dezembro 27, 2020

Da inconsequência das nossas vidas

"A Vida Modo de Usar" (1978) de Georges Perec é um clássico muito pouco lido, não só pela dificuldade de suster a leitura ao longo das 500/600 páginas, dependendo da edição, mas também pela dificuldade de chegar ao seu propósito. Enquanto o lia, fui-me dividindo entre as qualificações de obra-prima e obra de artesanato. O domínio da arte de contar histórias é virtuoso, tal como é o domínio da escrita, contudo, todas essas competências parecem, em momentos, estar unicamente ao serviço do mecanismo criado por Perec. É preciso chegar ao final, bater com a cabeça na parede, questionar o que acabámos de ler, relacionar, e voltar a equacionar, para chegar a compreender o substrato escondido e reconhecer o génio do criador.

Considerações Breves

1 - Perec era um estruturalista convicto, tendo pertencido ao movimento OULIPO, criado por Raymond Queneau, a quem dedica esta obra. Este movimento precede o pós-modernismo, podendo confundir-se, mas distingue-se por seguir uma via concreta e distinta: a rigidez estrutural. Ou seja, os criadores não escrevem de forma livre, menos ainda caótica como os pós-modernistas, mas antes o fazem seguindo conjuntos de regras, ou como eles preferem dizer: “restrições de escrita”. Um exemplo máximo disto pode ser visto no livro “La Disparition” (1969), também de Perec, escrito integralmente sem nunca fazer uso da letra “E”.

Placa de Rua francesa, apesar de falsa, criada como homenagem a Georges Perec, em particular ao trabalho "La Disparition", demonstrando a ausência do uso do "E".

Esta abordagem baseia-se na ideia de que a criatividade brota das restrições, por isso se ditarmos constrangimentos ao que pode ser feito isso poderá conduzir o criador a ir além. De certa forma, liga-se ao ditado de que a criatividade nasce da necessidade. Contudo, a abordagem apresenta alguns problemas, como veremos à frente na análise do livro em questão.

2 – O plano estrutural usado para conceber “A Vida Modo de Usar” assenta num corte de perfil de um prédio, que nos permite olhar para todas as peças de habitação do mesmo. Perec esboçou assim um diagrama com 100 quadrados, 10 por 10, com cada quadrado a fornecer o constrangimento ao mundo que pode ser contado (ver imagem abaixo do plano do imóvel). Os quadrados, por sua vez, fornecem não só personagens, mas também elementos para a produção de histórias, que foram produzidas previamente em listas — de quadros, livros, mobiliário, animais, objetos, cores, etc. Os elementos em si, são depois emparelhados em duplas e distribuídos pelo prédio, seguindo uma lógica de grelha, do tipo puzzle de Sudoku. Para a passagem entre cada quadrado, Perec não segue a ordenação numérica, mas faz uso do chamado algoritmo do cavalo, do xadrez, que lhe permite saltar entre quadrados sem deixar rastos de aparente relação no discurso. Todas estas regras podem ser estudadas em pormenor, uma vez que Perec as forneceu, e nos dias de hoje podemos analisar as mesmas na net

Desta forma Perec tinha construído a verdadeira "máquina de fazer histórias", já que os espaços de habitação poderiam dar origem a tudo o que pudéssemos imaginar, e as regras fariam o resto funcionar por si.

3 – Apesar das dezenas de histórias contadas ao longo do livro, existe uma história central, que atravessa todo o livro, e se relaciona intimamente com o trabalho de Perec, e diz respeito à personagem de Bartlebooth, alguém tão rico que nada existia na vida capaz de lhe interessar, por isso encetou um projeto para se manter ocupado por toda a sua vida, este consistiria em: passar 10 anos a aprender a pintar a aguarela, de 1925 a 1935; depois passar 20 anos a viajar pelo mundo, pintando 500 aguarelas, que iria enviando para que fossem transformadas em puzzles, de 1935 a 1955; e por fim, passar os restantes 20 anos a reconstruir esses puzzles, após o que seriam reenviados para o local onde foram pintados, com uma lata de diluente, para que fossem destruídos, de 1955 a 1975.
Repare-se como o trabalho de Perec se vai aproximar do trabalho de Bartlebooth, a construção das telas e o seu recorte em puzzle, para que possam ser reconstruídas e esquecidas pelos leitores do seu livro.


Experiência de Leitura

A - Começar por dizer que se as histórias, individualmente, são interessantes e por vezes até bastante envolventes, na generalidade o processo de leitura de quase 600 páginas sem causalidade concreta entre as dezenas e dezenas de histórias, torna o processo bastante penoso. As regras criadas por Perec parecem só funcionar para si, enquanto criador e organizador dos espaços, já para o leitor, não ajudam nem servem qualquer propósito. 

Esta primeira constatação vem ao encontro de uma das minhas primeiras recusas da premissa de Perec, o puzzle de cartão, por o considerar vazio em termos de jogabilidade. Ou seja, o recorte das peças é irrelevante, já que todo o trabalho se centra na reconstrução mental da imagem em causa. Mas, Perec abre o livro defendendo que o puzzle que lhe importa é o de corte vitoriano, em que o criador do puzzle toma decisões sobre como e onde cortar as peças, ao contrário dos contemporâneos que são cortados por máquinas em peças iguais (ver imagem abaixo). Contudo, isso é mera ilusão, já que não decorre daí qualquer tipo de acrescento ao enigma visual. Repare-se que ou o recorte segue as formas concretas do desenho, e se revela muito facilmente (ver puzzle do mapa da Europa, abaixo), ou então segue modelos de recorte externos à representação (ver puzzle colorido e as formas dos recortes, abaixo) que acabam valendo o mesmo que fazendo uso do recorte automático. 

