julho 07, 2018

Fábula da Academia do século XXI

A academia era responsável por criar conhecimento, imaterialidade de experiência humana, tinha sido assim a sua génese e assim sobreviveria por vários milénios. No entanto nas últimas duas a três décadas, por várias razões, o conhecimento foi sendo convertido em produto, em matéria resultante e concreta. O conhecimento deixava de valer per se para valer apenas em função do que podia ser medido, quantificado e apresentado como rendimento efetivo.

Sócrates, Academia de Atenas

Começando pelo aumento massivo do ensino superior nas últimas décadas, um aumento de instituições e recursos humanos que inevitavelmente começaria a gerar pressão para que se justificasse o dinheiro investido pelos contribuintes. O conhecimento per se não interessava propriamente a quem ia chegando ao Ensino Superior, já que este era visto como “centro de treino para emprego”. Não se tiravam médias de 19 para ir aprender Medicina, mas apenas e só para ter acesso ao emprego de médico. O conhecimento era um cartão de emprego. Ora, durante algum tempo a relação entre o ensino superior e a empregabilidade foi suficiente para justificar a sua existência, mas essa linha foi ultrapassada quando os números aumentaram exponencialmente e se percebeu que o ensino superior não tinha cartões de emprego para oferecer a todos. Foi então preciso encontrar formas mais criativas de justificar o investimento massivo.

Produzir pessoas com elevados recursos de conhecimento precisava de ciclos muito grandes, não era só o tempo que demorava a produzir o empregado “superior”, era ainda preciso bastante tempo, fora da academia, para este começar a produzir, por isso era preciso encontrar formas alternativas de aumentar o ciclo de produção das universidades. Reduzir o número de anos dos cursos ajudou, Bolonha tinha sido uma vitória, mas sabia a pouco. Muito melhor era se pudéssemos transformar o conhecimento diretamente em produto, politicamente classificado como “transferência de tecnologia” ou “ligação à sociedade”. Os professores precisavam então de acordar para o mundo à sua volta, sair das suas “torres de marfim” e “falar” com a sociedade. Na verdade, e visto de fora, os professores faziam muito pouco, ou nada, diziam que se dedicavam ao conhecimento, mas isso era pouco diferente de se dedicar ao ócio, era preciso pô-los a trabalhar. Havia então que secundarizar o aprender e ensinar, e passar a produzir. Dizia-se, ‘O conhecimento só vale a pena quando aplicado em produtos’, quando 'dá dinheiro'. Chamavam-lhe inovação e criatividade, e diziam à academia que ela tinha a responsabilidade de salvar a economia dos seus países. Com isto esquecia-se a sua principal função, o conhecimento e a formação de pessoas com esse conhecimento, ao que se acrescentou ainda o declínio da natalidade. Era preciso fazer algo que mantivesse o fluxo de estudantes.

Os rankings vieram “ajudar” as universidades mais antigas que tinham perdido espaço para a emergência das que tinham surgido como “centros de formação”. Estar bem posicionado no ranking permitia às universidades tornarem-se atrativas, e assim reganhar alunos a essas instituições “arrivistas”. Mas os rankings eram internacionais, dizia-se que eram independentes e por isso muito bons. Mas também por causa disso precisavam de usar uma única língua, não era possível realizar rankings se o conhecimento produzido fosse nas línguas dos seus países, e como o poder económico era regulado pelo Império Americano, que outra língua além do inglês poderia ser adotada? Começaram então todos a produzir papéis (artigos e textos) na língua que esses rankings pudessem perceber. As pequenas conferências em que os académicos se encontravam e discutiam conhecimento em estado bruto começaram a escassear, cada um estava agora apenas interessado em produzir e publicar papéis. Porque eram esses papéis que permitiam aos rankings classificar as universidades internacionalmente. Quantos mais papéis fossem publicados no sítio em que mais pessoas queriam publicar, mais reconhecidos eram esses papéis. Não mais interessava o que dizia o conhecimento, era tudo uma questão de dança e posicionamento de papéis que garantiam rankings, ou seja, produto.

O número de papéis duplica à razão de 10 anos. Enquanto isso os autores passam a assinar papéis uns dos outros para garantir aumentos de produção de papéis.

Os rankings produziam reconhecimento, ofereciam status, e com ele atraiam alunos que escasseavam, mas também serviam para triar financiamento. Como vimos, a academia já não podia sobreviver só com o ensinar, tinha de produzir, todos o diziam, mas na verdade havia pouco dinheiro para pôr nas mãos dos académicos para potenciar essa produção. Desejava-se que produzissem mas que o fizessem com o mínimo, que fossem criativos, usassem o conhecimento, a “suprema” matéria-prima, a massa cinzenta, para criar produtos. Desta forma os rankings ajudavam também a decidir quem de entre esses académicos tinha direito a receber mais apoios, a ver projetos financiados com os dinheiros que iam sobrando aos estados. Por isso não tardou até que grupos de académicos passassem a dedicar mais tempo a numerar, listar e quantificar os seus feitos do que a discutir conhecimento. Muitos destes passaram a dedicar-se às metodologias de avaliação dos seus próprios feitos, passando até por especular a probabilística dos mesmos a 5 e a 10 anos, enquanto atacavam rankings por usarem maus indicadores e elogiavam outros por usarem as melhores fórmulas de cálculo.

Na verdade, os rankings e os papéis, o produto, interessavam apenas a um grupo restrito, quem os escrevia fazia-o por obrigação, quem fazia a revisão por pares fazia-o por obrigação, e quem os citava fazia-o por obrigação, sobravam as editoras que ganhavam milhões pelo meio, ao que se juntavam as agências de rankings que ganhavam mais alguns milhões. Os políticos fechavam os olhos, na verdade todo esse sistema permitia-lhes tomar decisões sem terem de perceber nada do conhecimento criado pelos académicos. Não admirava por isso até que o próprio comissário europeu para Ciência e Investigação fosse alguém que nunca tivesse produzido qualquer conhecimento, não era preciso, as tabelas e gráficos produzidos por estas empresas eram suficientes para tomar decisões. E, no entanto, a indústria real não queria saber desses rankings nem papéis para nada, da relação que podiam estabelecer com a academia, estava apenas interessada no que poderia ganhar em termos de melhoria das vendas do seu produto, e para esse efeito os papéis eram inconsequentes.


