março 27, 2021

O nosso Movimento molda o nosso Pensamento

Barbara Tversky apresenta no seu último livro, "Mind in Motion: How Action Shapes Thought" (2019), uma teorização sobre a cognição, ainda que não completamente nova, arrojada. Defende que o nosso pensamento não é construído pela linguagem, mas pela ação, pelo movimento. Tversky diz-nos que usamos as palavras para descrever, mas na verdade a nossa mente constrói conceitos por via de imagens mentais criadas a partir da nossa ação sobre a realidade. Damásio tem falado bastante sobre estas imagens mentais, e sobre a implicação da emoção e do corpo nos processos de raciocínio, mas mais próximo ainda, é o trabalho de Benjamin Berger, no livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" (2012), que defende, também, que não processamos a informação em modo de texto, mas por meio de imagens ou simulações mentais. Tversky dá um exemplo clássico, mas que todos nós podemos rapidamente intuir, e que passa pela enorme dificuldade que temos em descrever a cara de alguém em palavras. Isto, para Tversky, é um indício de que a nossa capacidade de pensar não acontece a partir de um processo mental textual algorítmico inato, como defende Chomsky, mas é antes produzida por via da nossa ação no espaço e tempo, pela nossa atuação interativa com o real que nos permite relacionar e construir mentalmente a realidade na nossa mente.

março 21, 2021

A agência de si

As palavras não saem. Deixei passar alguns dias e mesmo assim escrevo e apago, escrevo e apago... Li-o muito rapidamente, não conseguia parar, queria saber o que aconteceria a seguir, mais do que isso, queria saber porquê, e porquê, e novamente porquê. Mas a autora não responde, lança algumas pistas para o ar, mas não se fixa nelas. No final, voltamos ao ponto de partida, só que não, porque a impressão é forte e dificilmente nos deixa. "A Vegetariana" é um livro de 2007, escrito pela autora sul-coreana, Han Kang.

março 14, 2021

O Infinito aberto pela Escrita e o Livro

O Infinito num Junco” é um livro sobre os Clássicos — cultura da Grécia e Roma antigas — focado na invenção da Escrita e do Livro, escrito num tom bastante leve, arredado do formalismo da Academia na qual a autora Irene Vallejo (1979) se doutorou, e que ninguém esperava ver tornar-se num sucesso de vendas em 2020. Em Espanha, além dos múltiplos prémios, saíram mais de 25 edições, e em menos de um ano já vai com mais 30 de traduções — português, francês, holandês, etc. O que tem esta obra para gerar tanto interesse?


março 13, 2021

Perdidos no Pensamento (2020)

Memórias desencantadas sobre a academia, em que se procuram pistas para continuar a acreditar no valor da reflexão, da edificação da vida interior. A questão que move Zena Hitz em "Lost in Thought: The Hidden Pleasures of an Intellectual Life" (2020) é: para que serve uma vida intelectual? O que a leva a questionar o valor da dedicação à construção do pensar. E mais iminente ainda, se o pensamento é o fim, ou é apenas um meio? Hitz não dá lições do alto da cátedra, à lá Séneca. Ela subiu todos os degraus académicos, chegou ao topo, numa universidade de elite americana, e depois resolveu abandonar tudo.

fevereiro 27, 2021

"Oresteia" (458 a.C.)

A “Oresteia” é uma peça relevante enquanto extensão do universo de Tróia, já que dá conta dos eventos que se sucedem à chegada a casa do vitorioso Agamémnon, o rei grego que partiu para vingar a honra do irmão Menelau. Tendo a guerra durado 10 anos, no regresso tinha à sua espera a esposa e o seu povo, mas tinha também uma provação. Agamémnon regressa na posse de Cassandra, uma das filhas do rei de Tróia, Príamo. Mas aquando da sua partida, seguindo as profecias, aceitou sacrificar a sua filha Ifigénia, algo que a sua esposa, Clitemnestra, nunca lhe perdoou. 