Efeitos do recorte: à esquerda, recorte mecânico; à direita, recorte manual

Puzzles de recorte vitoriano: à esquerda, um puzzle recortado seguindo com as formas dos países do mapa da Europa; à direita, um puzzle colorido e a imagem das suas peças constituintes, os recortes seguem formas externas às formas da representação final.

Da mesma forma, quando olhamos ao trabalho de Perec, na elaboração dos saltos entre histórias, que são as suas peças do puzzle, tanto faz que ele salte em L, como em Z, ou noutra forma qualquer, não se constrói qualquer causalidade daí, de modo que nada se ganha ou perde, é mero artifício vazio, tal como são os recortes de puzzle.

O algoritmo do cavalo, ou saltos em L. Imagem do filme de animação de Clarence Stiernet

Animação que mostra os saltos em L entre cada uma das peças de habitação do prédio de Perec

B – A relação entre Bartlebooth e Perec acontece na inconsequencialidade. Bartlebooth não tinha interesse por nada, concebeu todo um plano para apenas ter um propósito que o mantivesse vivo, de dia para dia, mas sem qualquer objetivo ou vontade de produzir qualquer resultado efetivo, antes pelo contrário, tudo o que resultasse deveria ser destruído. Perec, de certa forma segue a mesma ideia, criar todo um sistema altamente complexo de construção do romance que servisse apenas este em particular e mais nenhum, mas não objetivasse a nada mais do que a criação do próprio sistema.

Este ponto, é talvez o ponto alto do romance, já que nos lança na mais pura indagação filosófica, nos dois pontos que se sucedem:

B1. Deve um romance ter algo para dizer, ou deve constituir-se num mero enredo de eventos e personagens que nos ajudam a passar o tempo?

B2. Enquanto seres humanos e criativos que somos, devemos almejar a ter uma vida consequente? Devemos nos esforçar para deixar a nossa marca? Servir de exemplo e deixar um legado que sirva quem vem atrás? 

A edição portuguesa da Editorial Presença, de 1989, apresenta a belíssima tradução de Pedro Tamen


Conclusão

Olhando aos dois pontos, A e B, a resposta torna-se por demais evidente, apesar de eu só agora, após ter escrito estas linhas, ter visto essa evidência de forma cristalina. Assim, as histórias das nossas vidas não vivem da causalidade, porque não vivemos num mundo predeterminado, antes vivemos numa realidade regulada pelo acaso. Como tal, construir todo um conjunto de regras, com base num conjunto de crenças ou valores rígidos, para com isso chegar a produzir o nosso legado, seja para os nossos filhos ou para a humanidade, é totalmente inconsequente, para não dizer uma perda de tempo.

Georges Perec

Por isso, o título da obra, para a qual não se encontra explicação nas dezenas de histórias contadas, surge do resultado vazio da amálgama final. Perec, como todos aqueles que algum dia se dedicaram a criar algo, questiona aqui a razão essencial de todo o processo de criação humana.

De certa forma, o resultado deste texto liga-se ao que nos foi proposto pela Pixar, através do filme “Soul” (2020) de que aqui dei no dia de Natal. Contudo e paradoxalmente, aquilo que as duas obras fazem é ecoar pela Eternidade o pensamento de Epicuro.

O Mito de uma Revolução sem Sangue

As histórias que contamos e a História nem sempre estão em sintonia. Prevalecem as teorias que queremos, a verdade distorcida pela preferência do como deveria ter acontecido, desprezando-se os elementos que possam perturbar essa visão una e coerente, mesmo que longe da verdade. O caso dos mortos do 25 de Abril 1974 é um caso paradigmático disso mesmo. Se perguntarem à grande maioria dos portugueses, residente ou não no nosso país, eles responderão como esta Guia ou este Polícia responderam em julho 2015:

Guia em Lisboa: "Desculpe, mas deve estar enganada. Não morreu ninguém no 25 de Abril."

Polícia em Lisboa: "Mortes no 25 de Abril? Aqui? Só pode estar enganada."

E no entanto, os mortos existiram, mas mais importante ainda, as pessoas existiram, tinham famílias que deixaram para trás em nome de uma Revolução. Famílias que os continuam a recordar, apesar de lhes dizermos na cara, enquanto país, que os seus entes nunca existiram. 

"Seis nomes sem biografia, encontrados no virar de uma página, são como seis cadáveres desconhecidos, nos quais por pouco não se tropeça ao cruzar uma esquina (...) João Guilherme de Rego Arruda, José James Harteley Barneto, Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Giesteira, António Lage e Manuel Cândido Martins Costa (...) Há 45 anos, foi aqui que eles morreram e de imediato começaram a ser esquecidos."

Isto impressiona mais quando o que se diz a seguir se continua a viver nas nossas livrarias em 2020:

"Este livro não falará de personalidades e vedetas da Revolução de 1974 ou, em particular, do Estado Novo; já há tomos suficientes nas livrarias dedicados ao assunto. Só biografias do ditador de Santa Comba Dão encontram-se pelo menos cinco no mercado – as personalidades canhestras da História sempre foram objeto de contemplação."

