maio 23, 2021

"O Passageiro" de Boschwitz

Ulrich Alexander Boschwitz publicou "The Passenger", numa primeira versão, em Inglaterra em 1939, onde chegou depois de ter fugido da Alemanha via um périplo de países — Suécia, França, Luxemburgo e Bélgica. Boschwitz viu-se obrigado a fugir da Alemanha em 1935, foi depois expulso do Luxemburgo, e em Inglaterra, após o início da segunda guerra, foi internado como "estrangeiro inimigo" num campo na Isle of Man, e no verão deportado para a Austrália. No regresso a Inglaterra, em 1942, o barco em que vinha, com mais 300 pessoas, foi torpedeado pelos alemães, resultando na morte de todos os viajantes. O livro desapareceria com ele, nunca mais sendo republicado. Em 2018, uma versão foi encontrada pela sobrinha do autor e completamente revista por Peter Graff, seguindo um conjunto de revisões deixadas pelo autor em cartas enviadas à sua mãe, e publicado na Alemanha, com a versão em inglês a ser publicada, e imensamente aclamada [1, 2, 3], em Abril 2021. 

maio 22, 2021

"Walden Two" de B. F. Skinner

B. F. Skinner foi professor de psicologia, recipiente de múltiplos prémios e distinções pelo seu trabalho, tendo ficado na história como um dos maiores defensores da abordagem behaviorista da psicologia na qual proporia o chamado "behaviorismo radical", uma proposta que vê os indivíduos como sistemas de comportamentos — respostas do humano a estímulos do ambiente —, em que tudo aquilo que sentimos é apenas reflexo da forma como nos comportamos. Deste modo Skinner acreditava que moldando o ambiente poderíamos moldar os indivíduos, acreditava na possibilidade da "engenharia do comportamento" por via da "engenharia cultural". O livro "Walden II" (1948) é um romance que segue o método socrático (investigação filosófica por meio do diálogo) e serve a apresentação destas engenharias com base numa comunidade utópica. Não é um grande romance, mas é uma excelente apresentação das ideias do autor, o que faz deste uma excelente leitura para quem se interesse pelo tema. 

maio 20, 2021

"Dark patterns" na governação de países

Os argumentos dos Estado Europeus para a manutenção dos Jogos de Azar — Euromilhões, Raspadinhas, etc. — defendem que são a melhor forma encontrada para manter vivos dezenas de projetos sociais e culturais. Sem estas, centenas de projetos relevantes cairiam, e seria necessário encontrar alternativas no Estado para os manter. Assim, em termos puramente abstratos, as Raspadinhas são vistas pelos Estados como Impostos Voluntários. As pessoas só "pagam" se quiserem, e desse modo cria-se um instrumento de geração de receitas adicionais que não é contabilizado enquanto tal, e que é, dizem ou querem fazer acreditar, igual para todos. Só há um senão, é que a ideia de Voluntário e Equitativo não tem sustentação. 

maio 16, 2021

A doce canção que embala as crenças sociais

Quem quer que pegue em “Canção doce”, de Leïla Slimani, fica logo na primeira página a saber que está perante uma história de crime, um dos mais hediondos — o assassínio de crianças —, e, no entanto, não parece ser esse crime que Slimani quer aqui tratar, apesar de passar todo o tempo ao seu redor. É verdade que ficamos ainda a saber que o perpetrador é uma ama, podíamos dizer “a ama”, tal a convenção se afirmou e foi explorada ad nauseum pela literatura e cinema. Mas sabemos também que “Canção Doce” foi premiado com o Prémio Goncourt em 2016, o mais importante da literatura francesa, chocando de frente com a ideia de cliché e implicando a necessidade de uma intenção autoral. Assim, se no final da primeira página estamos presos pela artimanha do enredo — saber porque a ama fez o que fez e como —, não deixamos de nos inquietar com o subtexto — o que há aqui de novo?

maio 14, 2021

Meio Sol Amarelo (2006)

Conheci Chimamanda Ngozi Adichie através da sua TED talk “O Perigo da História Única” que me deslumbrou pela oratória e assertividade. Desde então tive sempre curiosidade de a ler, mas só agora o fiz tendo começado com este que é o seu segundo livro “Meio sol amarelo”. Não me desiludiu, embora esperasse mais, mas é uma belíssima obra, e uma grande homenagem à história da Nigéria, nomeadamente para quem acredita que nós somos feitos das histórias que contamos. 

maio 09, 2021

A Tirania de Ter de Ser o "Melhor"

Apesar de repetitivo, "The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?" (2020) de Michael Sandel foi o livro mais transformador que li nos últimos anos, por tocar em aspetos fundamentais da atualidade que explicam as intrincadas relações humanas da nossa sociedade neste início de século. 

Deixo múltiplos pontos que o livro suscitou, com argumentação de Sandel, algumas conclusões e  discussões desses. Começo com o ponto principal:

1. A dignidade do nosso trabalho não é medida pelo ordenado que recebemos. 

maio 03, 2021

A Caverna dos Sonhos Esquecidos

"Cave of Forgotten Dreams" (2010) é um documentário de Werner Herzog sobre a Caverna Chauvet, no sul de França, que contém algumas das mais antigas imagens criadas por humanos (435), há cerca de 32.000 anos. O tom da voz de Herzog é bom e funciona bem na criação da experiência, já os seus comentários e as questões que coloca aos entrevistados deixam muito a desejar. Apesar disso, o documentário é poderosíssimo por nos dar a ver algo que está vedado ao público, mas mais do que isso, por nos aproximar imenso de algo que foi criado há milhares e milhares de gerações e se parece tanto com aquilo que continuamos a criar hoje. É quase espiritual...

abril 30, 2021

Le Guin e o Conservadorismo dos sistemas Anarco-comunistas

“Os Despojados” (1974), de Ursula K. Le Guin, é uma obra de excelência e obrigatória por ser capaz de gerar uma simulação narrativa de um universo no qual funcionam em simultâneo três modelos de organização social — capitalista, comunista e anarquista — não defendendo nenhum dos modelos, apresentando as suas componentes boas, mas evidenciando também os problemas de fundo de cada um. No final do livro sabemos algo, nenhum sistema é perfeito, nenhum sistema responde às ânsias de cada ser individual. Em todos, é necessário fazer cedências a propósito do que acreditamos Ser para podermos Sobreviver.

Imagem da edição de luxo ilustrada da Folio, de 2019, criada por David Lupton

abril 28, 2021

A tinta invisível que suporta as histórias

Invisible Ink: A Practical Guide to Building Stories That Resonate” (2010) é um livro prático, como diz o próprio subtítulo, por isso não se espere aqui grande estrutura, nem aprofundamento de conceitos, menos ainda densidade ou explicações detalhadas. Apesar disso, este trabalho de Brian McDonald acaba sendo bastante recompensador para quem decidir dedicar-lhe um par de horas, já que em tão poucas páginas de texto condensa um conjunto de ideias fundamentais para escrita de histórias para qualquer suporte. O autor está centrado no cinema, e utiliza imensos casos práticos, com particular destaque para Steven Spielberg, mas o que nos conta e explana é aplicável a qualquer meio narrativo. Nas linhas que se seguem deixo uma síntese do que me parece ser o mais relevante do livro.