fevereiro 26, 2021

A academia e o problema da mente-corpo

Rebecca Goldstein é uma académica da área da Filosofia, tendo começado a sua carreira no domínio da Física, acabaria por mudar-se para a Filosofia e seguir o ramo da Filosofia da Ciência. Isto é importante, porque este seu primeiro romance — "The Mind-Body Problem" (1983) — contém enormes traços autobiográficos. Um dos seu livros posteriores — "Incompletude: A Demonstração e o Paradoxo de Kurt Gödel" (2005) — dá conta da relação entre Godel e Einstein em Princeton, tendo-o lido antes, serviu-me aqui para compreender em muito maior detalhe o mundo e a cultura da autora. Mas, para primeira obra, o que verdadeiramente impressiona, não é o caráter conceptual,  é a audácia. A capacidade de criar uma voz familiar que não se acanha, que se expõe sem constrangimentos.

fevereiro 22, 2021

A resposta é: 42

Foi publicado há dias, 19 fevereiro, um artigo na Science sobre a crise ambiental ocorrida há 42 mil anos, motivada pela inversão dos polos magnéticos da Terra que produziu alterações no campo de forças que protege o planeta da influência de raios cósmicos. A equipa australiana, liderada por Alan Cooper e Chris S. M. Turney, batizaram o evento como “Adams event”, como homenagem a Douglas Adams que escreveu "The Hitchhikers Guide to the Galaxy" no qual inscreveu o nº42 como fonte da vida. Mas o mais importante são os três grandes efeitos referenciados: o desaparecimento de megafauna; a extinção dos Neandertais; e por último, e que mais me interessou, o surgimento das pinturas nas cavernas.

Imagem retirada do vídeo produzido pela Universidade Nova South-Wales, Sydney (ver abaixo)

fevereiro 10, 2021

Clássicos: O Livro de Jó

“O Livro de Jó” faz parte dos “Livros poéticos e sapienciais” do Antigo Testamento, e terá sido escrito entre o VII e o IV séculos a.C., sendo um dos livros da Bíblia cristã mais amplamente citados dentro e fora do contexto religioso. Santo Agostinho cita-o, Tomás Aquino declara a história verdadeira, Martinho Lutero usa-o para definir a santidade. Na literatura, cita-se como a primeira grande obra existencial servindo depois, ao longo de séculos, a múltiplos autores na evocação do significado do humano — de John Milton (“Paraíso Perdido”) a Carl Jung (“A Resposta a Jó”), passando por Dostoiévski (“Os Irmãos Karamazov”) ou Kafka (“O Processo”) ou mais recentemente Terrence Malick (“A Árvore da Vida”). O núcleo do texto assenta no questionar da justiça ou moral divinas, ou como a teologia prefere definir: “o problema do mal” que se equaciona segundo a questão: “Por que sofrem os justos?"

"Filhos e Filhas de Jó desiludidos por Satanás" (1826) gravura de William Blake 

fevereiro 04, 2021

A luta de quem o quiser ler

Estou a ler “A Minha Luta”, paro e fecho o livro, levanto-me vou à cozinha e olho pela janela, vejo a oliveira ainda jovem a querer dar ares de si. Abro o armário tiro uma caneca branca alta e esguia, encho-a com água até meio, coloco-a no micro-ondas. Abro o frigorífico tiro o leite, apanho o vidro de café, pouso ambos na mesa. O micro-ondas toca, abro a porta tiro a caneca ouço o borbulhar da água que se evapora da fervura, pouso-a na mesa. Aparece a Cookie, abana o rabo, dou-lhe uma festa na cabeça enquanto abro o vidro de café. Ela não parece satisfeita, viro o café sobre a taça batendo ligeiramente com o dedo no fundo do vidro para que entorne a quantidade certa. Olho novamente para ela, ela olha para mim, quer dizer-me algo. Vou até à janela ela segue-me contente, abro-a e ela sai a correr, ladra para a árvore alta do vizinho de onde saem chilreios. Está frio, volto a fechar a janela bebo um gole de café, sinto o calor da taça nas mãos, volto ao escritório. Sento-me no sofá, duas almofadas de cada lado, olho para a capa de “A Minha Luta” volto a pegar-lhe leio mais algumas páginas volto a parar e a fechar. Olho pela janela e interrogo-me, "porque continuo a ler-te?"