março 10, 2019

Balança de justiça moral da História

Tenho muitas dúvidas sobre o histerismo condenatório que decorre à volta do legado de Michael Jackson em virtude do documentário "Leaving Neverland" (2019). Estive a reunir um conjunto de nomes ao longo da história com rabos de palha, desde Caravaggio (assassinato) e Da Vinci (pedofilia), a Einstein e Pessoa (declarações racistas), ou Heidegger e Hamsun (defensores do nazismo), passando por Picasso ou James Brown (autoritários e violentos), para tecer um argumento geral, mas acabei por desistir da ideia.

"O Tempo protege a Verdade dos ataques da Inveja e Discórdia" (1642), Nicolas Poussin

Cada caso é um caso, e cada pessoa tem níveis de aceitação diferentes em função da especificidade do legado e daquilo de que é acusada. Não é possível criar uma regra fechada que sirva uma análise generalista, pela simples razão de que os atos se opõem, ou seja, temos por um lado pessoas que serviram a sociedade, contribuindo com um legado considerado imensamente rico e relevante, por outro, essas mesmas pessoas cometeram crimes contra valores relevantes dessa sociedade. No fundo, trata-se de colocar na balança da justiça moral da História e chegar a um número que penda para o lado positivo ou negativo, mas como facilmente se depreende, nada disto é passível de medição, acabando por cair no subjetivismo de cada um.

Na verdade, qualquer vida escrutinada ao detalhe — quanto mais impactante e famosa tiver sido, mais escrutinada é, indo da exposição pública de cartas a diários íntimos — não pode encontrar apenas perfeição. Por muito mau que nos soe, e até ofenda, podemos contentar-nos pensando que afinal não passaram de meros humanos, que santos e deuses existem apenas na nossa imaginação.

março 09, 2019

Efeitos visuais de drogas

Bryan Lewis Saunders (1969) é um artista americano, já com uma longa carreira em vários domínios — pintura, video, performance, poeta, etc. Descobri o seu trabalho através do documentário de David B. Parker, "Art of Darkness" (2014), tendo-me impressionado particularmente a sua obra "Under the Influence", que consiste num conjunto de auto-retratos criados sob a influência de múltiplas drogas. A curiosidade sobre os efeitos das drogas é natural, mas conhecê-los e compreendê-los é bastante difícil, não só pela dificuldade de aceder às substâncias, mas acima de tudo pelos riscos que implicam (Saunders sofreu vários problemas neurológicos, apesar de não irreparáveis, no processo). Os efeitos das drogas, tal como o de qualquer outra experiência humana, são altamente subjetivos, ainda assim este trabalho abre-nos uma pequena janela sobre alguns esses efeitos.

Lithium (ref), tratamento depressão. Sobredosagem: vertigens, alterações neurológicas.

Absolut Shatter (ref), +- cannabis concentrado. Efeitos: humor e euforia

Abilify (after 3 months usage 3x maximum dose) (Aripiprazole), Usado como antipsicótico. Efeitos sobredosagem: depressão

Aderall (Wikipedia), usado para ADHD. Efeitos - estimulante cognitivo e focagem.

Alcohol (ref.) Efeitos: sedação, amnesia, incontinência, etc.


Absinth (ref) inebriation. Efeitos: espécie de lucidez bêbada

Cocaine (ref.) Efeitos: perda de contacto com a realidade, felicidade intensa

LSD (ref.) Efeitos: estados mentais alterados

Haloperidol (ref). Usado para esquizofrenia. Efeitos: potencial repetição de movimentos, sedação

Opium (ref) - Efeitos: analgésico, desaceleração do processamento mental

Na página do Saunders é possível ver muitos mais auto-retratos realizados sob efeito de mais substâncias. Algo que salta à vista nestas imagens é claramente a influência cultural da droga em questão. Questiono, seriam as obras iguais se Saunders não soubesse que droga estava a tomar em cada momento? Muito provavelmente não, e isso diminui a objetividade destas janelas, ainda que possamos dizer que as pessoas que tomam drogas, tomam-nas na ânsia por determinados efeitos prescritos pela medicina ou cultura, e desse modo as suas experiências das mesmas nunca são desligadas dessas expetativas.

