dezembro 14, 2020

O esplendor das Redes Sociais

Estudos atrás de estudos [1,2] têm demonstrado a necessidade básica de vivermos em grupo, de partilharmos a vida com outros, de dar conta dos nossos amores, derrotas, dores, ganhos, sofrimentos e vontades. Muitos dos recentes estudos da Psicologia Positiva falam disso como condição essencial para a felicidade, para o bem-estar, mas vêm de trás, vêm dos primeiros estudos da psicologia social e da aferição das motivações humanas [3], levando em conta processos de comparação humana [4, 5] e de aprendizagem social [6] que vêm inscritos em nós à nascença. Mas o modo como vamos vivendo, em que o trabalho assume cada vez mais o lugar central da nossa vida, torna tudo isso complicado. O gráfico abaixo ilustra um conjunto de ideias sobre as quais vale a pena determo-nos.

"Who do we spend time with across our lifetime?", Esteban Ortiz-Ospina, dezembro, 2020

Por um lado podemos dizer que a ideia de que a vida são os amigos é muito sobrevalorizada, que tudo se resume ao parceiro, e em última análise, estamos mesmo sozinhos, nada a fazer. 

Por outro lado, julgo que aquilo que este gráfico nos diz, comparando-o com aquilo que a psicologia nos diz que precisamos, é que as Redes Sociais se tornaram na tábua de salvação deste século XXI. Este processo de individualização, destruição das comunidades alargadas, iniciado no século XX com a industrialização e desenvolvimento acelerados, foi conseguido sem uma destruição de todos nós graças ao suporte dos Mass Media que garantiam um fio de relação humana constante, produzindo a necessária estabilidade emocional. No século XXI fomos mais longe, individualizámos ainda mais, mas ao mesmo tempo criámos as redes sociais que nos permitiram abandonar os media de massas, para voltar à relação direta com pessoas, relação comunitária efetiva, ainda que por via de redes digitais.

É um gráfico riquíssimo para reflexão sobre o que somos realmente, que põe a nu muitas falácias sobre aquilo que acreditamos ser.



dezembro 12, 2020

Evidência científica no uso de Videojogos como tratamento de crianças

É interessantíssimo acompanhar o modo como a sociedade e a própria academia reagem aos videojogos, usando e abusando dos mais diversos discursos, mas no final deve valer-nos apenas e só a Ciência, os experimentos com observação empírica de causa e efeito. Uma coisa é analisar alguns jogos, entrevistar algumas crianças e pais, construir um conjunto de teorias, outra bem diferente é realizar testes rigorosos, ao longo de anos, minimizando a contaminação das evidências, para chegar a factos. Isto é algo com que podemos contar da parte da Food and Drug Administration (FDA), a agência que aprova os medicamentos nos EUA e que aceitou este ano, pela primeira vez, um videojogo como medicamento.


O "EndeavorRX" da Akili Interactive é o primeiro videojogo a passar todos os testes de uma agência de medicamentos para ser comercializado e prescrito como medicamento no mundo. A agência americana, a FDA autorizou que os médicos passassem a prescrever o EndeavorRX a crianças entre os 8 e os 12 anos de idade com Défice de Atenção, a chamada ADHD. Isto acontece apenas após a realização de ensaios clínicos realizados com mais de 600 crianças durante um período que durou 7 anos. Um dos múltiplos estudos realizados resultou em: um terço das crianças que já não apresentava vários dos problemas do défice de atenção após 4 semanas de uso do jogo, 25m por dia, 5 dias por semana.
"The EndeavorRx device offers a non-drug option for improving symptoms associated with ADHD in children and is an important example of the growing field of digital therapy and digital therapeutics." Jeffrey Shuren da FDA

Entretanto lembrei-me de um artigo que escrevi para a Eurogamer, no já longíquo ano de 2013 — Videojogos como instrumentos de controlo emocional Os benefícios da estimulação cognitiva — no qual teorizava sobre esta possibilidade. Na altura construí a teoria com base nalguns estudos sobre plasticidade cerebral e sobre o modo como os videojogos nos ensinam a lidar com o falhanço, e ainda na desconstrução do design de jogos como Super Mario e Legend of Zelda. Por isso, satisfaz-me muito saber que a FDA conseguiu chegar a evidências que demonstram isso mesmo.