Repare-se como a produtividade não depende dos papéis nem da investigação, já que o aumento de investigadores não representa qualquer aumenta de produtividade.

A ânsia pelo produto conduzia assim ao desaparecimento do conhecimento de cada país, da sua especificidade regional e cultural, porque interessava mais aquilo que era comum a todos, porque só assim poderiam entrar nos locais em que todos “tinham” de publicar. O Império Americano e seus satélites jogavam em casa, os outros tinham de duplicar a velocidade, para em paralelo criar conhecimento e colocá-lo na língua desses. Se em domínios aplicados o conhecimento era facilmente aceite em inglês básico, em domínios fundamentais, em que a língua era ela própria criadora, não bastavam meras proficiências das escolas de inglês do bairro. Deste modo, o Império transferia-se da economia para o conhecimento, e do conhecimento novamente para a economia, tudo conjugado numa hegemonia que se queria robusta.

Os papéis noutras línguas simplesmente desaparecem.

De cada vez que um papel era publicado num daqueles sítios em que todos queriam publicar ficava-se feliz, mas apenas naquele dia, naquela hora, já que apenas interessava o que ainda estava por publicar, porque o que interessava era aumentar o número de papéis, para garantir o aumento e manutenção do reconhecimento que per se não trazia qualquer felicidade. De cada vez que um projeto científico era aprovado, ficava-se feliz, mas apenas até se iniciarem os trabalhos e perceber-se o inferno da gestão burocrática do mesmo que mudava a cada seis meses. Mesmo assim, a ânsia pelo reconhecimento e o receio da falta de financiamento que justificasse a sua posição, faziam com que mal iniciado um projeto se iniciasse de imediato a submissão de um novo, mesmo sem qualquer novo conhecimento que o justificasse.

O conhecimento era produto, o conhecimento era agora algo perfeitamente delineado, medível, quantificável e claro vendável. Para quê entrar em dialéticas quando uma folha de cálculo podia pôr um fim imediato a quem tinha razão. Aliás, dentro da própria academia os físicos viam a filosofia como morta, porque a razão já não era baseada em conhecimento, a razão era oferecida por cálculos baseados em número de papéis, número de citações, locais em que se tinha publicado, projetos financiados e quantidades de financiamento. Assim, a razão que tinha por dever instigar e incentivar a centelha humana, elevar o humano para além dos limites do pensar, tinha ela própria sucumbido e sido transformada em produto.


Referências

julho 01, 2018

Coetzee com Dostoiévski

Cheguei a "O Mestre de Petersburgo" (1994) quando procurava livros sobre São Petersburgo, tendo-me surpreendendo imenso com a descoberta, pois um livro sobre um dos maiores expoentes da literatura escrito por outro grande escritor, entretanto nobilizado, só poderia ser uma grande obra. Não posso dizer que tenha ido além do que conhecia de ambos, mas também não desiludiu propriamente. Senti mais Dostoiévski, apesar de escrito por Coetzee em jeito expiatório, mas isso provavelmente deve-se mais ao facto de conhecer melhor a obra de Dostoiévski.


O texto fala-nos de um Dostoiévski que volta a São Petersburgo, estando a viver em Dresden, para dar conta do funeral do seu enteado, Pavel (enteado verdadeiro). A morte do enteado acaba por estar ligada (imaginado por Coetzee) a alguns personagens revolucionários reais (Sergey Nechayev), conhecidos da história da Rússia e dos livros de Dostoiévski (principalmente "Demónios"). Passamos assim algumas semanas na companhia do escritor enquanto este deambula pela cidade na tentativa de compreender o que terá acontecido ao seu enteado ao mesmo tempo que vai lidando com os seus demónios internos.

Este resumo da trama torna-se imensamente relevante já que ele responde à resposta porque Coetzee (1940) escreveu este livro. O seu filho Nicholas, morreu com 23 anos (1989), aproximadamente a idade do enteado (no livro) de Dostoiévski, 5 anos antes da publicação deste livro. Ou seja, temos Coetzee claramente à procura de respostas dentro de si mesmo, a escrutinar-se, a tentar compreender o que sente, porque sente, como responder a tão grave tragédia, aquela porque nenhum pai deveria passar. Por outro lado, Dostoiévski (1821-1881) não perdeu o enteado, mas perdeu dois filhos, Sonya à nascença (1868), e Alexey com 3 anos (1878) que muito o fez sofrer e o fez mesmo passar algum tempo num convento em busca de respostas. Mais razões pelas quais Coetzee se interessaria por Dostoiévski não são fáceis de descortinar, até porque Coetzee raramente fala, e menos ainda explica as suas obras, mas existe uma nota de uma entrevista que é central para compreender este livro:
“Toda autobiografia é um contar de histórias, toda a escrita é autobiografia. [A escrita autobiográfica é] um tipo de auto-escrita em que nos sentimos obrigados a respeitar os factos da nossa história. Mas quais factos? Todos os factos? Não ... Escolhemos os factos na medida em que eles se encaixam no nosso propósito evolutivo.”  (Coetzee, 1992, fonte)
Por outro lado, a razão porque Coetzee escolhe para pano de fundo o cerne da obra "Demónios" (1872) é bastante menos clara, e menos ainda a razão porque se foca no capítulo censurado da obra, que podemos ler na edição portuguesa, da Editorial Presença, ainda que como anexo. Para mim resulta claro que Coetzee está a tentar entrar na mente do maior psicólogo da literatura em busca de algum tipo de autoterapia, mas pergunto: porquê de forma desviante? Existirá uma sede de mal quando o mal nos bate a porta?

junho 30, 2018

O que Gostaríamos de Ver quando Lemos

"O Que Vemos Quando Lemos" (2014) é um livro interessante mas que tem de ser lido com muito espírito crítico, algo que não me parece ao alcance dos alunos do 9º ano, a quem o livro é recomendado em Portugal. A razão não se reduz apenas à falta de suporte científico para o que se vai debitando, mas agudiza-se com a forma desprezível como olha para essa cientificidade, assumindo a perspectiva do autor como perspectiva de verdade. Ou seja, afirmando o meramente anedótico ("eu acho que é assim", ou "eu vejo assim") como prova de realidade igual para todos. O melhor do livro é mesmo o facto de ser ler em pouco mais de duas horas, por isso não se perde demasiado com a sua leitura.


