novembro 10, 2016

“Austerlitz” (2001)

Tinha talvez demasiadas expetativas, tinha lido algumas notas sobre o modo como Sebald trabalha as memórias, as fronteiras entre o real e o imaginado, entre a ficção e não ficção, e ao entrar em “Austerlitz”, apesar de ver tudo isso, não o senti. O discurso apesar de erudito e fluído, cria uma sessão de prisão, de repetição, sem movimento, como se nunca saísse do mesmo lugar...


Reconheço que o trabalho é original, que existe aqui um esforço, mais académico mas talvez por isso menos emotivo, no sentido em que tudo parece demasiado refletido, pensado para produzir um determinado efeito, mais como se o livro fosse desenhado e não tivesse brotado criativamente. Esta minha crítica, pode não fazer muito sentido, já que muitas obras nascem desta forma, nomeadamente as mais complexas, contudo neste caso, sinto que esta estrutura pesa na leitura, que o livro não consegue ser suficientemente orgânico para se dar a uma leitura tradicional, acabando por nos obrigar mais a uma leitura em modo de estudo.

Os livros de Sebald são fruto de um desencantamento com a academia, cansado de publicar trabalhos académicos, que pouco ou nenhum impacto tinham nos estudos literários, resolveu começar a testar as suas ideias na criação de obras literárias. O interessante em Sebald é que ele não cria uma divisão clara entre o seu trabalho académico e ficcional, ele acaba por desenvolver antes uma nova técnica para fundir o real com o ficcional. Tanto que é o próprio Sebald a dizer que o seu trabalho é do tipo “ficção documental”, o que em literatura é mais difícil de aceitar, do que por exemplo no cinema. O cinema pela sua essência colada à fotografia, cópia do real, sempre se digladiou entre o real e o ficcional.


Aliás, repare-se como Sebald vai exatamente buscar a fotografia para intensificar essa sua necessidade de real. A presença de fotografias no texto, é uma das coisas que mais gostei neste livro, já que existe uma espécie de pavor do mundo literário face às imagens, o que até percebo. Se a imagem pode ampliar o símbolo texto, no sentido em que nos ajuda a ver o que está escrito, ela tem um outro lado, pernicioso, que é o de encurtar e encerrar o processo imaginativo do leitor. Ou seja, a imagem cola rostos específicos, elementos visuais concretos, ao texto, que impossibilitam o leitor de criar os seus próprios. Isto no fundo é a velha discussão entre o poder do texto e da imagem, ambos são imensamente relevantes, mas possuem funções e propriedades narrativas muito distintas. E nesse sentido, quando Sebald opta por trabalhar com fotografias de forma tão abundante no livro, acaba por criar uma tensão na leitura, entre os momentos de texto que nos libertam para imaginar o mundo de Austerlitz, e as fotografias, que nos aprisionam num mundo específico.

É claro que o trabalho de Sebald, e a originalidade, não se esgotam na junção de imagens e texto, aliás nesse caso concreto existe já toda uma enorme tradição de livros ilustrados, e talvez por existir toda essa tradição, Sebald não se limita, nunca, a usar as imagens como ilustrativas do texto. O modo como ele cola as imagens é, diria eu, algo subliminar. Ou seja, as imagens não são muito claras, nem o pretendem ser, elas como que servem apenas de “alimento” ao texto, sem fechar demasiado a sua leitura. Por outro lado o texto, e o seu contorno circunspecto e ocluso, de que falava no início, serve-se das imagens para ampliar o seu sentido. Sebald, cria uma espécie de círculo, ou elipse, entre o texto e as imagens, que acaba por contribuir para a intensificação dessa indiferenciação entre o ficcional e não-ficcional.

Esta construção claramente serve o grande propósito de Sebald, de trabalhar imagens presentes nas memórias, por natureza difusas, com falta de evidências e muitas dúvidas. Quantas vezes demos por nós na dúvida se algo era uma memória real, ou se era algo imaginado. Isto é tanto mais verdade com memórias abaixo dos 5 anos, que é o foco deste livro. As que tenho dessas alturas, foram, e tenho hoje essa quase certeza, implantadas pela repetição de histórias dos meus pais, junto com meia-dúzia de fotografias que sobreviveram desses tempos. Por isso quando reflito sobre esses tempos, acabo por me questionar muitas vezes, se estou verdadeiramente a recordar algo que vivi, ou antes, algo que construí mentalmente a partir de imagens e histórias.