Repare-se que na altura teorizei sobre assunto, mas tive o cuidado de dizer, e reforçar num artigo posterior aqui no blog, que se tratava de teoria sobre potenciais benefícios dos videojogos, e não provas ou estudos clínicos. Isto era bem diferente de apregoar "certezas científicas" com base em teorias, tal como ainda recentemente se pôde ver no caso, mais um, de Michel Desmurget. Ele dizia algo do tipo "os videojogos estão a tornar os nosso filhos menos inteligentes", e todos os media foram a correr ouvi-lo, quando na verdade Desmurget estava apenas interessado em promover o seu livro "A Fábrica de Cretinos Digitais - Os perigos dos ecrãs digitais para os nossos filhos" (2019). Numa das entrevistas publicada pela BBC, Desmurget respondia a uma pergunta desta forma:
BBC News: "Há estudos que afirmam, por exemplo, que os videojogos ajudam a obter melhores resultados académicos…"

Desmurget: "Digo com franqueza: isso é um absurdo. Essa ideia é uma verdadeira obra-prima de propaganda. Baseia-se principalmente em alguns estudos isolados com dados imprecisos, que são publicados em periódicos secundários, pois muitas vezes se contradizem.
Em uma interessante pesquisa experimental, consolas de jogos foram dados a crianças que estavam bem na escola. Depois de quatro meses, elas passavam mais tempo a jogar e menos a fazer os deveres de casa. As suas notas caíram cerca de 5% (o que é muito em apenas quatro meses!).
Em outro estudo, as crianças tiveram que aprender uma lista de palavras. Uma hora depois, algumas puderam jogar um jogo de corrida de carros. Duas horas depois, foram para a cama. Na manhã seguinte, as crianças que não jogaram lembravam cerca de 80% da aula em comparação com 50% das que jogaram. Os autores descobriram que brincar interferia no sono e na memorização."
Quando li a entrevista fiquei estupefacto. Como é que alguém que se apresenta como neurocientista diz coisas com toda esta certeza, mesmo na presença de tantos estudos contrários? Depois fui procurar artigos do autor e encontrei muito poucos. Encontrei um outro livro, mas que falava de dietas! Acabei por desistir, e na altura nem me dei ao trabalho de partilhar e desmontar a entrevista dele. Mas é apenas um dos muitos casos que servem para demonstrar que falar em "certezas científicas" não é motivo para correr a acreditar. Certezas é algo muito difícil de conseguir, precisamos de dezenas e dezenas de repetições, ao longo de muito tempo e com condições controladas, para poder chegar perto delas.

dezembro 08, 2020

Um rapaz de púrpura

A primeira vez que vi “Purpleboy” (2019) senti uma enorme inquietude que fez surgir a necessidade de ir mais ao fundo do filme. Procurei o realizador, o Alexandre Siqueira, que prontamente respondeu. Não queria explanações, queria antes compreender melhor quem era, de onde vinha e como tinha chegado a “Purpleboy”. A conversa levou-me a descobrir a obra “Viagem solitária - memórias de um transexual 30 anos depois” (2011) de João W. Nery, que decidi ler. “Purpleboy” não é uma ilustração de “Viagem solitária”, tem muitas pontes de contacto, mas são duas obras completamente autónomas. Ao rever o filme, senti-o ganhar densidade dentro de mim. Na primeira vez, não conhecia sequer o tema do filme, não estava preparado para entrar num mundo tão distante e ao mesmo tempo tão sensível e provocativo.