março 08, 2019

Multimodalidade e expressividade nos videojogos

Acaba de ser publicado na revista científica Observatório o artigo "Multimodality and Expressivity in Videogames" no qual abordo a multimodalidade e expressividade nos jogos digitais, sob a perspectiva da comunicação audiovisual, discutindo dimensões críticas em relação à alfabetização e experiência dos videojogos. Começo por apresentar uma visão geral sobre como criamos sentido a partir dos media audiovisuais, para depois enquadrar o foco na natureza cognitiva multimodal dos jogos digitais. Segue-se uma discussão sobre as razões que fazem com que os jogos digitais se tenham tornando mais relevantes do que o vídeo, discutindo as diferenças dos dois meios em termos de aprendizagem, nomeadamente na distinção entre as representações vicárias e enativas.


Ao longo da discussão, realizada no artigo, dou conta das novas possibilidades abertas pela multimedia e jogos digitais, tanto na integração de diferentes modos, como pela oferta de um novo modo, a interatividade, que, como argumentou Bruner, abre novos espaços de representação pela enatividade. Além disso, demonstro como os jogos aproveitam a motivação para extrair comportamentos ativos dos jogadores, ou seja, as ações solicitadas pelo design de jogo que garantem o engajamento e interesse em continuar a jogar para além das abordagens simplistas (estímulos extrínsecos).

Aceder ao artigo completo que se encontra em acesso aberto.

março 06, 2019

Uriel da Costa (1585-1640)

Uriel da Costa nasceu no Porto, em 1585, sob o nome Gabriel da Costa Fiuza, enquanto cristão-novo. Depois de anos de estudo, incluindo passagem pela Universidade de Coimbra, o desalento com a religião cristã faz com que se converta ao judaísmo e emigre para a Holanda. Se a religião cristã o tinha afastado, o judaísmo de pouco lhe iria valer. Uriel ficaria na história internacional pela luta que empreendeu contra o obscurantismo religioso, tanto cristão como judaico. Na Holanda o impacto com o seguidismo dos escritos enquanto verdade absoluta, faz com que inicie todo um processo de ataque ao status quo, tendo escrito dois livros sobre o tema — "Propostas contra a Tradição" (1616) e "Exame das Tradições Farisaicas" (1623) —, pelo que seria excomungado, e o seu segundo livro queimado publicamente, e condenado a pagar uma multa avultada. Anos depois de viver em isolamento, decidiu volver à congregação, não com verdadeira crença, mas pela insustentabilidade da sua situação. A sua readmissão foi realizada por meio de 39 vergastadas públicas e ainda pelo pisoteamento das pessoas da sinagoga portuguesa de Amsterdão. Tudo isto pode ler-se no seu testemunho final "Exemplar Humanae Vitae" (1640).

Desenho ficcionado de Uriel da Costa ensinando o jovem Espinosa. Espinosa tinha apenas 8 anos quando Uriel morreu, é provável que a revolução que provocou tenha tido influência no pensar Espinosa, de resto não se encontrou qualquer outra ligação entre ambos.
"Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente à verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force à compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel." Último parágrafo de "Exemplar Humanae Vitae", na tradução do latim de A. Epiphanio da Silva Dias
Cerimónia de Inauguração da Grande Sinagoga Portuguesa em Amsterdão, Holanda, 2 de Agosto,  1675

O livro "Um Bicho da Terra" (1984), de Agustina Bessa-Luís, procura ser uma biografia romanceada da vida de Uriel da Costa, mas apresenta enorme densidade de factos, dando conta de maior preocupação em não se desviar da realidade, do que em dar a conhecer a pessoa por detrás do mito. Agustina realiza um trabalho agarrado à cronologia, esquecendo que as pessoas são feitas de ideias e não de espaços ou datas. Falta uma ideia ou núcleo de suporte à intenção do livro, o que faz com que o relato faça tudo parecer mero sucedâneo de eventos. O romancear não funciona não apenas pela torrente de factos, mas também porque Agustina está mais centrada no detalhar do contexto do que em dar vida às ações dos seus personagens, por outro lado a biografia perde-se porque o relato sofre do tom da inverosimilidade própria do romance.

