dezembro 01, 2018

Ajudar a libertar um reino

Muito já se escreveu sobre "Kingdom Come: Deliverance" (2018) (KC:D), nomeadamente que é um jogo para jogadores pacientes porque se começa com muito poucas capacidades — enquanto mero plebeu não sabemos manejar espadas ou arcos — o que acaba por o tornar mais interessante para quem procura experiências mais realistas, para quem busca agência narrativa, ou seja, possuir autonomia e controlo sobre a progressão da experiência. Em termos temáticos e visuais, podemos rapidamente evocar “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), em termos de jogabilidade as referências vão mais para “The Elder Scrolls V: Skyrim” (2011) e “Fallout 3” (2008), ainda assim, KC:D vai além, não apenas porque se furta à fantasia da FC e da Magia, algo muito raramente visto, mas também porque constrói um dos mundos de jogo e história mais detalhados e intrincados de sempre, mantendo as escolhas e a emergência sempre bastante vivas. Por isso, não tenho dúvidas em afirmar que KC:D é um dos grandes jogos deste ano e da última década.
KC:D é mais do que um jogo de mundo aberto realista, ao seu lado “Legend of Zelda: Breath of the Wild” (2017) é mero brinquedo para crianças. A experiência gerada por este mundo não se limita a mera simulação, no caso de época, existe jogo e existe narração, claramente assentes em factos históricos dignos de qualquer grande romance histórico. Mas aquilo que diferencia totalmente KC:D de Zelda, é o design que junta jogo e narrativa capaz de os colocar ao mesmo nível, fazendo depender um do outro, criando uma experiência una, em que o jogador nunca pensa, “estou a jogar” ou “estou a ver uma história”, mas antes “habito este mundo e tenho de me dar a estas pessoas”. Dan Vavra em entrevista dizia: "My philosophy, let's say, is that the gameplay experience generally should be natural, believable, it could be complex, but shouldn't be complicated", e é isso mesmo que temos, e que fica facilmente demonstrado pela imensidade de verbos que o jogo utiliza, todos baseados em fenómenos perfeitamente naturais para um ser-humano: andar, correr, montar, comprar, trocar, caçar, regatear, roubar, tirar, enganar, fugir, render-se, aprender, treinar, obedecer, desobedecer, matar, lutar, reparar, lavar-se, esconder-se, tratar-se, comer, dormir, repousar, esperar, namorar, ajudar, procurar, investigar, etc. Isto explica também porque o jogo é muito mais do que combates e lutas, não senti nunca que estava farto de lutas como acontece em tantos jogos, porque elas são bastante espaçadas em todo o jogo (claro que no meu caso optei por ir desenhando o meu perfil mais pela "fala" e menos pela "força" o que ajuda a minimizar essas lutas). Mas por exemplo, os mini-jogos como o de dados que se podem jogar nas tavernas, foi a primeira vez que me dei ao trabalho de aprender as suas regras, jogar mesmo, e ter vontade de ganhar ao adversário dentro de um mundo virtual, senti completamente a ânsia pela incerteza do lançamento dos dados. Já o mesmo não posso dizer dos “lockpicks”, não consegui entrar na lógica, que pelo que li é muito mais acessível via teclado do que gamepad, mas graças ao sistema de jogo aberto pude jogar todo o jogo sem ter nunca de abrir uma única fechadura por esse método, o que só por si é uma demonstração impressionante do game design do jogo.

O guião final de KC:D tem cerca de 1 milhão de palavras. Na imagem podemos ver o papel ocupado quando impresso.

Na intersecção entre o design e a arte temos o guião, parte escrita parte estrutura de jogo, no qual é preciso destacar os imensos conflitos desenhados para sustentar o nosso interesse ao longo de todo o jogo. Claro que se sente por vezes uma narrativa um tanto artificial pela força dos padrões de Hollywood, influencia clara do script doctor contratado, mas no geral, os 7 escritores sob o comando de Vavra deram muito bem conta do trabalho. Principalmente nos diálogos que demonstram uma relação com os costumes da época, dos seus interesses e diferenças, fazendo com que estejamos sempre interessados em ouvi-los para compreender melhor o mundo para onde viajámos. Do mesmo modo a descrição e resolução dos problemas dos personagens e sua especificação no design de jogo é algo a que não é alheio os mais de 20 consultores em História utilizados. No meio da imensidão de mundo e ações a realizar, muitas delas impõem tempos específicos, o que acaba por conseguir gerar todo um ritmo naquele mundo, e que por vezes apesar de toda a agência quase nos parece linear, ou melhor dizendo, parece o nosso próprio tempo naquele mundo, em que temos de fazer escolhas, mas essas fazem parte das condições daquela realidade, e é quase como se só tivéssemos uma opção porque estamos completamente absorvidos pela história e pela sua progressão. Tudo isto consegue fazer com que as horas se vão acumulando e o jogo só muito raramente acuse saturação narrativa, o nosso empenho no seu progresso é mantido até ao final.

7 escritores, vários consultores e um script doctor, tudo para que a narrativa funcione e suporte o jogo do início ao final.

Para perceberem um pouco melhor como funciona o sistema de escrita, simulação e emergência, vejam este pequeno trecho de uma das quests do início do jogo.

Se o design é brilhante e a escrita muito boa, a arte visual é sumptuosa. O mundo é enorme (16 km2), ainda assim passei dezenas de vezes por alguns dos caminhos e, no entanto, nunca senti o efeito de repetição, tal é a ordem de detalhe colocada na arte. Seja nos caminhos em pedra, seja na relva, seja nas construções, nas roupas, nos utensílios, nas armas, no sistema atmosférico, tudo segue referências reais e altamente pormenorizadas, no sentido de providenciar uma experiência intensa e rica de uma época efetiva, o final da Idade Média (sobre esta componente aconselho uma comunicação de Vavra que dá conta da componente histórica e sua importância artística para o jogo). Daria nota máxima a tudo neste campo, menos ao design de som e música, já que a opção por não saturar o ambiente de música, como acontece nas produções mais hollywoodescas, acaba por ser exagerada, atirando o som para o fundo, não servindo nunca o jogo como motivo. Não falo apenas de música para gestão emocional, mas também das paisagens sonoras naturais — do roçagar das árvores, do correr dos coelhos, dos veados, dos riachos, etc. Senti um pouco falta dessa componente, que tenho a certeza teria tido um enorme feito no incremento do ambiente experiencial, nomeadamente porque em momentos de jogo mais individuais e belos visualmente, teria incrementado o bucolismo das cenas. Aliás, ainda neste sentido, as vozes inglesas pecam também por não possuir um trago de maior autenticidade de época.
Comparações entre o real e os modelos implementados no jogo. Arrisco a dizer que o nível de detalhe colocado na modelação do mundo vai para além daquilo a que a Ubisoft nos tem habituado na sua série Assassin's Creed.