“Purpleboy” é uma obra curta em duração, mas extensa em argumento, muito é apresentado de forma apenas simbólica, por isso o espectador tem de ir atrás. Se o fizer é fortemente recompensado. Não só pelo significado, mas essencialmente pela imersão. O mundo criado pelo Alexandre está carregado de detalhe, por isso a atenção e o investimento na desconstrução é fundamental. O mundo representa-se por meio de uma mescla entre a fábula e o onírico, existindo momentos que roçam o puro surrealismo, mas que uma contemplação mais apurada acaba permitindo ao espectador adentrar e imergir ainda mais.

“Purpleboy” fala de transexualidade, mas fala também de uma busca de si na relação com o mundo e com a família. Alexandre utiliza um conjunto de metáforas poderosas — nomeadamente a escolha pela germinação na terra, com as partes visíveis e as partes escondidas, a proteção dos cuidadores e a dificuldade em sair, mostrar-se e afirmar-se — que envolve num cenário muito particular, o da ditadura no Brasil. O criador experienciou o final dessa era no Rio, o que o aproxima das memórias relatadas por João W. Nery, mas o cenário não é mera crítica política, serve na demonstração da força impositiva de padrões que nada reconhece além da normatividade.

O cuidado na animação é particularmente conseguido, já que não serve a mera dinâmica de cena, ou enquadramento de ação, mas antes imbui cada novo movimento de significado. Daí a necessidade de atenção do espectador, muito do que é dito apresenta-se em breves momentos por pequenas ações — o corte de relva, o invadir do lago de lágrimas, a flor que pinga ou as formigas que explodem — que parecem querer dizer apenas o que mostram, mas denotam muito mais. É claramente este uso da arte da animação que confere particularidade ao trabalho de Alexandre, algo que poderão entender melhor se virem a Masterclass que deu em dezembro passado em Ljubljana, Slovenija. É este trabalho que explica a lista de nomeações e prémios que o filme foi recebendo em festivais por todo o mundo — do Anima - Brussels Animation Film Festival ao Rhode Island International Film Festival, passando pelo Curtas Vila do Conde ou ANIMAGE International Animation Festival de Pernambuco.

dezembro 07, 2020

Viagem eletrizante por meio de palavras

A "Viagem Solitária" é uma das experiências de leitura mais gratificantes por que passei nos últimos anos, porque vem carregado de sensibilidade, mas especialmente porque nos abre a porta a um mundo distinto, difícil de conceptualizar mentalmente, o da transexualidade, tornando-a naturalmente humana. António Houaiss, o criador do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, escrevia como prefácio ao primeiro livro de João W. Nery, em 1984, "Leiam-no e humanizem-se.”

Transexual: "condição do indivíduo cuja identidade de género difere daquela designada no nascimento" (Dicionário Priberam) 

A maior questão que a transsexualidade evoca junto da camada de indivíduos sexuais padrão é: "como sabemos que não é um problema mental?" E isso é uma barreira muito difícil de ultrapassar para muitos. O caso do João é excelente, porque quem lê esta obra aprende a ver o mundo pelos olhos de um transexual. Enquanto Joana nunca gostou do seu corpo, sentiu-se sempre atraído por mulheres, mas sem qualquer pensamento lésbico, sentia-se heterosexual completo. Ler as suas palavras, o modo como sentia e desejava, torna tudo cristalino. Mas se dúvidas houvesse, quem seria capaz de abandonar conquistas de décadas enquanto mulher para se transformar num homem perdendo direito a tudo. Joana era licenciada e mestre em psicologia, professora universitária, adorada pelos seus alunos e colegas. Ao prosseguir com a operação, em pleno 1977, e na clandestinidade, perdeu o direito a usar o nome e os pergaminhos. O João nasceu com 27 anos. A pessoa que era continuou a sê-lo, num corpo diferente, mas para a sociedade passou de mulher Mestre a homem Analfabeto. Deixou o Rio e a academia e tornou-se agricultor no interior do Brasil.

O relato de algo assim impacta tudo aquilo que assumimos como realidade padrão. Mas maior do que isso é sem dúvida a frontalidade e lírica do relato. João, desde a infância demonstrou uma sensibilidade e empatia absolutamente à prova de ferro. A forma como escreve, como vê o mundo que sempre o mal-tratou, compreendendo a dificuldade desse mundo em relacionar-se com o diferente, o aparentemente impossível, o quase extra-terrestre, é digno de laudo.