Se no meu caso, consigo facilmente distinguir as memórias que tenho anteriores à idade dos 6 anos, porque vivia noutro país, no caso de Austerlitz isso é bem mais gritante porque não só vivia noutro país, como vivia aí com os seus pais verdadeiros, tendo depois disso passado a viver com pais adotivos. E é isto que motiva a viagem nas memórias de Austerlitz, tentar recuperar os pais pelas memórias, visitando de novos os lugares, procurando impressões perdidas nas paisagens, nos lugares, nas pessoas que ainda aí se mantêm. Como se não bastasse, essas memórias vão cruzar-se com o tempo do início da Segunda Guerra Mundial, e aquilo que Austerlitz acaba por descobrir sobre os seus pais, as suas origens, é desolador, aqui o livro por momentos assume um pendor mais tradicional, com um enredo movido por eventos de descoberta, claramente objetivando produzir em nós algumas das emoções mais fortes da leitura.


Por outro lado, e aqui mais uma vez o cruzar entre ficcional e não ficcional, senti um certo embelezar da recuperação das memórias, no sentido em que podendo recordar-se muito, existe uma clara ampliação dessa capacidade por parte de Sebald, já que falamos de uma criança com 5 anos, muito do que se memoriza nestas alturas é perdido no tempo, se não for reimprimido pela repetição, como dizia acima, seja por continuar a viver nos mesmos locais e com as mesmas pessoas, seja porque se mantém registos (fotográficos ou outros) que se revisitam, seja porque nos vão recontando o que vivenciamos. Contudo, e como acontece na relação entre imagens e texto, apontada acima, essas repetições servem mais como ilhas, ou âncoras de memórias, já que o resto é criado pela fantasia do nosso imaginar. Deste modo, acaba sendo esta mesma fragilidade das nossas memórias que Sebald dá conta muito bem, na certeza e incerteza, mais ainda quando aceitamos que somos apenas estas, ou seja, enquanto seres, enquanto pessoas, o nosso Eu só existe enquanto conjunto de memórias... e é por isso talvez que o Alzheimer se torna tão aterrador…

Por fim, e para fechar, como dizia no início, este texto de Sebald, serve mais a reflexão do que o prazer imediato da sua leitura. Senti várias vezes algum tédio na sua leitura, custou-me ligeiramente terminar, e no final senti que me sabia a pouco. Contudo, agora que me obriguei a refletir sobre o livro, vejo o quanto mais existe ali, que não se dá à superfície. E por isso mesmo acredito que aqui terei de voltar, para poder chegar mais perto das intenções de Sebald.

novembro 09, 2016

"The Progress Principle" (2011)

Teresa Amabile e Steven Kramer, ambos professores de psicologia, realizaram um estudo com 238 empregados em 7 empresas, a quem pediram para todos os dias preencherem um diários das suas atividades, tendo tudo resultado em mais de 12 000 entradas que foram depois analisadas qualitativamente. O seu achado, dá nome a este livro, e apesar de ser bom, sabe a pouco. Não que o estudo não seja válido, mas porque a conclusão não difere tanto de outros estudos sobre motivação já existentes, e que são aqui completamente ignorados.


Este estudo interessava-me em particular, porque a variável de Progresso é essencial nas narrativas e nos jogos, e é por isso que a tenho trabalhado, no sentido de a identificar melhor para assim compreender melhor o seu uso criativo, desde logo entender melhor como nós nos movemos em função desse progresso. Mas o que aqui se apresenta é parco.

Ou seja, como resultado final Amabile acaba por nos dizer que aquilo que mantém as pessoas motivadas no seu trabalho, é receber feedback que dê conta dos avanços nas tarefas. E que para tal é preciso que os chefes e gestores, sejam capazes de dividir o trabalho, e esforço, e por sua vez sejam capazes de garantir que o feedback é realizado. Concordo em absoluto, mas isto é aquilo que já está contido na segunda variável de Deci, a "competência”, de que já aqui falei antes, e que como digo também, já tinha sido identificado por Vygotski, bastante antes. Ou seja, nada de novo.

