novembro 12, 2019

O Diabo, Pôncio e o Gato

Adoro clássicos russos, são um dos marcos do estado corrente civilizacional, responsáveis não apenas pelo avanço da arte mas também por vários avanços societais pelo modo como os seus autores foram expondo e criticando a sociedade e seus avanços. Bulgakov não pertence à primeira geração, séc. XIX — Tolstói, Dostoiévski, Pushkin, Turgueniev, Tchékov, Gogol — mas antes a uma segunda, séc. XX — junto com Nabokov ou Soljenítsin — marcada pela ditadura soviética. Se Nabokov optou por virar as costas à Rússia, outros como Bulgakov e Soljenítsin nunca desistiram de tentar fazer-se ouvir dentro do seu próprio país. Bulgakov não foi perseguido, nem preso como Soljenítsin, teve a sorte de cair na graça do ditador que lhe permitiu sobreviver com um mero emprego de assistente num teatro da capital, contudo raramente viu aprovadas as suas obras pela censura do estado, e passou os últimos anos de vida sem nada publicar, relegando esse trabalho à sua mulher, que viria a acontecer apenas duas décadas depois da sua morte. “A Margarita e o Mestre” (1967) é uma espécie de viagem ao mundo de um criador impedido de criar, é uma espécie de portal para uma realidade alternativa criada pela mente de alguém a quem foi dito que tinha de se manter calado. O livro ganha assim, desde logo, uma aura tremenda, impossível de classificar, porque não é mero livro, mas antes documento, um legado expressivo que nos explica como vive um ser sensível e criativo num mundo em que não é livre de externalizar as suas ideias.

O trio louco, protagonistas do “A Margarita e o Mestre”

A história é simples, apesar do enredo duplo — o Diabo chega a Moscovo e desencadeia uma série de eventos loucos, enquanto noutro tempo, Pôncio Pilatos enfrenta o encontro e a crucificação de Jesus. Os personagens oferecem-se imediatamente às mais mirabolantes interpretações dada a sua força simbólica. Contudo, do que me foi dado a ler, e da minha experiência de leitura, a importância da obra assenta mais no contraste entre o deslumbrante mundo criativo do romance e o desmoralizante mundo cinzento da realidade soviética da época. O mundo criativo é trabalhado por meio da sátira, que é um género que pouco me cativa. Ainda assim posso dizer que a primeira parte é deliciosa, dado que o non sense surge como a resposta mais aceitável à insanidade do regime político de Estaline. Os problemas para mim surgem na segunda-parte, porque esperava que o non sense fosse dando lugar a cada vez mais sentido, mas tal nunca chega a acontecer. O livro é non sense do início ao final. Bulgakov dá rédea livre à criatividade, divaga e deambula sem fim. Pode-se ler, ou interpretar, aqui e ali, partes conectadas com a sua realidade, com o tratamento dado pelos colegas de profissão, pelo estado, pela sociedade russa, mas dificilmente se pode dizer que Bulgakov estava interessado na crítica contundente ou na produção de ataques contra os opressores da liberdade. Talvez Bulgakov tenha optado por limar excessivamente o seu trabalho, realizando auto-censura, mas não creio, dado o imenso non sense que prospera ao longo de toda a obra.

Um bom resumo visual do livro feito pelo TED.Ed

Se aqui e ali se lê que o Diabo seria Estaline, tal não tem qualquer sustentabilidade, e em parte esse foi um dos meus erros na experiência de leitura, o tentar ler ou forçar a identificação de significados. Por isso no final senti um certo amargar da experiência, porque não consegui chegar a uma chave descodificadora do universo apresentado. E não adianta ler muito mais à volta da obra na sua senda, porque essa chave não existe. “A Margarita e o Mestre” mais do que uma sátira, é um universo de fantasia e acima de tudo o resultado de um processo de externalização da força de uma imaginação oprimida.

2 comentários:

  1. Não tenho palavras para o quanto adoro este livro. É maravilhoso vê-lo apreciado.

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