O título da obra de Agustina é a tradução de um pseudónimo usado por Uriel, Adam Romez (bicho da terra).

Quanto à veracidade do que é dito, dizer que Agustina fez um grande trabalho de investigação, contudo esse trabalho acabou sendo ultrapassado pela investigação posterior. Desde logo a capa do livro e o texto, fazem referência à proximidade entre Uriel e Rembrandt, lançando da suposição de que a pessoa no quadro "Philosopher in Meditation" (1632) poderia ser Uriel. Ora os mais recentes estudos em volta do quadro dizem-nos que a pessoa nele não deverá ser sequer um filósofo, mas apenas um homem idoso sentado à janela, tanto que o título é hoje bastante contestado, não sendo sequer o original da obra.

A obra de Agustina não é a primeira sobre Uriel, nem a última, já que data de 2012 o livro "A Figura de Uriel da Costa na Obra de Karl Gutzkow" (632 pp.) de Rogério Paulo Madeira. No ano anterior, 1983, o académico francês Jean-Pierre Osier publicava "D'Uriel da Costa à Spinoza" (299 pp.), e bastante antes, em 1922, Carolina Michaëlis dedicava todo o estudo académico, "Uriel da Costa: notas relativas à sua vida e às suas obras" (180 pp.). Anteriormente a estes trabalhos académicos, podemos encontrar, em 1847, uma peça de teatro "Uriel Acosta: a tragedy in five acts" por Karl Gutzkow, e em 1880, uma ópera, "Uriel Akosta" de Valentina Serova.


Mais alguma informação online:
Ushi Derman, Uriel da Costa: the Story of a Nonbeliever, December 19, 2018
Arlindo Correia, Uriel da Costa, 12.9.2006
Wikipedia inglesa e portuguesa

Romance ou ensaio?

"Jerusalém" (2004), de Gonçalo M. Tavares, situa-se num espaço de ação restrito, delimitado por um círculo de personagens que se organizam numa estrutura detetivesca, baseada na formula de mistério (que oferece informação a conta-gotas, para nos agarrar pela ânsia por respostas a quem?, quando?, como? e porquê?), e fá-lo imensamente bem, já que se sente dificuldade em pousar o livro depois de o começar. A particularidade da obra decorre do modo como sobre esta narração tipo é injectado um conjunto de conceitos complexos — o mal, a racionalidade, a loucura e a religião — que nunca chegam propriamente a ser detalhados. O autor opta por trabalhar as ideias de modo simbólico por forma a alargar o seu significado, mas também para poder fugir ao registo de ensaio e manter-se na circunscrição do romance.


Assim, temos um livro com capacidade para chegar a um público alargado, já que a leitura é facilitada pela enorme capacidade de retenção da nossa atenção, embora muito desse público chegue ao final sem saber muito bem o que fazer com todas as respostas que entretanto o autor lhes parece oferecer. Primeiro porque as respostas são-no apenas no que à trama diz respeito, já o simbólico é deixado completamente em aberto, criando um conflito no leitor,  entre o recorte perfeito da trama e a indefinição do seu significado. Para quem ouse ler nesse simbolismo, encontrará as suas próprias respostas aos problemas enunciados, e é isso que o autor espera, quem não o ousar ficará à porta do livro.