Este livro de Amabile é curto, porque ao centrar-se apenas nas competências, esquece os outros dois princípios de Deci, a Autonomia e os Relacionamentos, sem esses ficamos com todo o processo coxo. Um empregado, sem autonomia, que seja obrigado a fazer apenas o que lhe mandam, que não possa dar nada de si para o processo, é um trabalhador desmotivado, o progresso só, não chega, é preciso significado, e esse advém daquilo que cada um faz com o mundo com que interage. Por outro lado, o trabalhador precisa de poder discutir essas tarefas com os pares, compreender como se equipara, o que faz melhor, ou menos mal, precisa de ter um espelho que contribua para correção e melhoramento.

Neste caso concreto, e já que Amabile escreve o livro orientado a gestores, as suas preocupações não deveriam centrar-se tanto no design do processo, mas mais nas pessoas, nomeadamente nos tais gestores. Porque se o Progresso é um bom indicador sobre como agir, não chega no caso do gestor ser apenas um bom técnico, é preciso ser-se muito mais na capacidade de relacionamento pessoal e social, enquanto líder.

Amabile limita-se no final a apresentar meia-dúzia de conselhos e recomendações aos gestores, baseados no tal Progresso, mas que não dizem muito, parecem simples senso comum, ficando a sensação que mais valia ter feito um livro para divulgar os resultados das entrevistas, dos diários analisados, e não se terem focado em criar grandes teorias, menos ainda dar grandes conselhos.

novembro 04, 2016

"Piper" (2016)

A nova curta de animação da Pixar usa e abusa da emoção empática, sem necessitar de para isso antropomorfizar excessivamente os seus personagens, bastando o comportamento, os movimentos, sons e expressões para nos converter, nos colocar no lugar de Piper e compreender o que sente, e o que está prestes a descobrir. A Pixar é sobejamente reconhecida, e quando digo Pixar falo da empresa, e não de autores, porque falo do sistema criativo que eles têm montado e que lhes permite espremer ao máximo as nuances expressivas, e assim alavancar em 6 minutos, um leque diverso mas intenso de emoções.




Claro que para isso contribui muito a autonomia que se garante aos criadores, e o tempo reservado à investigação. A partir de um simples teste com escolopacídeos (os pássaros do filme), que Alan Barillaro costuma encontrar no caminho para o trabalho, veio a incitação por parte de John Lasseter e Andrew Stanton para que avançasse para a criação de uma curta. Aceite a indicação, Barillaro passou 3 anos a desenvolver esta mesma curta. Não são 3 meses, o que seria normal numa pequena empresa de VFx, aliás 3 meses passou Barillaro só a investigar as aves no local, a analisar os comportamentos, o modo como as penas se movimentam.

Podemos questionar o tempo dedicado, mas é totalmente compensado, a primeira vez que vi a imagem do pequeno pássaro depois de molhado, foi uma total surpresa, nada ali é cliché, mas antes imensamente detalhado, permitindo uma qualidade que se impregna na curta, elevando-a acima do mero contar de história.


Contudo deve-se dizer que a curta não foi criada apenas para bel-prazer de Barillaro, ou como capricho de Lasseter ou Stanton, muito menos como postal de preparação emocional para “Finding Dori” (2016), com o qual se estreou no cinema. O objetivo de fundo, e que garante o financiamento de algo tão caro, está relacionado com a necessidade da Pixar de desenvolver projetos que avancem a sua tecnologia de computação gráfica, neste caso concreto, os avanços desenvolvidos foram quase todos na área das penas, mas também da espuma da água do mar.


Trailer "Piper" (2016) da Pixar

Para fechar, e voltando ao início, o realismo, quase naturalismo, apresentado pela curta, é algo recente na Pixar, mas é algo que acaba funcionando muito bem. Tanto na exatidão dos comportamentos dos pássaros, na ausência de linguagem restringindo-se aos chilreios, ou na apresentação do ambiente, o mar, com a movimentação da ondas e das conchas submersas, ou ainda os detritos ambiente e as bolhas, como ainda, e aqui interessante por ser cópia de algo artificial que passou a convencionar o real, falo dos movimentos de câmara e montagem, que imitam na perfeição os tradicionais documentários de vida selvagem.