Fábio Monteiro tenta traçar nestas páginas um conjunto de biografias dos nomes que deram a vida pela nossa liberdade, mas faz mais do que isso, presta um Serviço Público ao país pela Homenagem que realiza aos 6 cidadãos portugueses, fazendo aquilo que o nosso Estado em quase 50 anos nunca teve coragem de fazer. A história do estudante de filosofia açoriano, João Arruda, é particularmente dolorosa de ler, mas não é menos a de Fernando Giesteira, de José Barneto e Fernando Reis, e sim também as daqueles que todos desejam apagar: António Lage e Manuel Costa.

A placa colocada na Rua António Maria Cardoso, não é um reconhecimento do Estado Português, mas de um conjunto de cidadãos anónimos

Apesar de ser um livro de tom jornalístico, Monteiro não se limita a descrever o que aconteceu e suportar com factos da época, relatos escritos ou fotografias, juntando-lhes o essencial que são as entrevistas realizadas com família sobrevivente, ao longo de todo o livro, o autor procura compreender as razões, dá corpo à interpretação do sucedido, não apenas do esquecimento nacional, mas também do esquecimento de cada nome em particular, das suas implicações familiares, mas também políticas.

“Ninguém neste país se lembra do meu pai e dos outros que, como ele, morreram no dia 25 de Abril. As pessoas da minha idade não sabem sequer que houve mortos naquele dia.” Filho de José Barneto

E é isto que continuamos a contar uns aos outros como fica claro nesta citação que Fábio retira da revista Visão Júnior, de 2016, responsável por moldar as crenças dos mais novos:

“Durante o dia, a população de Lisboa foi-se juntando aos militares. E o que era um golpe de Estado transformou-se numa verdadeira revolução. A certa altura, uma vendedora de flores começou a distribuir cravos. Os soldados enfiavam o pé do seu cravo no cano da espingarda e os civis punham a flor ao peito. Por isso se falava de Revolução dos Cravos. Foram dados alguns tiros para o ar, mas ninguém morreu nem foi ferido.”

Uma nota final. Não se pretende com este reavivar de memórias esquecer muitas outras mortes, à mão dos subalternos do Ditador que governou este território por mais de 40 anos. Essas mortes, serão para sempre lembradas, mesmo quando certas franjas da nossa sociedade se erguem para enaltecer alegadas de virtudes de quem ignorou completamente o povo que julgava para si, e para os seus, estar a governar. Nem, também, se pretende apontar o dedo a quem ousou levantar-se e por fim a tão pérfida governação, porque com ou sem mortos, fizeram aquilo que foi necessário para recuperar a Liberdade para todos os portugueses.

dezembro 26, 2020

Design de Narrativa em Gabriel García Márquez

"Crónica de uma Morte Anunciada" (1981) pode ler-se como crónica, relato de eventos ocorridos, como o próprio título sugere, mas se melhor analisado poderemos ver que é um trabalho de narrativa experimental, como muito bem identifica Jane Alison na sua análise em "Meander, Spiral, Explode" (2019). Alison diz-nos que Márquez não conta uma narrativa linear, cronicando os eventos na sua ocorrência cronológica, mas antes o faz por meio de uma narrativa radial, expondo múltiplos elementos ao redor do evento e em direção ao clímax (ver imagem abaixo). À medida que ia lendo, fui concordando com Alison, e se tentei em parte compreender porque Márquez o fez, centrei-me mais em tentar perceber porque funciona para nós enquanto leitores.

Estrutura narrativa radial, uma proposta de Jane Alison

Se o relato dá conta de um assassinato consumado, logo nas primeiras páginas ficamos a saber: quem morreu e quem assassinou, assim como quando e porquê; ficando pouco para atiçar a curiosidade de quem lê, e no entanto seguimos atrás de Márquez sem qualquer problema, lendo sofregamente tudo, tentando entrar na cabeça de cada personagem que nos propõe, tudo para descobrir mais e mais sobre o "como"; porque é apenas isso que nos falta para fechar a história que se conta.

Mapa dos eventos de "Crónica de uma Morte Anunciada", criado pelo internauta JJ Marquete. Aqui podemos ver como todos os personagens e todos os eventos se ligam de forma centrípeta em relação à personagem principal de Santiago Nasar, o morto.

Enquanto lia, e tendo em conta o design da narrativa, fui-me sentido como no meio de uma pequena aldeia, ouvindo tudo e todos, aprendendo mais e mais sobre o como aconteceu. O crime é algo que nunca para de nos atrair, por mais que a nossa consciência tente dizer-nos que não nos diz respeito, é difícil passar ao lado de um acidente sem tentar olhar. Mas não é pela morbidez, na verdade o mesmo acontece quando o acidente não envolve feridos ou mortes, como um simples assalto. Por isso, o que temos é no fundo uma perturbação do estado das coisas, do padrão de normalidade, e a nossa ânsia ativa-se para perceber o que produziu essa alteração no padrão: o quê, quem, quando, porquê e claro como.

Inevitavelmente, isto prende-se com a nossa insaciável vontade de aprender, porque, evolutivamente, sobrevivemos melhor quanto melhor estivermos preparados, não só para lidar com os problemas, mas também para os antecipar e prever, medindo o alcance das suas consequências e evitando os seus potenciais danos.