“Havia um abismo entre como me viam e como me sentia.”

“Transformei-me literalmente num marginal, pois vivia à parte, à margem. Não pertencia nem ao grupo majoritário heterossexual e aceito, nem a qualquer grupo minoritário e discriminado. Não me sentia mulher nem homossexual. Ainda desconhecia todas as categorias “inventadas” em meados do século XX. Sabia que não era aprovado pela maioria. Em que grupo existente me enquadrava?” 

“Vislumbrei duas saídas: acabar comigo ou lutar contra o impossível. Não queria morrer. Sabia que só teria uma vida. Embora fosse uma desgraça, toda trocada, não haveria outra chance. Estava vivo sem comparações.”

A leitura do livro ajuda-nos a compreender como sente alguém a intensidade de estar vivo num corpo que não corresponde ao conceito de si. Como a componente sexual pode funcionar, sentir prazer e atingir o orgasmo, mesmo não existindo recursos físicos apropriados à função esperada. A mente toma conta da biologia e encarrega-se do frémito. O livro fala também de quem envolve a pessoa, da dificuldade de lidar com a não aceitação, de lidar com a mudança, coloca a questão sobre o passado que deixa de existir e o novo presente, tudo na mesma pessoa, na mesma irmã que passa a irmão. É um relato carregado de detalhe sobre o humano e as teias sociais que o sustentam, tão vitais e ao mesmo tempo tão frágeis.

Por isso, este livro do João, que nos deixou em 2018, não presta apenas homenagem a todos os transexuais do mundo, ele é um hino à humanidade, à nossa capacidade de nos transcendermos, de sermos tolerantes e abertos ao outro, qualquer que seja a sua condição. É uma obra magnífica, por tudo o que o João tem para nos dar, e pelo modo electrizante como dá conta do mundo ao seu redor, capaz de nos agarrar na primeira página e só nos largar na última. 

Façam um favor a vós mesmos, leiam-no, o vosso mundo será mais precioso.


[Nota no GoodReads.]

dezembro 06, 2020

Do logro narrativo

Tenho notado um cada vez maior uso do logro narrativo, que se qualifica por um tipo de entretenimento altamente manipulativo, criado pelos contadores de histórias contemporâneas, talvez com maior incidência no domínio da ficção científica e do thriller. Cria-se todo um mundo-história altamente credível, no qual se apresenta uma premissa extremamente instigante que serve para manter os recetores completamente engajados, mas no final nada há para entregar. Ou seja, passam-se as páginas, passam-se os episódios, e a trama vai rodando sobre si, criando a ideia de que a saída está ao virar da esquina, mas o ciclo está fechado porque os criadores não sabem como sair dele. 

O mais recente exemplo aconteceu-me com "Autoridade", o segundo livro da série "Aniquilação" de Vandermeer. No primeiro tomo não são dadas respostas, mas a trama evolui, ficamos a saber muito mais sobre o quê e o quem. No segundo livro, começamos muito bem, rente à análise que está a ser feita às pessoas que voltaram da última expedição, mas assim como começa, assim continua e assim acaba, sem dali sairmos. Vandermeer escreve como se tudo fosse muito importante, como se cada personagem, cada espaço, cada detalhe fosse oferecer explicações, respostas, avanços, mas nada, nada serve nada. Sentimos Vandermeer a escrever linhas atrás de linhas, abrindo ruas e avenidas, para mostrar coisas que não são relevantes para o que se pretende efetivamente descobrir, conseguindo assim encher páginas e páginas sem nunca ter de chegar a vias de facto. No final, dá um salto com o personagem, literalmente, e com isso abre o desejo para a leitura do terceiro livro, mas convenhamos que só com muita ingenuidade acreditaríamos que ele teria verdadeiramente algo para oferecer depois de nos ter enrolado um livro inteiro e oferecido uma mão cheia de nada. 