Mas os jogos não se fazem apenas de design e arte, requerem um terceiro elemento vital, a informática, e nesse campo não posso tecer louvores. Bem sei que se trata de uma pequena empresa, de um pequeno país europeu, mas ainda assim facilitaram demasiado. O jogo foi lançado em Fevereiro de 2018, carregadíssimo de bugs, o que lhes valeu dezenas e dezenas de más análises na imprensa internacional. Muitos analistas até gostavam do jogo mas a experiência, que relato acima, não era sustentada tecnologicamente à data. Para se ter uma ideia, eu comecei a jogar apenas em novembro, 10 meses depois, e já ia na versão 12, entretanto passei para a 13, e mesmo assim tenho de dizer que foi o meu jogo em consola com mais problemas informáticos de sempre. Saves que desapareciam; cutscenes cortadas a meio ou simplesmente que não me apareciam numa passagem, mas apareciam noutra; saltos entre ações necessárias de jogo sem que eu tivesse feito algo efetivo; cenários sem chão, paredes sem portas, personagens no ar. Tudo a fazer recordar o horribilis lançamento de “Assassins Creed: Unity” (2014), o qual só consegui jogar, também meses depois, após um patch de 17Gb. Na verdade, os problemas informáticos não são algo completamente alheio a este tipo de jogos, os immersive sims, por causa da complexidade envolvida. Desde sempre a Bethesda foi associada a problemas de bugs, nomeadamente com as séries “Fallout” e “Elders Scrolls” (veja-se o que está acontecer com o recém lançado "Fallout 76"), o que dá conta da questão subjacente, a complexidade do universo, nomeadamente aquela que a narrativa introduz, e que se fosse suportada tecnologicamente com certeza levaria mais do que 10% dos jogadores até ao final.

Não estamos a falar de uma grande área de jogo apenas, mas estamos a falar de simulação que se dá à agência do jogador, que tem ainda de permitir emergência, ou seja, reações do mundo de jogo não planeadas pelos designers, tudo em grande escala, ao que se junta uma estrutura narrativa imensamente detalhada, recortada e ramificada à qual se ligam os cenários, os personagens, as cenas e as cutscenes, tudo ao longo de dezenas de horas de modo a garantir que as sempre presentes escolhas e variações de abordagem de cada jogador funcionam. Aliás, esse é para mim talvez um dos grandes pecados de KC:D, a enormidade de produção de conteúdo. Vavra fala em 110 horas de voz off, só em cutscenes temos quase 9 horas de animação integral, eu fiz 103 horas de jogo para realizar apenas a Main Quest, e mais 3 ou 4 side quests. No YouTube existe um playthrough apenas da Main Quest, e apenas de uma perspetiva, com partes aceleradas e todos os momentos de espera cortados, e mesmo assim são precisas 17 horas. É verdade que, ao contrário da Bethesda que criou o seu próprio motor (Creation Engine), a Warhorse utiliza o CryEngine que sendo desenvolvido por terceiros, tem a vantagem de ser amplamente utilizado e por isso estar imensamente testado. No entanto, esse engine serve apenas a construção e renderização de cenas, para o design de jogo nas suas múltiplas frentes — missões, personagens, diálogos, objetos, locais, ações e interações, mapas, vozes, cutscenes, etc. — a Warhorse teve também de criar a sua própria ferramenta, o SKALD, que é o responsável pelo design assim como toda a gestão do pipeline de produção. Ou seja, grande parte dos problemas são originados nesta ferramenta, o que vem demonstrar mais uma vez o quão importante continua a ser a tecnologia e a informática enquanto arte de produção de videojogos.
CryEngine, construção de cena [fonte]
Interface de SKALD, visualização do mapa
Interface de SKALD, construção dos diálogos não-lineares. SKALD fez-me recordar o projeto europeu INSCAPE em que trabalhei, de 2004 a 2008, e que tinha como objetivo exatamente a construção de uma ferramenta de suporte à autoria de mundos narrativos interativos, algo que continua por definir e standardizar.

Apesar de tudo isto, KC:D exala paixão, espírito de missão e isso só é possível porque existe por detrás do jogo um líder, um diretor que busca dar forma e vida a toda uma visão, capaz de aguentar o projeto vivo durante 7 anos, e que é Dan Vavra (n. 1975; licenciado em Design). Este tem sido atacado por alguns comentários que foi fazendo sobre os media e nomeadamente sobre o GamerGate, mas se virem as suas várias entrevistas sobre o jogo, e o modo como trabalha em equipa e a sua abordagem contra a violência nos videojogos, verão como isso está longe de o caracterizar como pessoa. Daí o meu interesse em tentar perceber também como é que um jogo com estas dimensões pôde nascer num pequeno país Europeu, com a mesma população de Portugal, e fazendo uso da sua própria História. É que apesar de ser independente, estamos a falar de um jogo que custou, incluindo já despesas de marketing (o que pode ir de 30% a 50% nos dias de hoje), cerca de 35 milhões de euros, dos quais só 1 milhão veio pelo Kickstarter. Se tiverem o mesmo interesse que eu, aconselho-vos a ver o "Kingdom Come: Deliverance Documentary" (2018). Deixo a seguir alguns dos pontos do mesmo e que captei também em outras entrevistas, que me parecem essenciais para compreender o que aqui temos.


Dan Vavra começa, em 1998, num novo jogo, "Mafia" (2002), por mero acaso acabando a dirigir uma equipa de 9 pessoas, todos, ele incluído, sem qualquer experiência, nem de jogos nem de trabalho. Conseguem sucesso internacional e atraem um grande publisher, a 2K, para fazer uma sequela, "Mafia II" (2011). Mas como artista está pouco interessado em trabalhar sob as ordens da grande produção, por isso tenta ir à procura de outra sorte. Não emigra, nunca sai da Rep. Checa, começa a sua própria empresa. Para o efeito, desenha uma ideia assente numa abordagem inovadora, um RPG realista situado no centro da Europa no final da Idade Média. Com isso procura o primeiro financiamento antes de lançar qualquer desenvolvimento, que só começa em Setembro 2011. Em 2013 vão surgir os primeiros verdadeiros problemas quando o primeiro protótipo está pronto e se inicia o périplo pelos publishers internacionais, estes gostam mas respondem que não querem um jogo de História, não querem realismo, querem fantasia pura e visceral. Entra então o Kickstarter, não para financiar o jogo, mas para demonstrar que há mercado interessado naquele tipo de jogo. O oxigénio do Kickstarter permite passar o número de pessoas envolvidas, das 15 para as 40, e permite assegurar o interesse de mais financiamento e assim fazer chegar a equipa às 100 pessoas ao longo de 4 anos.

Só para fechar, deixo uma pequena lista que fiz há dias, dando conta de grandes jogos europeus que têm surgido nesta década, que dão cartas em todo o mundo, e que mostram que é possível fazer muito mais a partir de pequenos países como o nosso:
França - "Dishonored" (2012)
Suécia - "Brothers: A Tale of Two Sons" (2013)
Polónia - "This War of Mine" (2014)
Polónia - "The Witcher 3: Wild Hunt" (2015)
Dinamarca - "Inside" (2016)
Holanda - "Horizon Zero Dawn" (2017)
Suécia - "Wolfenstein II: The New Colossus" (2017)
França - "Prey" (2017)
Bélgica - "Divinity: Original Sin II" (2017)
República Checa - "Kingdom Come: Deliverance" (2018)

novembro 17, 2018

A deceção com Ishiguro

Vi a versão homónima — "Never let me go" — cinematográfica quando saiu, em 2010, e lembro-me de não compreender a razão de tanto entusiasmo por parte da crítica. Recordo-me de ter gostado do ritmo e ambiente, da clara antítese para com outros filmes de ficção-científica pela ausência de futurismos tecnológicos, mas ao mesmo tempo nada da história, dos seus personagens, fez muito sentido para mim. Pensei na altura que o facto de não ter lido o livro me tinha deixado à porta do significado e por isso condescendi. Acabado agora o livro, sinto exatamente o mesmo que senti quando vi o filme, gostei do suspense, gostei da fragilidade e abandono, mas a mensagem continua distante. Li, entretanto, várias análises, incluindo a de James Wood e mais algumas académicas, mas não fiquei convencido com os argumentos apresentados em defesa da obra.


