"Filho Nativo" (1940) é um clássico da literatura americana, um dos primeiros livros a colocar o dedo na ferida do racismo nos EUA. À altura, Richard Wright vivia sob a sedução do marxismo, que lhe serviria aqui para colocar em evidência a opressão dos valores identitários. Pouco depois haveria de abandonar a militância do comunismo por esta se recusar a sair da redoma restrita da luta de classes. Tudo isto é trabalhado segundo uma estética noir que não se coíbe de usar imagens de grande violência, a roçar o verdadeiro horror, trabalhada por uma trama repleta de surpresa capaz de envolver os mais diversos públicos. A mais recente adaptação ao cinema de 2019, por Rashid Johnson para a HBO, procura atualizar alguns dos tópicos em face da evolução da sociedade americana, mas sendo interessante diria que é menos conseguida, particularmente porque Wright impregna toda a sua escrita de uma raiva fervilhante que o filme é incapaz de atingir.
O livro tem sido amplamente discutido na academia e fora dela, nomeadamente com James Baldwin a dedicar-lhe vários ensaios no livro "Notes of a Native Son" (1955). Não aprofundei a interpretação do livro, deixei-me levar pela trama, e procurei compreender as motivações de Wright, que entretanto escreveu um ensaio de 30 páginas (publicado nesta edição) para discutir o que está por detrás da história, mas diria que não entrega muito mais. O livro é bastante direto, naturalmente exige um transporte no tempo aos EUA dos anos 1920-1940, a compreensão da história entre o Norte e Sul, e claro do modo como se desenvolveu o esclavagismo no continente americano a partir das rotas atlânticas criadas por comerciantes portugueses e britânicos entre 1500 e 1800. Wright opta por focar-se sobre a psicologia negra, sobre o modo como o capitalismo esclavagista não apenas contribuiu para torturar milhões de seres humanos, mas como essa tortura se prolongou muito para além desse tempo, criando um estigma que torna impossível a qualquer negro uma efetiva Realização Pessoal.
Comparando com outro clássico, "O Homem Invisível" (1952) de Ralph Ellison, diria que Wright é mais bruto, sem pudores. Ellison carrega o seu mundo de grande poética, com particular atenção à descrição de cada cena e de cada personagem. Wright foca-se no que quer dizer e compõe os quadros para esse objetivo, sem floreios. Repare-se como Ellison opta por evocar a transparência, ou seja, o modo como os negros eram votados a uma inviabilidade social, enquanto Wright é muito mais enfático, mesmo violento, frisando a impossibilidade dessa transparência. Para Wright a cor da pele é tão presente que impossibilita a passagem pela berma, assumindo assim que a sociedade branca veda quaisquer hipóteses de afirmação da individualidade humana da pessoa negra.
O contraste entre as duas obras é fundamentalmente evidenciado pelas personagens principais. O protagonista de Ellisson apresenta-se como o negro bem comportado, inteligente, imensamente capaz, mas que a sociedade branca não consegue deixar de intimidar. Já Bigger de Wright, é todo o contrário, já que Wright quis que ele fosse exatamente aquilo que a sociedade branca dizia que todos os negros eram. Wright é frontal, não dá espaço para quaisquer atenuadores, coloca em cena um personagem cheio de problemas e vícios, mas que não deixa de ser uma pessoa, como qualquer outra, humana e pensante. Deste modo, Wright tira todas as desculpas do caminho e obriga-nos a refletir sobre o jovem de raça negra como se se tratasse de qualquer outro jovem.
Tudo isto torna-se mais relevante porque o modo como Wright entrosa a mensagem com a forma, produz um texto particular, com uma escrita trespassada pela raiva e revolta interiorizada pela cultura negra, suportada por um estilo direto, quase básico, mas pleno de significado. Por outro lado, a sua colagem à política acaba por fazer perder alguns pontos, uma vez que nos obriga a separar o discurso de Wright do discurso ideológico de um partido, e aqui o filme de 2019 ganha ao erradicar toda essa componente.
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