Tinha sentido exatamente isto na segunda temporada do brilhante “The Leftovers”, assim como no sucessor do impressionante "Dark Matter" de Blake Crouch, “Recursion” (2019), que seguem o exemplo mais emblemático deste logro, o inesquecível “Lost”. Aliás, este é um assunto que já aqui tinha discutido a propósito do livro “The Lost Symbol” (2010) de Dan Brown, mas na altura peguei no mesmo por outra perspetiva, a do “objeto último” ou “inatingível”, e que define bem o mecanismo através do qual os criadores produzem o logro.

Em suma, todos estes criadores têm de apresentar trabalho. Precisam de produzir para ganhar a vida, e por isso debitar linhas, páginas, horas de televisão e de jogo é essencial. Não interessa sobre o quê, desde que os leitores e espetadores se mantenham fiéis e continuem a pagar. Só isso interessa. No fundo, estamos a falar de conteúdo literário e audiovisual enlatado, produzido em linhas de montagem, para cumprir a função de mero apaziguamento psicológico dos recetores, ou melhor, de adormecimento das suas funções cognitivas, fazendo-os esquecer mais um pedaço de tempo em que estiveram vivos. Nunca como agora tivemos tantas séries, tantas partes — 2, 3.. 6, 7 —e temporadas sem fim, e por isso nunca como agora tivemos tanta produção criada apenas porque é preciso criar, é preciso manter a máquina a funcionar. Esquece-se aqui a essência do processo criativo: liberdade para transcender não para entorpecer.

dezembro 05, 2020

A política por detrás da Universidade que mata a Curiosidade

Trago um conjunto de reflexões que me foram proporcionadas pela interação de argumentos apresentados por três livros: "The Professor's House" (1925) de Willa Cather, "Leonardo Da Vinci" (2017) de Walter Isaacson, e "A Mind at Play" (2017) uma biografia de Claude Shannon. Porque continuamos a lutar todos os dias? Porque nos sacrificamos? Porquê ter desejo, sentir dor e prazer. Porquê? Para quê? Para quê avançar na educação e construir uma sociedade altamente educada, capaz de proporcionar a si mesma grande conforto, quando tarde ou cedo acabará por colapsar, por razões internas ou externas, mas reduzida a escombros de onde outras terão de voltar a emergir quase do zero?


A resposta parece apontar para a desistência, um niilismo, dada a insustentabilidade de qualquer dos argumentos. Mas se isto nos toca no fundo, e agita o que pensamos e repensamos diariamente, sabemos que a resposta não pode ser o NADA. Algo em nós anseia por mais do que o nada, e procuramos conhecer o que existe para além desse nada. A resposta, parece estar na análise dos nossos antepassados, pessoas que encontraram respostas contra esse nada e que viveram segundo essas mesmas respostas.

Neste sentido, e por fruto do mero acaso, calhou ler "Professor's House" durante o tempo em que andava a refletir sobre a biografia de Leonardo Da Vinci, daí que tenha concluído que na nossa história nenhuma outra pessoa poderia ser melhor antídoto para o nada. Não porque deu respostas aos "porquês", mas exatamente porque quando olhamos para a sua vida percebemos que essa pergunta não faz sentido. Leonardo nunca se questionou porquê, passou toda a sua vida, até à morte, a questionar-se sobre o como. A sua curiosidade por saber como o mundo funcionava era infinita. Foi por isso mesmo que acabei concluindo que Leonardo não era um artista, mas um designer. A arte foca-se excessivamente nos porquês, enquanto o design está totalmente focado nos como. Esta mesma ideia é apadrinhada pela leitura da biografia de Claude Shannon, um engenheiro por natureza, com um espírito de "tinkerer", muito próximo do designer Leonardo, sempre em busca de respostas aos como.