********** SPOILERS *************

O texto trata de um tempo igual ao nosso, mas numa realidade paralela em que a clonagem existe para servir as necessidades de transplantes de órgãos. Crianças clonadas, sem pais, são criadas e educadas em escolas até aos 16 anos, para depois seguirem, primeiro um processo de ajuda aos colegas mais velhos em pós-operatórios e períodos de convalescência entre extrações de órgãos, e depois passarem também a ser dadores, processo que pode chegar até à quarta ronda de extração, altura em que por norma, "completam o ciclo", morrem.

Olhando para esta síntese, temos uma premissa regular de ficção-científica, que trabalha um tópico quente do início deste milénio, a clonagem, e procura realizar alguma crítica. Contudo o tratamento do tópico por parte de Kazuo Ishiguro deixou-me completamente incrédulo sobre todo o cenário apresentado. É interessante que Ishiguro, apesar de trabalhar a mesma premissa do filme "The Island" de Michael Bay, que saiu exatamente no mesmo ano do livro, tenha seguido uma abordagem completamente distinta. O filme de Bay segue uma história-conceito de Caspian Tredwell-Owen, que não foi desenvolvida para além do filme, no entanto a premissa é muito próxima de "Never Let Me Go". Não interessa o tradicional "quem copiou quem" até porque tendo saído no mesmo ano, os tempos de produção não permitiriam cópias, mas interessa, mais ainda a esta distância no tempo, verificar como o tema mexia com a sociedade desse tempo, a ponto de dois objetos culturais terem sido criados e terem conseguido gerar grande impacto. Em 2003 a ovelha Dolly, o primeiro mamífero clonado (1996), morria gerando grande comoção e discussão internacional em redor da clonagem, tornando os tempos propícios à criação de alegorias.

Indo agora ao cerne das minhas objeções. “Nunca me deixes” apresenta-se como uma alegoria, o que serve a todo o tipo de interpretações, desde os que defendem que Ishiguro usa a clonagem como mero pretexto para dissertar sobre a nossa própria mortalidade, aos que consideram que funciona como crítica ao processo e seus impactos. Muito honestamente, considero a alegoria completamente falhada, por falta de sustentação do cenário apresentado. Clones ou não, refletiam, questionavam-se, tinham curiosidade pelo pensar do outro, mas eram incapazes de questionar o seu desígnio? A única explicação é que sendo clones, eram apenas em parte humanos, com genes transformados para se comportar como animais domesticados, mas assim sendo então qual o valor da alegoria?

Por várias vezes parei para comparar com outras alegorias, um dos processos muito usado por Saramago, mas a conclusão era sempre a mesma, não se podem criar alegorias para servir de espelhos conceptuais, que na base comparativa estejam adulteradas. A alegoria deve partir das mesmas condições do conceito que se pretende discutir, e depois então transformar as propriedades ou condições contextuais para apresentar os impactos possíveis. Ora neste caso temos um grupo de crianças impossíveis. Mesmo assumindo a ideia de órfão, são apresentadas como humanos ausentes de curiosidade, ausentes de ímpeto do ser — quem sou eu? porquê? como? Mesmo a busca pelos “possíveis” que seria algo fundamental num humano regular, querer conhecer a sua origem, clonado ou não existe sempre uma origem, é apresentado como mero fait-divers, pouco relevante!

Claro que poderia existir um conjunto de personagens mais acomodados, mais resignados, menos despertos, mas todos! Não existe um único personagem que questione! E no entanto eles não são mantidos fechados num mundo à parte, eles leem literatura, clássicos instigadores, eles veem cinema, seguindo os comportamentais clássicos de Hollywood. Não lhes faltam modelos para despertar a imaginação, para questionar a diferença entre eles e os outros, e essencialmente o porquê dessa diferença. Ao mesmo tempo, a escola em que são educados e vivem, assim como a partir dos 16 anos, a herdade em que aguardam serem chamados para cumprir os seus supostos papéis, não são guardadas, não existe qualquer sistema de repressão ou controlo. Eles estão ali porque para ali foram levados, e nada mais.

A alegoria é um total falhanço em termos de compreensão do que sustenta a existência humana. Erra completamente ao retirar aos personagens qualquer motivação, qualquer sentimento de auto-determinação, como se fossem meros envelopes de carne, vacas e porcos, à espera de seguir para o matadouro. Como é que se podiam apaixonar se não se sentiam como indivíduos? Isto é tanto mais ridículo quando o desígnio de Hailsham, um colégio especial como ficamos a saber no final através da personagem Madame, tinha por objetivo demonstrar que eles eram tão humanos como os outros. Chegado aqui, poderia até questionar se não teria sido essa a ideia de Ishiguro. Ou seja, partir de um processo de clonagem direcionado apenas para a produção de envelopes de orgãos, mas ausentes das essências do sentir humano. Mas nada disso é abordado, quando se fala nesta escola com boas condições para os clones, o contraponto não é que eles são desprovidos de sentir, mas antes que a sociedade prefere ignorar a sua existência, e por isso não existe como oferecer-lhes melhores condições. Por outro lado, se Ishiguro tivesse ido ao ponto do design da consciência dos clones, seria no mínimo estranho que o único elemento extirpado fosse a auto-determinação. Para quê manter toda a complexidade passional e desejo sexual quando não existia capacidade de reprodução. Ver o sexo como um prazer que se lhe permitia é tão primário, completamente incapaz de compreender o reverso totalmente masoquista. Contudo, nada disto está em discussão nesta obra, por isso não adianta estar aqui a realizar interpretações sobre algo que o autor não se dignou a pensar, ou se o fez, foi incapaz de colocar no texto.

Fechando, o livro lê-se muito bem, leva-nos até à última página sempre com a ânsia por saber mais, por compreender melhor quem são aqueles indivíduos, porque vivem ali e como, mas se nós leitores nos preocupamos, eles não. Se sentimos empatia, percebemos no final que isso é algo ausente no desenho dos personagens. Por outro lado, a escrita está longe de ser de um nível Nobel, já que é pouco estruturada e repetitiva, mais ao nível de um romance Young Adult. Mesmo admitindo que objetiva a mostrar o mundo pelos olhos da personagem, ela já é adulta quando fala e recorda, e não é propriamente uma personagem desconhecedora de cultura literária.

novembro 16, 2018

Racismo pela ciência

"Sami Blood" apresenta memórias que muitos suecos prefeririam esquecer, capazes de colocar  o governo de 1930 ao lado dos seus pares alemães, os nazis, nomeadamente pela suposta cientificidade do processo de inferiorizarão de povos apenas pela geografia, no caso o povo da Lapónia. Somos facilmente levados a pensar no modo como os Europeus trataram os indígenas norte-americanos, sul-americanos, ou australianos, para não falar de África, mas estamos já em 1930. Usar a ciência, toda a metodologia e alicerce do pensamento racional, para excluir o outro, para o inferiorizar e descriminar, é algo absolutamente aterrador.