Alguns exemplos
p.26: "Alguns leitores juram que conseguem imaginar os personagens perfeitamente, mas apenas enquanto estão a ler. Eu duvido disso."
Bem, isto é o mesmo que dizer que Nabokov, entre muitos outros sinestesistas, não viam cores ou ouviam sons quando liam letras, palavras ou frases. Ou seja, o autor diz simplesmente: "se eu não vejo, os outros também não vêem."
P.39: “É provável que ouçam a linha (no ouvido da mente) antes de imaginar o personagem. Eu posso ouvir as palavras de Ishmael com mais clareza do que consigo ver o seu rosto. (A audição requer processos neurológicos diferentes da visão, ou cheiro. E eu sugeriria que nós ouvimos mais do que vemos enquanto lemos.)”
Mais uma. Simplesmente porque o autor tem a impressão de ouvir melhor, nada reportando sobre essa diferença, até porque o livro é sobre apenas o que vê, ou melhor sobre o que imagina que deveria ver, esquecendo completamente toda a restante componente sensorial que a experiência de leitura produz no leitor, já avança com afirmações a que liga termos científicos ("processos neurológicos") sem qualquer suporte. Isto faz o livro descer ao nível de texto de opinião de jornal regional.

Frases e problemas como estes são mais do que muitos, e não vale a pena sequer tentar aqui elencar os mesmos. Cada um de nós tem as suas teorias próprias sobre o que acontece dentro de si quando lê, ouve, vê um filme, ou passa por um evento real complexo, mas isso não faz de nós especialistas em linguagem ou neuropsicologia. Mendelsund limita-se a usar do conhecimento disciplinar em Design que possui, diga-se meramente aplicado, para tentar responder ao que acontece dentro das nossas mentes, o que não é muito diferente de alguém tentar retirar uma rolha de cortiça de uma garrafa de vinho com um abre-latas ou abre-cápsulas. Repare-se como invariavelmente Mendelsund vai saltitando entre tópicos altamente complexos e díspares como: memória; cognição; emoção; atenção; imaginação; linguagem; comunicação; a relação entre imagens mentais e imagens físicas; os sons e os cheiros; os filmes, os videojogos e os livros; a narração, a dramatização e a descrição; etc.

O livro parece mais um conjunto de ideias, que não sendo desinteressantes, não vão além da superfície do que se discute. Como se o autor tivesse lido alguns livros sobre o tema, e quisesse converter em texto algumas das ideias que o têm assombrado. E se não tenho nada contra a que cada um o possa fazer, já tenho contra quando o texto tende a tentar passar-se por Estudo ou Investigação, com gráficos supostamente científicos (ver imagem abaixo) ou sendo referido como tal em elogios. Porque nada do que nos diz Mendelsund é novo, ou não foi discutido imensamente, mas mais importante do que isso, não foi verdadeiramente investigado, nomeadamente nas últimas duas décadas com as neurociências e na linguística. Não faltam referências de estudos e trabalhos sobre o tema, e quantos cita ou refere Mendelsund, zero. As únicas referências que Mendelsund vai fazendo, para além dos clássicos da literatura, são a meia dúzia de filósofos. E no final rotula tudo como um estudo fenomenológico e já está. Pois não está, isto é nada. E menos ainda é dar isto a ler aos adolescentes sem os colocar de sobre-aviso sobre o facto disto não ser ciência, disto não passar de uma conversa de café interessante. Mais preocupante ainda quando a editora vai buscar epítetos de um conjunto de amigos do autor e os cola na contra-capa atribuindo uma relevância muito além daquela que o texto merece.

O resultado do suposto estudo de Mendelsund em que este pretende comparar parâmetros como agência e vivacidade das imagens criadas a partir de experiências como: sonho, alucinação, perceção real e imaginação da leitura. Colo-as aqui, apenas para chamar a atenção que estas não possuem qualquer validade.

Para quem realmente quiser saber o que se passa nas nossas mentes quando lemos, deixo aqui algumas leituras, não que existam certezas, mas exatamente por isso é que não podemos simplesmente brincar com ideias como se tudo valesse o mesmo, como se meras opiniões fossem tão relevantes como a ciência, para não falar do desprezo pelo trabalho de tantas e tantos investigadores. Deixo apenas alguns livros de divulgação científica, por ordem de acessibilidade e relevância para o tema, não fazendo sequer menção às centenas de artigos científicos existentes na área.


Bergen, B. K. (2012). Louder than words: The new science of how the mind makes meaning. Basic Books (AZ).

Damasio, A. R. (1994). Descartes’ error: Emotion, rationality and the human brain.

Pinker, Steven (1994). The Language Instinct: How the Mind Creates Language. Perennial.

Damasio, A. R. (2018). The Strange Order of Things: Life, Feeling, and the Making of Cultures. Pantheon.

Eco, U. (1989). Opera aperta. Harvard University Press.

Ahlsén, Elisabeth (2006). Introduction to Neurolinguistics. John Benjamins Publishing Company

Chomsky, Noam (2000). The Architecture of Language. Oxford: Oxford University Press.

Lakoff, G., & Johnson, M. (2008). Metaphors we live by. University of Chicago press.

Bordwell, D. (1991). Making meaning: Inference and rhetoric in the interpretation of cinema. Harvard University Press.

junho 28, 2018

O que se esperava da tecnologia VAR

Não me parece que o sistema de assistência vídeo aos árbitros, que está a ser utilizado no Mundial 2018, mais conhecido por VAR, esteja em condições de garantir as expectativas nele depositadas. O jornal Público fala hoje no reconhecimento de um erro na marcação de um pénalti contra Portugal, e isso só veio confirmar algumas das minhas questões sobre o próprio sistema. Ou seja, o modo como VAR funciona parece-me pouco robusto nomeadamente por duas razões: o árbitro principal não controla o que vê; as imagens a revisionar são apenas vídeo.


