março 02, 2016

"Confissões"

Poderia chamar-se A Conversão, porque mais do que confessar os seus pecados, ainda que o faça, Agostinho traça a história da sua própria personagem, em jeito de autobiografia, dando conta do lugar comum de onde veio, igual ao de tantos outros, pejado dos mesmos dilemas, dos mesmos pecados, a partir do qual conseguiu, por meio de uma escolha profundamente refletida e munida de vontade, transformar-se, libertar-se, para chegar a Deus.

“Assim, meu Deus, a confissão que faço em tua presença, é e não é silenciosa; a boca se cala, mas meu coração clama. Tudo o que digo aos homens de verdadeiro já tinhas ouvido de mim, e nem ouves nada de mim que antes não me tivesses dito.”
Mas “Confissões” não é apenas mais uma autobiografia, nem tão pouco se tornou relevante por ser uma, ou mesmo a primeira autobiografia da nossa história escrita, o seu valor reside antes no impacto, no lastro produzido ao longo de séculos e séculos. “Confissões” é central na caracterização de toda a sociedade ocidental, embrenhada nos valores do cristianismo, e mesmo para quem deles se tenha afastado, tem de com eles conviver todos os dias, já que eles são a raiz e os pilares da nossa moral. São 16 séculos de permanência na cultura formativa de uma sociedade, num discurso direto de grande proximidade interior, completamente distinto daquilo que se encontra na Bíblia, que faz com que a mensagem passe, não apenas de modo fácil, mas de modo efetivo.

"Confissões" foi escrito entre 397 e 400

Agostinho, mestre da retórica, começa por se apresentar como apenas mais um ser humano, comum, vulgar, cheio de defeitos, tal como todos nós, e ao longo de 13 livros conduz-nos, pela mão, até à possível “salvação”. O seu discurso carregado de honestidade e humildade, intenso na análise psicológica que faz de si, da mente humana, torna-se próximo, empático, impossibilitando a nossa fuga. Agostinho mantém-nos atrelados a si, lendo-o, sentindo-o, mas sentindo-nos a nós mesmos. Não é de transcendência, nem de invisível, ou forças inimagináveis que se fala aqui, mas apenas de humanidade, de questionar o nosso eu, o que somos, porque somos, como somos, questões que todos nós, cedo ou tarde, nos colocamos. Fala do desejo, da perda, da busca, dissecando em profundidade o modo como se vai concebendo aquilo que somos, ou que parecemos ser.