"Piper" (2016) da Pixar [Filme completo em streaming]

outubro 31, 2016

"Far Cry Primal" (2016)

Não apresenta nada de propriamente novo, é simplesmente Far Cry, mas no seu melhor. Desta vez optou-se por realizar um mudança drástica no tempo, recuando 10 mil anos, e assim lançar-nos em plena Idada da Pedra, o que acaba criando o cenário perfeito para o tipo de jogo estimulado pela série, a sobrevivência.





"Far Cry Primal" pode-se dizer que tem potencial para surpreender quem nunca tenha jogado a série, funcionando melhor até que os restantes, já que dada a época em que acontece, a violência e sobrevivência são perfeitamente justificadas. Por outro lado, para quem tenha seguido a série nos últimos anos, vai sentir-se tão à vontade, que tudo aquilo que o jogo lhe pede funciona de modo intuitivo, criando uma enorme sensação de flow, puro prazer de jogo, ao longo de toda a main quest, talvez com alguma sensação de repetição mais perto do final.

Se tenho criticado a história nos anteriores, aqui não tenho como fazê-lo, já que estamos num mundo pré-história, interessa a sobrevivência, e como tal, temos um mundo aberto completamente gamificado, capaz de oferecer ao jogador recompensa pelas suas escolhas, opções, e liberdades, e ao mesmo tempo garantir um sentimento de progressão, sem contudo necessitar, em parte, da narrativa.

Se quiserem saber mais sobre o tipo de experiência produzida pelo jogo, dêem uma vista de olhos nas minhas análises do Far Cry 3 e Far Cry 4, que dão conta de muito do que se pode encontrar neste Primal.

outubro 23, 2016

A não-linearidade de género

“The Affair” é uma simples série de televisão, mas podia facilmente ser uma grande obra literária, tal é o trabalho de escalpelização psicológica dos personagens, assim como a estrutura não-linear que serve a apresentação. Sendo um produto audiovisual a escrita não chega e aqui podemos dizer que o conjunto de atores foi não só bem escolhido como consegue obter mais ainda de algo já imensamente bom. Estas palavras resumem a minha experiência do primeiro episódio, sendo que a série segue já para 3ª temporada.

Ilustração de Zohar Lazar

Cartaz para a segunda temporada

A história parece seguir o cliché do homem de meia-idade que se questiona sobre o pico da sua vida, o enfrentamento do declínio, enterrado numa relação de décadas com 4 filhos, e que vê novas oportunidades nas mulheres com que se cruza. Contudo, e apesar do cliché, é tudo desde logo escrito de forma tão detalhada, de modo tão íntimo-realista, que o nosso interesse se desperta, seduzido pelas personagens.

Se fosse só isto, a série seria interessante, mas quando na segunda parte passamos a rever alguns dos momentos já passados pelos olhos de uma potencial amante deste homem, tudo muda. Revemos, reavaliamos e reestimamos tudo o que foi dito, tudo o que por nós foi imaginado e projetado sobre aquele homem. A  escrita sobe a patamares novos, mostra e reamostra o real, dando conta das teias de complexidades, mas acima de tudo dando conta do quanto cada um de nós fabrica o seu próprio mundo, demonstrando que o real é muito mais do que aquilo que pretendemos que seja, que não se termina em algo que podemos simplesmente encerrar num igual para todos.

Esta abordagem não-linear, de reapresentação do real em função dos olhos de quem vê não é nova, é até considerada tipicamente borgeana, podendo também, pelo lado do cinema, ser apelidada de rashomoniana. É também uma abordagem muito cara ao mundo das histórias interativas, nomeadamente pelo modo como permite a personalização dos conteúdos em função das diferenças patentes em cada recetor. Contudo, e falo apenas deste primeiro episódio, o seu uso não é aqui meramente estilístico, e mesmo sentindo alguma rigidez pela estereotipagem, serve um desígnio específico da história, o posicionamento de género e sua intensificação dramática. Ou seja, o mundo que o homem em declínio e aberto a um novo mundo vê, é distinto do mundo que uma mulher à beira do precipício vê. Não temos caminhos diferentes, nem temos gostos ou interesses diferentes, mas temos pequenas ações que obrigam o recetor a trabalhar, nomeadamente no desmontar de preconceitos já estabelecidos, obrigando ao questionamento não apenas do que viu, mas mais importante, do que sentiu em cada perspectiva e que entrechoca agora dentro de si…

outubro 22, 2016

Espreitando pelo orifício da culpa

“Borrowed Time” surge a partir de um esquema interno da Pixar que permite que os seus empregados possam dedicar tempo e recursos da empresa a um projeto mais pessoal, sendo por surpreendente que pareça, a primeira animação a surgir do programa, até agora tinham sido todos curtas de imagem real.