Por outro lado, Willa Cather traz ainda para a discussão a pressão constante a que a Universidade está sujeita pela sociedade e seus políticos, no sentido de apresentar resultados quantificáveis e medíveis, justificadores do investimento público (repare-se que o texto é de 1925). Contudo ao colocarem esta pressão sobre quem investiga, retiram-lhe a essência, destroem-lhe a curiosidade e o engenho. O sujeito investigador, passa a questionar-se sobre o porquê de fazer o que faz, para quê? Sabe que é para melhorar a sociedade, mas sabe que isso é parte de um formalismo político. Dentro  de si, existe um sujeito, um indivíduo, e trabalhar para o suposto bem comum é relevante, mas não chega para apaziguar a constante interrogação interna. 
“Both, with all their might, had resisted the new commercialism, the aim to “show results” that was undermining and vulgarizing education. The State Legislature and the board of regents seemed determined to make a trade school of the university. Candidates for the degree of Bachelor of Arts were allowed credits for commercial studies; courses in bookkeeping, experimental farming, domestic science, dress-making, and what not. Every year the regents tried to diminish the number of credits required in science and the humanities. The liberal appropriations, the promotions and increases in salary, all went to the professors who worked with the regents to abolish the purely cultural studies. Out of a faculty of sixty, there were perhaps twenty men who made any serious stand for scholar (..) They were, moreover, the only two men on the faculty who were doing research work of an uncommercial nature, and they occasionally dropped in on one another to exchange ideas.” Willa Cather, (1925). “The Professor’s House”
Leonardo é hoje imensamente reconhecido pelas suas obras de arte, e no entanto aquilo que o manteve vivo toda a sua vida foram os seus cadernos, a sua investigação sobre o design do mundo — da água à anatomia, do voar aos engenhos militares. Nada do que fez nesses ramos teve qualquer valor para a sociedade, porque nada disso foi publicado em forma ou tempo útil, obrigando aos que o sucederam a terem de redescobrir tudo. Mas se olharmos ao caso de Claude Shannon, o responsável por todo o pensamento que sustenta aquilo que hoje designamos por Sociedade da Informação e Comunicação, nada do que fez alguma vez foi feito com o intuito de criar a Informática ou a Internet. Ambos, Leonardo e Shannon, moveram-se apenas e só pela mais pura e absoluta curiosidade, um é hoje imensamente admirado, o outro mudou o mundo.

Se continuarmos a obrigar os professores-investigadores universitários a focarem-se na produção de artigos em massa e na angariação de projetos apenas em função do retorno financeiro, por mais científicos que sejam, não só conduziremos estes professores-investidadores para o niilismo, matando a sua curiosidade, como os seus resultados não passarão de produtos em série, conduzindo a Universidade ao estatuto de simples fábrica, condenando-a, tarde ou cedo, ao colapso.

dezembro 04, 2020

Animação: Smashing Pumpkins "In Ashes"

Saiu hoje o último episódio da a série de animação"In Ashes" (2020), com a música "Purple Blood" dos Smashing Pumpkins. Em tempos de pandemia, e na impossibilidade de filmar telediscos, a banda resolveu produzir toda uma série de animação em cinco episódios para o lançamento do novo álbum "Cyr". A série trabalha um mundo de ficção-científica e é apresentada em 2D, ainda que se sirva de um conjunto de outros suportes, tais como o 3D, mas mantendo o efeito de ilustração analógica. Esta relação particular com a arte fílmica não é novidade nesta banda, pois em 1995 já nos tinham oferecido um revisitar do filme "A Viagem à Lua" de Méliès, na forma de teledisco de "Tonight, Tonight". 

