e a ganhar admiração unânime. Criado como trabalho de fim de curso, no Savannah College of Art and Design, por uma equipa de 8 alunos liderada por Liam Murphy, arrecadou desde logo, na própria SCAD, o prémio de melhor Animação de 2015.



Existem dois elementos em "NO-A" que o destacam do patamar do trabalho de estudante, a ilustração no tratamento dado às texturas, shaders e iluminação, e o controlo emocional narrativo. Vários planos denotam um perfeccionismo no modo como se compôs o detalhe da composição, em que cada cor parece ter sido alinhada com cada sombra, em que cada movimento parece pronto a surpreender e a deixar-nos a desejar por mais. Por outro lado, a montagem e a música, aliadas ao laço desenhado entre o robô e a menina, são capazes de agarrar as nossas emoções e colar-nos ao ecrã, fazendo-nos acreditar, suspender a descrença, e escapar para aquela irrealidade. Um pequeno filme que tão simples parece mas que está repleto de minúcia e paixão pela arte.

"NO-A" (2015) de Liam Murphy

"The world is a desolate, unforgiving place in this action sci-fi with a surprising amount of heart. We follow NO-A (Noah), as he attempts to rescue Aixa, the young woman that created him. In his desperate attempt to save her, he must face an unknown enemy force and fight to keep them both alive."

setembro 05, 2015

Síria: clima e geografia de um conflito

Trago um trabalho em banda desenhada, "Syria's Climate Conflict" (2014) que procura dar conta da origem dos conflitos na Síria a partir de uma perspectiva completamente distinta. Os conflitos na Síria têm alguns anos, e à primeira vista parecem ter emergido como efeito de contágio da Primavera Árabe, levantamentos populares iniciados na Tunísia e Egipto em 2011 que se alastraram a vários países do Norte de África e Médio Oriente. Outro elemento que surge como potencial motor do conflito, são as redes terroristas e os efeitos do ataque dos EUA ao Iraque e Afeganistão em 2001, que em vez de selar o problema terá contribuído ainda mais para tornar toda aquela região ainda mais instável.



O trabalho realizado pela jornalista Audrey Quinn e pela ilustradora Jackie Roche (do belíssimo "Underemployed") aponta num sentido completamente distinto, indo à causa inicial do despoletar dos problemas na Síria. É verdade que estamos tão cientes das versões explicativas acima enunciadas, que esta que aqui se apresenta à primeira vista mais parece uma desculpa, ou uma tentativa de limpar a imagem de alguma coisa. Talvez porque seja mais fácil ter rostos para culpar, porque procuramos explicações que possamos controlar. Mas aquilo que nos é aqui relatado não só faz muito sentido, como explica muitos dos problemas de toda aquela região.

Os problemas do Médio Oriente e Norte de África não são originados apenas pelas mudanças climáticas, embora também, mas fazem parte da própria região, tornando-a difícil de habitar, mais ainda de criar qualidade de vida que suporte o exponencial aumento populacional do último século. A geografia foi e continua a ser fundamental no suporte da vida humana à face do planeta, não aceitar isso faz parte da nossa incapacidade para nos resignarmos, por outro lado, compreender isso poderia servir para alterarmos todo um estado de coisas, não apenas dos regimes políticos e das populações, mas também da forma como aqueles que vivem em geografias privilegiadas, como é o caso da Europa. Para compreender o impacto da geografia sobre a resiliência da espécie humana, aconselho vivamente a leitura de "Guns, Germs, and Steel: The Fates of Human Societies" (1997) de Jared Diamond.

Seguir para "Syria's Climate Conflict" para ler a banda desenha completa online.

setembro 04, 2015

O que seria do cinema sem a literatura?

Esta semana escrevi para o IGN um texto a propósito do número alucinante de sequelas que se encontram em produção nos estúdios de Hollywood. A moda do seriado deixou de ser um exclusivo da televisão, o cinema rendeu-se totalmente aos seus encantos. Nesse sentido resolvi dissertar um pouco sobre o impacto deste fenómeno na criatividade e originalidade cinematográfica atual. Seria necessário "Blade Runner 2", por outro lado, todos esperam um "Prometheus 2", mas o que seria do cinema sem a literatura?

"Blade Runner" é baseado no livro "Do Androids Dream of Electric Sheep?" de Philip K. Dick

Aqui fica o texto completo, Novas sequelas e a obsessão pela originalidade.

agosto 31, 2015

“O Velho e o Mar” (1952)

Parábola do humano, ou significado do propósito e persistência. “O Velho e o Mar” procura ir à essência daquilo que nos define enquanto espécie, da verticalidade do que faz de nós uma das espécies mais arrojadas e completas deste planeta. Partindo da predação, Hemingway desenha um esboço da elevação das nossas faculdades, do como fomos para além da mera sobrevivência. Um livro curto para tão grande metáfora, ainda assim nada fica de fora, nada mais seria preciso dizer. Quando se toca a última página, o fechamento não está ali, porque o fechamento tem de ser construído pelo leitor, ainda que se requeira dele experiência de vida para o poder fazer.

“Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?”
Ler “O Velho e o Mar” é uma experiência particular, de profunda imersão num universo de isolação, perfeitamente tornado visual pelo virtuosismo da simplicidade da prosa de Hemingway. É-nos impossível escapar à solidão do alto mar, da acalmia e som das ondas, das aves que voam e os peixes que saltitam, é-nos impossível escapar a viver duas horas naquele barco com Santiago, sentir o cheiro a maresia, e ouvir a espuma das ondas bater no seu casco. Leia-se o pequeno excerto,
“Acordou com o sacão do seu punho direito contra a cara e a linha a arder-lhe a mão. Não sentia a mão esquerda mas travou quanto pôde com a direita, e a linha corria. Por fim, a mão esquerda encontrou a linha, e ele fez força com o corpo para trás, e agora queimava-lhe as costas e a mão esquerda, e esta suportava o esforço todo, que violentamente a cortava. Olhou para trás para os tambores de linha, que se desenrolavam com ligeireza. Nesse momento o peixe saltou, espadanando o oceano, e caiu pesadamente. Saltou mais uma e outra vez, e o barco deslizava rápido, apesar de a linha continuar a correr, e o velho ia elevando a tensão até à rotura, e elevando novamente e uma vez mais. Havia sido atirado contra a proa, tinha a cara no filete de ‘dorado’ e não podia mexer-se.” Da belíssima tradução de Jorge de Sena
Esta capacidade para tornar visual tem muito que ver com o detalhe, e esse só pode ser sorvido pela experiência, algo que Hemingway teve e de onde retirou muito daquilo que aqui podemos ler, enquanto dirigiu o seu barco, Pilar, pelas águas de Cuba. Assim, não fosse Hemingway tão visual e possivelmente não existiriam tantas adaptações desta história ao cinema, tanto na forma de longas como curtas de animação.

Dessas, a obra de Alexandr Petrov é sem dúvida alguma a de mais alto valor, atrevendo-me eu aqui a colocá-la ao nível da obra de Hemingway. Pode parecer heresia para alguns, mas graças à rede posso dar-vos a degustar aquilo de que vos falo no vídeo abaixo. São 19 minutos, escolham um tempo calmo e dediquem-lhe a vossa atenção, no final me dirão se me engano.

"The Old Man and the Sea" (1999) de Aleksandr Petrov

Se a obra de Hemingway recebeu o Pulitzer em 1953, e ele próprio foi galardoado com o Nobel em 1954, Petrov arrecadou quase todos os grandes prémios de cinema de animação entre 1999 e 2001, incluindo o nosso Cinanima, onde o vi pela primeira vez em 1999, e o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000. Petrov investiu dois anos e meio, juntamente com o seu filho, para criar os mais de 29 mil quadros, em óleo sobre vidro, que compõe os 19 minutos deste filme, fazendo do processo de criação deste filme, um hino ao significado da parábola da obra de Hemingway, com que abri este pequeno comentário ao livro.

agosto 26, 2015

A narrativa em “Mrs. Dalloway”

Virginia Woolf como muitos outros modernistas foi uma profunda estudiosa de arte, em particular da narrativa, não se limitando a estudar a mesma, publicando numerosos ensaios, mas procurando inovar aplicando o conhecimento granjeado. É deste modo que “Mrs. Dalloway” acabará por emergir como a sua primeira grande criação, em termos de inovação, marcando para sempre o mundo das letras. Woolf não inventou o “fluxo de consciência”, mas o modo como o trabalha permitiu-lhe criar o seu próprio estilo, e mais do que isso, fazer deste um quase-substituto da forma narrativa.


Woolf não se socorre do fluxo de consciência como estilística narrativa, ou seja, para ir dando conta dos objectos da história que nos conta, ela descarta por completo a forma regular de contar histórias, e em seu lugar usa exclusivamente o fluxo. Isto pode ser notado desde logo pelo facto de o livro não apresentar capítulos, sendo apresentado como um bloco único de texto, como se de um único jorro de ideias se tratasse, apresentado aos nossos olhos, como pensamento plasmado em estado bruto, sem tratamento ou filtragem, simplesmente o que é.

