“David Copperfield” foi a minha segunda incursão pelo universo de Dickens, depois de “Grandes Esperanças” (1861). Dickens é um ícone das letras britânicas, elemento fundamental dessa engrenagem literária, o Eça inglês, continuamente idolatrado pelos seus concidadãos que pela força da imposição da cultura anglo-saxónica no mundo tem feito de Dickens um ícone da cultura mundial. A sua escrita tem a vantagem de cruzar uma enorme eloquência com personagens e tramas simples, completamente liberto dos complexos e obscuros traços do romantismo, imensamente fluída e conhecedora das necessidades do enredo, o que faz com que facilmente consiga chegar a um grande público.
Quando li “Grandes Esperanças” deixei-me levar pelas interpretações aduzidas por muitos dos estudiosos da sua obra, e acabei aceitando algumas fragilidades como qualidades. Contudo desta vez furtei-me a aceitar outras interpretações, desde logo porque experimentei enfado durante 2/3 da leitura. Dickens escreve de forma belíssima, mas alonga-se, estende-se, dilata desnecessariamente as tramas que vai urdindo. Podemos pensar que o facto de estarmos a ler uma obra com mais de 150 anos torna inevitável o choque de velocidades a que se vive e por consequência pensa e sente. Ainda assim e descontando esse fator, não chega, nomeadamente se comparado com outras obras desta época, considero existir algo mais por detrás desta forma de escrever.
Dickens iniciou-se na escrita como jornalista, e o seu primeiro livro “The Pickwick Papers” (1837) surge a partir de um conjunto de textos publicados mensalmente num jornal como crónica ficcional seriada, a partir do que depois se compilou o seu primeiro livro, tal como hoje conhecemos. Todos os seus restantes livros seguiram o mesmo modelo, o que volvidos mais de 10 anos, e mais de 10 obras, terá contribuído para a construção de um modo perfeitamente rotinado de criação e escrita. “David Copperfield” acusa terrivelmente o impacto dessas rotinas, transformadas em artifícios e expedientes para manter a chama do leitor acesa. Neste sentido, temos imensos capítulos que podemos rotular de “enchimento", em que nada acontece, em que o autor se detém em particularidades completamente irrelevantes para a trama central, ou até mesmo para os protagonistas da obra. Não sendo Dickens um esteta nem um filósofo, estes momentos sentem-se com demasiado impacto, porque não acrescentam nada a trama, mas também não acrescentam nada ao romance em si, à sua cosmovisão.
Por outro lado, este modo rotinado de escrever tende a perder-se nos mecanismos narrativos de manutenção do sistema de relações causais, numa lógica de construção de consistência à superfície, mas que secundariza o aprofundamento de nós narrativos e nomeadamente de personagens, já que exigem toda uma outra postura investigativa e de dedicação de quem escreve. Assim, e apesar do romance ter mais de mil páginas (nas edições clássicas), e de ser inteiramente dedicado a um único personagem, David Copperfield, conseguimos chegar ao final da viagem sem conhecer completamente David, ou melhor, conhecendo apenas o David bondoso, generoso e caridoso, podemos quase dizer, David o santo que caminha sempre em frente e no caminho certo. Nada ficamos a saber sobre o David que não gosta, que detesta, que se revolta contra as injustiças, que se quer vingar, como se esse David não existisse, fosse homem pronto a ser canonizado, apesar de todas as maldades, algumas autênticas desumanidades, que lhe vão sendo impostas tanto pelos mais próximos, como pelos mais distantes e indiferentes.
Dickens escreve de forma belíssima, merece com certeza todo o lugar de destaque nas letras britânicas, até porque li apenas dois livros e o homem fez tanto mais para além dos livros que escreveu. Mas não nos deixemos seduzir pelo endeusamento do ícone para em tudo ver apenas qualidades e excecionalidades.
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