Como em todo o artefacto simbólico, as leituras que se fazem do significado da obra dependem mais da experiência e mundo do leitor do que daquilo que o autor coloca no artefacto. As pistas espalhadas ao longo das 250 páginas levantam em nós associações de ideias, fazem-nos trabalhar para a compreensão do que estamos a ler. Cada personagem é uma peça do puzzle de Tavares, mas este nunca a coloca no seu lugar, cria-as e fá-las dançar na nossa frente, instiga-nos a colocá-las no tabuleiro por nós imaginado. Todas as peças estão interligadas, o que nos diz que fazem todas parte de um mesmo quadro, mas aquilo que as liga são meras ações de causa-efeito, o que importa é o que cada um representa nesse quadro — o médico visionário e o médico carrasco, a mulher louca e o amante louco, o filho que não é filho e o assassino. Todos são meros humanos, dotados de imperfeição, comportando significado, ainda que simbólico, sobre o modo como o mal acontece, de onde surge e como se sustenta.
“Eis a fórmula: falta algo ao homem normal, ao homem saudável, e ele — como qualquer criança – procura encontrar o que lhe falta, principalmente porque esta sensação confunde-se com a sensação de roubo: alguém ou algo me levou uma parte — parte, continuemos a chamar-lhe assim, espiritual — então o homem normal, o homem saudável, vai à procura do ladrão e do objecto roubado, mas neste caso ele não percebe aquilo que lhe foi roubado, não conhece a forma e o conteúdo da substância que agora faz falta. Descobrir o que fora roubado a nível espiritual, era, para Theodor, um objectivo indispensável. O homem saudável quer encontrar Deus, diz Theodor Busbeck de modo mais directo." in "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares
No final, percebemos que é uma obra talhada em busca da perfeição, que tudo está como está, da primeira à última página, com um objetivo concreto. Nada é dito ao acaso, tudo é perfeitamente racionalizado, ainda que tudo pareça nascido da loucura (repare-se no discurso exacerbado pela repetição), e só esta dicotomia granjearia nota máxima. Mas na verdade o artefacto falha em elevar-se acima da aparência de perfeição, pela falta de robustez nos conceitos que defende, já que não são suficientemente aprofundados. Fica tudo demasiado à superfície, com as leituras a surgir completamente divergentes. É um livro de 250 páginas, mas com mais espaços em branco do que de texto, de modo que na verdade não chega a passar das 100 páginas. Os livros não se medem em número de palavras, mas os temas também não são todos iguais, e tratar assuntos desta complexidade em tão breves resenhas de ideias, serve apenas no abrir de portas. Como o livro faz parte uma série — "O Reino", composto de 4 livros incluindo este — é provável que a leitura da série completa dê acesso a algo que só este livro não consegue dar. Vi entretanto que os 4 livros que compõem a série O Reino — "Um Homem: Klaus Klump", "A Máquina de Joseph Walser", "Jerusalém", "Aprender a Rezar na Era da Técnica" — foram editados, em 2017, num único livro (800 pp.), o que deverá fazer pleno sentido.

março 05, 2019

A literatura como paliativo

"When Breath Becomes Air" é um livro de memórias de Paul Kalanithi, a quem com 36 anos, no final de uma residência médica de 6 anos como neurocirurgião e prestes a conseguir o seu diploma, foi diagnosticado um cancro nível IV (inoperável) nos pulmões (sem nunca ter fumado). Ao longo das parcas 220 páginas (morreu antes de o poder terminar), que se lêem de uma vez, somos conduzidos pelo relato das opções e decisões tomadas ao longo de uma vida que permitiram a Paul Kalanithi chegar ao final da sua formação médica e escrever um livro pleno de expressividade. O seu livro tem servido de inspiração um pouco por todo o mundo — de Bill Gates a Andrew Solomon ou Atul Gawande —, tendo o Departamento de Medicina da Universidade de Stanford, onde se formou, criado mesmo, um ano depois da sua morte, o Prémio Kalanithi Writing para obras sobre pacientes em fim de vida ou cuidados paliativos.