Uma dos dilemas centrais desta confissão assenta no sexo, o “pecado original”, que para alguns soa exagerado, ou até obsessivo. Senti também isso no primeiro confronto, mas aos poucos fui compreendendo a sua centralidade na construção do caminho, tendo-se tornado mais claro quando li a análise de Mark Lilla ao livro de Robin Lane Fox “Augustine: Conversions to Confessions” (2015), um livro que disseca em profundidade as Confissões e todo o seu contexto. Lilla critica Lane, por se ter centrado ele próprio no sexo, chegando ao ponto de afirmar que a conversão de S. Agostinho “não foi uma conversão à fé cristã… mas antes uma fuga ao sexo e à ambição”. Lilla explica então:
não é desta forma que Agostinho conta a sua história. O problema do sexo é apenas uma concha à volta de um mistério mais profundo, o funcionamento da vontade humana. É um assunto ao qual Agostinho retornou uma e outra vez nos seus sermões e livros. A mente comanda o corpo, mas não pode comandar a si mesma. Por que não podemos desejar o nosso desejo? Ou, muitas vezes decidimos fazer alguma coisa, mas a vontade é mais fraca para seguir adiante. Como, se a vontade é uma coisa, é que isso pode ser possível? Para explicar estes enigmas, Agostinho teve uma ideia que moldaria a consciência ocidental durante séculos: a noção de que os seres humanos têm duas vontades em si, uma desafiante que quer autonomia e uma disciplinada que quer servir a Deus. A única maneira de alcançar a felicidade, Agostinho acreditava, era subordinar a primeira à segunda." (fonte)
Ou seja, a consciência boa e a consciência má, o certinho e o diabinho. Algo que se veio a converter mais tarde numa dualidade entre mente e corpo, pela mão de Descartes. A mente pura, a única capaz de chegar à verdade, e o corpo, resquício de nós, tal concha impeditiva de aceder à verdade, que por meio dos seus sentidos biológicos distorce o real. Algo que Platão já concebia, na sua oposição entre representação e real, e que perdura até aos nossos dias. Mesmo hoje, depois de amplamente demonstrado, o quão orgânicos somos, da ausência e impossibilidade de qualquer dualidade, o modelo abstracto dessa dualidade, satisfaz as nossas ânsias sobre os porquês das nossas dúvidas. Porque aquilo que somos não é uno, não é igual todos os dias, nem em todos os lugares, nem com todas as pessoas, e quando nos questionamos porquê, fica mais fácil ter um bode expiatório, de preferência algo que possamos dizer, com satisfação, que não podemos controlar, seja o desejo, a carne, ou a emoção.
“Vi tua Igreja cheia de fiéis que, por um caminho ou por outro, progrediam. Quanto a mim, aborrecia-me a vida que levava no mundo, e era para mim fardo pesadíssimo, agora que os apetites mundanos, como a esperança de honras e riquezas, já não me animavam para suportar tão pesada servidão. Essas paixões haviam perdido para mim o encanto, diante de tua doçura e da beleza de tua casa, que já amava. Mas sentia-me ainda fortemente amarrado à mulher. Sem dúvida o Apóstolo não me proibia de casar, embora em seu ardente desejo de ver todos os homens semelhantes a ele, exortasse a um estado mais elevado. Mas eu, ainda muito fraco, escolhia a condição mais fácil; por isso, vivia hesitando em tudo o mais, e me desgastava com preocupações enervantes, pois a vida conjugal, a que me julgava destinado e obrigado, ter-me-ia obrigado a novas incumbências, que eu não queria suportar.”
Sendo uma boa leitura, não deixa de apresentar problemas, muitos até, não apenas no seu conteúdo, tendo em conta a data em que foi escrito e o grau de assertividade, próprio à retórica, que Agostinho imprime ao discurso, mas também em parte pelo método, ou talvez ausência deste, na busca do interior. Não tínhamos ainda método científico, nem tão pouco aqui serviria muito, mas tinhamos Sócrates, e Agostinho conhecia o seu trabalho, por isso métodos de argumentação existiam, não é um problema de ter de se começar do zero. O maior problema de Agostinho surge na circularidade reducionista do seu discurso, que ao embrenhar-se na busca e definição de um conceito, se centra neste apenas, analisando todas as perspectivas que nele desembocam, esquecendo contudo tudo o que dele impacta o contexto circundante. O modo como tenta definir o tempo e a memória, nos últimos livros são totalmente demonstrativos deste processo de aprofundamento, em que objetivamente Agostinho se afasta, ou impede outros elementos de serem chamados à argumentação, mantendo a mesma fechada sobre si, em círculo, tornando impossível emergir qualquer ideia nova. Muito provavelmente porque imbuído do mesmo método que definiu na sua busca por Deus, no seu questionamento sobre a sua possibilidade, e na impossibilidade de chegar a qualquer evidência, foi construindo e desenhando um sistema de argumentação, que funciona na base da amplificação da abstração conceptual, ou seja, na construção de camada sobre camada de ideias, sem suporte, na ânsia de que elas acabem por se suportar umas às outras.
“Então veria que a sucessão dos tempos não é feita senão de uma sequência infindável de instantes, que não podem ser simultâneos; que, pelo contrário, na eternidade, nada é sucessivo, tudo é presente, enquanto o tempo não pode ser de todo presente. Veria que todo o passado é repelido pelo futuro, que todo futuro segue o passado, que tanto o passado como o futuro tiram seu ser e seu curso daquele que é sempre presente. Quem poderá deter a inteligência do homem para que pare e veja como a eternidade imóvel, que não é futura nem passada, determina o futuro e o passado?”
Não conheço a obra de Agostinho, para além deste livro, mas li algures que este trabalho não terá sido tão espontâneo como se quer apresentar. Que este terá sido um trabalho escrito não para se encontrar a si próprio, mas antes para conduzir os seus leitores à conversão. Não tenho qualquer dado que suporte esta teoria, que pode não passar de mera conspiração, contudo tendo ou não sido assim, o mais relevante está no texto que temos na nossa frente que demonstra uma mestria profunda da retórica, do uso da narração, do storytelling, para envolver e persuadir. Todo o livro se apresenta como uma jornada — em três atos, com introdução, desenvolvimento e conclusão — em que se parte da ignorância da dúvida de si; para se entrar num novo reino, o do conflito existencial; para o qual se encontra no final uma resposta, a conversão, capaz de fechar todas as pontas, libertando-nos do peso da inconsciência, garantindo a total satisfação do leitor da narrativa.
“No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo.” Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes; não por enigma, ou como um espelho, mas por inteiro, em plena luz, face a face; conhece não ora isto, ora aquilo, mas, como disse, simultaneamente, sem a sequência temporal. Concluo também que se trata da terra invisível, informe, estranha às vicissitudes do tempo, que ora causam isto, ora aquilo, pois onde não há forma não pode haver isto ou aquilo.”