E é disto que Márquez se aproveita, como no fundo aproveitam as histórias que se contam sempre, mas neste caso Marquez torna essa nossa avidez muito mais evidente porque poderíamos dizer que já sabíamos tudo o que havia para saber, contudo verificamos que assim não é, que à medida que as pessoas vão falando, vamos apreendendo dados desconhecidos sobre o sucedido e isso mantém-nos engajados, tentando encaixar os novos dados no modelo que já construímos sobre o que aconteceu e tentando compreender se se altera ou não a nossa perspectiva. Como se estivéssemos a tentar chegar a uma espécie de certeza absoluta sobre o sucedido. Enquanto o criador conseguir apresentar novos dados sobre o evento que possam de algum modo transformar o modo como pensamos que tudo aconteceu, a nossa atenção mantém-se e o interesse não desaparece.

dezembro 25, 2020

Filosofia no mundo Pixar

Depois da aventura neurocientífica de "Inside Out" (2015), a Pixar, novamente pelas mãos de Pete Docter, traz-nos uma aventura filosófica com "Soul" (2020). Se em "Inside Out" nos era dado a perceber como a nossa maquinaria interna nos faz sentir e agir em cada momento, agora chegou a vez de compreender o Sentido da Vida, com base em ideias de Aristóteles e Epicuro. Esta é a questão que nos persegue desde a Revolução Cognitiva, mas que teve a sua génese efetiva na Antiga Grécia, não tendo nós ainda encontrado resposta. Apesar de ser um filme para crianças, é um filme também para adultos, por isso não se espere algo menor, basta deixar-se levar e entrar pela reflexão adentro.

Vejamos o que nos disseram na Antiga Grécia:

Sócrates disse, para os seus juízes no seu julgamento final, "não têm vergonha da vossa ânsia de possuir tanta riqueza e procurar reputação e honras o mais possível, enquanto não se preocupam nem pensam na Sabedoria ou Verdade, ou no melhor estado possível da vossa alma?"

Platão passou então a buscar a “harmonia da alma”, algo que acreditava só ser possível por via da conquista do conhecimento mais elevado que para ele residia na Forma do Bem Comum. Contudo Aristóteles quebra com a ideia do Comum e centra-se na felicidade do indivíduo ao longo da vida:

"a função do homem é viver um certo tipo de vida, e esta actividade implica um princípio racional, e a função de um bom homem é o bom e nobre desempenho desta, e se alguma ação for bem executada é executada de acordo com a excelência apropriada"

Aproximamo-nos aqui da ideia de encontrar a razão que nos motiva, a paixão interna que proporciona energia suficiente para chegar à excelência. É por aqui que "Soul" começa, definindo-a como a responsável pela "Chama" de cada um. Por sua vez, a mesma é também defendida por via da psicologia, nomeadamente o Flow de Mihály Csíkszentmihályi, com o filme a dar conta da "Zona", um lugar transcendente entre a vida e o além que se atinge quando se está totalmente focado no desempenho da excelência individual.

Mas é Epicuro que quebra com todas as obrigatoriedades dizendo que tudo depende apenas e só da Eliminação do Medo.


Ou seja, tudo assenta na Busca de Ausência de Sofrimento e Ansiedade, e "Soul" leva-nos até aqui.


E é isto, não assim referenciado, mas está lá tudo, nas peripécias apresentadas pelo filme que nos fazem progredir por entre os múltiplos conceitos ao longo dos 90 minutos. O resto deixo para quando virem, apreciarem e puderem refletir...

dezembro 23, 2020

Comunidade (1964) Luiz Pacheco

Um pequeno livro que é do mais intenso que podemos ler em português, pelo modo como fala rente à carne, à "máquina" humana como lhe chama Luiz Pacheco. É um exercício de forma, mas consegue elevar-se e transcender a mesma para nos tocar, nos fazer sentir o que é ser-se um ser feito de carne, pele, curvas, fluídos e estar-se vivo. O calor do toque, da proximidade, da carne humana é aqui o centro da peça.

Desenho de Teresa Dias Coelho, publicado no livro "Comunidade" (1964), sexta edição (1980:31)

Se o livro nos impressiona e as ilustrações ajudam na atmosfera, ler as palavras do filho de Luiz Pacheco, em entrevista com Anabela Mota Ribeiro para o Público em 2015, faz toda a obra ganhar uma densidade ainda maior:

"Estou lá, é o meu nascimento. Aquilo é a minha terra. Tive cinco famílias de acolhimento, dezenas de casas. Não tenho nenhum sentimento de pertença a uma terra. Quando pergunta onde é a minha terra, é aquilo. Naquele texto está tudo o que é relevante."
Paulo Pacheco, in Público 2015

Vale a pena ler o resto da entrevista para compreender melhor quem era Luiz Pacheco, de onde veio, como viveu, como passou pela vida.

Excerto de "Comunidade" (1964)

Não se compreende como uma obra destas não se encontra à venda e em múltiplas edições de qualidade, ou não é mais discutido na cena nacional. Ainda que se perceba que o sentimento ali plasmado possa não agradar a uma certa elite, o texto tem um enorme alcance e merecia maior apreciação da nossa parte.