“Borrowed Time” socorre-se do principal ingrediente do sucesso da Pixar, o storytelling. Para além de ter uma premissa muito forte, que assenta sobre a emoção complexa da culpa, trabalha tudo de um modo absolutamente perfeito, como tudo o resto que temos vindo nascer nesta empresa de animação. Os primeiros embates e twists são por demais referenciais a toda a história da empresa, que tem sabido gerir emoções fortes, desde a mãe de Nemo à fundição de Toy Story.

Em termos de inovação temos pela primeira vez o desvio do público infantil para um público maduro, algo que foi claramente assumido como objetivo pelos criadores, e algo que podemos dizer totalmente conseguido.  Comprová-lo estão as dezenas de prémios em festivais, o que também me leva a relembrar que esta colocação online, integral e gratuita, do filme é algo limitado no tempo, por isso é aproveitar para ver agora.

O facto do score estar a cargo de Gustavo Santaolalla eleva todo registo dramático a um nível que contribui intensamente para o esquecimento do formato, de animação, ligando-nos apenas à personagens e ao que estas sentem. Tudo em conjunto desenvolvem uma curta de animação que prefiro definir através das palavras do colega Albertino Gonçalves: "Há algo de cósmico nesta curta-metragem. Abarca o mundo e a vida com um punhado de pormenores." 


"Borrowed Time" (2015) de Andrew Coats e Lou Hamou-Lhadj

Esta curta vem amenizar a espera que ainda temos pela frente para entrar no mundo de “Red Dead Redemption 2”.

“A Chave de Casa” (2007)

A escrita de Tatiana Salem Levy é simples mas poética, gera ritmo que nos envolve, cria fluir que nos arrasta. Com uma história que apesar de também simples, está estruturada de modo não-linear, por meio do entrelaçamento de 4 histórias, em paralelo, que se unem na figura da família da narradora. Enquanto primeira obra e enquanto trabalho de projeto a apresentar como parte de uma tese de doutoramento em literatura, é um trabalho surpreendente.


Abertura do livro: “Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. ”
Levy começou a sua tese da forma mais tradicional, desenvolvendo um trabalho de fundo sobre a literatura brasileira contemporânea, contudo a insatisfação com o academismo do mesmo acabaria por a conduzir à criação deste romance, que surge desta forma como a sua primeira obra literária. A essência deste seu trabalho acaba assim por residir na exploração das raízes do Si por meio de uma análise em detalhe das suas ramificações familiares, que são particularmente instigantes pelo resumo que se pode ver aqui:
Excerto: “Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal.”
Na temática, o título da obra, “A Chave de Casa”, e seu leitmotiv, baseiam-se exatamente num mito em redor da partida dos judeus de Portugal. Os judeus, perseguidos pela inquisição em Portugal, fugiam levando consigo as chaves de casa, na esperança de poderem voltar um dia ao que era seu. O livro por sua vez leva-nos do Brasil, à Turquia, na volta passa por Portugal, criando um circuito de costumes, sonhos, ideais, e muitos fantasmas que são a motivação das nossas vidas.

Em termos de estrutura, o entrelaçar narrativo a 4 tempos é sedutor, mantém-nos em suspenso, sempre na espera do próximo trecho de cada história, embora soe por vezes algo formulaico, pouco orgânico, algo que não é alheio à inexperiência de uma primeira obra.

outubro 20, 2016

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881)

Um livro que precisa de ser encarado de dois ângulos distintos, o da história da literatura e o do prazer de leitura. Ou seja, o livro é um marco na literatura brasileira, não apenas por ser do "pai" da sua literatura, mas por ter aqui iniciado, na sua escrita e na do Brasil, todo o Realismo. Na língua portuguesa, tinha Eça iniciado o movimento com “O Crime do Padre Amaro” (1875), ao que Machado não foi indiferente, tal como não vinha sendo indiferente a Zola e Flaubert. Esta obra de Machado de Assis é assim o primeiro tomo da trilogia realista do autor, a que se sucedeu "Quincas Borba" (1891) e "Dom Casmurro" (1899).