“Sami Blood” apresenta a Lapónia nos anos 30, a terra das renas e hoje em dia do Pai Natal, pela mão de Elle-Marja, uma jovem inteligente e auto-determinada que é integrada num colégio interno, onde vai viver uma traumática experiência "científica" imposta pelo estado Sueco para catalogar o povo Sami. Contra tudo e todos abandona a escola, abandona a irmã, a família e o seu povo, e assume uma nova identidade sueca para poder emancipar-se.



O racismo não é determinado pela cor, nem sequer por qualquer outra diferença fisiológica, é simplesmente determinado pela não pertença ao grupo dominante, e pela falta de empatia do grupo majoritário para com o minoritário. É algo contra o qual temos de lutar de forma consciente, já que os instintos e emoções que nos regulam tendem a facilmente deixar-se manipular pelos instintos de proteção de grupo e comunidade. Quando até recorrendo ao método científico nos deixamos ludibriar por esses instintos, torna-se vital atuar pro-ativamente em defesa das minorias.

O filme apresenta não só as belíssimas paisagens do norte da Suécia, mas oferece-nos um guião impactante, sem pudores, carregado aos ombros por duas poderosas interpretações, as irmãs Lene Cecilia Sparrok e Mia Sparrok.

novembro 15, 2018

Uma Educação (2018)

Para alguns, o passado de Tara Westover não é tão negro como o pintam as badanas e os blurbs no livro, porque em sua casa havia televisão e telefone, ou havia dinheiro para ela ir para a Universidade, e até para fazer estadias fora dos EUA numa universidade inglesa (ignorando as bolsas a que recorreu). Contudo esses comentários passam ao lado daquilo que este livro verdadeiramente nos conta. Não é o tamanho do buraco de onde a Tara saiu que importa, é a sua jornada e o seu efeito transformador, é a luta contra as crenças da sua família em nome de uma Educação. Porque o livro não se chama "Educated" porque a Tara fez um doutoramento, o título vai ao âmago do livro, tal como a ilustração da capa americana, a Tara foi obrigada a atraiçoar os seus valores essenciais enquanto pessoa, definidos pelos seus criadores e cuidadores, para obter a sua Educação. Porque a sua Educação não foi mera montanha de esforço, foi um caminho de não-retorno.

"Tara Westover tinha 17 anos quando pela primeira vez entrou numa sala de aulas. Nascida numa família de sobrevivencialistas nas montanhas de Idaho, preparou-se para o fim do mundo armazenando pêssegos enlatados em casa e dormindo sempre com a sua "bolsa-pronta-para-o-pior". No verão, ensopava ervas para a mãe, uma parteira e curandeira, e no inverno recuperava ferro-velho para o pai. O pai proibia os hospitais, por isso nunca chegou a ver qualquer médico ou enfermeira (..) Um dia, sem qualquer educação formal, Tara começou a educar-se a si mesma."
Talvez o discurso ao longo do livro, com Tara a apresentar tudo com a maior das normalidades, mesmo quando de pura violência se tratava, ou de lavagem cerebral ou ainda de coação, não tenha facilitado a perceção do que estava em causa. Talvez a excecionalidade das suas capacidades e de alguns dos seus irmãos nos surpreenda e faça levantar o sobrolho. Mas o que me parece ter maior efeito nesta leitura é a dificuldade que temos em compreender o quanto o ser-humano é moldável, e o quanto os pais têm capacidade para modelar e condicionar o erguer das pessoas que são os seus filhos. E que por mais mal tratados que sejam, um filho não renegado, não tem nenhum outro lugar do mundo para onde voltar, para onde se dirigir, a quem seguir. Mais ainda, quando convencido de que o mal-trato é para seu bem, para o proteger e dar-lhe o melhor que o mundo tem para lhe oferecer. Neste sentido, não é por mero acaso que Tara se dedique a John Stuart Mill e cite os conceitos de liberdade positiva e negativa de Isaiah Berlin no livro.

O pai de Tara sofria de claras psicopatias, era uma pessoa que acreditava no fim do mundo e fazia toda a sua família trabalhar para armazenar viveres e recursos para o dia em que o mundo terminasse. O pai de Tara acreditava que a Escola servia apenas para endrominar os cidadãos com ideologia do governo, assim como os hospitais não tratavam, antes envenenavam as pessoas. Os seus filhos foram treinados para acreditar nisso, e acreditar nele. Quando a Tara chegou à Universidade, sem nunca ter andado na escola, nem ter aprendido em casa nada além das escrituras Mormons, ela não sabia o que era o Holocausto ou que a Europa era um continente. O mundo de Tara era a pequena aldeia no interior dos EUA, e em essência o mundo que o seu pai para ela tinha construído. Quando confrontada com outras versões do mundo, tudo aquilo que assumia como realidade colapsou.

Isto levanta a questão complexa do que devemos fazer enquanto comunidades e estado. Aceitar que pais, apenas porque deram à luz, tenham o direito de distorcer as mentes de crianças e destroçar os seus futuros, ou agir previamente para que sejam dadas as mesmas oportunidades a todos os cidadãos? Por outro lado, a intromissão a este nível social é de tal modo intrusiva que coloca em causa a base da liberdade das pessoas, a liberdade de ser diferente, de acreditar em ideais distintos, de não ter de obedecer a padrões económico-financeiros iguais para todos. E acreditando eu tão profundamente nesta liberdade, não consegui deixar de sentir a mágoa do sofrimento de Tara e dos seus irmãos. Porque se os pais têm todo o direito de ser como quiserem, também deveriam ser responsáveis por oferecer a oportunidade aos seus filhos de serem um dia o que quiserem.
"A minha vida era-me narrada por outros. As suas vozes eram categóricas, enfáticas, absolutas. Nunca me ocorrera que a minha voz pudesse ser tão forte como a deles (..) É estranho como damos às pessoas que amamos tanto poder sobre nós." (Pág. 229 - 232)
Por outro lado, esta história é poderosa por demonstrar como a escola básica e secundária não é tudo nas nossas vidas. Porque alguém que apenas tinha lido livros bíblicos e mal sabia fazer contas aos 17 anos, conseguiu trabalhar afincadamente, recuperar 12 anos de "atraso", e em 10 anos não só licenciar-se mas também se doutorar em História (um outro seu irmão, com um pouco de educação formal, seguiu o mesmo caminho que Tara e acabaria a doutorar-se em Engenharia Mecânica). Ou seja, este exemplo vem também colocar o dedo numa ferida que temos discutido vezes sem conta, o valor efetivo da escola. Até que ponto esta não é mesmo o tal resquício da revolução industrial, desenhada para nos manter ocupados e aprender a respeitar a autoridade. Ou seja, até que ponto metade da escola e das disciplinas que oferecemos às crianças e adolescentes, não seriam mais do que suficiente para um dia poderem vingar nas suas áreas. Bem sei que parece mais fácil do que é. Tara nunca teria toda esta motivação e capacidade de esforço e sofrimento, não tivesse passado por uma vida tão dolorosa, e da qual poderia apenas escapar se se esforçasse pela Educação, ao que se junta ainda a filosofia de vida do seu pai, que defendia que cada pessoa é capaz de aprender tudo o que quiser sozinho, melhor do que sendo ensinado por outra pessoa. Num quadro normal, uma criança sem esta estrutura de habituação à negação das suas necessidades e ao esforço, só muito dificilmente aceitaria mais tarde realizar o esforço enorme que seria necessário para realizar um curso universitário.