Billy Corgan escreveu a história e disse que "embora seja (na sua maioria) alegre, 'In Ashes' aborda muitas coisas que enfrentamos todos os dias, e se vivemos numa distopia, no paraíso, ou em ambos, a escolha, dizem alguns, é tua; e pode até mesmo ser uma mera questão quântica." A história da série serve de mote para o tom pretendido para o álbum que segundo Corgan se caracteriza como “a dystopic folly”.
Podem encontrar mais informação sobre o desenvolvimento técnico no AWN

Cada um dos episódios serve uma música do álbum, mas a animação não funciona como ilustração musical, antes a série funciona como filme completo, funcionando muito bem em sucessão. Tecnicamente a animação não é muito detalhada, mas a ilustração e a música compensam, criando uma belíssima experiência. Fica o último episódio, e abaixo a lista com links para os 5 episódios.

dezembro 03, 2020

"O Som da Montanha" (1954)

De Kawabata ainda só tinha lido "Terra de Neve" (1948), e se tinha gostado não me tinha deslumbrado, dadas as expectativas colocadas por qualquer autor recipiente de um Nobel. Decidi continuar com "O Som da Montanha" (1954) por ser o livro escolhido pelo Instituto Norueguês do Nobel para figurar na lista das 100 Obras Literárias do Mundo. Posso dizer que as obras se aproximam, ainda assim, em termos de mundo-história e sentimento imprimido, prefiro Terra de Neve, por sinal, o seu livro com mais edições e resenhas no GoodReads.

Estamos em 1954, pouco tempo após o final da Segunda Grande Guerra, a cultura é japonesa clássica, mas o foco de Kawabata parece ser exatamente a viragem que estava a acontecer nos costumes mais tradicionais do Japão, nomeadamente as relações entre casais, o divórcio e o adultério, e especialmente o modo como as gerações mais velhas lidavam com a transformação dos costumes que estava a ser operada pelos filhos.

É uma obra dramática, mas sem tragédia, o olhar japonês mais dado à reflexão tranquila impede esse caminho. Mas percebemos, ainda que à superfície, que as personagens sofrem, mais por não saber como lidar com o diferente do que propriamente por considerarem esse diferente errado. 

Mas, como disse a propósito de "Terra de Neve", é difícil para nós ocidentais e em pleno século XXI, descortinar a interpretação esperada por Kawabata na escrita e delinear dos comportamentos dos seus personagens. Não temos certezas das linhas vermelhas que estão ou não a ser ultrapassadas, por isso lemos tudo como se de uma realidade, um tanto indiferente, se tratasse, apesar de compreendermos, ou melhor sentirmos que de pessoas reais se trata.

dezembro 01, 2020

Gramáticas da Criação (2001)

É um livro denso, com muita argumentação e contra-argumentação que requer uma contextualização que não é muito clara por se limitar a dizer que o livro surgiu das suas Gifford Lectures de 1990. Mas as Gifford Lectures não são umas quaisquer lições académicas, são seminários sujeitos a uma temática concreta: a Teologia Natural. Aliás foi nestas que William James apresentou também o seu famoso livro "As Variedades da Experiência Religiosa" em 1902. Ora a Teologia Natural procura provar a existência de Deus por meio filosófico, sem recurso ao sobrenatural. Assim compreende-se que aquilo que está em questão, em toda a discussão apresentada, não são os processos criativos artístico e científico convocados por Steiner, mas explicitamente a criação da existência humana.

Todo o livro é uma deambulação pelas ciências da linguagem, das humanidades e artes indo até às ciências naturais e exatas, para dar conta daquilo que é, ou podem ser, os processos de: Descoberta, Invenção e Criação. Tenho de dizer que em muitos momentos fiquei ali imerso, seguindo o seu pensamento, tentando captar, apreender e aprender. Contudo, quanto mais avançava no livro, mais certo estava de que nada daquilo conduziria a lado algum. Steiner dedica-se apenas e só a aprofundar ideias, a escavar conceitos em todas as dimensões possíveis, apresentando teias de possibilidades, mas nunca se chega à frente para tomar um caminho, para decidir o que quer realmente de tudo aquilo. 

“The Latin invenire would appear to pre-suppose that which is to be “found,” to be “come upon.” As if, to invoke the question underlying this study, the universe had already been “there,” had been extant for the Deity to find, perhaps to stumble upon. Turned to haughty paradox, this invenire is implicit in Picasso’s: “I do not search, I only find.” The tenor of discovery attaches to the Latinate verb when it first enters the English language towards the close of the fifteenth century (invention is thus a late-comer). Yet very quickly, the overlap between “finding” and “producing” or “contriving” becomes evident. After the 1540s, invenire can pertain to the composition, to the production of a work of art or of literature.”