Sobre o controlo do árbitro sobre as imagens que visiona, direi que o controlo direto, a manipulação interativa das imagens permitiria ao árbitro uma muito maior cognição do que está a ver. Falo de poder selecionar entre diferentes ângulos, e principalmente de poder andar para a frente e para trás, acelerando e desacelerando as imagens, podendo sincronizar o seu modelo mental com o modelo apresentado nas imagens. Sei bem que isto seria pesado para o mesmo. Estar no meio de um jogo, num modelo de jogos em que perder 2 minutos cria grande tensão, até porque nem sequer existe o hábito destas paragens, e exigir ao árbitro que procure as melhores imagens seria tremendo. Além de que reconheço que a FIFA não se poupou ao investimento, o VAR é constituído por 4 pessoas de reconhecidas competências que visualizam ângulos específicos das mais de 30 câmaras disponíveis, suportados ainda por  mais 4 pessoas que visualizam as restantes câmaras, e por isso claramente serão que está melhor posicionado para fazer recomendações ao árbitro. Mas se assim fosse realmente o árbitro não precisaria de ver as imagens, e a verdade é que tem precisado. Tem precisado porque as imagens estão longe de ser claras, porque um fora de jogo é muito diferente de uma bola na mão vs. mão na bola.

Câmaras no estádio

Porque neste último exemplo, o árbitro não pode só olhar para a mão, tem de olhar para toda a linguagem corporal, para a distância a que a bola está, a velocidade e intensidade, para poder compreender o que está a ver. Não basta ver uma bola numa mão, não basta ver um cotovelo junto à cara de um jogador, é preciso analisar o todo. E aqui começam a surgir problemas, porque os árbitros do VAR estão mais focados na exatidão do posicionamento dos elementos, cabendo ao árbitro a decisão final. Ora se é este que toma a decisão concreta, então ele tem de poder aceder às imagens, ele tem de poder controlar o feed de vídeo, de outro modo será guiado apenas pelo que outros à distância de centenas ou milhares de kilómetros (no caso do Mundial a central do VAR está em Moscovo) dirão e que viram apenas a realidade através de um vídeo.

Árbitro pode apenas ver o que o VAR decide mostrar, não pode manipular as imagens. Provavelmente pode pedir outros ângulos, mas isso está longe de corresponder ao verdadeiro exercício manipulativo das imagens.

Sobre a tecnologia vídeo. O vídeo é excelente, altamente realista, quase tão real como a realidade, não é por acaso que os árbitros do VAR vêem o jogo apenas através de vídeo, nenhum deles acede ao campo, estão longe e fechados numa sala, e conseguem ver quase o mesmo que o árbitro no meio do campo. Conseguem porque possuem mais de 30 olhos no terreno, câmaras de alta definição entre outras. Ora o problema é que o vídeo contém apenas 2 dimensões, o que é manifestamente insuficiente para o ajuizar de um mundo que acontece em 3 dimensões, mais ainda quando temos vários jogadores sobrepostos no caminho dos ângulos das câmaras. Por isso parece-me mais do que evidente que a FIFA já deveria ter começado a investir em sistemas de reconstrução 3D, sistemas capazes de capturar as várias imagens vídeo do campo, com a ajuda de sensores e marcadores, que lhe permitissem recriar em tempo real modelos dos jogadores nas posições em questão. O que uma reconstrução 3D de cena permitiria seria a manipulação de uma câmara virtual que rodasse a toda a volta da bola ou dos jogadores, sem qualquer obstrução de visão como acontece no vídeo. Isto permitiria ver com total exatidão a posição das bolas, dos braços, dos pés, etc. Não que fosse o garante último, tendo em conta a complexidade do que muitas das vezes está em análise, nunca existirão sistemas perfeitos, mas garantiria muito maior proximidade ao centro da ação.

Numa cena 3d é possível rodar a câmara virtual para qualquer posição em 360º, aproximando ou distanciado se houver necessidade.


Atualização 16.7.2018:
Dias antes de eu publicar este texto, era publicado no Fast Company um texto que dava conta das atuais possibilidades de reconstrução 3D que vale a pena ler para se perceber melhor o alcance do que digo acima.

junho 21, 2018

Quando a excelência da forma não chega

“Impunidade” recomenda-se pela excelência da escrita e da narrativa, mas com caução aos mais sensíveis. Já sobre o tema, tenho de dizer que surge bastante mal tratado, e no meu caso questiono mesmo se valeu a pena a leitura. Não posso desvelar muito já que a narrativa foi desenhada num modo minimal, requerendo o maior desconhecimento sobre os contornos da história. Como incentivo ou desincentivo, direi que é um livro sobre situações familiares limite, muito duro, violento e direi mesmo manipulador.


O melhor de “Impunidade” assenta na sua forma e estrutura. A escrita de Cancela é económica, direta e muito centrada na ação, permitindo aqui e ali pequenos devaneios filosóficos mas quase sempre marcada por um ritmo regulado a metrónomo. O vocabulário é rico e o texto flui de forma bastante poética. No campo da estrutura, senti um bocadinho menos admiração pelo autor, não que não apresente uma enorme mestria no controlo da narrativa, mas talvez por isso mesmo, acabou soando excessivo, mecânico, com alguma falta de naturalidade. Ou seja, inicia-se o relato in media res, e agarra-se o leitor pela ausência de contextualizações e explicações sobre o que vai sendo descrito, manipulando-o por meio da libertação de informação aos bochechos, mantendo ainda assim o grosso para ser revelado apenas no último quarto do livro. Assim, se a estrutura nos mantém agarrados quase incapazes de pousar o livro, à la thriller, acaba por roubar protagonismo ao tema, uma vez que granjeia muita da nossa atenção por nos conduzir numa constante busca por informação, em vez de nos atrair para o tema e nos oferecer tempo e espaço reflexivo sobre o mesmo.


