Tenho pouco a acrescentar às imensas leituras que já foram feitas de “Se Isto é um Homem” (1947). Já Primo Levi, e Viktor Frankl em “Em Busca de Sentido” (1946), diziam ambos nada terem para acrescentar ao horror já conhecido dos campos de extermínio Nazi, mas isso não era verdade. As suas palavras foram importantes, e tenderão a ser cada vez mais importantes. À medida que vamos avançando no tempo, a tendência será para esquecer, como se vai vendo (ex. relato de viagem à Polónia de um grupo de judeus americanos em 2017). Estas obras devem figurar como leitura obrigatória, nem que seja parcial, nas escolas de toda a Europa.
Frankl e Levi escreveram as primeiras memórias publicadas de Auschwitz, com tons totalmente diferentes. Não por um ser austríaco e outro italiano, mas por um ser psicólogo e o outro engenheiro químico. O modo como olham o mundo, os detalhes em que se fixam, que analisam e escolhem discutir vai de encontro aos modos epistemológicos com que avaliam o real. Frankl, é só humano, só emoção e sentimento, tentativa de compreender a si e aos outros. Levi, é só estrutura, só análise e detalhe, tentativa de dar conta do funcionamento do sistema que regulava os campos internamente. Diferentes, mas imensamente relevantes, porque se complementam completamente.
Já li e vi muita coisa sobre os campos de concentração, mas ao ler Levi, percebi que ainda não tinha compreendido nada sobre a realidade dos campos de concentração Nazi, e mesmo sobre a governação Nazi. Pode parecer fastidioso o detalhe apresentado — sobre as regras, os hábitos, rotinas, afazeres, limitações, diferenças, imposições, condições, repetições, esperas, etc. — mas é esse mesmo detalhe que nos faz entrar pelo campo adentro e vê-lo, senti-lo como ele foi. Não porque me interesse senti-lo, mas porque esta descrição de Levi me mostra de forma efetiva a “Máquina” e o “Método” alemães. Neste registo não se fala dos fornos, nem das câmaras de gás, fala-se do funcionamento específico de um campo de concentração, do seu dia-a-dia, das divisórias sociais internas e da organização sistemática de tudo.
Aquilo que distingue o Holocausto de outros genocídios é o método. Nunca antes, nem depois, o ser humano construiu uma tal “máquina” de matar, e isso só foi possível pela força do método imposto ao estado, governo e militares. A ideia de raça pura e perfeita terá servido para conduzir os governantes alemães à obsessão com o método, tudo em busca da organização perfeita, impermeável a falhas, impermeável ao acaso e ao orgânico. Tudo era controlado, tudo era repetidamente controlado, para que nada falhasse. A organização era feita por humanos, mas de humano nada existia ali, apenas máquina, apenas sistema salvaguardado com redundância para eliminar o erro. Perfeitamente implementado, uma transposição perfeita do papel para o terreno. Insanamente perfeita.
Existia ainda um outro factor, responsável pela elevação da “máquina” a níveis de matança inauditos, o Ódio. Levi disse mais tarde, quando compararam a sua obra com o “Arquipélago Gulag” de Solzhenitsyn, que este se diferenciava do Lager de Auschwitz pela percentagem de mortos, 30% contra 90-98%. Esta diferença deve à máquina montada, sem dúvida, mas essa precisava de ser alimentada para chegar a estas percentagens, e a única forma de o fazer foi pelo ódio. Era preciso manter todos os envolvidos na estrutura motivados, com objetivos claros e concretos, com sensação de progresso e de contributo para o bem dos seus. Para tal todas as diferenças fisiológicas e culturais foram usadas como armas de lavagem cerebral — pelo cinema, jornais, livros, panfletos, às mãos de um dos mais maquiavélicos Ministros da Propaganda de sempre, Goebbels — para gerar o mais profundo Ódio aos judeus. Criou-se na mente dos militares e cidadãos a visão de estarem acima na escala social, e de os outros nem sequer pertencerem a tal escala. Por isso, havia um trabalho a fazer, e cada um precisava de dar o seu melhor para o levar até ao Final...
agosto 28, 2019
agosto 26, 2019
Como Começou a Linguagem: a História da Maior Invenção da Humanidade
Começar por dizer que não sou de Linguística, embora trabalhe no domínio da Comunicação que opera alguns níveis acima na relação com o humano, e por isso possui relação com o conhecimento produzido pela linguística. Dizer que tendemos a conhecer mais Chomsky pelo seu ativismo político do que propriamente pelos seus contributos científicos. No entanto, tendo em conta a envergadura do seu reconhecimento é sempre complicado defender posições antagónicas, contudo, é isso que Daniel L. Everett faz neste livro, “How Language Began: The Story of Humanity's Greatest Invention” (2017). Everett doutorou-se com uma tese em linguística, baseada no seu trabalho de campo com tribos da Amazónia nos anos 1970, um trabalho que continuou sempre a evoluir e lhe permitiu chegar a esta afirmação que surpreende muitos linguistas: “Eu nego aqui que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego também que seja inata”.
Sendo um livro sobre a génese da linguagem humana, precisamos de partir da base comum e aceite pela generalidade dos académicos linguistas, sobre o modo como criamos linguagem e que na área dá pela designação de “Gramática Generativa” ou “Gramática Universal”. Esta designação foi criada por Chomsky nos anos 1960 e pretendia identificar um conjunto de regras base de organização mental que permitiriam o surgimento e desenvolvimento da linguagem. Chomsky e colegas determinaram que esta organização terá surgido há cerca de 50 mil anos, tendo alterado completamente o nosso desenvolvimento cognitivo e social, distinguindo-nos dos animais. Deste modo, Chomsky afirma existir uma linguagem universal inata, que mais tarde Fodor e Pinker denominariam de “linguagem do pensamento” ou “mentalese”. Confesso que a primeira vez que li sobre esta teorização não me atraiu. O meu treino em comunicação faz-me trabalhar a realidade do humano como algo altamente variável culturalmente (o que é amplamente suportado por evidências empíricas), daí que aceitar a hipótese da existência de uma espécie de código universal a este nível, imbuído em todos de forma igual, me pareceu sempre extemporâneo.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
Ora o que Everett faz neste livro é exatamente desmontar essa ideia de linguagem universal. Como disse, não é o primeiro, basta fazer uma pesquisa no Google Scholar para encontrar estudos e artigos em oposição. O meu primeiro choque surgiu com a leitura de "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012) no qual Bergen apresenta a Hipótese da Simulação Corpórea com a qual sinto grande afinidade (não vou aqui detalhar, basta seguir o link para a discussão do livro). Mas talvez o maior choque, e só agora ao ler Everett me apercebi de tal, tenha sido com o livro de Tomasello “Origins of Human Communication” (2008), no qual o autor realiza um trabalho brilhante demonstrando o surgimento da comunicação a partir do gesto. Ou seja, a comunicação assente na expressão corporal, e na relação sistémica com o outro, e não a partir de um qualquer sistema inato interno.
Everett pega exatamente na questão dos gestos e na questão da comunicação, para demonstrar a origem evolucionária e socio-cultural da linguagem (apesar de só no final do livro sugerir a leitura de Tomasello). Não é muito difícil perceber esta posição se compreendermos a espécie-humana como formação de atores sociais altamente interdependentes. Ou seja, a linguagem, como muito daquilo que faz de nós pessoas, e não meros humanos, é emanada dessas relações, alterando-se a cada interação. Não é a universalidade que garante que comecemos a falar igual a outros sempre que passamos mais tempo com eles (ex. quando convivemos muito tempo com grupos com traços fonéticos ou dialecticais marcados, rapidamente os assumimos). Por outro lado, para além de nunca se ter detectado qualquer módulo responsável pela linguagem, nem tão pouco qualquer gene, é no mínimo estranho que a ser uma formação inata, não tenham sido também detectados até hoje nem anomalias congénitas nem qualquer hereditariedade dessas entre gerações. Aliás, nos trabalhos que têm vindo a ser desenvolvidos no campo da genética, (ver "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" (2018)) fala-se de traços físicos e psicológicos, vai-se ao nível da personalidade que condiciona a nossa emocionalidade, mas não vi até ao momento qualquer estudo que incluísse uma variável de linguagem. Se realmente fôssemos dotados de um qualquer módulo, por mínimo que fosse, ele teria de estar contido em qualquer parte da nossa informação genética.