Em termos retóricos Woolf não procura narrar, nem sequer descrever, expor ou argumentar (as chamadas quatro formas básicas de comunicação), ela está claramente à procura de uma forma de transpor estas formas convencionadas de comunicação, como se ela na verdade não pretendesse expressar-se, mas antes e apenas, dar acesso ao seu pensamento interior. Em suma, o fluxo de Woolf mais parece emanado do não-consciente do que do consciente, não no sentido descritivo de sonho (conceito usado no passado), mas antes num sentido cognitivo, enquanto bloco de fiapos de ideias, ligadas por pequenos nós de familiaridade e proximidade, sem linearidade nem noção de todo, à qual a consciência (aqui o leitor) acede por meio da força de processos mentais de estruturação e associação que originam ligações entre mais nós, fazendo emergir um todo, e assim sentido.

Daí que uma análise exclusiva da obra, sem tomar em conta o trabalho do leitor, acuse um texto não-narrativo, sem eventos, nem sucessão dos mesmos, não originando qualquer arco dramático, no texto não se encontra fechamento nem mesmo propósito. Por outro lado, o modo como Woolf trabalha esta ausência de marcas narrativas, não é inocente, antes pelo contrário, imensas “pistas” vão sendo espalhadas no texto, de modo a contribuir para os processos associativos que o leitor precisa de desenvolver para assim reproduzir em si mesmo, o conjunto narrativo, o todo e o sentido.

Uma dessas estratégias assenta na polifonia de vozes de personagens, que parecem por vezes emanar diferentes perspectivas sobre um mesmo tema, que acabam gerando redundâncias, repetições e por sua vez familiaridade no leitor. Ou seja, mesmo que possamos ler todos aqueles personagens como existentes apenas no interior da mente de Woolf, como pensamentos seus nas vozes de personagens por si imaginadas, elas acabam por funcionar como âncoras do que se vai dizendo, fazendo de si mesmos os eventos, gerando sucessão e coerência, por forma a garantir ao leitor um acesso narrativo ao texto.

Tudo isto não seria o que é, não fosse o virtuosismo e lirismo da prosa de Woolf que nos garante todo um universo impressivo de sons e imagens, facilitando-nos, no meio do caos, a reconstrução dos seus mundos. O modo como escreve aproxima-nos, pede-nos para que toquemos as suas palavras, as sorvamos, e é isso que nos permite seguir atrás de si, apesar de toda a desconexão superficial do seu texto.

Em termos da obra de Woolf, considero que “Mrs. Dalloway” (1925) foi o seu primeiro grande experimento, e que como tal sofre de alguma imaturidade, excessiva desconexão, talvez em parte por ser uma obra reconstruída a partir da fusão de dois contos seus, mas essencialmente porque quando comparada com “Rumo ao Farol” (1927), a obra seguinte, podemos notar um amadurecimento de toda a técnica acima descrita. Em ambos os livros usa - o caminhar para algo - (a festa e o farol) para nos facilitar a linearização de ideias, com o desenvolvimento a cargo do - desenrolar de expectativas e antecipação. Mas o segundo caso resulta melhor, talvez por apresentar um número mais limitado de personagens, permitindo mais marcas de redundância, e também por termos um propósito refletido num espaço geográfico, o que em conjunto facilita a nossa apreensão do trabalho de Woolf.

agosto 21, 2015

"A Mancha Humana" (2000)

Em termos formais, a Mancha é pura tragédia, e por isso não adianta gritar contra Roth e a manipulação emocional, isso faz parte do género, está na essência do tecido de relações humanas recortado para nos ser contado. O que podemos analisar é como o faz, procurar perceber se se limita à exploração de sentimentos, ou se esses estão ali a serviço de algo maior e disso restam poucas dúvidas quando terminamos a leitura do último parágrafo. A "Mancha" é humana, a sua essência somos nós, e por meio da tragédia Roth leva-nos ao interior do nosso ser, desembaraça-nos dos despojos da vida em sociedade, dos seus medos, culpas e vergonhas e obriga-nos a refletir sobre aquilo que de nós resta.

A tradução de Fernanda Pinto Rodrigues para a Dom Quixote está soberba, ainda assim dos excertos que li em inglês, posso dizer que Roth é ainda mais entusiasmante no original.

Coleman Silk atingiu o pico da carreira, Reitor de uma universidade americana, a sua queda é o tema central da tragédia, focando-se Roth sobre aqueles que o vão acompanhar nessa descida, o amigo escritor Zuckerman (espécie de alter-ego de Roth), e o confronto entre o seu passado pré-universidade, o presente e o futuro. Este é o cenário de fundo que vai permitir a Roth explorar os mais intrincados comportamentos humanos, do poder ao racismo, da amizade à família, do amor ao ódio. Tudo isto pode ser visto no filme homónimo realizado por Robert Benton, que conta com nada menos do que Anthony Hopkins e Nicole Kidman, mas que apesar de nos poder dar a conhecer a história em toda a sua evidência, e sendo um bom filme, fica imensamente distante do livro.