Lu Xun, "O comunismo comia crianças"

"O Diário de Um Louco" (A Madman's Diary) (1918) de Lu Xun é um dos livros escolhidos pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo, e não é um livro fácil, apesar de pequeno, por causa da distância temporal e cultural. Não sou especialista em cultura chinesa, menos ainda na do início do século passado, por isso senti dificuldade em compreender o seu verdadeiro alcance numa primeira leitura. Isto agrava-se, porque o texto está escrito como metáfora o que obriga a pesquisa de contexto, sem o que faz parecer tudo muito indiferente. 

Uma cópia de "O Diário de um Louco" no Museu de Lu Xun, Pequim

Lu Xun conta a história de um homem semi-esquizofrénico que sofre de problemas da perseguição e que acredita que os seus amigos, vizinhos e familiares querem não só matá-lo, mas principalmente comê-lo. A meio do conto, percebemos que o personagem está completamente ensandecido, ou parece estar, porque em todo o lado só vê canibais.

Vamos ao contexto. Lu Xun parece pretender com esta história dar conta daquilo que a sociedade chinesa estava a fazer ao indivíduo chinês. A não permissão do livre pensar, o ter de ser igual a todos os demais, é visto por Xun como um processo de canibalização do ser humano. O ato de comer humanos representa o modo como a sociedade chinesa operava na eliminação das diferenças, aniquilando o individual para alimentar o colectivo, criando uma massa homogénea que não se questiona.

Enquanto lia o texto questionei-me sobre uma ideia que é costume ouvir quando se defende o comunismo no nosso país, e noutros lugares: "afinal os comunistas não comem crianças ao pequeno-almoço". No Expresso existe um artigo que só liga a frase aos regimes de Estaline e Mao e a períodos de fome que terão conduzido a surtos de canibalismo. Contudo, parece-me que a origem desse mito é anterior, e reside nesta obra de Lu Xun, não só pelo reconhecimento que o texto teve e continua a ter, mas acima de tudo pela frase com que o conto termina:
"Talvez ainda haja crianças que não tenham comido homens? 
Salvem as crianças...
Esta frase surge no final completamente desligada do resto do texto, já que nunca antes se fala das crianças, mas a interpretação mais comum é simples: Lu Xun já não acreditaria ser possível salvar aqueles que tinham sido endoutrinados, era preciso esperar pelas próximas gerações e para isso era preciso salvar as crianças.


O conto pode ser lido completo no portal Marxists.org.

dezembro 19, 2020

Espinosa e a necessidade de Ser Especial

Terceiro livro de Yalom dedicado a romancear as ideias de um filósofo. Depois de Nietzsche em 1992 e Schopenhauer em 2000, em 2012 foi a vez de Espinosa. São três obras de elevado interesse pelo modo como facilitam a entrada na complexidade dos quadros teóricos de cada um destes filósofos. Por via do simples contar de histórias, Yalom traz de volta à vida os pensadores, permitindo-nos dialogar com eles. Não se espere obras de grande desenvoltura literária, o foco são as ideias e os criadores das mesmas, a literatura está aqui ao serviço. Mas em termos de apresentação e discussão teórica, Yalom impressiona, tornando simples e acessível o complexo. Ao contrário dos anteriores filósofos, nada tinha lido escrito pelo próprio Espinosa, apesar de por várias vezes me ter aproximado dele. Talvez por isso, por funcionar como descoberta de um novo mundo, foi dos três o que mais mexeu comigo.

Sinopse: Espinosa, judeu refugiado na Holanda, viveu uma vida de castigo e isolamento. Devido aos seus pontos de vista, foi excomungado da própria comunidade judaica de Amesterdão, e banido do único mundo que sempre conhecera. Apesar de viver com poucos meios, Espinosa produziu obras que mudaram o rumo da História.

Se não tinha lido antes Espinosa, tinha lido um outro texto que me serviu de comparativo e nomeadamente de filtro crítico, falo de "Um Bicho da Terra" (1984), um livro de Agustina Bessa Luís sobre Uriel Da Costa, o filósofo português, cristão-novo, que estudou na Universidade de Coimbra e depois emigrou para Amsterdão, no século XVI. Uriel da Costa viveu na mesma comunidade de Espinosa, morreu quando Espinosa tinha 6 anos. Desde já, dizer que é uma tontice dizer-se que Espinosa era português, e colá-lo na capa do livro ainda pior. O seu pai fugiu de Espanha para Portugal, e de Portugal para a Holanda, Espinosa nasceu em Amsterdão. Se é verdade que falava e escrevia inicialmente em português, isso não faz dele português. Mais, tendo em conta o facto de ter sido ostracizado por todos os países por onde passou, tendo de publicar sob anonimato, diria que Espinosa era sim um Cidadão do Mundo.

O livro de Agustina serviu-me então de filtro crítico porque quando ia a meio do livro de Yalom, surgiu a história de Uriel, de forma muito breve, e por isso voltei para ler o que tinha escrito sobre o livro de Agustina. Foi então que me apercebi que não só Yalom não dava conta da verdadeira importância da figura de Uriel, do seu legado filosófico, como se abstinha totalmente de ligar a sua personalidade e ideias às ideias de Espinosa. Foi então que me apercebi que Yalom pretendia apenas uma coisa, cultuar Espinosa. Para esse efeito não podiam ser apresentados elementos que ombreassem. Espinosa tinha de ser o primeiro e mais dotado de sempre naquela comunidade e no mundo. Repare-se no seguinte diálogo:

Espinosa: “o meu pai (...) falou-me da vossa elevada opinião sobre a minha mente — "inteligência ilimitada" — foram as palavras que ele vos atribuiu. Foram de facto estas as suas palavras? Ele citou-o correctamente?”