Mas Everett faz um trabalho muito mais minucioso, não se fica por uma argumentação de variáveis. O facto de ter trabalhado mais de 30 anos com tribos isoladas, permitiu-lhe chegar a sistemas linguísticos não contaminados culturalmente, e encontrar diferenças relevantes. No caso da tribo Pirahã, a principal descoberta tem que ver com a ausência de recursividade, demonstrando a impossibilidade de um módulo universal. A leitura sobre a cultura da tribo é extremamente interessante, podem aceder a um pouco da mesma na página Wikipedia. A questão da ausência de recursividade é fundamental na gramática universal, porque é ela que permite a auto-sustentabilidade linguística, que por sua vez garante criatividade, evolução e claro, progresso cognitivo. Evertt, ao encontrar esta tribo sem acesso a tal modo, mas capaz de linguagem e conversação, desenvolveu toda uma nova abordagem à linguagem assente na cognição semiótica de Peirce — no seu triângulo de significação: Index, Ícone e Símbolo. Deste modo, a comunicação existiria muito antes de existir recursividade, e a linguagem faria apenas parte da comunicação como um todo.
Voltando à questão da interação social, base da grande teoria de Bandura sobre a aprendizagem, existe um vídeo na TED que coloca a nu este mesmo processo. No experimento Ded Roy montou câmaras por toda a casa que captaram todos os momentos em que o seu filho acabado de nascer expressou palavras, e conseguiu deste modo captar a progressão da criação da linguagem e o modo como ela é moldada pela interação social, no caso com os pais. É um experimento impressionante, que vale a pena ver, ou rever. O bebé começa por emitir sons básicos, mas ao apontar para o que quer expressar, recebe o feedback dos pais, que replicam com a palavra correta. Deste modo a criança aprende que se quer aquele elemento, e se apontar não chega, precisa de dizer a palavra de modo a que os outros a compreendam. Ou seja, a criança não nasce com a capacidade de linguagem, mas antes com a capacidade de aprendizagem e modulação dos sons que produz. A nossa capacidade de aprender, permite-nos refinar tudo aquilo que fazemos por meio da interação e feedback com o real.
"O Nascimento de uma Palavra" (2011) de Deb Roy
Um outro ponto altamente problemático da teoria de Chomsky é a pragmática da comunicação, e que só pode ser ignorada por quem se foca exclusivamente na lógica matemática do social. Se a linguagem humana é sustentada numa sintaxe inata, de onde surge a semântica e a pragmática? Porque repare-se que a sintaxe nada vale para o ser humano sem semântica, e de nada serve na comunicação sem pragmática. E podemos ir mais fundo, como é que poderíamos defender a existência de um mentalese sem a existência de qualquer quadro de referência de significado. Ou seja, a que corresponde cada signo da mentalese, como é que o sistema atribui valor aos signos?
Claro que também tenho problemas com a proposta de Everett, nomeadamente com a sua proposta de que a linguagem terá começado há mais de 1 milhão de anos. A razão é simples, as evidências que temos de evolução da espécie em termos cognitivos, nomeadamente por meio de registos materiais — principalmente escultura e pintura — datam de há apenas 200 mill a 40 mil anos. Ou seja, algo aconteceu com a nossa espécie nessa altura para que esta tivesse começado a expressar e a criar. E repare-se que a linguagem é o primeiro ato criativo, já que depende da constante mescla e associação de palavras, e claro das ideias. Neste sentido, poderia dar-se razão a Chomsky. Pode ter acontecido uma mutação cognitiva no humano que o conduziu à produção de sintaxe, a mescla de sons e formação de palavras, que por sua vez tenhamos conseguido operar de forma mais evoluída pela semântica e pragmática.
A Caverna de Altamira, Espanha, apresenta algumas das primeiras pinturas humanas, tendo sido datadas com 30 mil anos.
Ainda assim, Everett toca num ponto que coloca em oposição e que me é particularmente caro, a conversação. Everett sugere que a evolução terá ocorrido a partir desta e não da gramática, o que para mim faz pleno sentido. A conversação é o sistema cognitivo social mais evoluído que alguma vez desenvolvemos. Não se trata da mera produção de sons, ou encadeamento e mescla de sons, mas envolve toda a nossa capacidade cognitiva — incluindo memória, percepção, atenção, aprendizagem, raciocínio, empatia, etc. Mas tal não invalida que algo aconteceu há 50 mil anos, e aqui discordo de Everett que defende que não houve qualquer alteração que foi tudo apenas resultado da mera progressão. É verdade que Everett sustenta no caso empírico da tribo Pirahã, que é uma tribo que vive apenas no presente, para quem não existe passado nem futuro, não produzem registos, nem possuem identificadores de número. Para Everett os Pirahã demonstram que se pode estar num estado anterior e ser dotado de linguagem, ou seja, sem qualquer salto cognitivo ou mutação. Mas também podemos questionar-nos se não é esta tribo uma anomalia, já que tal não foi encontrado em mais nenhum outra comunidade.
Pareço dar o dito pelo não dito, mas a grande questão, olhando às propostas de Everett e Chomsky, prende-se com uma diferença de ênfase. Ou seja, Chomsky tem razão sobre algo ter acontecido no nosso aparelho cognitivo, da ordem da linguagem ou outra qualquer. Tal como Everett tem razão ao dizer que não existe qualquer linguagem universal do pensamento, ou módulo cerebral. Podemos pensar então que existe algo que predispõe a espécie humana à linguagem, algo que surgiu apenas nos últimos 100 a 200 mil anos, não sabendo nós explicar o quê, nem como sucedeu. Na verdade, nada disso nos deve surpreender, a linguagem faz parte da nossa capacidade de produzir consciência, que ainda hoje temos dificuldade em definir, para não falar em compreender como terá surgido, ou sequer como se forma.
Atualização: 27 agosto 2019
Em 2009, numa entrevista com o Folha de S. Paulo, Chomsky dizia sobre Everett: "Ele virou um charlatão puro, embora costumasse ser um bom linguista descritivo. É por isso que, até onde eu sei, todos os linguistas sérios que trabalham com línguas brasileiras ignoram-no". Esta reação é ridícula, porque passa a ideia de que Everett é o único cientista que não acredita na Gramática Universal de Chomsky. Deixo um artigo de Evans e Levinson sobre os Mitos das Linguagens Universais.
agosto 25, 2019
O Doente Inglês (1992)
Li-o há duas semanas, e não foi só por estar de férias e sem computador que não escrevi sobre ele, foi também porque a impressão que deixou não era clara. Clara, no sentido de poder ser traduzida em palavras. Escrevi quando o terminei — “Imensamente sensorial...” — e continuo sentindo-o como tal. Ondaatje apresenta não só um vocabulário rico como uma prosa elaborada e poética. Existe uma história, entre várias histórias por cada uma das personagens, cada uma carrega consigo as suas morais, cada uma toca-nos à sua maneira, permitindo-nos ler o livro a partir de múltiplas perspectivas de sentido, daí a minha dificuldade em verbalizar uma ideia central única. Espero no entanto ver emergir essa ideia nas linhas seguintes...
Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.
Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.
À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.
Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997
Vi o filme quando saiu, não era de todo o meu tipo de filme, e surpreendentemente adorei, talvez porque no meio da expectável fórmula de Hollywood tenha visto algo mais, algo que já nessa altura não consegui verbalizar, mas que senti como diferente de anteriores obras de grande aura pedestalizada pelos Oscars. Nos Oscars estava a torcer por “Fargo” e “Shine”, mas nunca senti que tivesse sido um erro perder-se para o Paciente, diga-se que Geoffrey Rush ("Shine") levou o melhor actor e Frances McDormand ("Fargo") a melhor atriz. O Paciente tinha algo não só de épico, mas também de incompreensível e contraditório. As múltiplas personagens, distintas e opostas, puxavam em cada direção, e na fragmentação ofereciam unidade, que os atores suportavam muito bem, mas acima de tudo a direção e cinematografia levavam para níveis de transcendência. Não num sentido místico, mas de belo, de pura beleza formal, que tudo envolvia e a tudo garantia sentido. Um pouco como quando colamos uma música sobre uma foto ou um vídeo sem som e tudo parece magicamente fluir, assim senti o filme de Anthony Minghella, o deserto quente parecia transmigrar por entre as imagens captadas.