Tendo em conta a inovação procurada por Machado de Assis nesta obra, com toda a mudança de registo operada, é natural que no texto se sintam fragilidades, como se sentem na obra de Eça. Estamos a falar de experimentação, da procura de novos modos, o que implica sempre falhar para conseguir ir além. Não estou com isto a dizer que a obra é falhada, longe de mim, antes quero dizer que lhe falta alguma fluidez, algum ritmo, mas que acaba sendo compensado pelo modo como apresenta o seu realismo, com um narrador, diria agressivo, que nunca deixa o leitor em paz, que assume um constante vai-e-vem entre o espaço ficcional e a nossa realidade. Algo que em minha opinião advém da experimentação com o real, parecendo a momentos, não estarmos a ler um romance, mas um texto não ficcional, mas que por outro lado Machado torna praticamente impossível com a premissa de partida, em que o narrador que conta a sua história está morto, o que por sua vez parece também querer aproximar-se de um certo realismo mágico que viria a surgir em força na América Latina do século XX.

Para quem quiser aprofundar a leitura, existe muito por onde se iniciar, desde logo porque o texto está pejado de referências, desde Shakespeare a Stendhal, passando por Homero, Virgílio, Erasmo, Schopenhauer, Bocage, Sterne até às “Mil e Uma Noites”. Sobre a obra em si, muito, mas mesmo muito existe, leituras entretanto realizadas capazes de encontrar traços referenciais desde a sua estrutura à filosofia apresentada na figura de Quincas Borba. Nada que nos admire, já que se o livro foi recebido com algum desconfiança, muito motivado pelo que dissemos acima sobre a experimentação e o novo, a verdade é que Machado de Assis viria a fundar a Academia Brasileira de Letras em 1897, sendo o seu primeiro presidente.


Nota: a obra foi publicada no formato de seriado no ano de 1880, surgindo em livro apenas em 1881.

outubro 17, 2016

Na Síria com uma mãe, em banda desenhada

A Marvel e a ABC News juntaram-se para criar a banda desenhada online “Madaya Mom” (2016), a partir de uma mãe real e do seu diário, escrito por meio de SMS partilhados com Rym Momtaz, produtora da ABC, que por sua vez contactou o artista croata, Dalibor Talajic, para juntos criarem a novela gráfica. O trabalho final é absolutamente brutal, autêntico e doloroso, toda a empatia aqui criada deixa-nos sem margem para continuar a olhar para o lado, e se alguém ainda tinha dúvidas de que é preciso parar o que está a acontecer na Síria, fica aqui mais uma chamada de atenção profundamente humana.



Arte e jornalismo para chegar ao sentir das pessoas

Madaya Mom” é a demonstração do poder da banda desenhada para comunicar, para ser literatura, para elevar a expressividade e tocar as pessoas no seu íntimo mais retraído. É autêntico horror psicológico o que aqui vemos, mas não é de fantasia, é sofrimento de uma família com 5 crianças reais, que passou do dia para a noite, de condições de vida do século XXI para condições de vida pré-históricas, sem acesso a comida, saúde, electricidade, nem aquecimento. Dá vontade de chorar e gritar no virar de cada página...

Não quero dizer mais nada, o trabalho é absolutamente sublime, e atinge todos os objetivos dos autores, que podem perceber melhor vendo o vídeo do making of. Para os professores que queiram usar este belíssimo trabalho nas suas aulas, a ABC disponibiliza ainda todo um Guia para o Professor. Esta não é a primeira banda desenhada sobre o conflito na Síria, já antes aqui tinha trazido “Syria's Climate Conflict" (2014).

Ler "Madaya Mom" na íntegra e gratuitamente.