*** A partir daqui a trama é desvelada e discutida abertamente ***

Por outro lado, esta estrutura e modo de escrita, produziu em mim um efeito bastante interessante, capaz de questionar o modo como vemos a realidade sempre dentro de moldes tão predefinidos, acabando por esquecer ou tender a ignorar quaisquer outras possibilidades. Neste livro fui por várias vezes chamado a atenção para aquilo que ligava os personagens centrais, e no entanto só a 3/4 vi o que era, daí que o impacto que senti tenha sido talvez grotescamente superior àquele que o autor terá pensado criar. Quando, e apenas à terceira menção, compreendo que estamos perante um casal incestuoso, tive de pousar o livro e requestionar tudo o que tinha lido, pensado e imaginado. Se até esta altura imaginava Cancela como um cruzamento entre Elena Ferrante e Michael Haneke, tudo isso se desmoronou. Tinha sido manipulado, não deixava de admirar o controlo narrativo de Cancela, mas as peças estavam longe de apresentar uma visão, ou de querer dizer mais do que aquilo que simplesmente diziam.

Assim, se o meu problema tivesse sido apenas para com a estrutura, provavelmente teria atribuído uma nota ao livro, e máxima, porque fiquei admirador do autor. O meu verdadeiro problema com “Impunidade” surge no tratamento dado ao tema, que era complexo e de difícil abordagem, não apenas por ser tabu, mas também pela quase ausência de tratamento na ficção, faltando bases comparativas. Ou seja, não está em causa a minha intransigência para com o incesto, consentido entre adultos ou não, mas antes o modo escolhido para apresentar essa aparente defesa, se é que se pode chamar tal a este livro.

Em "Impunidade" temos um casal de irmãos que inicia o incesto na idade adulta, descobertos pelos pais que tudo fazem para terminar tal relacionamento, mas que contra todos e tudo reatam e da qual acabam nascendo duas crianças, um filho e uma filha, que no momento em que a narrativa se inicia possuem respetivamente, 9 e 4 anos. Cancela parece querer defender a liberdade de amor entre irmãos, mas se o queria fazer talvez devesse ter escolhido irmãos mais saudáveis do ponto de vista social, cognitivo e afetivo. Tanto o homem como a mulher, são não só completamente anti-sociais, como parecem incapazes de ir além do desejo sexual entre eles. Não me parece que defender um modelo de relações humanas apenas assente no desejo físico seja suficiente. Não me parece que defender um modelo de relação a partir de um casal que é completamente incapaz de amar os próprios filhos seja algo minimamente defensável.

Cancela pode até dizer que o estado destes irmãos é originado pela pressão cultural, pela perseguição moral, ainda que a lei portuguesa nem sequer proíba tal, e por isso Cancela situa a ação em Espanha, onde é ainda proibido. Mas se era isso que queria dizer, foi bastante inábil a fazê-lo, pois em vez de filosofar sobre as perseguições aos judeus podia ter debatido-se mais com o mundo em que estes tinham crescido, já que desse ficamos sem nada saber além do momento em que o pai descobre e perde a cabeça. Para Cancela parece que a brutalidade do que o pai faz com a filha quando descobre é razão suficientemente traumática para justificar o comportamento anémico da filha para com o mundo. Se aceito, parece-me no mínimo estranho que tal evento apenas deteriorasse as suas capacidades para com o resto do mundo, já o sexo com o irmão parece manter-se igual até ao final, tal como as sucessivas gravidezes.

Fica a ideia de que Cancela quer vender-nos um Romeu e Julieta entre irmãos, que nada nem ninguém pode afastar, mas que a força de morais retrógradas tudo fez para destruir. E no entanto, nem a morte de uma filha, que não se pode definir por mera negligência como Cancela faz, mas é antes um claro homicídio por negligência, de ambos, irmão e irmã, parece suficiente para acender um alerta! Não se trata de consanguinidade, é algo muito mais brutal, é o desprezo total pelo outro, pelo humano, pelo inocente que de nós depende. Nada poderia nunca justificar tal. Nada. Nem as histórias das crianças enviadas para S. Tomé em Príncipe aqui valem nada, considero-as mesmo despropositadas.

Não posso contudo fechar esta crítica sem colocar o dedo na maior ferida do livro, o seu final. Completamente inaceitável. Repare-se que não está aqui em causa o incesto, o que está em causa é o autor considerar que dois adultos responsáveis pela morte de uma filha de 4 anos, acabados de abandonar um filho de 9 anos à sua mercê, já com duas tentativas de suicídio, merecem mais uma gravidez. Como se Cancela no fundo estivesse a dizer-nos que a gestação é irrelevante, porque os filhos são irrelevantes, e por isso a consanguinidade é também irrelevante. No final, ao fechar o livro, questionava-me sobre o que tinha aprendido com a sua leitura, não consegui encontrar nada de bom.

Muito honestamente, vou ainda ler o livro que Cancela publicou no ano passado, "As Pessoas do Drama" mas se as suas capacidades literárias não tiverem mais mundo para oferecer, com muita pena minha, deixarei de o seguir.

A brecha na democracia dos EUA

A Fox News tornou-se no maior braço armado da Propaganda Trump, muito mais relevante que Fake News russas nas redes sociais, mais relevante até do que o apoio do próprio Partido Republicano. Tudo graças à imensamente hábil abordagem criada por Rupert Murdoch, senhor do tabloidismo, que vindo de trás se consolidou enormemente neste último ano.


O que temos então é um canal de televisão que se dá à estampa como Noticioso, Fox News, mas que na verdade não notícia, apenas cria entretenimento noticioso. Ao fazê-lo liberta-se das obrigações de factualidade para poder ficcionar de modo criativo. O principal efeito desta abordagem é a criação de um mundo alternativo, no qual os seus espetadores são completamente enredados, atirados para um limbo factual.

Ao longo dos últimos dois anos a Fox News dispensou os menos imaginativos e contratou as estrelas das redes sociais que apoiaram Trump à presidência, deste modo intensificou o seu poder ficcional, aumentando simultaneamente a credibilidade da realidade alternativa por via da união de vozes num mesmo coro, criando coerência e sentimento de grupo. A etiqueta de Notícias que deveria garantir factualidade e contraditório de perspectivas, não o garante, mantendo assim uma identidade apenas aparentemente noticiosa. O problema é que este modo quando usado para fins políticos é tenebroso pois arrisca-se a confinar totalmente os cidadãos. Não é por acaso que se criou todo um código de ética e deontologia no jornalismo.