Quando comecei a ler o livro, passados 23 anos sobre o visionamento do filme, esse mesmo calor do deserto, amarelo torrado, denso e a perder de vista, ressurgiu. O paciente na sua cama, Juliette Binoche sempre a seu lado, e Kristin Scott Thomas nos sonhos do passado do paciente. A estrutura narrativa usa o espaço do improvisado e abandonado hospital na Toscânia, para a partir dos personagens viajar geograficamente até ao Norte de África, Canada, a Segunda Guerra e Hiroshima, num verdadeiro vai-e-vem temporal, a partir do que vamos ficando a conhecer cada uma das personagens, os seus passados, os seus valores e morais. A narrativa deslinearizada vai emergindo da densa malha de factos que se vão solidificando para simultaneamente darem conta da enorme condição de fragilidade de todos. Os personagens que chegam a atingir um ponto de equilíbrio, visto por nós a partir da compreensão do seu passado e assunção da sua presença real, ali naquele lugar e naquele tempo presente, começam a dissolver-se, a perder força, e a desagregar-se, abandonando o lugar e as pessoas, parecendo emocionalmente seguir o rumo da aproximação do fim da Guerra, que apesar de caminhar para a vitória terminaria profundamente negra.
À superfície temos um triângulo amoroso e as consequências funestas para todos os envolvidos, mas isso é apenas o suporte humano daquilo que Ondaatje quer contar, ou melhor criar. Porque na verdade, e daí a minha dificuldade em verbalizar, Ondaatje não quer mesmo contar, ele quer fazer sentir. E faz sentir, porque usa todos aqueles personagens, os do triângulo e todos os que o envolvem, com os seus passados, ligações e missões de vida e dá-lhes forma por meio de um texto que se assume como ele próprio também personagem, porque é ele que todos liga, e é dele que obtemos respostas às nossas perguntas, mas essas respostas nunca são diretas, nem tão pouco completas, porque as respostas de Ondaatje não são textuais mas antes texturais. Porque as personagens não contribuem com respostas cabais, antes aceitam apenas alargar a nossa compreensão do que estamos a ler, alargando o sentido do artefacto, oferecendo-lhe textura por via do espaço viajado e comportamento desfiado. Se no final fica imenso por responder, nem por isso sentimos que não atingimos o final, porque o final daquele espaço-tempo foi sentido, e aquelas personagens, cada uma à sua maneira, ficaram em nós.
Se não temos respostas, se é difícil verbalizar o que nos dá o livro, se se sente mais do que se reflete, nem por isso nos deixa de questionar, e um dos momentos altos que só com esta idade poderia compreender, chegou com a frase abaixo que poderia servir de definição do existencialismo da meia-idade:
“Quando somos jovens não nos vemos ao espelho. Fazemo-lo quando chegamos a velhos, quando nos preocupamos com o nosso nome, com a nossa lenda, com o significado que as nossas vidas terão para o futuro. Envaidecemo-nos dos nomes que usamos, da nossa pretensão a termos sido os primeiros olhos, o exército mais forte, o mercador mais astuto. É depois de velho que Narciso quer uma imagem gravada de si próprio.” (p.151)
Edição lida: Círculo de Leitores, capa dura, 1997
agosto 17, 2019
"Recursion" (2019)
Em 2016 li "Dark Matter" (2016) de Blake Crouch, pouco depois de ver a sua primeira temporada de “Wayward Pines” que tinha adorado. Adorei "Dark Matter" não sendo dono de nenhuma escrita memorável, nem personagens muito estruturados, gostei pelo tema e o tratamento arrojado do mesmo, nomeadamente pela mescla do thriller e ciência. Quando percebi que Crouch tinha novo livro, e sobre memória, quis lê-lo imediatamente, queria voltar a sentir um page-turner, ainda mais em pleno verão. Assim que terminei o primeiro capítulo fiquei fascinado, "memórias falsas", ainda por cima tinha acabado de ler "Memory Illusion (2016)". Mas à medida que fui entrando no livro, a admiração foi-se desvanecendo, aquilo que eu pensava ser a premissa, afinal não o era, e Crouch metia os pés pelas mãos a cada novo twist narrativo. A meio do livro já só me apetecia jogá-lo pela janela fora, sentia que Crouch estava literalmente a gozar com os leitores, esperando que estes acreditassem nas suas mais fantasiosas teorias. Não quero ler um livro para sentir adrenalina de fugas, bombas e explosões, quero que a especulação científica tenha sustentabilidade e não seja mera decoração. Aqui a ciência torna-se uma palhaçada e interessa apenas o thriller, o espetacular, e um romance forçado de meia-tigela. Como cereja, tresandava a fórmula, a estrutura não se tinha movido uma linha da apresentada em "Dark Matter", e a cultura geral que preenche o mundo do livro continuava mundana, com os cenários construídos com base em meia-dúzia de blockbusters cinematográficos. Tudo muito fraco, conseguiu mesmo ultrapassar a minha anterior leitura ("Sleeping Giants" (2016)) em falta de densidade. Mas falar mal sem explicar porquê, é também mau, por isso deixo algumas das ideias que me incomodaram, avisando para o spoiling.
Criar uma máquina do tempo que funciona por meio de memórias humanas vívidas, que permite viajar até essas memórias, como se elas fossem bolhas de realidade compacta autónomas, mas nessa viagem, que acontece no tempo, não transporta apenas essa pessoa, mas transporta também as memórias do momento de todas as pessoas do planeta!!! Criar uma máquina do tempo que por mais saltos temporais que faça, mantém todas as pessoas sempre na mesma linha temporal, independentemente de quem está a viajar nas suas memórias!!! A história não tem qualquer suporte lógico, isto não é especulação científica, isto é mera brincadeira com ideias sobre as quais o autor denota uma total falta de conhecimento.
O livro começa com um ponto fundamental das ciências cognitivas — as memórias falsas — tendo tudo para ser uma história fantástica. Mas Crouch claramente percebeu que arriscava uma história pouco original, não faltam histórias a trabalhar memória no domínio da FC, nomeadamente Philip K. Dick ou Ursula K. LeGuin, muitos o têm feito, melhor ou pior. Por isso Crouch quis superar tudo e todos, para o fazer não deu qualquer rédea ao brincar com ideias, o que é bom se a seguir for trabalhado e delimitado, é preciso olhar para o resultado criativo da brincadeira e perceber se faz sentido, se vale a pena dar azo aos devaneios. Repare-se no rídiculo de conceitos elencados, Crouch abre o livro com o tema das Memórias Falsas, a seguir passa para o tratamento do Alzheimer, daí segue para a Máquina do Tempo, depois segue para os Multiversos Quânticos, acabando por chegar aos Buracos Negros para acabar por dizer que não sabe como é que a máquina do tempo (ficcional mas inventada por si para escrever um livro inteiro) funciona, colocando a personagem principal, a "maior cientista do planeta", a dizer que provavelmente “nunca o poderemos saber”!!!
Quanto à caracterização dos personagens, repare-se no tratamento feito: a personagem principal volta 30 anos atrás, até aos seus 16 anos de idade, 6 ou 7 vezes seguidas, ou seja, vive na pele mais de 150 anos repetidos — vai à escola, entra na universidade, faz exames, doutoramentos, namorados, lidar com pais, empregos, doenças etc. — mas essas vezes todas são passadas num parágrafo, como se fosse uma simples ida ao cinema à noite!!!! E como se isso não bastasse, chegado ao momento em que voltou atrás no tempo, ou seja em que iniciou a viagem voltando atrás, todas as pessoas à sua volta, sentem que a realidade se alterou, num espaço de momentos recebem o impacto de décadas e passam a conhecer outra vida inteira sem nunca a terem vivido, ao que se junta, muitas delas reviverem o impacto de uma suposta morte noutra linha temporal!!!!