Quanto à escrita, sendo este um primeiro livro de uma pessoa apenas habituada a escrever em termos académicos, é bastante boa. Rica e diversa, capaz de imprimir ritmo e envolver. A estrutura assente em episódios por capítulos funciona também muito bem, já que muitos dos episódios acabam por ser bastante tensos, plenos de conflito e por isso agarram a nossa atenção. Contudo não é um livro perfeito. Como já disse acima o discurso está de algum modo atenuado, como que se por vezes fosse apresentado por alguém à distância. Por outro lado, existe uma sensação de repetição no que vai acontecendo, e isso deve-se ao facto de se repetir na vida real, mas existem formas de trabalhar a repetição, nomeadamente pela estrutura e aglomeração ou eliminação de eventos, o que nem sempre é realizado aqui, criando em partes alguns ciclos de situações que nos enfadam e até, em certa medida, nos afastam do universo do livro e da autora. Contudo, é um excelente primeiro livro.

"Educated" já foi editado em Portugal, pela Bertrand, como "Uma Educação", numa tradução de Cláudia Brito.

Simulacros do Deepfake

Apresentei ontem uma keynote na conferência 2nd Conference on Pathologies and Dysfunctions of Democracy in Media Context, na Universidade da Beira Interior, dedicada ao fenómeno do deepfake e seus potenciais impactos políticos e culturais do ponto de vista da linguagem audiovisual. Em "Deepfake and the future of Audiovisual Simulacra" começo por traçar um paralelo com as edições fotográficas produzidas pelos regimes soviéticos, avançando depois para o papel da fotografia na criação de sentido, de comunidade e crença. A partir dessa perspetiva apresento o audiovisual como auto-suficiente, dotado de capacidades de simulacro, ou seja, capaz de servir de substituto de realidade, a partir do que traço algumas implicações futuras.





A palestra gerou uma discussão interessante, defrontando-se diferenças entre ficção e realidade, assim como o momento em que entramos em descrença e deixamos de acreditar no que quer que seja, pelo lado do Jorge Palinhos, ou ainda da importância e força das comunidades como "amortecedores sociais" pelo lado do Eduardo Camilo para suster os impactos do deepfake, ou ainda a importância cada vez maior da literacia audiovisual nas escolas pelo Pedro Pinto de Oliveira. O João Correia trouxe para a discussão o mundo cada vez mais constituído por crenças assentes na paisagem audiovisual.

novembro 12, 2018

Sobre o futuro do professor

Na semana passada participei no encontro internacional VPCT2018 – A voz dos professores de C&T, para o qual fui convidado para falar das tecnologias que o futuro reserva ao professor de C&T, e dar conta das necessidades atuais e futuras na preparação dos professores. Participei num primeiro momento, 8 novembro, numa mesa redonda com os professores Jaime Carvalho Silva e Niza Costa, onde apresentei um mapeamento das tecnologias que já estão presentes na sala de aula, as do futuro imediato, e as mais futuristas, tudo num único mapa que aqui deixo.


No segundo dia, 9 novembro, apresentei a keynote "Complementaridade Tecnológica e o Fator Humano", na qual procurei refletir sobre o estado atual e próximo em termos tecnológicos, tendo em contas as necessidades de competências dos alunos, e aquilo que poderá fazer a diferença para o professor de C&T na relação com as próximas gerações. Deixo aqui os slides dessa keynote.

novembro 10, 2018

A Índia de Salman Rushdie

Podemos não ligar a prémios, mas quando um livro é reconhecido com um Man Booker em 1981, e passados 12 anos, em 1993, na comemoração dos 25 anos do Booker, é escolhido como o "Booker of Bookers", e passados 27 anos, em 2008, na segunda comemoração especial dos Bookers, dedicada a festejar os 40 anos do prémio, volta a ser escolhido como "The Best of the Booker", teremos poucas razões para duvidar de que algo especial se apresenta nessa obra. E no entanto quando confrontamos estes dados com o nome do autor, Salman Rushdie, surpreende-se uma boa parte da audiência já que o nome é sobejamente conhecido, mas não por este livro, que foi apenas o seu segundo livro, mostrando mais uma vez como o efeito popular diz tão pouco sobre as obras. Aliás, essa falta de reconhecimento popular, também não se espelha na academia, onde "Os Filhos da Meia-Noite" é uma das obras mais estudadas nas universidades anglo-saxónicas. Dito tudo isto, fica de certo modo enquadrado o reconhecimento do livro, e permite-me avançar para a descrição da minha experiência com a obra que foi bastante impressiva.

"Os Filhos da Meia-Noite" (1981) de Salman Rushdie

Confesso que apesar da popularidade do autor, de que conhecia apenas a 'fatwa' ditada pelo seu livro "Os Versículos Satânicos" (1989) mas não tinha lido ainda nada, apanhou-me totalmente de surpresa. Já sabia tratar-se de realismo mágico, um género do qual nem sou particularmente fã, embora o género não dite a forma, sendo na forma que Rushdie mais impressiona, e no entanto quando olhamos para o pináculo do género, "Cem Anos de Solidão" (1967), é também aí a forma algo muito relevante, e "Os Filhos da Meia-Noite" segue e ombreia, colocando Salman Rushdie e Gabriel García Márquez, apesar de em continentes diferentes, no mesmo patamar.

Apesar de colocar Rushdie ao lado de Marquez, existe algo que os separa profundamente, é que Rushdie trabalha diretamente a partir da História, podendo quase dizer-se que o romance é histórico, já que as datas e os principais eventos e personagens da História da Índia são todos reais. Ou seja, o seu realismo mágico ganha um tom distinto, porque não entramos numa realidade completamente paralela, antes somos convidados a atravessar a realidade ao lado de personagens provindos, eles sim, de realidades paralelas. Ou seja, o livro procura retratar o surgimento da Índia enquanto país independente, e fá-lo através dos olhos de uma personagem dotada de capacidades dignas de um romance de ficção-científica (originadas no facto de ter nascido na meia-noite em que se iniciaria a independência da Índia, 15 de agosto de 1947), que vão servindo a comédia e sátira da sociedade indiana em todos os seus quadrantes, da religião à política, passando pelos militares e relação com os ingleses, assim como toda diferença entre classes (não faltam influências portuguesas nomeadamente em nomes de personagens).

Se tudo isto é muito interessante, aquilo que verdadeiramente me impactou nesta obra foi a sua forma escrita. Densa, pode-se dizer muito densa, e no entanto altamente acessível, o que é desde logo um feito. Esteja em modo descritivo, explicativo ou até dissertativo que por vezes assume rasgos de fluxo de consciência, Rushdie nunca se esquece do leitor, mantendo-o sempre dentro do ciclo do que vai sendo discutido (talvez menos no primeiro terço do texto, enquanto não entramos na lógica do autor), para o que recorre a pequenas redundâncias ou chamadas de atenção muito bem posicionadas, que não gera qualquer sensação de repetição mas antes funcionam como recompensa porque confirmam que estamos a entender o que nos está a ser contado.