Acresce a tudo isto o sobrenome Fox. Estamos a falar de um império secular de imaginário americano. Quem nos EUA duvida de algo com que cresceu e aprendeu a amar de todas as vezes que entrou no cinema e ouviu o ribombar e as luzes incidirem sobre as letras 20th Century Fox? Por mais alertas que criemos, é difícil acreditar que quem tanto nos fez sonhar, queira o nosso mal, impossível. E aqui podemos apontar o dedo a Hollywood que hipocritamente tem continuado a viver por conta do império da Fox, sem nunca ousar mexer-se para exigir mais. É fácil falar mal contra Trump, mas colocar a dignidade acima do dinheiro é bastante mais exigente.

Tudo isto se exponenciou com o facto da Fox News ter no poder alguém igual a si. Ou seja, alguém que aceita o modelo e o defende. Ou seja, se tivéssemos apenas a Fox News sozinha, seria mau mas sustentável, mas ter a Fox News apoiada por quem governa, abriu uma brecha estrondosa na democracia americana. A ficção criada por uns é suportada pelos outros num ciclo contínuo de apoio mútuo que impede os cidadãos de ver a realidade por si mesmos. Não é possível ao cidadão médio americano aceitar que Trump mente quando um canal noticioso visto por milhões de pessoas que se unem por interesses comuns, defende e sustenta a mentira com argumentos, ainda que ficcionais, e ainda por cima aponta baterias contra os restantes meios noticiosos, apelidando esses sim de mentirosos. Não é um canal de televisão que aponta o dedo, nem é um governo que aponta o dedo, é a união entre dois elementos que deveriam avaliar-se e escrutinar-se continuamente que gera uma espécie de buraco negro no qual a realidade é regulada por regras próprias.


A Fox News não é o Breitbart, é muito mais perigoso, porque menos extremista, com muito maior cobertura nacional, acesso direto a toda elite económica, financeira e política. Isto deixou de ser um debate direita/esquerda, agora é apenas o "nós" contra "eles" que serviu para criar uma arena no qual se defenderão até às últimas consequências os territórios conquistados. Os EUA estão metidos numa camisa de forças e sair dela não vai ser nada fácil, pelo menos sem que algo de muito grave aconteça pelo meio.

junho 20, 2018

Tess of the d'Urbervilles (1891)

Foi o meu primeiro livro de Thomas Hardy — "Tess of the d'Urbervilles: A Pure Woman Faithfully Presented" (1891) — e era um livro que há muito queria ler, tanto pelos créditos enquanto clássico canónico como pelo tema e abordagem do autor. Posso dizer que as expectativas não defraudaram o prazer da leitura. Apesar de se enquadrar no género reconhecido como romance vitoriano — destinos trágicos com finais felizes — Hardy parece preferir ficar-se pela primeira parte da abordagem. Estamos em Inglaterra, no século XIX, temos mulheres em idades casadoiras que vivem entre a plebe, cientes da sua insignificância, vivendo e trabalhando debaixo de duras condições ditadas por uma pobre ruralidade, quando perseguidas por maquiavéis da luxúria não mais se conseguem libertar das marcas por estes incutidas. A curiosidade era grande também porque o tratamento realizado por Hardy tinha sido, em parte, alvo de crítica pela sociedade de então.

Nastassja Kinski no papel da protagonista Tess, no filme homónimo de 1979 por Roman Polanski.

Tess é a típica menina certinha oriunda de uma pobre família disfuncional, com muitos irmãos mais novos, um pai bêbado e uma mãe desligada. Além de certinha era bonitinha, o que proporcionaria a ideia de buscar um bom casamento que levasse à retirada da pobreza de toda a família. Contudo Tess não era dotada da ausência afetiva que caraterizavam o pai e a mãe, e por isso no momento em que o seu íntimo é violado a sua pessoa altera-se para sempre. Olhando a literatura à volta podemos ver como o tema é tão pouco tratado, mesmo secundarizado, tornado menor, e mesmo a própria crítica de então menosprezou este foco. Contudo, e se a violação nos choca, muito mais choca o modo como a sociedade a encara, tanto na privacidade familiar, forçando a aceitação da condição feminina, como pelos restantes membros da comunidade que de forma ultrajante colocam o homem num patamar distinto da mulher em termos da sua sexualidade. E mais ainda me incomoda a leitura quando olhando a partir de 2018, e apesar do caso concreto poder ser visto de forma bastante distinta, a sociedade ocidental continuar ainda assim a olhar diferentemente aos direitos do homem e da mulher no que à liberdade sexual diz respeito. Um homem que tenha tido muitas namoradas é alguém forte, bem posicionado, com capacidade para ter tudo o quiser na vida, já uma mulher que se assuma assim, dificilmente não será rotulada de promíscua, para não usar adjetivos mais abjetos.


Hardy trabalha muito bem o seu objeto, pegando na inocência, integralidade e esforço para dar conta de uma mulher, que como o subtítulo reforça — "Uma Mulher Pura" —, é do mais puro que a natureza nos pode oferecer, confrontando-a com a soberba, a arrogância e o desprezo da restante sociedade. É de tragédia que se trata, e por isso é natural o conflito entre o forte e o fraco, entre o que nunca teve hipótese e está condenado desde que nasceu, e talvez por isso a leitura seja tão envolvente já que nunca nos cansamos de querer saber mais sobre Tess, de desejar que esta consiga de algum modo levantar-se e ganhar o direito a ser quem é. Claro que para tal contribuem não apenas as excelentes capacidades de Hardy na cozedura da trama, mas também a beleza da sua escrita.
“Todas essas jovens almas eram passageiras do navio Durbeyfield – inteiramente dependentes do julgamento dos dois adultos para seus prazeres, suas necessidades, sua saúde e até sua existência. Se os chefes da casa Durbeyfield escolhiam navegar em direção à dificuldade, ao desastre, à fome, à doença, à degradação, à morte, nessa mesma direção eram compelidos a navegar essa meia dúzia de pequenos cativos ainda no ninho – seis criaturas indefesas a quem nunca fora perguntado se desejavam a vida, muito menos se a desejavam em condições tão severas quanto aquelas da indolente casa de Durbeyfield. Algumas pessoas gostariam de saber de onde o poeta, cuja filosofia é hoje considerada tão profunda e confiável quanto pura e alegre sua canção, tira sua autoridade para falar do “plano sagrado da Natureza”.”
A obra vale claramente pelo retrato social que dá da época, do modo como coloca lado a lado vários conceitos e ideias de um tempo distante e nos questiona não apenas sobre o que já fomos como sociedade, mas também sobre o que ainda mantemos enraizado em nós na atualidade. Existem vários temas, além da sexualidade, a percorrer a obra tais como o determinismo e a liberdade, o modernismo e a industrialização, a religião e o sentido da vida. A obra traça um cenário social realista completo, permitindo ao leitor mergulhar num tempo distinto do seu, e experienciar a realidade e o sentir de quem a viveu.