O livro é uma autêntica fraude em termos cognitivos. Pegou em várias teorias, principalmente da física, da psicologia e neurociências não vi nada além de notícias de jornal, e aplicou-as diretamente à psicologia humana, como se a psique funcionasse do mesmo modo que o mundo material. Crouch demonstra profunda ignorância sobre a consciência humana, a subjetividade, o intrínseco e extrínseco. Mesmo o conceito de memória que deveria ter sido aprofundado, sai completamente maltratado, como se a memória não fossem interligações frágeis e sensíveis a alteração, mas antes super-estruturas dotadas de mapeamento cronológico e muito mais. Não existe aqui qualquer especulação, só mesmo absurdo.
Mas este é o meu ponto de vista. A olhar pelas estrelas que leva no Goodreads vai dar mais uma série Netflix de sucesso.
Deixo alguns excertos de reviews do Goodreads que dizem muito do que penso do livro:
Elisabeth A:
"As with his earlier novel, the premise and basic ideas explored are fascinating, but the writing isn't very good, the characters not well developed, and this story skims the surface of what should be thrilling material. "
"Scientists have been able to implant false memories in lab rats?!! That's the germ that this novel is based on. So many wonderful things to explore with that idea, so imagine my disappointment."
Daniel Kincaid:
"At first- you have a machine (a chair... A CHAIR!) that is supposed to help people with Alzheimer to retrieve their memories so they won't lose it (But wait- if they already lose their sense of reality, how can that chair actually help them? I mean, it doesn't eradicate the disease...)
Then, the chair (!!!) turns into a machine that is used to pump drugs into your system with the combination of some kind of hypnosis (I say some kind because Crouch changes the use of the machine every other page), then kills you (yet, somehow you're not really dead... go figure), and makes you believe, and relieve, your memories. Actually puts you inside of them and let's you play with them and do whatever you want. Okay.
And then- without any explanation, this machine turns into a time machine... Yup, people. A FUCKING TIME MACHINE! How did that happen? How did they achieve that? How can making one believe in a memory and making one relieving it, can actually send you back in time???
Do you have an answer? Some sort of logical explanation to this scientific miracle?
That's okay if you don't, because apparently, Crouch doesn't have one either.
But, what he actually does, is to abuse this plot-device into infinity and beyond. Someone close you gets mortally wounded or dies?! Your plan doesn't work the first time?! Fear not, my friends, because we will use the Chair-Memory Thingy-Time Machine to reset the events as much as needed. EVERY. SINGLE. FUCKING. TIME. To infinity and beyond, for all eternity.
Again, seriously- How can one author be so lazy???"
Manuel Antão:
"Book reviews used to help the reader to judge a good book but now they all seem to be written by authors with the same publisher and so are usually glowing summaries of the story (or by your run-of-the-mill book reviewers). Critical analysis no longer comes into it, the aim is to sell as many books as possible, be it rubbish or not."
Cate:
"I had to open all my windows to clear out the stink of this book. I was looking for a good summer read and had high hopes for this story. I was disappointed."
"Memories, timelines, time travel, it’s all very exciting. About 1/2 way through, I thought, gee Mr. Crouch, how are you going to get us out of all these plot tangles? I’m fascinated! Um, guns. Then bombs. Then guns and bombs. Zzzzzzzzz
Really? What about the science? What about the cool ideas of memories and how we are human bodies passing through time, and we don’t even know what time is! "
"Please, don’t waste your time"
Debbie:
"The opening scene is a killer (..) This book went from a 5 to a 4 to a 3 to a 2 (..) You’re supposed to be sad when a main character dies, it’s supposed to be a big deal. But in this book, who cares? You’ll probably see them alive in the next chapter! The characters die and get alive again so many times, it’s ridiculous."
"Usually, when the characters went back to the past, they remembered the future, which you might expect, right? But sometimes they got all scared and acted like they were clueless about what would happen next. Huh? Why were they scared when they knew the outcome? This just seemed like bad writing, and it bugged me to death."
Margaret:
"So sorry but no! I couldn’t cope with this one. Although what fascinated me in dark matter, is also here. The way to read sci fi , is to overlook any attempt to understand the «scientific explanation» and enjoy the ride. But unfortunately in recursion ,the impossibility is always there, the plot is confusing every step of the way and after the first half all this mess becomes boring."
Bart:
"Maybe he could have done better, but – like Hollywood blockbusters – Crouch clearly values tension & spectacle over logic. My guess is he doesn’t care about plot holes – and neither does his editor: shit like this sells, man! I wouldn’t have held that against Crouch – it’s everybody’s prerogative to aim for entertainment first – were it not for the fact that at the onset of the book he explicitly sneaks in some meta bits about solving puzzles, two times even. If you portray your story as a puzzle to solve, make sure the pieces fit."
Criar uma máquina do tempo que funciona por meio de memórias humanas vívidas, que permite viajar até essas memórias, como se elas fossem bolhas de realidade compacta autónomas, mas nessa viagem, que acontece no tempo, não transporta apenas essa pessoa, mas transporta também as memórias do momento de todas as pessoas do planeta!!! Criar uma máquina do tempo que por mais saltos temporais que faça, mantém todas as pessoas sempre na mesma linha temporal, independentemente de quem está a viajar nas suas memórias!!! A história não tem qualquer suporte lógico, isto não é especulação científica, isto é mera brincadeira com ideias sobre as quais o autor denota uma total falta de conhecimento.
O livro começa com um ponto fundamental das ciências cognitivas — as memórias falsas — tendo tudo para ser uma história fantástica. Mas Crouch claramente percebeu que arriscava uma história pouco original, não faltam histórias a trabalhar memória no domínio da FC, nomeadamente Philip K. Dick ou Ursula K. LeGuin, muitos o têm feito, melhor ou pior. Por isso Crouch quis superar tudo e todos, para o fazer não deu qualquer rédea ao brincar com ideias, o que é bom se a seguir for trabalhado e delimitado, é preciso olhar para o resultado criativo da brincadeira e perceber se faz sentido, se vale a pena dar azo aos devaneios. Repare-se no rídiculo de conceitos elencados, Crouch abre o livro com o tema das Memórias Falsas, a seguir passa para o tratamento do Alzheimer, daí segue para a Máquina do Tempo, depois segue para os Multiversos Quânticos, acabando por chegar aos Buracos Negros para acabar por dizer que não sabe como é que a máquina do tempo (ficcional mas inventada por si para escrever um livro inteiro) funciona, colocando a personagem principal, a "maior cientista do planeta", a dizer que provavelmente “nunca o poderemos saber”!!!
Quanto à caracterização dos personagens, repare-se no tratamento feito: a personagem principal volta 30 anos atrás, até aos seus 16 anos de idade, 6 ou 7 vezes seguidas, ou seja, vive na pele mais de 150 anos repetidos — vai à escola, entra na universidade, faz exames, doutoramentos, namorados, lidar com pais, empregos, doenças etc. — mas essas vezes todas são passadas num parágrafo, como se fosse uma simples ida ao cinema à noite!!!! E como se isso não bastasse, chegado ao momento em que voltou atrás no tempo, ou seja em que iniciou a viagem voltando atrás, todas as pessoas à sua volta, sentem que a realidade se alterou, num espaço de momentos recebem o impacto de décadas e passam a conhecer outra vida inteira sem nunca a terem vivido, ao que se junta, muitas delas reviverem o impacto de uma suposta morte noutra linha temporal!!!!
O livro é uma autêntica fraude em termos cognitivos. Pegou em várias teorias, principalmente da física, da psicologia e neurociências não vi nada além de notícias de jornal, e aplicou-as diretamente à psicologia humana, como se a psique funcionasse do mesmo modo que o mundo material. Crouch demonstra profunda ignorância sobre a consciência humana, a subjetividade, o intrínseco e extrínseco. Mesmo o conceito de memória que deveria ter sido aprofundado, sai completamente maltratado, como se a memória não fossem interligações frágeis e sensíveis a alteração, mas antes super-estruturas dotadas de mapeamento cronológico e muito mais. Não existe aqui qualquer especulação, só mesmo absurdo.
Mas este é o meu ponto de vista. A olhar pelas estrelas que leva no Goodreads vai dar mais uma série Netflix de sucesso.