Da minha intensa experiência de leitura, comparei-a com o relato da "The Last Lecture" de Randy Pausch (1960 - 2008), professor e investigador — de Entretenimento Digital na Carnegie Mellon — morto de cancro no pâncreas. Se Pausch me tinha tocado imenso, foi muito provavelmente catalisado por ser uma pessoa no meu campo científico, alguém que admirava, seguia e lia o seu trabalho de forma regular, contudo desta vez o embate parecia-me ser maior. No entanto, se tenho estudado imenso o que se vai fazendo no campo das neurociências, nem por isso tenho qualquer familiaridade com a neurocirugia. Por outro lado, este relato de Kalanithi fez-me recordar ainda um outro, não de fim de vida, ainda que também de memórias mas de alguém no ativo, "Sinto Muito" de Nuno Lobo Antunes, sobre a ala neuropedriátrica e os efeitos dos tratamentos oncológicos em tenras idades.

A edição portuguesa foi editada pela Saída de Emergência sob o título "Antes de Eu Partir"

Pensei assim que a intensidade da experiência se devia ao fator cérebro, aliás como diz a certa altura Paul Kalanithi, "a medicina relacionada com o cérebro comporta algo de esotérico que nos atrai e terrifica". Mas agora que escrevo estas linhas percebo que não foi só pela área de trabalho, foi claramente pelo modo como Kalanithi se expôs, e acima de tudo conseguiu exteriorizar e plasmar na escrita a sua percepção do mundo. Ora a isto não é alheio à formação de Kalanithi, que antes de estudar medicina fez licenciatura e mestrado em Literatura Inglesa, ao que se seguiu um mestrado em Biologia Humana ainda em Stanford, e depois um outro mestrado em História da Ciência e Medicina na Universidade de Cambridge. Foi apenas no final dos estudos em Cambridge que Kalanithi decidiu que queria ser médico, e para isso teve de voltar ao início, fazer provas e conseguir entrar em Medicina em Yale. Até esta altura Kalanithi acalentava a ideia de poder vir a tornar-se escritor.

Aliás, o autor fala do momento em que desistiu da literatura para abraçar a medicina, como um momento de viragem, em que bateu na parede pelo lado das letras. A sua ânsia era compreender o ser humano, e vinha acreditando que lá poderia chegar pela literatura, mas entretanto percebeu que em vez de se aproximar se estava a distanciar cada vez mais da vida efetiva. Por isso decidiu enveredar por um caminho que lhe permitisse "tocar na carne", assistir à vida de modo empírico. Por sua vez, já no final, quando decide escrever este livro, é exatamente por sentir o contrário. Por sentir, que a única forma de chegar ao que sentia dentro de si era por via da escrita, não tinha outra forma de conseguir compreender o que sentia. Talvez por isso mesmo o livro seja tão intenso, porque ele é uma busca pessoal por respostas para uma vida, tentativa de explicação de um momento, ainda que possa depois ter ficado como legado.

Nada disto é novo, a literatura, tal como as restantes artes servem-nos há milénios na compreensão do humano. Se a ciência nos ajuda a compreender os processos e os como, só a arte nos consegue explicar os porquê. Damásio dizia em 2017: "Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare"; e enquanto muitos se admiram com estas palavras, o belíssimo livro de Jonah Lehrer, "Proust era um Neurocientista", data já de 2007. Mas esta discussão não tem qualquer sentido de novidade, já que ela esteve presente desde o início da nossa civilização, com Platão a divergir de Aristóteles na importância que se deve conferir as artes.