Quanto à edição lida, foi a da editora brasileira Pedrazul, que apresenta uma muito boa tradução por Luana Musmanno. Fica registado o meu espanto sobre a ausência de uma tradução portuguesa, passados mais de 125 anos. Será o tema pouco bem-vindo por cá?

junho 18, 2018

Cinema visceral

"Mommy" (2014) é um filme magistral. O seu realizador, Xavier Dolan, não é muito querido nos meios da crítica, muito por causa da sua atitude agressiva e arrogante, que em parte surge aqui refletida no protagonista de "Mommy". Não sei das pequenas histórias dessa sua arrogância, mas sei que aquilo que ele nos oferece neste texto audiovisual é único, tanto na forma como no conteúdo, e digo-o sem ter de referir que este filme foi feito com apenas 25 anos.



O filme é apresentado num pequeno quadrado de 1:1, como se fosse um vídeo do Instagram, e no entanto ao longo de duas horas e vinte minutos, não existe um único minuto de tédio, um único minuto em que paremos de nos interessar pelo destino daqueles personagens e do que poderá acontecer a seguir. Dolan cria todo um universo em redor de uma mãe, um filho violento e hiper-ativo, e uma vizinha. Graças ao formato do enquadramento tudo é colocado nas costas dos atores, são eles o centro, interessando pouco os espaços, o filme está completamente focado no sentir dos personagens e estes sentem como poucos. O filme é poderosamente emocional, tudo está sempre à flor da pele, mesmo quando não nos revemos nos papéis, nas pessoas, não podemos deixar de compreender por que se comportam como comportam, não são poucos os momentos de pura visceralidade. Existe um claro excesso estilístico não apenas do enquadramento que por tentar aprisionar a realidade torna-a ainda mais explosiva, mas também da saturação forte e da montagem rápida, ao que se junta alguma música pop para intensificar a emocionalidade pela familiaridade, tudo isto puxado por belíssimos desempenhos dos atores.




Mais um filme visto no FilmIn

junho 13, 2018

Análise do vídeo "US-NK Singapore Summit"

Como é que surge um trailer de cinema de Hollywood sobre os dois líderes — Kim e Trump —, no meio de uma cimeira política? O que é que diz esse trailer, sobre os seus criadores e destinatários? E no final, qual o seu significado? A ideia de usar o formato de trailer cinematográfico para sintetizar ideas é excelente por várias razões: primeiro, porque usa todo o poder do contar de histórias (storytelling) para passar uma mensagem (aliás atente-se no título do trailer — "A Story of Opportunity"), nomeadamente imagens universais que facilitam a comunicação entre povos de culturas e línguas distintas. Segundo, porque consegue em poucos minutos sintetizar o objeto do que se pretende e tornar claro com que se conta. E por fim, talvez o atributo mais poderoso, porque vai ao âmago da emoção e sentimento, tornando-se poderosamente persuasivo, preparando o terreno para o que se deve seguir, no caso negociações políticas.



Sobre quem o cria, independente do seu conteúdo, demonstra desde logo uma clara boa-vontade e abertura negocial, para o que der e vier. Sobre quem recebe, e partindo do princípio que o trailer foi construindo tendo em mente o público-alvo, ou seja Kim, dá conta de alguém que vive num mundo de fantasia, que tendo um povo a morrer à fome, vive no seu reduto principesco, rodeado de ilusões prazeirosas, como o cinema de um país distante que comunica cultura sem qualquer relação com o povo ou país que governa. Visto assim, a estratégia parece perfeita. Podemos dizer que Trump habilmente soube construir a armadilha para apanhar o seu adversário. Mas será mesmo assim? Precisamos de desconstruir o filme, na sua forma e texto, ligando o mesmo ao contexto dos dois intervenientes, para chegar ao seu significado.

Assim temos 4 minutos de filme, realizados seguindo uma estética marcada pelo tom do cinema de ação de Hollywood do final dos anos 1980, início de 1990. Temos desde a imagem alaranjada, quase a roçar o vídeo gasto, à música épica, a que se adiciona o hábito que existia de contar a história de modo didático no próprio trailer, e depois tudo muito bem reforçado com o uso de uma sequência em que Silvester Stallone, ícone desse cinema, visita Trump já presidente. Ou seja, na forma, e tendo em conta o ideário do recetor, temos todo o sentimento propício a puxar pela nostalgia do recetor, e desse modo a fragilizá-lo emocionalmente, tornando-o mais aberto, mais suscetível à influência externa. Podemos quase dizer que o trailer funciona como um domador de ímpetos emocionais, por via do adocicar da realidade através do alimentar de fantasias do interlocutor.


Olhando depois ao texto, temos um conjunto de construções históricas da humanidade — Pirâmides do Egipto, Coliseu de Roma, Taj Mahal, Muralha da China —, criadas ao longo de milénios, misturadas com imagens dos dois e únicos líderes — Kim e Trump —, com uma perspectiva para um futuro imobiliário grandioso e por analogia também ele histórico e desse modo inesquecível. Ou seja, a fantasia da plástica é elevada pelo texto, já que coloca os intervenientes no patamar mais alto da relevância de todo o planeta, equiparando-os aos feitos de milhões de seres-humanos anteriores, não se limitando à metáfora mas afirmando-o, pela voz do narrador: "Seven billion people inhabit planet Earth. Of those alive today, only a small number will leave a lasting impact." ao que se segue "History is always evolving, and there comes a time when only a few are called upon to make a difference."