Deixo alguns excertos de reviews do Goodreads que dizem muito do que penso do livro:
Elisabeth A:
"As with his earlier novel, the premise and basic ideas explored are fascinating, but the writing isn't very good, the characters not well developed, and this story skims the surface of what should be thrilling material. "
"Scientists have been able to implant false memories in lab rats?!! That's the germ that this novel is based on. So many wonderful things to explore with that idea, so imagine my disappointment."
Daniel Kincaid:
"At first- you have a machine (a chair... A CHAIR!) that is supposed to help people with Alzheimer to retrieve their memories so they won't lose it (But wait- if they already lose their sense of reality, how can that chair actually help them? I mean, it doesn't eradicate the disease...)
Then, the chair (!!!) turns into a machine that is used to pump drugs into your system with the combination of some kind of hypnosis (I say some kind because Crouch changes the use of the machine every other page), then kills you (yet, somehow you're not really dead... go figure), and makes you believe, and relieve, your memories. Actually puts you inside of them and let's you play with them and do whatever you want. Okay.
And then- without any explanation, this machine turns into a time machine... Yup, people. A FUCKING TIME MACHINE! How did that happen? How did they achieve that? How can making one believe in a memory and making one relieving it, can actually send you back in time???
Do you have an answer? Some sort of logical explanation to this scientific miracle?
That's okay if you don't, because apparently, Crouch doesn't have one either.
But, what he actually does, is to abuse this plot-device into infinity and beyond. Someone close you gets mortally wounded or dies?! Your plan doesn't work the first time?! Fear not, my friends, because we will use the Chair-Memory Thingy-Time Machine to reset the events as much as needed. EVERY. SINGLE. FUCKING. TIME. To infinity and beyond, for all eternity.
Again, seriously- How can one author be so lazy???"
Manuel Antão:
"Book reviews used to help the reader to judge a good book but now they all seem to be written by authors with the same publisher and so are usually glowing summaries of the story (or by your run-of-the-mill book reviewers). Critical analysis no longer comes into it, the aim is to sell as many books as possible, be it rubbish or not."
Cate:
"I had to open all my windows to clear out the stink of this book. I was looking for a good summer read and had high hopes for this story. I was disappointed."
"Memories, timelines, time travel, it’s all very exciting. About 1/2 way through, I thought, gee Mr. Crouch, how are you going to get us out of all these plot tangles? I’m fascinated! Um, guns. Then bombs. Then guns and bombs. Zzzzzzzzz
Really? What about the science? What about the cool ideas of memories and how we are human bodies passing through time, and we don’t even know what time is! "
"Please, don’t waste your time"
Debbie:
"The opening scene is a killer (..) This book went from a 5 to a 4 to a 3 to a 2 (..) You’re supposed to be sad when a main character dies, it’s supposed to be a big deal. But in this book, who cares? You’ll probably see them alive in the next chapter! The characters die and get alive again so many times, it’s ridiculous."
"Usually, when the characters went back to the past, they remembered the future, which you might expect, right? But sometimes they got all scared and acted like they were clueless about what would happen next. Huh? Why were they scared when they knew the outcome? This just seemed like bad writing, and it bugged me to death."
Margaret:
"So sorry but no! I couldn’t cope with this one. Although what fascinated me in dark matter, is also here. The way to read sci fi , is to overlook any attempt to understand the «scientific explanation» and enjoy the ride. But unfortunately in recursion ,the impossibility is always there, the plot is confusing every step of the way and after the first half all this mess becomes boring."
Bart:
"Maybe he could have done better, but – like Hollywood blockbusters – Crouch clearly values tension & spectacle over logic. My guess is he doesn’t care about plot holes – and neither does his editor: shit like this sells, man! I wouldn’t have held that against Crouch – it’s everybody’s prerogative to aim for entertainment first – were it not for the fact that at the onset of the book he explicitly sneaks in some meta bits about solving puzzles, two times even. If you portray your story as a puzzle to solve, make sure the pieces fit."
Nota no GoodReads.
agosto 02, 2019
Blueprint: Como o DNA nos faz como Somos (2018)
O prólogo de "Blueprint: How DNA Makes Us Who We Are" de Robert Plomin diz várias coisas de entre as quais, a seguinte afirmação que se vai repetir ao longo de todo o livro, ainda que com ligeiras variações, mas apontando baterias sempre ao mesmo objeto:
Assim, e antes de lançar qualquer análise crítica ou tentativa de discussão quero dizer que sou grande defensor da variável genética. Acredito na relação 50/50 do impacto de cada domínio — natureza e ambiente — sobre aquilo que somos, ainda que por vezes tenda a deixar-me convencer que a natureza consegue dominar mais daquilo que somos do que a cultura e ambiente que nos vai moldando ao longo da vida. Por isso, não reagi violentamente ao livro como vi outros reagir, e como o próprio autor sabia que iria acontecer. Esta é uma guerra antiga, entretanto adormecida, mas a investigação em genética nunca parou e existem avanços significativos. Não apenas ao nível do controlo celular e do DNA, mas também de estudos longitudinais realizados. E Plomin é um dos investigadores mundiais com mais estudos no campo, tendo acompanhado várias comunidades, incluindo de gémeos, desde a nascença até aos 40 anos. Por isso existe neste livro muito que interessa a todos nós que estudamos domínios que lidam com o social, cultural e humano, e assim seja também defendido por outros.
Julgo que podemos dividir o livro em duas grandes partes: uma relacionada com a discussão daquilo de que somos feitos, e como a genética impacta sobre o indivíduo e a sociedade. E uma segunda parte, sobre a relevância e impacto da genética nas vidas dos indivíduos e sociedades nos tempos próximos. A primeira parte considero ser aquela que é mais relevante, porque nos leva a questionar vários modos de olhar a realidade. A segunda parte é aquela em que me junto ao coro de críticos, pelas razões que passarei a explicitar à frente.
Sobre a primeira parte, Plomin apresenta dados e estudos que suportam uma leitura com que estamos pouco habituados a ser confrontados no dia-a-dia nos dias de hoje, a da importância dos genes nas pessoas que somos. Por que não somos apenas aquilo para que trabalhamos, apesar de enquanto sociedade termos o dever de promover essa cultura, sabemos que essa é apenas meia-verdade, no entanto por todo o lado em nosso redor, parece muitas vezes preferir-se ignorar. Veja-se a parafernália de livros e estudos sobre talento de que tenho aqui vindo a dar conta: “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell; “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, e “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How” (2009) de Daniel Coyle. Sendo verdade que a genética não é alterável e não podendo transformar-se, talvez por isso mesmo muitos acreditem que mais vale não falar dela. Contudo, do meu ponto de vista isso é um erro. É um erro porque se aceitamos que não podemos mudar a nossa genética, então precisamos de compreender mais e melhor essa genética para enquanto sociedade, e individuos, a podermos aproveitar da melhor forma, e não colocar a cabeça debaixo da areia.
Existem muitas áreas onde isto é relevante, mas talvez a mais relevante de todas seja a Educação. Continuamos hoje, com tudo aquilo que já sabemos a tentar formatar crianças da mesma forma em escolas fabris. E o meu problema não são as escolas em si, ou o modo fabril, ou meu problema é a não diferenciação das crianças, porque se segue uma ideologia de todos iguais, quando sabemos que tal não existe. Porque quanto mais formatarmos o social, mais evidente a natureza tornará as diferenças. Claramente que as crianças têm a ganhar em andar em escolas com pares da mesma idade, mesmo com cargas genéticas completamente diferentes, incluindo crianças com necessidades especiais, nada contra isso. O problema não é a criação de socialização, colaboração e redes de suporte societal. O problema é colocá-los todos numa mesma sala, apenas por terem a mesma idade, a aprender todos o mesmos, é com isso que não me conformo. E não estou a falar de inteligência, estou a falar de algo muito mais relevante, mas mais complexo, mas ainda assim mais determinante, e que tem que ver com a personalidade (e que agora querem também moldar com o que dizem ser uma novidade educacional: as competências). A personalidade de cada um determina diferenças fundamentais no humano, e essas são profundamente genéticas, o que acaba dando razão a Plomin quando diz que a genética tem maior capacidade de prever o futuro de uma criança do que as variáveis sociais, já que essas não são duradouras, enquanto a genética está lá sempre. Ou seja, aquilo que somos à nascença é determinante para aquilo que podemos vir a ser, não sendo uma guilhotina, tem grande importância e é extremamente importante compreender aquilo que somos à nascença, não apenas para nos conhecermos melhor, mas para podermos guiar e orientar as nossas escolhas em função das nossas melhores possibilidades, e não em função de ilusões e sonhos que a sociedade nos quer vender a todo o momento.