A densidade torna o processo de leitura lento, com o texto a exigir muita atenção, já que cada parágrafo, cada linha, trazem sempre novos detalhes, o que obriga a uma leitura precisa, que impede o natural processo de leitura em blocos, capacidade que vamos desenvolvendo com a experiência de leitura que nos oferece competências que permitem antecipar o que sucede a cada palavra ou a cada conjunto de palavras, e por vezes até frases completas, bastando uma rápida sondagem da linha de texto para apreender o seu sentido. Rushdie consegue isto muito graças ao facto de não ter barreiras entre ficção e fantasia, o que lhe permite discorrer de modo, por vezes completamente alucinatório, explodindo em diversas perspectivas pequenos eventos, com descrições espaço-temporais ricas ao que junta personagens, que parecendo estereotipadas, são elas próprias também imensamente ricas, plenas de camadas contraditórias entre desejos e anseios.
"Procurava ela nesse tempo afastar da lembrança a aventura do hipódromo; mas não conseguia escapar à sensação de pecado que os cozinhados da mãe nela tinham desenvolvido; e não lhe era difícil ver nos calos uma espécie de castigo. Não só por em tempos ter penetrado no templo de Mahalaxmi, mas também pela impossibilidade de libertar o marido dos certificados alcoólicos cor-de-rosa;  e pelos modos rudes e pouco femininos de Macaca de Cobre; e pelo nariz descomunal do filho. Quando hoje penso nela, tenho a impressão de que à volta da sua cabeça começou a gerar-se uma bruma de culpabilidade; a sua pele escura segregava uma névoa negra que lhe toldava o olhar." (p.150) pequeno excerto exemplificativo da escrita de Rushdie
"Os Filhos da Meia-Noite" merece todo o estudo que lhe tem sido dedicado. Parei várias vezes a leitura para enquanto levantava os olhos me deslumbrar interiormente com o virtuosismo de Rushdie, com a forma como conseguia entrosar tantos eventos, ideias e sentimentos em tão poucas linhas, e como isso nunca era precedido ou seguido de momentos mais lentos ou menos densos, como se Rushdie tivesse uma necessidade de contar e contar mais e mais, e fosse possuidor de um poço infinito de ações e desenvolvimentos para relatar todo o mundo que passava pela sua imaginação. De certo modo, e apesar da História da Índia me ser algo distante, sinto que Rushdie plasmou o pulsar indiano nesta particular forma, nomeadamente quando olhamos à imensidade do país, com mais de mil milhões de cidadãos e a sua infinitude de deuses, que acaba proporcionando dificuldades à gestão do país e claro algum sentimento de caos contínuo. Por tudo isto, e se acessível, não sendo uma obra fácil é uma experiência verdadeiramente singular.

novembro 04, 2018

A importância das escolhas nos jogos narrativos

“Detroit: Become Human” (2018) vai muito para além do mero entretenimento, por baixo dessa capa aparente de filme de Hollywood de ficção científica, lança-nos num mar de reflexões sobre a inteligência artificial e a robótica, que vão desde a motivação para a singularidade na IA (autonomização do ser) às necessidades e vontades associadas pela robótica (existência física) terminando na relação com o humano. À superfície parece oferecer pouco mais do que aquilo que já nos foi oferecido em filmes como “Bicentennial Man” (1999), baseado no conto homónimo de Asimov, “A.I. Artificial Intelligence” (2001) de Spielberg e Kubrick, “I, Robot” (2004) de Alex Proyas ou “Ex Machina” (2014) de Alex Garland, e no entanto, o facto de se tratar de um videojogo baseado em narrativa interativa, coloca-nos face a uma experiência completamente distinta, simplesmente porque somos obrigados a tomar partido.


Detroit apresenta um universo ficcional futurista, no qual os andróides convivem com os humanos em todo o lado, do mesmo modo que muitas outras tecnologias — dos carros aos sistemas de apoio ao humano — com a diferença de terem a mesma fisionomia que um humano, porque lhes facilita o apoio a essas tarefas mais humanas. Contudo, essa forma humanoide associada a capacidades sociais, afetivas e cognitivas torna-os excessivamente humanos a ponto de serem apenas permitidos nos EUA, enquanto o Canada e outros países mantém a sua proibição.


Ainda sobre o universo, e tendo em conta que se trata de narrativa interativa, reportar que Cage levou as suas possibilidades muito para além daquilo que nos tinha dado nos seus jogos anteriores —  “Fahrenheit” (2005), “Heavy Rain” (2010) ou “Beyond: Two Souls” (2013) —, aqui praticamente todas as nossas escolhas e decisões têm consequências, e essas conseguem aparentar ser ilimitadas. O melhor exemplo disso é que o cerne narrativo, constituído de três personagens andróides que devem carregar toda a história aos ombros do início ao final, na minha primeira passagem completa pelo jogo, morrem os três, nenhum chega ao fim, algo que pelas estatísticas apresentadas acontece muito pouco, mas demonstra a enorme elasticidade da ficção interativa apresentada. Note-se que podemos rejogar cada capítulo e alterar as consequências, contudo somos aconselhados, no jogo, a fazer um primeiro playthrough completo sem rejogar qualquer decisão, que foi o que fiz, mesmo quando em algumas decisões, por me sentir demasiado pressionado para decidir, decidi coisas com que não me identificava totalmente. Aconselho vivamente a que façam o mesmo, pois é dessa primeira experiência completa sem rejogar que poderão extrair os maiores impactos da experiência da narrativa interativa proposta.



Do ponto de vista tecnológico e empático, é interessante verificar como apesar de muitos arautos da tecnologia defenderem a proximidade do momento de singularidade, ou da possibilidade de substituir professores por robôs, num videojogo criado em 2017, em que ironicamente os três principais personagens são andróides, ainda estamos completamente dependentes de humanos, não só para lhes dar forma mas para garantir as performances de corpo e voz.

Porque jogar é experienciar, é viver de forma simulada e virtual. Ou seja, colocados dentro daquele universo de possibilidades, somos questionados e interrogados, somos colocados face a questões que ainda não existem no mundo atual, e para lhes responder só nos resta procurar dentro de nós as respostas. Puxar pelas nossas convicções, princípios e morais, mas também todo o conhecimento que detemos sobre as matérias (neste caso o meu conhecimento sobre o design e implementação de máquinas e formação dos seus sistemas de IA), confrontando argumentos para responder às situações, ainda que hipotéticas e ficcionais, colocadas pelo jogo. Sentimos que “Detroit” nos coloca contra a parede, no que à relação futura entre humanos e andróides dotados de consciência IA concerne, porque atira sobre nós toda a responsabilidade sobre como lidar com eles, obrigando-nos a decidir e a reagir. E se durante o jogo, um pouco pelo que considero excessivo design de pressão sobre o jogador ainda que sirva bem a dramatização necessária ao contar de uma história, senti as decisões por vezes mais distantes, no final do jogo elas caíram-me todas em cima.

Marcha de andróides lutando pelos seus direitos

Por exemplo, ter deixado morrer os três personagens não foi algo simples, impactou a minha experiência, criou frustração mas foi além, porque o jogo não se fica, não se resume a um mero “game over”, algo que Cage detesta nos videojogos. As ausências dos personagens tornaram-se parte do meu universo jogado, e a minha culpa pela sua perda foi transposta para os eventos que continuaram a suceder-se, o que se foi agravando quanto mais as suas ausências se foram tornando consumadas em mim. Mas isto também levanta enorme peso na discussão da autoria, do que tem para dizer um autor, e aqui Cage luta claramente nessa fina linha entre o quanto está disposto a oferecer-nos de controlo sobre os eventos e aquilo que nos quer dizer com a sua obra. Li em algumas resenhas, caracterizações de inconsistência narrativa, ou seja, que Cage não saberia ou não teria conseguido construir uma mensagem completa. Contudo, por muito que me custe dizer, mais ainda tão habituado a defender a intenção autoral no cinema e na literatura, aqui a intenção autoral não pode prevalecer sempre, correndo o risco da interatividade não passar de ilusão. Por isso se o jogo parece mover-se entre barricadas ideológicas ao longo da experiência, deve-se mais àquilo que vamos decidindo fazer, porque o jogo permite que façamos, e menos a uma vontade ou falta de determinação do autor e do jogo em passar uma ideia redonda. Aliás, se dúvidas houvesse sobre a determinação do autor bastaria recuar a 2012, "ver a demo/curta "Kara" e perceber como "Detroit" não surgiu de um simples desejo de fazer mais um jogo, mas vem carregado de intenções (entrevista com Cage).