Para fechar. Este foi um dos últimos 'memoirs' que li, um género que antigamente desconhecia por o associar à mera biografia, mas que aprendi a amar por via da banda desenhada. Existe algo de muito particular nestes livros, não apenas em fim de vida, mas no simples facto de se apresentarem em primeira pessoa, mais ainda quando as pessoas possuem as ferramentas adequadas para a escrita. As descrições, quando conseguidas, do pensar interior são autêntica telepatia, como disse o próprio Stephen King no seu memoir. E nesse sentido, julgo que estas obras acabam funcionando como o píncaro do objetivo e razão porque inventámos a linguagem e a escrita.

março 04, 2019

Listas de Leonardo da Vinci

Leonardo adorava fazer listas de coisas que tinha para fazer, assim como de coisas que desejava aprender. Nestas podemos encontrar de tudo, demonstrando a sua mais importante competência: uma infinita curiosidade.

. "Get the master of arithmetic to show you how to square a triangle…"
. "Ask Benedetto Protinari by what means they walk on ice in Flanders…"
. "Get a master of hydraulics to tell you how to repair a lock, canal and mill in the Lombard manner…"
. "Describe the tongue of the woodpecker” [1]
. "Get the measurement of the sun promised me by Maestro Giovanni Francese, the Frenchman."
Sobre a língua do pica-pau, deixo a imagem do Earth Touch e o texto de Isaacson, escrito como Coda do livro "Leonardo da Vinci" (2017), sobre o qual ainda aqui farei uma resenha alongada

[1] Describe the tongue of the woodpecker
"The tongue of a woodpecker can extend more than three times the length of its bill. When not in use, it retracts into the skull and its cartilage-like structure continues past the jaw to wrap around the bird’s head and then curve down to its nostril. In addition to digging out grubs from a tree, the long tongue protects the woodpecker’s brain. When the bird smashes its beak repeatedly into tree bark, the force exerted on its head is ten times what would kill a human. But its bizarre tongue and supporting structure act as a cushion, shielding the brain from shock.
There is no reason you actually need to know any of this. It is information that has no real utility for your life, just as it had none for Leonardo. But I thought maybe, after reading this book, that you, like Leonardo, who one day put “Describe the tongue of the woodpecker” on one of his eclectic and oddly inspiring to-do lists, would want to know. Just out of curiosity. Pure curiosity.”

Excerto do livro “Leonardo da Vinci” (2017) de Walter Isaacson. 

Homossexualidade vs. Vaticano

Poder e interesses múltiplos. É o que existe por detrás da publicação simultânea, mundial e em papel de um livro com mais de 600 páginas, "No Armário do Vaticano" de Frédéric Martel. Todas as edições lançadas a 21 fevereiro 2019. Impressionante.



Já está no meu GoodReads, vamos ver quando o conseguirei encaixar nas leituras.

março 02, 2019

Os problemas da Gente Independente

Laxness criou uma obra carregada de atmosfera, muito graças ao modo como trabalhou o realismo, por meio de uma mescla entre o género épico que bebe na mitologia islandesa e o realismo social, criando uma espécie particular de realismo mágico. A escrita é boa, e a densidade das personagens estimulante, contudo estas acabam sofrendo pelos problemas emanados da história.

"Gente Independente" (1934/1935) Haldór Laxness

A escrita de Laxness é em vários momentos muito conseguida, capaz de nos embalar e levar pela narrativa adentro. Os personagens vão sendo lapidados à medida que a narrativa progride, sempre com mais e mais camadas psicológicas que nos permitem perscrutar vontades e sentimentos. A relação do épico com o romance realista tanto é capaz de nos fazer planar através do belo do universo representado, como de nos indispor pelo grafismo das descrições de violência e sordidez. No campo da estrutura, sente-se alguma falta de coerência, provavelmente pelo facto do livro não ser uma obra integral, mas antes a união de quatro partes escritas por Laxness em tempos e lugares diferentes, como atesta o fim de cada livro. Ainda assim, existe uma diferença bastante desfasada entre os dois primeiros livros, em que se relatam as vivências de Bjardur com cada uma das suas mulheres, e os segundos quase inteiramente dedicados a discussões sobre organização política e económica.