Sobre esta discussão Plomin apresenta imensos estudos demonstrativos das variáveis genéticas, desde gémeos que são educados por famílias completamente díspares mantendo no entanto sempre as mesmas tendências genéticas que os levam a construir vidas e a ter sucessos imensamente próximos mesmo quando o ambiente prediria o contrário, dando conta da força genética sobre o ambiente. Noutros, dá conta do que diferencia as escolas privadas de elite das escolas públicas, que nada tem que ver com melhor ensino, melhores escolas, melhores professores, mas apenas e só melhor seleção genética. Tanto que Plomin não fala de escolas privadas, mas escolas seletivas. Naturalmente que se fazemos testes à entrada, e deixamos apenas entrar os que melhor reagem ao que pretendemos avaliar, as diferenças com instituições onde não há qualquer filtragem têm de surgir. Os estudos de Plomin vão mesmo ao ponto de desmontar as variáveis sociais construídas nesse entorno, demonstrando que não são elas que tornam o futuro desses miúdos auspiciosos, mas é a sua carga genética de partida.
Trazendo para a discussão dois exemplos. Repare-se no caso atual de Caster Semenya, que soube esta semana que estava impedida de participar em provas competitivas de atletismo da IAAF enquanto não tomasse medicamentos que lhe fizessem reduzir os níveis de testosterona!!! Por todo o lado vemos esta sede de normalização, da Escola à Empregabilidade, como se não pudéssemos ser apenas diferentes por assim ter nascido. Repare-se como ideologicamente isto é mesmo um contrassenso, já que exigimos a aceitação societal das diferenças, incluindo a aceitação da variabilidade de género, mas chegados a pontos em que a diferença genética atira para fora da normalidade pré-convencionada, obrigamos à reposição biológica das diferenças para manter o status quo social. Claro que Semenya representa um problema para quem organiza provas convencionais, porque tem um corpo “demasiado” masculino para as provas de mulheres, mas “demasiado” feminino para as provas de homens, o que a coloca em lugar nenhum dessas convenções. Por outro lado, e para nos fazer refletir, porque nunca se levantaram questões deste tipo no caso de Michael Phelps, sabendo que o seu corpo sai completamente fora da norma colocando-o num patamar bastante distinto dos demais.
Mas tudo isto é pouco novo, o que o livro traz de novo é a segunda parte, que discute uma nova abordagem à genética assente em grandes bases de dados, seguindo uma nova técnica chamada de "genome-wide association study" (GWAS), sendo aquilo com que menos concordo, e que também tem sido mais atacado (review na Nature). Pensar a criação de sistemas de avaliação genética envolvidos em algoritmos de previsão futura, para a manipulação do bloco genético gestacional (ou seja, o famigerado design de DNA de bebés), em função desses algoritmos é completamente absurdo. E não estou a falar do medo de "Gattaca" (1997), não é apenas um problem ético, embora por esse lado já fosse suficiente para cancelar qualquer processo destes, mas porque estamos a falar de algo que impacta em 50%, ou seja, transformar algo que sabemos que nunca terá impacto acima dos 50% não é fazer design, é jogar na roleta russa. Mas é pior, porque 50% é apenas o máximo a que se poderia chegar, já que em termos efetivos, e seguindo os métodos aqui propostos, estamos a falar de 10 a 20% de previsibilidade de traços, que o autor defende como sendo já algo muito relevante por ir além de que qualquer outro elemento de previsão (Plomin defende, por comparação, o género só consegue dar previsibilidades de 1% de variação). Pois seja, mas sendo maior continua a nada valer, 10% são completamente diluídos num mar de mundo dotado de acaso. Sobre esse acaso, o da variabilidade física do meio, indo a um extremo podemos pensar: de que adiantaria desenhar seres biologicamente imortais se eles pudessem simplesmente morrer quando atravessam uma estrada, que paradoxos, que caixas de pandora estaríamos a abrir?
Se o livro se lê bastante bem, e abre sempre discussões para nos debatermos, confesso que a certa altura comecei a sentir uma das críticas que mais tem sido feita a Plomin, e do qual todos nós padecemos, a confirmação de viés. Para quem estuda genética todo o tempo, vai-se tornando cada vez mais natural ver tudo pelos olhos da genética. Para Plomin, é possível explicar praticamente todas as variáveis ambientais como sofrendo de influência genética. Ou seja, seríamos genes, nada mais do que genes. Plomin, na sua senda e defesa da sua dama vai a ponto de afirmar que o ambiente — os pais, as escolas, a política — “matter, but they don’t make a difference”, porque segundo ele, são variáveis “unsystematic and unstable, so there’s not much we can do about them”. Como se bastasse atirar as crianças ao leões e deixar que os genes se desenvencilhassem. Esquece Plomin que ao fazer tal estaria simplesmente a ignorar a 50% da variabilidade humana, mas pior ainda, estaria a esquecer o enorme impacto do cuidado humano à nascença e todas as variáveis sociais já amplamente demonstradas por estudos (o mais recente é deste mês) com muito maior valor empírico do que previsões de 10%.
“Genetics is the most important factor shaping who we are. It explains more of the psychological differences between us than everything else put together. For example, the most important environmental factors, such as our families and schools, account for less than 5 per cent of the differences between us in our mental health or how well we did at school – once we control for the impact of genetics. Genetics accounts for 50 per cent of psychological differences, not just for mental health and school achievement, but for all psychological traits, from personality to mental abilities. I am not aware of a single psychological trait that shows no genetic influence.”
Semenya foi esta semana proibida de correr em provas de atletismo se não tomar medicação que reduza a testosterona natural no seu corpo. Já sobre Phelps nunca nada foi dito sobre a sua fisiologia anormal (discussão abaixo).
Assim, e antes de lançar qualquer análise crítica ou tentativa de discussão quero dizer que sou grande defensor da variável genética. Acredito na relação 50/50 do impacto de cada domínio — natureza e ambiente — sobre aquilo que somos, ainda que por vezes tenda a deixar-me convencer que a natureza consegue dominar mais daquilo que somos do que a cultura e ambiente que nos vai moldando ao longo da vida. Por isso, não reagi violentamente ao livro como vi outros reagir, e como o próprio autor sabia que iria acontecer. Esta é uma guerra antiga, entretanto adormecida, mas a investigação em genética nunca parou e existem avanços significativos. Não apenas ao nível do controlo celular e do DNA, mas também de estudos longitudinais realizados. E Plomin é um dos investigadores mundiais com mais estudos no campo, tendo acompanhado várias comunidades, incluindo de gémeos, desde a nascença até aos 40 anos. Por isso existe neste livro muito que interessa a todos nós que estudamos domínios que lidam com o social, cultural e humano, e assim seja também defendido por outros.
Julgo que podemos dividir o livro em duas grandes partes: uma relacionada com a discussão daquilo de que somos feitos, e como a genética impacta sobre o indivíduo e a sociedade. E uma segunda parte, sobre a relevância e impacto da genética nas vidas dos indivíduos e sociedades nos tempos próximos. A primeira parte considero ser aquela que é mais relevante, porque nos leva a questionar vários modos de olhar a realidade. A segunda parte é aquela em que me junto ao coro de críticos, pelas razões que passarei a explicitar à frente.
Sobre a primeira parte, Plomin apresenta dados e estudos que suportam uma leitura com que estamos pouco habituados a ser confrontados no dia-a-dia nos dias de hoje, a da importância dos genes nas pessoas que somos. Por que não somos apenas aquilo para que trabalhamos, apesar de enquanto sociedade termos o dever de promover essa cultura, sabemos que essa é apenas meia-verdade, no entanto por todo o lado em nosso redor, parece muitas vezes preferir-se ignorar. Veja-se a parafernália de livros e estudos sobre talento de que tenho aqui vindo a dar conta: “Outliers: The Story of Success” (2008) de Malcolm Gladwell; “Talent Is Overrated: What Really Separates World-Class Performers from Everybody Else” (2008) de Geoffrey Colvin, e “The Talent Code: Genius Isn’t Born. It’s Grown. Here’s How” (2009) de Daniel Coyle. Sendo verdade que a genética não é alterável e não podendo transformar-se, talvez por isso mesmo muitos acreditem que mais vale não falar dela. Contudo, do meu ponto de vista isso é um erro. É um erro porque se aceitamos que não podemos mudar a nossa genética, então precisamos de compreender mais e melhor essa genética para enquanto sociedade, e individuos, a podermos aproveitar da melhor forma, e não colocar a cabeça debaixo da areia.