Rabi Mortera: “Sim, essas foram as minhas palavras”

Yalom segue um modo de novelização completamente oposto a Agustina, já que esta procurava acima de tudo um registo histórico para a posterioridade, sem exageros nem inverdades, enquanto Yalom não se preocupava com o que tinha de ficar por dizer, desde que conseguisse criar na mente do leitor a figura de uma espécie de Deus Filósofo, pronto a ser seguido pelo leitor. Com esta crítica, não estou a dizer que Espinosa não fosse uma mente brilhante e um filósofo profundamente dotado, mas continuava sendo um humano. Porque a diferença entre os dois livros, sobre Uriel e Espinosa, é a demonstração do primeiro de que não existem super-homens, mas que o conhecimento se constrói na senda de muitos antes de nós. Não nascemos ensinados, nem temos propriedades capazes de nos colocar do lado de fora da espécie. Construímos a partir daquilo que os outros antes de nós construíram. 

Yalom enfatiza múltiplas vezes que Espinosa teria uma inteligência fora do normal, que era alguém completamente sobredotado, alguém diferente de todos. Usa depois outras figuras de culto como Goethe, Kant ou Einstein para levar ainda mais longe o seu endeusamento. Repare-se que este tipo de endeusamento faz parte da nossa cultura ocidental, adorada principalmente pela cultura americana que se preza pela competição desenfreada. Se enaltecermos o individuo, em vez da teia de indivíduos que contribuí pequenos elementos para o todo, criaremos um maior sentimento de inveja, uma maior necessidade de dar o máximo, e pedalar sem parar. Repare-se nos seguintes casos:

Gutenberg: Inventor da prensa móvel, algo que sabemos há muito não ser verdade, já que existem imensos registos do seu uso muito anterior na Ásia.

Darwin: Criador da Teoria Seleção Natural. A sua teoria surgiu ao mesmo tempo que a de Alfred Wallace. E o que isso no diz é que o conhecimento criado pelo ser humano até àquele momento tornava evidente aquela teorização. Mas antes tivemos Lamarck, e muito antes Lucrécio.

Einstein: Criador da Teoria Geral da Relatividade. Sem os génios de Hendrik Lorentz ou Henri Poincaré Einstein nunca teria chegado à mesma.

Edison: Inventor da Lâmpada Elétrica. Na verdade foi o criador da primeira lâmpada comercializada, porque a lâmpada elétrica existia já em múltiplos outros experimentos.

Lumiére: Inventores do Cinema. Pode-se dizer que foram os primeiros a fazer uma sessão paga de cinema, nada mais.

Jobs: Criador da Interface de Utilizador Gráfica (GUI). Antes tinha sido desenvolvida pela Xerox, onde trabalhava Alan Kay, e antes disso por Ivan Sutherland na U. Stanford.

Esta lista poderia continuar infinitamente, é uma pequena amostra que dá conta do facto de nenhum ser humano ter qualquer comunicação privilegiada com Deus ou qualquer realidade alternativa. Criamos e inventamos apenas aquilo que é possível em cada momento, e o que é possível é limitado pelo que existe em cada um desses momentos. As disrupções ou saltos revolucionários, não passam de “wishful thinking”, porque nunca vamos além da incrementação. Se realmente fossemos capazes desses saltos no conhecimento, não só já teríamos evoluído muito mais, como poderíamos encontrar momentos de invenção na história inexplicáveis, buracos negros de conhecimento. No entanto não existem momentos desses documentados em lado algum. Tudo o que inventámos, seguiu o rumo do conhecimento que existia, porque como nos diz Lucrécio: "Nada pode ser criado do nada."

Contudo, na nossa sociedade ocidental ao contrário da oriental, aquilo que mais queremos ouvir são histórias sobre indivíduos que fizeram a diferença, que foram heróis, melhor ainda, super-heróis. Alcançaram o inalcançável. Lê-se a certa altura, no livro de Yalom: “O meu professor afirmou que Spinoza foi o homem mais inteligente que alguma vez andou na terra.

Mas, é o próprio Espinosa que o diz, aqui no livro de Yalom:

“Portanto, também é verdade que Deus não escolheu o homem para ser especial, para estar fora das leis da Natureza. Essa ideia, creio eu, não tem nada a ver com a ordem natural, mas vem antes da nossa profunda necessidade de sermos especiais, de sermos imperecíveis.

Os judeus afirmavam-se como o Povo Eleito, Escolhido ou Especial para forçar a sua crença nas massas. Mas Espinosa nunca aceitou tal ideia, desde logo porque nem sequer nas escrituras vem inscrito tal. Mas acima de tudo porque Espinosa acreditava que tudo era Natureza e que nesta não cabe o Especial. Tudo vem da Natureza, tudo volta à Natureza. Esta ideia de Especial, de Culto do indivíduo liga-se com a tal necessidade de se manter à superfície da Terra para todo o sempre. Só sendo-se Especial não se será esquecido. Mas como dizia Epicurus,

“A morte não é nada para nós. Quando existimos, a morte não existe; e quando a morte existe, não existimos nós. Todas as sensações e consciências terminam com a morte e, portanto, na morte não há prazer nem dor. O medo da morte surge da crença de que na morte existe consciência.”  
"Eu não era, fui; já não sou, já não me importo."