Atualização: 17.10.2016 19:43
Vi esta notícia no Arts.Mic, entretanto depois de ter publicado percebi que o Público também tinha feito matéria hoje com o tema, e por acaso fiquei bastante bem. Ficam as referências.

outubro 15, 2016

"Vozes de Chernobyl" (1997/2013)

Fez em abril 30 anos o acidente de Chernobyl, um acontecimento trágico da nossa história recente, com ramificações dramáticas em múltiplas frentes, nomeadamente na relação entre o homem e a Terra que nos obriga a refletir sobre o conhecimento que andamos a criar. A tragédia arrepia tanto como fascina, pela nossa incapacidade de lidar com o resultado desse conhecimento, exercendo simultaneamente uma atração por um desconhecido imensamente poderoso, como se miticamente, tivéssemos despertado um Deus da Matéria que contra nós se virou. É sobre isto que Svetlana Alexievich escreve, usando para tal todo um estilo literário muito pessoal, humano, intenso e único.

"Do Deus da ciência e do conhecimento, ou do Deus do Fogo? Neste sentido, Chernobyl ultrapassou Auschwitz e Kolymá. Ultrapassou o Holocausto. Chernobyl sugere finitude. Vai de encontro ao nada.” (p.53)
Em 1986 compreendia pouco do mundo que me rodeava, mas o impacto do acidente chegou-me, mais histórias e mitos do que factos e informação, o que serviu para criar todo um imaginário que nunca deixou de se ampliar com os anos, com a queda do Muro e o jornalismo, com a banda desenhada, o cinema, e depois a internet. Nos anos mais recentes começaram a chegar imagens da Zona, dando conta do abandono e da retoma do espaço pela natureza, e ao mesmo tempo de um fascínio que continua intacto.

"Hotel Polissia" de Quintin Lake2007, Pripyat, Ucrânia

As Vozes de Chernobyl” foi publicado pela primeira vez em 1997, como fruto de 10 anos de entrevistas, tendo sido revisto e atualizado em 2013, podendo assim encontrar-se na versão atual menções a eventos recentes da história humana, contudo a generalidade dos relatos situam-se nessa janela temporal que medeia a primeira década após o acidente. À semelhança de outras obras da autora o registo resulta de entrevistas a centenas de pessoas reais, compostas num todo encadeado que dá corpo a um estilo descrito como polifónico, principal responsável pelo prémio nobel atribuído em 2015.

Quero contudo dizer que apesar de apresentado como não-ficcional, e de se enfatizar o  jornalismo como profissão da autora, a obra deve pouco a esses registos, essencialmente porque não se coíbe perante a falta de prova ou contraditório, não buscando nunca o mero ato informativo. É verdade que a obra de Alexievich brota do real, mas que obras não brotam, existirá outro espaço de onde alguma criação humana possa emergir além do real? São pessoas reais que falam, mas não são máquinas de registo de verdade, são seres criadores de mitos e histórias, por sua vez filtrados pela autora do texto.

O facto das entrevistas serem realizadas com pessoas reais, não torna o texto de Alexievich mais não-ficcional, já que ele se apresenta filtrado de modo assumidamente autoral. O exemplo fotográfico acima dá bem conta do poder significativo da filtragem do real.

Porque a técnica de Alexievich, que dá forma ao seu estilo polifónico, não se limita à filtragem ou escolha dos melhores relatos, não se podendo falar de mera curadoria. O trabalho resulta antes de todo um processo criativo que recorre às entrevistas como material base para a criação do texto final. Das 500 pessoas entrevistadas, a autora selecionou cerca de uma centena, que por sua vez entrevistou mais de vinte vezes, resultando cada pessoa numa “voz”, que se faz representar num bloco de mais de 100 páginas. Alexievich refere em entrevista, no prefácio, que era “como pintar um retrato. Continuava a contactar as pessoas, e de cada vez acrescentava uma nova pincelada.” Estas “vozes” formam assim as unidades de trabalho de Alexievich, que podem funcionar como as tintas do pintor mas que são muito mais densas do ponto de vista humano, contribuindo diretamente para o traço autoral do trabalho.

Aliás, e apesar da obra de Alexievich ter mais de 30 anos, o seu reconhecimento agora, é imensamente representativo da época em que vivemos, do momento em que finalmente aprendemos a reconhecer o valor do remix na cultura humana, em que compreendemos como a criatividade não existe sem esse mesmo processo de remix, já que não pode surgir do vazio. Sempre o soubemos, mas foi necessário o surgimento das tecnologias criativas e de comunicação, e de toda uma geração capaz de criar e recriar obras completas com recurso a uma mera conexão à internet, para que nos questionássemos sobre leis que tínhamos criado no passado (ex. copyright) que impedem exatamente todo esse processo criativo profundamente humano.