(...)

“The aura of “feigning,” of “fabrication”—itself a term in the highest degree ambiguous—of “contrivance,” modulating into falsehood, is audible after the early 1530s. As the term ripens into currency, both spheres are present: that of origination, production and first devising on the one hand, that of possible mendacity and fiction on the other. ”

(...)

“As I noted, something within the deep structures of our sensibility balks at the phrasing and concept: “God invented the universe.” We speak of a major artist as a “creator,” not as an “inventor.”

(...)

“I have already cited the taboo on the “making of images” in Judaism and Islam. To create such images is to “invent,” it is to “fictionalize” in the cause of a virtual reality, scenes, real presences beyond human perception or rivalry (“I know not ‘seeming,’” says Hamlet in his rage for truth). Time and again, we will meet up with the artist’s sense of himself as “counter-creator,” as competing with the primal fiat or “let there be” on ground at once exultant and blasphemous. Is the lack of humour, so marked in the Hebraic-Christian delineations of a revealed God, instinct with the seriousness of creation? Invention is often thoroughly humorous. It surprises. Whereas creation, in the sense of the Greek term which generates all philosophy, thaumazein, amazes, astonishes us as does thunder or the blaze of northern lights.”

(...)

The taboo, always only partial and often circumvented, on the representation of the human person attaches to a uniquely subtle aesthetic of the ornament, of the mathematical logic and beauty of the geometric. Persian and Arab calligraphy are more than suggestive of algebra (itself, of course, partly of Islamic origin). Centrally, the strain of iconoclasm in Islamic sensibility and architectural practice underlines the paradox latent in any serious aesthetics after the Mosaic prohibition on the making of images and after the Platonic critique of the mimetic. A malaise lies near the heart of re-presentation. Why “double” the natural substance and beauty of the given world? Why induce illusion in the place of truthful vision (Freud’s “reality principle”)? Non-figurative, abstract art is in no way a modern Western device. As ancillary to the reception of the figural prodigality of the natural world, it has long been crucial to Islam. In its formalized borrowings from the shape of plants, from the geometries of live water, the Islamic ornamental motif is simultaneously an aid to disciplined observation of the created and an act of thanks. To borrow a key phrase: the aesthetics of Islam are indeed a “grammar of assent.”

(...)

“There is explicit engagement with transcendence in an Aeschylus, a Dante, a Bach, or a Dostoevski. It is at work with unspecified force in a Rembrandt portrait or on the night of Bergotte’s death in Proust’s Recherche. The wing-beat of the unknown has been at the heart of poiesis. Can there, will there be major philosophy, literature, music, and art of an atheist provenance?”

Eu concordo com Steiner quando ele diz que os físicos não se podem recusar a discutir o que existiu antes do Big Bang, mas não chega dizer que o rei vai nu, menos ainda com isso mesmo limitar-se a levantar a véu do retorno da ideia de um Criador de tudo. Desde logo, porque não concordo com o seu remate de que criadores ateus dificilmente poderão criar obras tão ou mais transcendentes que as de Michelangelo ou Dostoiévski. A declaração de Nietzsche de que "Deus está Morto" é mera constatação do processo desvelado por Darwin, o que não tem de ser nenhum niilismo, menos ainda um "desperançoso" "zero negro" como Steiner parece querer constatar no fecho da sua lição. 

Por outro lado, toda a viagem por entre o virtuosismo referencial de múltiplas ciências e artes é vertiginosa e por isso não supreende a admiração que Steiner sempre manteve na academia. Esta obra é talvez um dos seus maiores legados, representativo da sua mestria e capacidade intelectual.


Nota: lido em inglês em audiobook, acompanhado pela versão portuguesa editada pela Relógio d'Água com tradução de Miguel Serras Pereira.