Existem muitas áreas onde isto é relevante, mas talvez a mais relevante de todas seja a Educação. Continuamos hoje, com tudo aquilo que já sabemos a tentar formatar crianças da mesma forma em escolas fabris. E o meu problema não são as escolas em si, ou o modo fabril, ou meu problema é a não diferenciação das crianças, porque se segue uma ideologia de todos iguais, quando sabemos que tal não existe. Porque quanto mais formatarmos o social, mais evidente a natureza tornará as diferenças. Claramente que as crianças têm a ganhar em andar em escolas com pares da mesma idade, mesmo com cargas genéticas completamente diferentes, incluindo crianças com necessidades especiais, nada contra isso. O problema não é a criação de socialização, colaboração e redes de suporte societal. O problema é colocá-los todos numa mesma sala, apenas por terem a mesma idade, a aprender todos o mesmos, é com isso que não me conformo. E não estou a falar de inteligência, estou a falar de algo muito mais relevante, mas mais complexo, mas ainda assim mais determinante, e que tem que ver com a personalidade (e que agora querem também moldar com o que dizem ser uma novidade educacional: as competências). A personalidade de cada um determina diferenças fundamentais no humano, e essas são profundamente genéticas, o que acaba dando razão a Plomin quando diz que a genética tem maior capacidade de prever o futuro de uma criança do que as variáveis sociais, já que essas não são duradouras, enquanto a genética está lá sempre. Ou seja, aquilo que somos à nascença é determinante para aquilo que podemos vir a ser, não sendo uma guilhotina, tem grande importância e é extremamente importante compreender aquilo que somos à nascença, não apenas para nos conhecermos melhor, mas para podermos guiar e orientar as nossas escolhas em função das nossas melhores possibilidades, e não em função de ilusões e sonhos que a sociedade nos quer vender a todo o momento.
Sobre esta discussão Plomin apresenta imensos estudos demonstrativos das variáveis genéticas, desde gémeos que são educados por famílias completamente díspares mantendo no entanto sempre as mesmas tendências genéticas que os levam a construir vidas e a ter sucessos imensamente próximos mesmo quando o ambiente prediria o contrário, dando conta da força genética sobre o ambiente. Noutros, dá conta do que diferencia as escolas privadas de elite das escolas públicas, que nada tem que ver com melhor ensino, melhores escolas, melhores professores, mas apenas e só melhor seleção genética. Tanto que Plomin não fala de escolas privadas, mas escolas seletivas. Naturalmente que se fazemos testes à entrada, e deixamos apenas entrar os que melhor reagem ao que pretendemos avaliar, as diferenças com instituições onde não há qualquer filtragem têm de surgir. Os estudos de Plomin vão mesmo ao ponto de desmontar as variáveis sociais construídas nesse entorno, demonstrando que não são elas que tornam o futuro desses miúdos auspiciosos, mas é a sua carga genética de partida.
Trazendo para a discussão dois exemplos. Repare-se no caso atual de Caster Semenya, que soube esta semana que estava impedida de participar em provas competitivas de atletismo da IAAF enquanto não tomasse medicamentos que lhe fizessem reduzir os níveis de testosterona!!! Por todo o lado vemos esta sede de normalização, da Escola à Empregabilidade, como se não pudéssemos ser apenas diferentes por assim ter nascido. Repare-se como ideologicamente isto é mesmo um contrassenso, já que exigimos a aceitação societal das diferenças, incluindo a aceitação da variabilidade de género, mas chegados a pontos em que a diferença genética atira para fora da normalidade pré-convencionada, obrigamos à reposição biológica das diferenças para manter o status quo social. Claro que Semenya representa um problema para quem organiza provas convencionais, porque tem um corpo “demasiado” masculino para as provas de mulheres, mas “demasiado” feminino para as provas de homens, o que a coloca em lugar nenhum dessas convenções. Por outro lado, e para nos fazer refletir, porque nunca se levantaram questões deste tipo no caso de Michael Phelps, sabendo que o seu corpo sai completamente fora da norma colocando-o num patamar bastante distinto dos demais.
Mas tudo isto é pouco novo, o que o livro traz de novo é a segunda parte, que discute uma nova abordagem à genética assente em grandes bases de dados, seguindo uma nova técnica chamada de "genome-wide association study" (GWAS), sendo aquilo com que menos concordo, e que também tem sido mais atacado (review na Nature). Pensar a criação de sistemas de avaliação genética envolvidos em algoritmos de previsão futura, para a manipulação do bloco genético gestacional (ou seja, o famigerado design de DNA de bebés), em função desses algoritmos é completamente absurdo. E não estou a falar do medo de "Gattaca" (1997), não é apenas um problem ético, embora por esse lado já fosse suficiente para cancelar qualquer processo destes, mas porque estamos a falar de algo que impacta em 50%, ou seja, transformar algo que sabemos que nunca terá impacto acima dos 50% não é fazer design, é jogar na roleta russa. Mas é pior, porque 50% é apenas o máximo a que se poderia chegar, já que em termos efetivos, e seguindo os métodos aqui propostos, estamos a falar de 10 a 20% de previsibilidade de traços, que o autor defende como sendo já algo muito relevante por ir além de que qualquer outro elemento de previsão (Plomin defende, por comparação, o género só consegue dar previsibilidades de 1% de variação). Pois seja, mas sendo maior continua a nada valer, 10% são completamente diluídos num mar de mundo dotado de acaso. Sobre esse acaso, o da variabilidade física do meio, indo a um extremo podemos pensar: de que adiantaria desenhar seres biologicamente imortais se eles pudessem simplesmente morrer quando atravessam uma estrada, que paradoxos, que caixas de pandora estaríamos a abrir?
Se o livro se lê bastante bem, e abre sempre discussões para nos debatermos, confesso que a certa altura comecei a sentir uma das críticas que mais tem sido feita a Plomin, e do qual todos nós padecemos, a confirmação de viés. Para quem estuda genética todo o tempo, vai-se tornando cada vez mais natural ver tudo pelos olhos da genética. Para Plomin, é possível explicar praticamente todas as variáveis ambientais como sofrendo de influência genética. Ou seja, seríamos genes, nada mais do que genes. Plomin, na sua senda e defesa da sua dama vai a ponto de afirmar que o ambiente — os pais, as escolas, a política — “matter, but they don’t make a difference”, porque segundo ele, são variáveis “unsystematic and unstable, so there’s not much we can do about them”. Como se bastasse atirar as crianças ao leões e deixar que os genes se desenvencilhassem. Esquece Plomin que ao fazer tal estaria simplesmente a ignorar a 50% da variabilidade humana, mas pior ainda, estaria a esquecer o enorme impacto do cuidado humano à nascença e todas as variáveis sociais já amplamente demonstradas por estudos (o mais recente é deste mês) com muito maior valor empírico do que previsões de 10%.
agosto 01, 2019
Animação: sentindo uma constipação
A história de uma constipação a partir do ponto de vista do nosso cérebro. O que pensa e imagina o nosso cérebro durante todo o processo de uma constipação, desde que começa a espirrar, passa a pingar do nariz, dor de garganta e sufoco, até que se liberta. Seoro Oh recorreu a uma história que todos conhecemos para dar conta de um mal de que padece — a rinite —, transformando assim num processo visual tudo aquilo que lhe atravessa a mente durante os piores momentos da doença. A animação "(oo)" (2017)
O trabalho de ilustração, animação, montagem e sonorização são de enorme qualidade criando assim a partir de um pequeno filme um mundo particular mas forte capaz de deixar uma impressão nos espectador. Entrevista com o autor.