"Kara" (2012) de David Cage

Posto isto, o jogo consegue algo que nem o livro nem o filme conseguem, levando-me a considerar que retirei desta experiência, algo que é notável para um videojogo, uma melhorada compreensão da minha relação com a tecnologia e sua hipotética singularidade futura. O jogo puxa imenso pela nossa ambivalência, usa truques para confundir o nosso sentir para com os andróides, que servem também para que possamos ir traçando o nosso caminho. Já estamos habituados, no cinema, ao desenho de situações de pura empatia para com os andróides, mas aqui somos também brindados com situações completamente contrárias, e somos conduzidos a passar pelos dois sentimentos, o que consegue mexer com algumas das nossas convicções. Existem algumas questões apresentadas de modo muito simplista, nomeadamente o modo como a generalidade dos humanos vai reagindo, algo que como já se disse, não é alheio ao modo como vamos jogando, ou seja, à medida que vamos jogando a narrativa vai-se ajustando e naturalmente partes dessa vão sendo secundarizadas. Contudo, pelo que vi de possibilidades jogadas por outros, é possível aceder a maior elaboração dessas partes, dita mais simplistas, rejogando partes mais decisivas que alteram o rumo dos eventos finais.

A primeira sequência do jogo, de resposta a um rapto, abre muitíssimo bem o tom do jogo, e nem queria acreditar quando vi na net que podia ter 6 finais completamente distintos.


Ao contrário dos jogos anteriores de Cage, e talvez motivado pelo facto de termos as árvores de nós narrativos a serem apresentadas no final de cada capítulo, mas especialmente porque as variações narrativas são tão acentuadas, sinto o desejo de voltar e rejogar, de voltar a experienciar, de decidir de outras formas para confrontar as minhas decisões naquele universo.

outubro 30, 2018

A ordem do tempo e a impermanência do real

Rovelli é fascinante, como Sagan e Hawking foram. Há muito tempo que não me sentia tão curioso durante a leitura de um livro de simples divulgação científica, porque Rovelli usa linguagem e metáforas acessíveis e porque o assunto é o Tempo, algo a que todos estamos presos, queiramos ou não. Descobrir aquilo que Rovelli tem para nos contar é um pouco como descobrir algo sobre nós mesmos, porque este livro não é sobre o Tempo, este livro é sobre aquilo de que nós e o cosmos somos feitos. Rovelli perfura pela matéria e tempo adentro abrindo-nos ao espanto da descoberta. Admirável.


Não vou detalhar muito sobre o livro, até porque é pequeno, totalmente focado na definição de tempo, tanto popular como científica, colocando em jogo alguns dos atores do conhecimento humano mais importantes de sempre: Aristoteles, Newton e claro Einstein, assim como a brilhante, apesar de breve discussão sobre a noção de tempo antes de termos inventado os relógios. Rovelli começa por atacar a ideia de tempo, destruindo um conceito que fomos criando nos séculos recentes, o da existência do tempo verdadeiro:
“We might just as well ask what is most real—the value of sterling in dollars or the value of dollars in sterling. There is no “truer” value; they are two currencies that have value relative to each other. There is no “truer” time; there are two times and they change relative to each other. Neither is truer than the other.
But there are not just two times. Times are legion: a different one for every point in space. There is not one single time; there is a vast multitude of them (..) Every clock has its proper time. Every phenomenon that occurs has its proper time, its own rhythm.
Einstein has given us the equations that describe how proper times develop relative to each other. He has shown us how to calculate the difference between two times.”
Esta discussão estende-se depois à distinção entre a proposta de Aristoteles e de Newton, sobre a existência ou não do tal tempo verdadeiro, e foi aqui que senti o maior impacto da leitura, não por este trecho, mas por tudo o que implica e que explicarei a seguir:
Aristotle: “If nothing moves, there is no time, because time is nothing but the registering of movement.”
Newton: "time must exist: “true” time that passes regardless, independently of things and of their changes.”
“So, who is right: Aristotle or Newton? Two of the most acute and profound investigators of nature that the world has ever seen are proposing two opposite ways of thinking about time. ”
“Time is only a way of measuring how things change, as Aristotle would have it—or should we be thinking that an absolute time exists that flows by itself, independently of things? The question we should really be asking is this: which of these two ways of thinking about time helps us to understand the world better? Which of the two conceptual schemes is more efficient?”
“Time thus becomes part of a complicated geometry woven together with the geometry of space. This is the synthesis that Einstein found between Aristotle’s conception of time and Newton’s. With a tremendous beat of his wings, Einstein understands that Aristotle and Newton are both right. Newton is right in intuiting that something else exists in addition to the simple things that we see moving and changing. True and mathematical Newtonian time exists; it is a real entity; it is the gravitational field, the elastic sheet, the curved spacetime in the diagram. But Newton is wrong in assuming that this time is independent from things—and that it passes regularly, imperturbably, separately, from everything else.”
Daqui vamos chegar à seguinte proposição "the world is a network of events", ou seja
"the absence of the quantity “time” in the fundamental equations does not imply a world that is frozen and immobile. On the contrary, it implies a world in which change is ubiquitous, without being ordered by Father Time; without innumerable events being necessarily distributed in good order, or along the single Newtonian time line, or according to Einstein’s elegant geometry. The events of the world do not form an orderly queue, like the English. They crowd around chaotically, like Italians.
They are events, indeed: change, happening. This happening is diffuse, scattered, disorderly. But it is happening; it is not stasis.”
E ainda: “Time, as Aristotle suggested, is the measure of change (..) the world is in a ceaseless process of change.” Que nos leva então a assumir:
“The entire evolution of science would suggest that the best grammar for thinking about the world is that of change, not of permanence. Not of being, but of becoming.
We can think of the world as made up of things. Of substances. Of entities. Of something that is. Or we can think of it as made up of events. Of happenings. Of processes. Of something that occurs. Something that does not last, and that undergoes continual transformation, that is not permanent in time (..) "The world is not a collection of things, it is a collection of events. The difference between things and events is that things persist in time; events have a limited duration."”
A definição mais brutal chega então pela pedra:
“A stone is a prototypical “thing”" e no entanto "On closer inspection (..) The hardest stone (..) is in reality a complex vibration of quantum fields, a momentary interaction of forces, a process that for a brief moment manages to keep its shape, to hold itself in equilibrium before disintegrating again into dust”
Ou seja, a realidade tal como a concebemos, feita de coisas, não existe. Tudo está em movimento perpétuo para a desintegração, e nós, humanos, passamos as nossas vidas a lutar contra esta mesma desintegração. Cada objeto, produto, material que criamos não passam de reconfigurações de matéria, que assim que terminadas entram num processo de voltar à forma inicial, pó, matéria, energia. Apercebi-me disto, com mais força, há uns anos após compra de casa, comecei a perceber como a única forma de a manter de pé, na luta contra o "tempo", é a constante manutenção da mesma, com pequenas obras que a impedem de voltar ao pó original. Do big bang a um big bang ainda maior, somos partículas de energia que se movem e arrastam consigo desejos e vontades de ação sobre essa mesma energia. Electrões, moléculas, dinossauros, seres-humanos, planetas, fazemos parte de um mesmo todo, somos grãos que se juntam e separam em função de flutuações de energia, progredindo numa voragem em direção à forma última.
“A few examples: a war is not a thing, it’s a sequence of events. A storm is not a thing, it’s a collection of occurrences. A cloud above a mountain is not a thing, it is the condensation of humidity in the air that the wind blows over the mountain. A wave is not a thing, it is a movement of water, and the water that forms it is always different. A family is not a thing, it is a collection of relations, occurrences, feelings. And a human being? Of course it’s not a thing; like the cloud above the mountain, it’s a complex process, where food, information, light, words, and so on enter and exit... A knot of knots in a network of social relations, in a network of chemical processes, in a network of emotions exchanged with its own kind.”
Nada construímos que permaneça, toda a produção humana que perdurou na história deve-o às gerações que se sucederam que foram mantendo a forma dessa matéria próxima dos moldes iniciais por meio de contínua reconstrução. Fecho com a frase Banville a propósito de Rovelli: "A Física Encontrou o seu Poeta".