No fundo, por mais impressionante que Espinosa tenha sido, bebeu bastante no exemplo de Uriel da Costa, assim como foi buscar muitas das ideias a Epicuro, Lucrécio, Aristóteles e tantos outros. Aliás, um dos focos do livro é exatamente a Biblioteca de Espinosa com mais de 150 volumes, para quem quase nada tinha, o que ele mais prezava era o legado de quem o precedeu, a partir do que podia continuar a debater e a construir as suas ideias.

“Porque ninguém, na realidade é mais escravo do que aquele que se deixa arrastar pelos prazeres e é incapaz de ver ou fazer seja o que for que lhe seja útil; pelo contrário, só é livre aquele que sem reservas se deixa conduzir unicamente pela razão” Espinosa in "Tratado Teológico-Político"

Esta minha crítica ao livro foi proporcionada pelo próprio livro, já que Yalom não se limita a falar de Espinosa, ele coloca o mesmo em confronto com o nazismo que bebeu nas suas ideias para criar a sua própria doutrina, subvertendo totalmente o legado de Espinosa. Os nazis não compreendiam como Espinosa poderia ter sido tão iluminado, imensamente respeitado por grandes nomes da história da Alemanha, e ao mesmo tempo ser judeu. Por isso, de forma execrável, fizeram uso do trabalho de Espinosa, dos seus argumentos sobre a religião e o judaísmo para atacar os judeus, mas colocando-se a si mesmos no lugar da Raça Especial.

"A atividade mais elevada que um ser humano pode atingir é aprender a compreender, porque compreender é ser livre." Espinosa in "Ética"

Este trabalho de fusão entre a história de Espinosa e o nascimento da ideologia do nazismo levanta ainda uma outra questão que Yalom não discute mas é por demais evidente. À medida que Yalom vai romantizando o trabalho de Alfred Rosenberg, torna-se inevitável pensarmos sobre as razões por que não foi banida a obra de Houston Stewart Chamberlain? Se ela não tivesse chegado às mãos de Rosenberg, teríamos alguma vez chegado a ter um nazismo tão obcecado com a raça? Contudo, pouco depois, quando vemos os livros de Espinosa serem banidos pelos judeus e pelos cristãos, mesmo tendo sido publicados de forma anónima, a resposta torna-se óbvia. 


Para fechar o texto, dizer que o livro de Yalom pode não ser, ou não parecer, brilhante, mas tendo em conta tudo aquilo que nos dá a conhecer e o modo como nos instiga a refletir, por demais evidente no meu texto acima, torna-se difícil não recomendar a sua leitura. Para mim, foi essencial porque antes de voltar a tentar ler "Ética" (1677), vou seguir a recomendação de ler primeiro o "Tratado Teológico-Político".


Continuar a Ler:

Nietzsche, o psicoterapeuta, 7.2020

Schopenhauer por Yalom, 9.2020



“Le Bruit du Givre” de Lorenzo Mattotti

Não sei quem me recomendou a leitura desta novela gráfica, mas se inicialmente me desliguei da premissa, a meio do livro percebi que tinha cometido um erro de análise, porque o texto tinha dado origem a uma viagem visual de grande intensidade psicológica. Começamos pelo medo de um homem de aceitar prosseguir com um namoro, após o pedido de aceitar ter um filho, esse medo que inicialmente parece insuficiente para ditar o fim da relação é apresentando num crescendo densificado pela componente da arte visual. O texto acaba por seguir, rodopiando no seu auge, lançando amarras para uma redenção que se torna impossível, mas apresentando um olhar final pelo retrovisor da própria vida do homem que funciona como um murro no estômago, dando conta daquilo de que somos feitos nesta vida. Não existe uma defesa de perspetivas, a história é aberta e deixada à interpretação de cada um, por isso o murro no final será sentido diferentemente pelos leitores.
 

“Le Bruit du Givre” (2003)

O livro vale muito pela arte gráfica, particular e marca de Mattotti, mas é acima de tudo da fusão entre aquilo que a história quer dizer e a plástica visual nos faz sentir que emerge o maior impacto deste trabalho. Existe todo um cuidado com metáforas conseguidas por simbolismos visuais que nos fazem parar para refletir no que estamos a ler, e nos porquês das ações e nos efeitos dessas.

Mattotti explicando como constrói o fluxo narrativo-visual [extraído do vídeo abaixo]

Fiz uma pesquisa na net e encontrei um pequeno documentário do canal Arte sobre o autor que deixo aqui abaixo. Gostei particularmente da sua discussão sobre o modo como trabalha o fluxo o narrativo-visual, colando todas as pranchas na parede para poder ganhar uma noção mais completa desse fluxo.    


"Lorenzo Mattotti, le triomphe de la couleur" (2004) de Ludovic Cantais

dezembro 16, 2020

Atlas dos Videojogos: o que anda a fazer o Estado?

A Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos - SPCV — pelas mãos da Patrícia Romeiro, Flávio Nunes, Pedro Santos e Camila Pinto — voltou à publicação do Atlas do Setor dos Videojogos em Portugal, atualizando o primeiro olhar de 2016, com dados dos últimos três anos num número #2 (2020). Esta série forma o único documento com dados oficiais capaz de dar conta do estado da área dos videojogos em Portugal, levando em conta não só a Indústria, mas também a Formação. De uma forma geral, os dados não mudaram muito, nota-se uma maior atração internacional, mas acima de tudo nota-se o total alheamento do Estado no que toca ao sector, o que é responsável por uma forte amputação das possibilidades de crescimento do mesmo, resultando num impacto económico negativo para o nosso país.

Atualmente temos em Portugal 73 empresas e 15 criadores independentes em atividade, responsáveis por terem criado 70 novos jogos entre 2016 e 2019. Estima-se que a empregabilidade ronde os 986 a 1270 trabalhadores e gere receitas anuais aproximadas de 31 Milhões de Euros. Por comparação, a Suécia, apresenta 384 empresas, com cerca de 8000 trabalhadores, que por sua vez geram 1 872 Milhões de Euros. Ou seja, o aumento de número de trabalhadores é fundamental para ampliar e solidificar a nossa indústria, mas também para afirmar o potencial do retorno económico para o nosso país. Recorde-se que as receitas dos videojogos são esmagadoramente obtidas a nível internacional.

Mas como se financiam os videojogos nacionais? 

Segundo os dados apurados neste trabalho, as empresas e criadores independentes estão a financiar os jogos do próprio bolso. Criam, desenham, desenvolvem, testam e distribuem, tudo sozinhos. É inacreditável. Sem uma cultura nacional que acarinhe esta área, não poderemos almejar a aumentar nem o número de pessoas, nem o retorno. Recorde-se que os videojogos têm um papel distinto na forma como unem Cultura e Economia. Os jogos não são artefactos apenas de contemplação artística, são artefactos de design que visam a criação de produto transacionável. 40% dos jogos criados deram lucro, algo que pode parecer baixo, mas é um número completamente distinto daquele que podemos encontrar na indústria de cinema portuguesa. 

Fundos Públicos Nacionais = 0 (zero)

Nesse sentido, é inaceitável que o ICA Instituto do Cinema e do Audiovisual continue a não reconhecer os Videojogos enquanto área do Audiovisual. Depois de ter abandonado o M, da Multimédia na sua designação, em 2007, passou recentemente a oferecer novamente apoios para a área do Audiovisual e Multimédia, contudo o apoio concreto é apenas para: “- Séries de televisão de ficção;- Séries de animação;- Séries de televisão de documentário;- Telefilmes;- Documentários unitários;- Especiais de animação para televisão, designados "especiais TV”

Ora, isto são franjas da Multimédia, ou melhor só a Animação se pode designar como sendo Multimédia, tudo o resto é apenas Audiovisual. Mas repare-se como os Jogos Digitais não surgem, tal como não surge a Ficção Interativa, o Transmedia, os iDocs e Web-docs, os Livros Digitais ou obras de Realidade Virtual ou Aumentada. Ou seja, a Multimédia no ICA continua a não existir enquanto área criativa. 

Mas a verdade é que acreditamos que os Jogos Digitais precisam de um reconhecimento mais alargado do que o ICA e o Ministério da Cultura. É obrigatório ter o Ministério da Economia a olhar para a área. E não apenas pelos potenciais números de empregabilidade ou potenciais milhões de retorno, é que a área da Multimédia e dos Jogos Digitais é responsável por arrastar consigo, devido à sua necessidade de inovação, um conjunto de outras áreas tão importantes como a Informática, o Design, a Arte e os Media, e servir ainda no apoio a áreas nobres como a Saúde e a Educação, veja-se a recente aprovação pela FDA de um jogo digital para o tratamento do Défice de Atenção.

Mas o desprezo do Estado não acontece apenas nos apoios diretos, o mesmo acontece na parte fiscal, ao contrário de vários países europeus como a Finlândia ou a Irlanda, em que temos as empresas com poucos recursos, a terem de verter uma parte considerável dos lucros para o Estado, em vez de verterem para a inovação e criação de novos produtos. Um exemplo simples: se uma empresa gerar 100 000 Euros de lucro num ano, e o quiser reinvestir no próximo projeto terá de retirar desse bolo cerca de 40% para o estado, restando-lhe apenas €60 000 para criar um novo jogo. Assim não vamos lá. Não podemos olhar para indústrias que querem nascer, erguer a indústria nacional, como sendo empresas sólidas, detentoras de lucros milionários. Mais, se queremos atrair massa crítica internacional, assim como investimento, temos de mudar.

O que faz falta, para ambos e dito pelos próprios, é capital, nomeadamente apoio público à área.

As Universidades e os Politécnicos estão a fazer a sua parte, tendo criado 15 cursos de ensino superior — entre TeSP, Licenciaturas e Mestrados. Mas para quebrar o ciclo e dar o salto na ampliação da força de trabalho e na inovação e desenvolvimento o Estado precisa de criar programas específicos para a área, de preferência parcerias entre os diferentes Ministérios, capazes de dar conta da multidisciplinaridade deste domínio e da importância e retorno multidimensional para o país da área.

Fica o meu agradecimento à equipa que coordenou este novo número do Atlas assim como à SPCV pelo apoio à iniciativa que é fundamental para conhecer e identificar o que está a ser feito assim como o que pode e deve ser feito por esta área fundamental.


Descarregar o Altas #1 (2016) e o Atlas #2 (2020)