"US-NK Singapore Summit" (2018), vídeo criado pela comitiva americana para a Cimeira entre EUA e Coreia do Norte, decorrida a 12.6.2018

O texto segue contando a história da oportunidade que um dos homens dá ao outro, mas para dramatizar, apenas uma oportunidade é dada, ao mesmo tempo que se confronta a pobreza do país atual com o brilho do futuro, caso o segundo homem aceite juntar-se ao primeiro, e assim poderem tornar-se ambos, donos do mundo. Ou seja, segue-se aqui um pouco a narrativa dos irmãos (muito comum no cinema de ação dos anos 1980/90), no caso, os de sangue separados a nascença que se reencontram, e um deles terá de  deixar para trás a família adotiva para seguir caminho com o outro, se quiser continuar a ser seu amigo. Mas diga-se que aqui a concessão é bem maior, já que não existe propriamente nenhuma exigência de alteração de rumo na vida da pessoa, apenas se pede o abandono de uma das suas atividades (produção de armamento nuclear), podendo ele manter todas as regalias que tinha, e ganhar ainda com isso.


Numa entrevista dada imediatamente a seguir ao final da Cimeira, Trump explicava como tinha abordado Kim, tendo-lhe dito: "You know, instead of doing that, you could have the best hotels in the world right there. Think of it from a real-estate perspective.”

Espremido, Trump diz a Kim neste trailer: larga as armas e eu te ajudarei a erguer um império como nunca antes sonhaste, contribuirei para manteres o teu povo agrilhoado, ganharemos os dois muito dinheiro por meio da especulação e prosperidade imobiliária das tuas estâncias de turismo, e o teu povo te respeitará como a nenhum outro líder, marcando o teu lugar imortal, não apenas na história do teu país, mas na de todo o planeta, ao meu lado e para todo o sempre. Não admira que os jornalistas presentes na cimeira tivessem pensado que o vídeo tinha sido produzido pela propaganda da Coreia do Norte.

junho 10, 2018

O realismo cinematográfico que ainda nos surpreende

Mais um filme capaz de transpor a literatura, desta vez vem da Alemanha e pelas mãos da realizadora Maren Ade (1976), intitulado "Toni Erdmann" (2016). Ade já disse que não aceita fazer um remake do filme para Hollywood, e faz muito bem, porque se é verdade que levaria a sua história a muito mais pessoas, também sabemos que não seria possível chegar ao âmago deste filme, usando as metodologias de contar histórias de Hollywood. A história seria apresentada, e ficaríamos a conhecer uma relação de pai e filha destronada pela força da velocidade da sociedade moderna, mas o acesso ao sentir destes personagens seria impossível.




Estive a ver a lista de filmes que aqui tenho trazido e são muito poucos, tenho lido muito mais do que visto cinema, julgo que a razão para tal se joga no excesso de artificialismo do cinema atual, ora pelo espetáculo ora pela arte. E não é por acaso que mesmo na literatura tenho lido muito mais clássicos do que obras atuais. Julgo que isto está relacionado com a minha busca, algo ansiosa, por realismo, aquilo que defini numa lista do meu Letterboxd, como Harsh Realism, ou "filmes sobre situações de vida difíceis, ou relações humanas difíceis". Deste modo também não é por acaso todo o meu amor para com a chamada Nova Vaga do Cinema Romeno, e que me tem levado a questionar porque em Portugal o único autor que por aqui tem sido capaz de enveredar é o João Canijo.

Confesso que conhecia o título do filme desde que saiu, até porque gerou bastante alarido, mas as poucas imagens que dele conhecia, cartaz, imprensa e trailer arredavam-me sempre do filme, julgo que a principal razão era o tom de comédia. Foi só ao pesquisar o filme no FilmIn, e em especial olhando para as etiquetas do mesmo — "relações familiares", "relação pai-filho", "vergonha"...— que resolvi parar e tentar perceber o que tínhamos aqui, mesmo que o género do filme aparecesse como apenas "comédia". Tenho de dizer que fui brutalmente surpreendido, e aprendi algo novo, aprendi que é possível falar e questionar a vida e a sua imensa dureza por via da comédia, ainda que se trate de comédia-negra.

A síntese da história já a dei acima e resume-se apenas àquela frase, pouco mais se passa ao longo das duas horas e meia além do encontro, espécie de confronto, entre pai e filha, que nos obriga a questionar o mundo em que vivemos, as ânsias e irritações diárias que vamos sentindo na manutenção da sanidade do nosso trabalho e das vidas em família. Não estão em causa lições de moral, nem se abrem discussões apocalípticas sobre a pressão que se vive, antes pelo contrário, o filme serve inteligentemente o tema, levando-nos a refletir, proporcionando portas de esperança sem qualquer manipulação. Mas se o consegue é porque nos conduz ali por meio de um vínculo, quase sagrado, de pai e filha. Pode-se dizer que "Toni Erdmann" é um estudo da relação adulta entre pai e filha que coloca a lupa e amplifica ao máximo aquilo que os une, o passado e as experiências conjuntas, confrontando tudo com a necessidade de emancipação e das escolhas individuais. A relação aqui apresentada está longe daquela simplicidade que podemos encontrar nas obras que exploram o choque do início da afirmação adolescente e rejeição dos pais. Aqui tudo isso já foi ultrapassado, e no entanto parece que nunca se ultrapassa, o que nos instiga ainda mais a questionar o mundo e os objectivos financeiros que desejamos abraçar, aceitando sem questionar o impacto que tudo isso terá sobre aquilo que somos enquanto pessoas, a comunidade e os valores que nos criaram.

Olhando aos filmes em que mais tenho sentido a aproximação à literatura e buscando padrões, diria que o mais relevante, e ao mesmo intrigante por ser contrário ao que acontece na literatura, é o diminuto tempo dedicado à fala — narrada ou por diálogo. Como que se para nos dar acesso ao que sentem internamente aqueles personagens, restasse ao cinema apenas o não-verbal. O cinema é ágil a engendrar situações e a mostrar ação, mas dar conta do que vai no espírito dos personagens é complicado, e por isso talvez o melhor seja mesmo colocar os corpos dos atores dentro das situações, expô-los às realidades e mostrar como reagem: como se surpreendem, envergonham, coram, irritam, culpam, definham, lutam ou submetem.