E também, porque somos tapeçaria, somos coletivo, somos fruto de gerações e gerações que nos precederam, e da que nos rodeia em cada momento, é por isso que a obra de Alexievich nos fala tanto. Porque não é apenas ela, o indivíduo que fala, mas como disse antes, as suas unidades de trabalho, as "vozes", dão-lhe toda uma força, não apenas por estarem ali, mas porque ela soube tão bem, por meio delas, reconstituir o espaço por meio do tempo, e assim criar uma história.

Em termos de experiência, recomendo uma contemplação faseada, já que a tapeçaria de vozes apresentada por Alexievich é intensamente dolorosa. Enquanto lia, acabei descrevendo o que sentia como "murros no estômago, uns atrás dos outros". O livro reflete uma realidade passada na Bielorússia, um país pequeno e distante, do qual pouco conhecemos, mas é daí que vem o filme mais doloroso que alguma vi, "Come and See" (1985) de Elem Klimov, que apresenta uma reflexão sobre uma tragédia anterior noa país, a ocupação Nazi. Os entrevistados de Chernobyl comparam amiúde os dois eventos, e um deles chega mesmo a falar da impressão forte deste filme (p.267) para definir o que sente face a tudo o que vive.


Neste sentido, preciso de aprofundar e referir que apesar de aqui desmontar o trabalho de Alexievich em termos da sua ficcionalidade, de o apresentar enquanto obra que vai para além do mero rótulo de não-ficcional, essencialmente por apresentar uma visão pessoal do mundo, existe nesta, tal como acontece no filme de Klimov, uma subliminaridade de verdade, um traço de fundo que a todo o momento clama, dizendo, 'estas pessoas são reais', 'o seu sofrimento aconteceu'.

Por outro lado, à medida que vamos adentrando no livro uma certa capa de insensibilização vai-se formando em nós, como que para nos proteger dos choques seguintes, ainda assim a construção narrativa funcionando em crescendo nunca nos dá verdadeiro descanso, o que por outro lado acaba contribuindo imenso para a manutenção do interesse na leitura. Num trabalho desenhado a partir de tantas vozes sobre um mesmo assunto, seria expectável alguma redundância e sensação de repetição, contudo isso nunca chega a acontecer, o que dá bem conta do trabalho em detalhe realizado pela escritora, e do modo como manipula as vozes para construir a sua própria visão narrativa do tema.
"Bétulas leves... Abetos pesados... Não vou voltar a ver nada disto? Prolongar a vida por mais um segundo, mais um minuto! Para que passei tanto tempo, horas, dias, em frente da televisão, entre pilhas de jornais? O mais importante é a vida e a morte. Nada mais existe. Não dá para os pôr nos pratos de uma balança... Percebi que só o tempo vivo tem um sentido... O nosso tempo vivo..." (p.250)
Ler "Vozes de Chernobyl" é importante porque ajuda a compreender Chernobyl, mas não só, ajuda a compreender o ser-humano, o modo como funcionamos individualmente e em colectivo, dando conta da resistência humana, tanto no campo biológico como cognitivo. Em certa medida até apazigua, porque atira alguns mitos de Chernobyl borda-fora, embora o faça à conta de evidenciar a relação perversa entre políticos, cientistas e o povo. Do mesmo modo lança luz sobre a manipulação de informação dos estados comunistas, e como isso contribuiu para o fim desses mesmos estados, o que não nos descansará muito se pensarmos no quão pouco tudo o que aqui se descreve, sobre essa manipulação, se diferencia daquilo que os estados capitalistas hoje fazem (ex. Edward Snowden).


Nota final: sobre o filme “Voices from Chernobyl” (2016) de Pol Cruchten, baseado neste livro, que tem tido boa recepção da crítica, mas que eu, apesar de apenas ter só visto o trailer, não tenho intenção de ver. Como disse acima, estamos perante uma obra profundamente autoral, criadora de profundas impressões em nós, e se até gostei visualmente do trailer, pouco ou nada o consegui relacionar com a minha experiência pessoal da leitura do livro, que prefiro preservar.