Não se trata apenas do detalhe ou da diferença entre os diferentes média, a diferença aqui é evidenciada pela mestria de Roth no manejo da escrita. O modo como trabalhou o enredo, numa estrutura encapsulada e não-linear, para a qual criou personagens, não apenas soberbos e interessantes, mas que descreve de um modo profuso, intenso e extremamente íntimo. Com a não-linearidade a fazer brotar constantes descobertas, à medida que vamos lendo, e vamos compreendendo mais sobre cada um dos personagens. Roth não usa a deslinearização apenas como artifício para a participação do leitor, mas antes para enriquecer o que nos vai contando, de modo a levar-nos cada vez mais ao fundo de cada um dos envolvidos. A cada novo descamar do enredo, percebemos que não apenas saltamos no tempo, para frente ou para trás, mas que Roth como que abre um vortex por meio do qual nos leva a conhecer o interior do sentir de mais um daqueles personagens.
Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção.” (excerto de "A Mancha Humana")
"(..) nós deixamos uma mancha, deixamos um rasto, deixamos a nossa marca. Impureza, crueldade, mau trato, erro, excremento, sémen. Não há outra maneira de estar aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nem com graça, ou salvação, ou redenção. Está em todos. Sopro interior. Inerente. Determinante. A mancha que existe antes da sua marca. Sem o sinal de que está lá. A mancha que é tão intrínseca que não precisa de uma marca. A mancha que precede a desobediência, que engloba a desobediência e confunde toda e qualquer explicação e compreensão. É por isso que toda a purificação é uma anedota. É uma anedota básica, ainda por cima. A fantasia da pureza é aterradora. É demencial." (excerto de "A Mancha Humana")
De algumas análises que li, nomeadamente na comparação da alegada “Trilogia Americana” de Roth, na qual a “Pastoral Americana” (1997) seria o primeiro volume, “Casei-me com um Comunista” (1998), o segundo, e “A Mancha Humana” (2000) o terceiro, parece ser consensual, apesar da “Pastoral” ter ganho o Pulitzer, que a “Mancha” é o pináculo, não apenas da trilogia, mas da obra de Roth. Provavelmente por ser aqui que vai mais longe na análise das pessoas, centrando-se nos efeitos das convenções sociais que as amarram e domesticam, e menos nas componentes políticas de cada um dos momentos representados.

Por outro lado, e ao contrário do que por vezes já disse aqui no blog, a quantidade de trabalho criado por Roth não lhe foi saindo como repetição, mais do mesmo, mas antes como aprimoramento da sua mestria, com esta a evoluir continuamente ao longo da sua carreira. Roth tinha 70 anos quando escreveu a “Mancha” e isso nota-se, muito do que aqui se diz, não era possível de ser pensado por alguém com 30 ou 40 anos, é preciso experiência de vida, viver, sofrer, acertar e errar. A sua escrita foi assim tornando-se mais intensa, entrosada, e íntima, sendo responsável por muito daquilo em que se transforma a experiência das suas tragédias narradas.

Para fechar, quero deixar um excerto de uma passagem, na qual Roth usa uma referência a um andamento de Mahler, que descreve de modo belíssimo, e aproveitando a particularidade multimédia do blog deixo a música, esperando assim proporcionar um momento especial a quem desejar realizar a leitura enquanto ouve:

Mahler, Symphony No 3, por Claudio Abbado
O percurso a pé para o cemitério, a três quarteirões de distância, foi em grande parte memorável pelo facto de, aparentemente, não ter acontecido. Num momento estávamos paralisados pela infinita vulnerabilidade do adágio de Mahler, por aquela simplicidade que não é artifício, que não é uma estratégia, que quase parece desenrolar-se com o ritmo acumulado da vida e com toda a relutância da vida em terminar… num momento estávamos paralisados por aquela rara justaposição de grandiosidade e intimidade que começa na serena, cantante e contida intensidade das cordas e depois sobe, em vagas, pelo pesado falso final que conduz ao verdadeiro, ao prolongado, ao magnífico final… num momento estávamos paralisados pelo crescendo, pela subida, pela culminância e pela acalmia de uma orgia elegíaca que se espraia, espraia, a um ritmo determinado que nunca muda, recuando para logo voltar como uma dor ou um anseio que não desaparecem… num momento estávamos, levados pela insistência crescente de Mahler…” excerto de "A Mancha Humana"

agosto 20, 2015

Do sucessor de "Ready Player One"

Esta semana escrevi para o IGN a análise do novo livro de Ernest Cline, "Armada" (2015). Como tenho dito, a escrita de Cline não é nada de especial, contudo os seus livros não passam despercebidos, nem nos deixam indiferentes. Diria que os mesmos estão para a literatura, como os doces conventuais estão para a comida, são absolutamente deliciosos mas não alimentam, e em excesso podem fazer mal!


Fica a ligação para a análise: "'Armada', a elite dos Geeks"