outubro 27, 2021

Pátria ou tapeçaria humana

"Pátria" de Fernando Aramburu é um trabalho impressionante, não tanto pelo seu tema, os efeitos da ETA na sociedade Basca, mas mais pela forma escultural oferecida ao texto que consegue transpor um mundo tremendamente fluído e veloz de oralidade e pensamento para o discurso escrito. Para este efeito contribuem duas grandes abordagens: a variação de voz, entre primeira e terceira-pessoa, que acontece a todo e qualquer momento, dando conta da relação entre os pensamentos interior e público dos personagens; e a variação temporal, presente e múltiplos passados, com o discurso a variar no tempo em função de cada personagem, podendo ser 30 ou 5 anos ou meses, obrigando o leitor a ir atrás, contextualizando, mas contribuindo para a ideia de uma tapeçaria humana que se forma a partir de tiras de vidas. Tendo em conta este labor de Aramburu, e tendo eu acedido à versão portuguesa e espanhola, tenho de dizer que em Português se perde muito do seu efeito. 

“Aprisionada en un cuerpo inerte. Una mente cautiva en una armadura de carne. En eso se había transformado. Y se acordaba con pena de sus hijos y pensaba en su trabajo, en qué le diría a la dueña, fíjate qué bobada, cuando volviese, si es que volvía. Qué mala suerte. A mis cuarenta y cuatro años. Tuvo un pensamiento que luego le ha venido muchas veces: quizá habría sido preferible morir. Al menos los difuntos no dan, no damos, trabajo.”

O cenário é circunscrito, com Aramburu a situar a trama no País Basco, pouco antes do anúncio de fim da luta armada por parte da ETA, em 2011. O núcleo dramático é constituído por duas famílias, em lados opostos, uma vítima, com um pai de família assassinado pela organização, a outra, como seio de um filho terrorista. Se temos muito emocionalidade, inevitável numa história destas, nem por isso ela é explorada nos modos esperados, de análise direta do sofrimento dos que ficam, ou dos que veem os filhos ou irmãos serem desencaminhados. O cenário simples, e a trama aparentemente também simples, oferecem um conjunto de personagens imensamente mais complexos. Ninguém ali tem certezas absolutas de nada. Ninguém é muito bom, nem o pai que parte, mas também ninguém é completamente mau, nem o principal terrorista. Aramburu cria um oceano de sentires verdadeiramente humanos, que nos fazem ir atrás, tentando ver como vivem, como convivem, como o faziam antes, durante e agora, e como se projetam a si mesmos naquele lugar e num tempo futuro. 

Com esta abordagem o que aprendi de mais concreto foi que a ETA, mais do que um grupo de terror organizado, era um grupo suportado por franjas sociais que se alimentavam de crenças nacionalistas e valores tribais. Talvez tão enraizada como o amor pela igreja, e apoiada por esta, mas não muito distinta em termos de captação de pessoas, grupos e comunidades. As razões que levam a que se suporte ou ataque a organização não são claras, existem personagens intensos na sua defesa e ataque, mas o sentimento que transpira é de algum alheamento. A ETA está sempre no fundo do cenário das vidas das pessoas da região, mas não controla as vidas dessas pessoas, a não ser quando entra pela casa adentro, por meio da criação de novas vítimas ou terroristas. Ou seja, a ETA não representava o País Basco, não tendo passado de um grupo de ativos que procurou por todos os meios tornar-se a si mesmo representativo.

Um último ponto, muito interessante, e que vi analisado tanto como pró e contra, é a força e determinação das mulheres. Não conhecendo suficientemente a sociedade Basca, mas associando-a mais a um sentir do norte Ibérico, creio que não andará muito longe da realidade. Os homens são mais fortes fisicamente, e procuram controlar tudo e todos, mas no final são as mulheres, pela sua força psicológica quem acaba a ter os papéis mais determinantes nas relações sociais dentro da comunidade.


Publicado no GoodReads.

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