Mas é a história que complica o resultado desta leitura, no modo como Laxness apresenta o mundo que vê e diz conhecer. Se o livro como um todo acaba dando a volta e parecer querer justificar-se, o massacre a que somos submetidos por via da personagem principal é deveras angustiante, e em minha opinião, totalmente injustificado. Não tenho nada contra livros sobre pessoas fracas ou más, desde que exista um objetivo, desde que exista algo por debaixo de toda essa maldade. De outro modo, acabamos a questionar-nos sobre a razão de se dedicar um livro a dissertar sobre alguém que não tem nada para nos ensinar, nem sequer momentos de prazer para oferecer, levando-nos a pensar se o autor crê naquilo que descreve ou se pelo menos percebe o enviesamento daquilo que nos apresenta.


*** SPOILERS ***

A razão pela qual questiono a história tem que ver com Bjardur, o personagem principal, o idealista e grande lutador pela independência, que é representando como um irascível individualista, um autêntico sociopata, para quem a família — filhos e mulheres — contam nada. Ao longo de mais de 500 páginas somos brindados com uma personagem anti-humana que contra tudo e todos, morram ou vivam, se mantém imutável, fiel aos seus princípios, completamente obstinado. É apenas nas últimas 20 páginas, depois de ter ficado sem nada, de toda a sociedade o ter descartado, que resolve dar o braço a torcer e fazer uma volta de 180º. Vejamos:


Bjartur
1. Deixa a primeira mulher sozinha numa casota isolada num lugar ermo, e vai dias inteiros com amigos para montanha. Quando esta lhe diz que tem medo, e pede para deixar ao menos o cão, diz-lhe que nem pensar, que se aguente.

2. Repete, e deixa-a uma segunda vez, mas agora com ela grávida, para ir atrás de uma ovelha. Não existindo ninguém com ela, esta morre sozinha durante o parto.

3. Impede os filhos, e a segunda mulher de terem uma vaca, que estes queriam por causa do alimento do leite. A comunidade oferece uma contra a sua vontade, mas quando esta engravida, mata o vitelo da vaca sem piedade.

4. Depois mata a vaca, apesar da segunda mulher lhe dizer que seria como a matar a ela. A sua segunda mulher acaba também por morrer do stress.

5. Envolve-se numa situação de abuso sexual da própria filha (que não é filha de sangue) que a sua consciência interrompe.

6. Um filho desaparece, passados vários meses Bjartur encontra o cadáver, toca-lhe com um pau, manda-lhe uma luva, e deixa-o ficar a apodrecer ao ar, não contando nada aos irmãos nem a avó.

7. Despacha o filho mais novo para os EUA, de um dia para o outro.

8. Volta a deixar a família sozinha, e manda um suposto professor bebedolas tomar conta dos miúdos, que acaba a engravidar a sua filha.

9. Quando descobre que a filha está grávida, ela que pela limitação da educação recebida quase nem percebeu o que lhe aconteceu, deserda-a, manda-a embora de casa.

10. Nas repetidas vezes em que o segundo filho lhe diz para visitarem a filha, trata o filho abaixo de cão.

11. Na fase final arranja uma governanta, e quando esta se começa a envolver emocionalmente e disposta a ajudar a família, manda-a embora sem qualquer razão.

12. Obriga a mulher e filhos a trabalhar 16 horas por dia.
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Ou seja, independente aqui, só Bjartur, toda a sua família era tratada como escrava, todos às suas ordens. É uma autêntica aberração, nada disto se pode justificar com base na ideia de se ser independente. Os ideais, políticos ou outros, não se sobrepõem à empatia humana, apesar do individualismo tender para tal. Mas Bjartur não é apresentado como individualista, antes como anarquista e com graves problemas do foro mental, não muito longe daqueles sociopatas do interior dos EUA que impedem as famílias de irem à escola, ou não têm televisão nem telefone para não serem importunados pelo governo.

Quanto ao Nobel, não o compreendo, mas também só li este seu livro, e a tradução, apesar de direta dos islandês, deixa-me com a impressão de não ser tão rica em vocabulário como será no original.