O trabalho de ilustração, animação, montagem e sonorização são de enorme qualidade criando assim a partir de um pequeno filme um mundo particular mas forte capaz de deixar uma impressão nos espectador. Entrevista com o autor.
"(oo)" (2017) de Seoro Oh
Não-linearidade das relações humanas
Ao longo dos últimos 15 anos o cinema romeno tem sido uma das maiores referências no que toca à análise da psicologia das relações humanas, seguindo abordagens profundamente literárias e bergmanianas. “Ana, Meu Amor” (2017) não é diferente, com todo o filme a trabalhar uma relação complexa de um jovem casal, embora ainda assim me tenha surpreendido pelo modo como a sociedade romena é apresentada, já que são trazidos para cena vários detalhes religiosos e familiares que dão conta de uma sociedade ainda presa a vários arcaísmos. Por outro lado, toda a capacidade expressiva da linguagem fílmica é colocada ao serviço da história, com Călin Peter Netzer a demonstrar enorme mestria, nomeadamente no controlo narrativo e direção de atores.
Sobre a história, questionei-me ao longo do filme e várias vezes entretanto, se o impacto será o mesmo sobre alguém que não tenha passado por uma situação similar. O quadro oferecido é o de um casal a estudar na universidade, em que a jovem mulher apresenta problemas do foro psiquiátrico, provinda de famílias disfuncionais, estando bastante debilitada e logo altamente dependente, e o jovem, fruto de uma família de classe média estável, que vê nela uma oportunidade de “salvar” alguém, de fazer a boa ação da sua vida, ainda que contra a vontade dos seus próprios pais. O interessante disto é o modo como tudo se desenrola, e acaba passados alguns anos com os papéis invertidos (não posso dizer muito mais).
Se a história é esta, o impressionante é o modo como é dada a ver e sentir, como é tudo tão real, tão verdadeiro, tão impressivo. O filme apresenta-se de forma não-linear, variando continuamente num friso de 10 anos, o que é facilmente compreendido pela magnífica caracterização dos personagens, nomeadamente a componente do cabelo, com ele a perder cabelo e ela a trocar a cor, mas também a performance. Impressiona ver o ser-humano mudar, transformar-se, passar de um lado ao outro do espectro, de dominante a submisso, e como isso tolda totalmente a sua existência, a sua forma de ver o outro. Como tudo isso corrói e destrói completamente a relação que tinha surgido de uma necessidade de ambos os lados, mas que a vida natural de um casal se encarrega de alterar, obrigando naturalmente cada um a evoluir, e a encaixar os novos mundos e novas experiências do outro. Claro que é tudo fácil explicado assim, em teoria, e sabendo disso torna o filme ainda melhor, porque ele nunca dá lições, apesar de mostrar caminhos distintos como a religião ou a psicanálise, dá a ver para nos fazer refletir, para nos obrigar a questionar opções e decisões do passado, ou possível futuro.
A dor está presente, mas é preciso lê-la na evolução da relação, compreender como se constrói uma relação destas, e depois ainda compreender as vicissitudes da evolução de cada ser humano e das implicações das transformações numa relação que se faz de hábitos que acarreta rotinas e expectativas, que por força da transformação de cada um se transverte, e muitas vezes, se não talvez sempre, de formas não expectáveis, pelas evoluções naturalmente distintas de cada um. Porque aqueles que chegam ao fim da vida juntos, estão muito longe de serem as pessoas que se conheceram quando jovens. Tiveram filhos, educaram-nos, deram-lhes um futuro, e continuaram juntos “fazendo de conta” que era importante manterem-se juntos...
Confesso que me questionei sobre a estrutura narrativa, sobre o porquê da não-linearidade, e porque Netzer não tinha simplesmente optado por contar a história linearmente, o que lhe teria garantido um público mais alargado (li críticas de quem se sentiu demasiado confuso seguindo os fios narrativos). Contudo, refletindo sobre o que está em jogo — as relações humanas, como se constrói um casal e como se mantém unido — talvez o sentido da não-linearidade seja mesmo central. Porque o que é uma relação entre duas pessoas se não um contínuo de avanços e recuos? Apresentar uma relação entre dois humanos como linha única e progressiva de eventos, acabaria por tornar toda aquela relação em algo profundamente banal, mecânico pela causalidade dos eventos e praticamente expectável. A não-linearidade serve totalmente a complexidade daquilo que perfaz a circularidade do humano que se exponencia ainda mais quando tem de se relacionar com o outro e construir uma espécie de entidade única: um casal. Visto assim, Netzer tem toda a razão em descrever o seu filme, ou estudo, como: "a impossibilidade real de construir um relacionamento".
Nota: O filme está disponível no catálogo regular do FilmIn.
Sobre a história, questionei-me ao longo do filme e várias vezes entretanto, se o impacto será o mesmo sobre alguém que não tenha passado por uma situação similar. O quadro oferecido é o de um casal a estudar na universidade, em que a jovem mulher apresenta problemas do foro psiquiátrico, provinda de famílias disfuncionais, estando bastante debilitada e logo altamente dependente, e o jovem, fruto de uma família de classe média estável, que vê nela uma oportunidade de “salvar” alguém, de fazer a boa ação da sua vida, ainda que contra a vontade dos seus próprios pais. O interessante disto é o modo como tudo se desenrola, e acaba passados alguns anos com os papéis invertidos (não posso dizer muito mais).
Se a história é esta, o impressionante é o modo como é dada a ver e sentir, como é tudo tão real, tão verdadeiro, tão impressivo. O filme apresenta-se de forma não-linear, variando continuamente num friso de 10 anos, o que é facilmente compreendido pela magnífica caracterização dos personagens, nomeadamente a componente do cabelo, com ele a perder cabelo e ela a trocar a cor, mas também a performance. Impressiona ver o ser-humano mudar, transformar-se, passar de um lado ao outro do espectro, de dominante a submisso, e como isso tolda totalmente a sua existência, a sua forma de ver o outro. Como tudo isso corrói e destrói completamente a relação que tinha surgido de uma necessidade de ambos os lados, mas que a vida natural de um casal se encarrega de alterar, obrigando naturalmente cada um a evoluir, e a encaixar os novos mundos e novas experiências do outro. Claro que é tudo fácil explicado assim, em teoria, e sabendo disso torna o filme ainda melhor, porque ele nunca dá lições, apesar de mostrar caminhos distintos como a religião ou a psicanálise, dá a ver para nos fazer refletir, para nos obrigar a questionar opções e decisões do passado, ou possível futuro.
A dor está presente, mas é preciso lê-la na evolução da relação, compreender como se constrói uma relação destas, e depois ainda compreender as vicissitudes da evolução de cada ser humano e das implicações das transformações numa relação que se faz de hábitos que acarreta rotinas e expectativas, que por força da transformação de cada um se transverte, e muitas vezes, se não talvez sempre, de formas não expectáveis, pelas evoluções naturalmente distintas de cada um. Porque aqueles que chegam ao fim da vida juntos, estão muito longe de serem as pessoas que se conheceram quando jovens. Tiveram filhos, educaram-nos, deram-lhes um futuro, e continuaram juntos “fazendo de conta” que era importante manterem-se juntos...
Confesso que me questionei sobre a estrutura narrativa, sobre o porquê da não-linearidade, e porque Netzer não tinha simplesmente optado por contar a história linearmente, o que lhe teria garantido um público mais alargado (li críticas de quem se sentiu demasiado confuso seguindo os fios narrativos). Contudo, refletindo sobre o que está em jogo — as relações humanas, como se constrói um casal e como se mantém unido — talvez o sentido da não-linearidade seja mesmo central. Porque o que é uma relação entre duas pessoas se não um contínuo de avanços e recuos? Apresentar uma relação entre dois humanos como linha única e progressiva de eventos, acabaria por tornar toda aquela relação em algo profundamente banal, mecânico pela causalidade dos eventos e praticamente expectável. A não-linearidade serve totalmente a complexidade daquilo que perfaz a circularidade do humano que se exponencia ainda mais quando tem de se relacionar com o outro e construir uma espécie de entidade única: um casal. Visto assim, Netzer tem toda a razão em descrever o seu filme, ou estudo, como: "a impossibilidade real de construir um relacionamento".
Nota: O filme está disponível no catálogo regular do FilmIn.