outubro 28, 2018

As Vinhas da Ira (1939)

É um clássico, podemos até sentir o texto datado, o relato bastante simplista e linear, no entanto não podemos deixar de confirmar o modo e a força com que somos transportados para o pós-Grande Depressão (1929) e que sentimos as dificuldades das vidas de milhares de americanos que tudo perderam, sem perceberem como, nem porquê. O livro tem problemas, mas o que tem de bom compensa tudo isso. Por isso continua a recomendar-se.

A edição que li foi da coleção Mil Folhas do Público que utiliza a tradução de Virgínia Motta realizada para a Livros do Brasil

Provavelmente aquilo que de menos gostei foi da tradução, parece-me estar longe do nível de eloquência do original, sofrendo ainda mais pela tentativa, sem sentido, da Livros do Brasil de produzir um português que satisfaça Portugal e Brasil, redundando numa mescla que não é uma coisa nem outra. O livro perde muito, e espero que um dia ganhe uma tradução feita com maior proximidade ao original e ao português de Portugal. O original em inglês não é propriamente fácil de seguir para não-nativos nomeadamente ao nível dos diálogos que aproximam a escrita da fala.

Quanto à estrutura, pode-se dizer que é bastante linear, um arco completo com  bastante progressão na ação o que torna a leitura, em partes, bastante acessível e prazerosa. Por outro lado, não gostei de um artifício criado por Steinbeck, que assentou em intercalar os capítulos da história com capítulos mais abstratos e filosóficos sobre o estado das coisas, e a condição humana. Fez-me lembrar os videojogos que precisam de intercalar a interação com pequenos clipes de filme para que se perceba o que a história está a tentar contar. Acaba funcionando como um rótulo de menoridade ao leitor, que supostamente seria incapaz de compreender todo o alcance do que está a ser relatado à família Joad no seio da História americana da depressão económica. Como se Steinbeck tivesse necessidade de reforçar a sua visão política do que descreve, para lhe permitir chegar a questões que quer abordar mas que não encontrou forma por via da história. Não fosse a história tão impressiva, e consideraria o livro, por esta razão, um falhanço.

Já na parte do conteúdo, das ideias que Steinbeck procura defender, existe algum excesso de zelo em defesa do realismo socialista, como tábua de salvação para todos males desencadeados pelo vil metal. Sim, tanto em 1929 como em 2008, as massas da população foram vítimas da falta de escrúpulos de quem lidou com os dinheiros de todos, de quem olhava apenas aos modelos económicos e esquecia que por debaixo desses existiam seres humanos reais. Isso trouxe tudo o que de pior existe no ser-humano — o racismo, a xenofobia, o desprezo pelo outro — a total desconsideração pelos valores humanos. Por outro lado, não podemos pensar como sendo algo fácil, lidar com milhões de deslocados, nem nessa altura, nem hoje, nem nunca. Continuo a defender que devemos receber todas as pessoas que precisam de se deslocar, mas não podemos esquecer que essas vão estar imensamente vulneráveis, e que mesmo um Estado rico podendo ajudar bastante, não pode de forma alguma chegar a todos, e que no meio de tudo isso haverá muito aproveitamento por parte de quem já estava nos lugares antes. Isso faz parte da sobrevivência humana, claramente que devemos vergar esses instintos pela lei, mas será mero paliativo, precisamos de agir sobre o que antecede, ou seja, em formas de evitar essas deslocações massivas. O que era preciso nessa altura, era ter criado as condições para as pessoas permanecerem nos seus terrenos e nas suas casas, lugar em que elas se sentiam bem, pois nenhum outro lugar por mais acolhedor que fosse poderia oferecer as alegrias do lugar em que aquela família tinha crescido e unido o seu sentir.

Sei bem que é fácil em teoria, e que em lugares como a Síria da atualidade isto se tornou uma impossibilidade. Mas por culpa de quem? Nossa. Europeus, americanos, russos, árabes, todos se acharam no direito de intervir num país que era soberano, e todos contribuíram para a sua total destruição. Hoje mandar os sírios de volta não adianta, eles já não têm lugar para onde voltar. Mas os EUA não sofreram pressões do exterior, o governo americano devia ter agido nas expropriações, na destruição de valor por via das quebras em bolsa. Ao permitir que a sociedade seguisse o seu rumo, sem qualquer regulação, criou um problema muito maior com os milhões de pessoas a mover-se massivamente.

Uma outra questão que surge aqui bastante evidente, na assunção de uma realidade idilicamente socialista, é o problema da falta de qualificação da mão-de-obra. Nessa altura já vivíamos num pós-Revolução Industrial, uma revolução que veio exigir das pessoas muito mais, não bastava força bruta, porque essa já pertencia às máquinas. Do mesmo modo hoje já não basta saber ler, escrever e contar. Não digo isto por acaso, mas porque vai existindo um discurso perigoso emanado de certas alas da sociedade que olham para a escola como algo pouco relevante, e que se acentuou recentemente com a internet, porque o conhecimento é de todos e todos lhe podem aceder, esquecendo que o mundo complexo em que vivemos não pode ser servido por meras pesquisas na internet. O progresso que vamos vivendo não exigiu, não exige, nem exigirá menos escola, mas mais, muito mais competências e capacidades finas que só estarão ao alcance de muito estudo e treino diários no tempo.

E no caso relatado na obra de Steinbeck, sabemos que o estado americano teve as suas culpas em não apostar numa rede pública de educação que assegurasse a elevação das capacidades da sua população, mas sabemos bem como certas franjas, nomeadamente no interior dos EUA olham para a escola pública, acusando-a de braço ideológico do governo, optando por escolarizar em casa, e até em alguns casos sequer escolarizar, como tem vindo a público em vários relatos recentes (ver "Educated: A Memoir" (2018) de Tara Westover ou "The Glass Castle" (2005) de Jeannette Walls).