Versão lida: “The Confessions of St. Augustine” (400) de Santo Agostinho, narrado por Simon Vance, 12 hrs and 45 mins, 2008 
Versão utilizada para os excertos: “Confissões” (400), tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Vozes, 9788532641861, 2013

fevereiro 27, 2016

Ivan Deníssovitch e o monumento de Buzludha

Impressionante como um relato de uma realidade dos anos 1950, pode parecer um ou dois séculos mais antigo, quando aquilo que se tem para descrever está despojado de quase todos os elementos de modernidade que a industrialização nos foi trazendo ao longo do século XX. Aleksandr Solzhenitsyn estava ele próprio encarcerado num GULAG (Administração Geral dos Campos de Trabalho Correção e Colónias) quando começou a escrever este livro, no qual dá conta da vida aí passada. Não sendo documental mas ficcional, muito do que aqui temos é real e isso torna todo o relato muito mais poderoso.


“Um dia na vida de Ivan Deníssovitch” foi um dos primeiros livros a pôr a nu os efeitos do governo totalitário de Estaline, e por isso mesmo fortemente apadrinhado por Nikita Khrushchev, o primeiro-ministro que sucedeu a Staline e teve a difícil missão de destalinizar a Rússia. Mas nem por isso é um panfleto de propaganda, é o relato de uma realidade muito dura visto pelos olhos de quem se resignou ao que tem, e que com isso aprende a viver, um dia depois do outro, mas que por isso mesmo se vai introduzindo em nós e ajudando-nos compreender o efeito devastador das políticas de Estaline sobre o seu povo.

Solzhenitsyn poderia facilmente ter construído um relato de grande dramatismo, com uma escrita lacrimejante, mas não o faz, a sua escrita é seca e muito direta, desenhando um mundo visto a partir dos olhos de um inocente, preso por 10 anos por práticas de espionagem que nunca existiram, num modo de grande contraste, duro mas natural, implacável mas aceitável. No conforto das nossas salas de leitura, raramente sentimos a dureza que viveram milhões de presos e deportados por Estaline, o discurso de tom impessoal, parece por vezes dar-nos a ver através de uma janela de comboio aquecido, um mundo gelado e hostil, mas por isso mesmo vamos aceitando mais facilmente a interiorização daquela realidade, e quando nos damos conta estamos já completamente imersos na mesma.

Monumento abandonado, "Casa do Partido Comunista" no Monte Buzludha, Bulgária

Foi nesse momento que comecei a pensar nas grandes construções do comunismo de leste, hoje abandonadas, como o monumento Buzludzha no centro da Bulgária. Um edifício estranho que levou 7 anos a construir, para o qual contribuíram mais de 6 mil trabalhadores. Apresentado em 1981 com o desígnio de imprimir ideias nos espíritos do povo por muito séculos, abandonado em 1989 com a queda do muro de Berlim.

Impressiona o tamanho, a estética, mas impressiona ainda mais o local onde foi implantado, no exacto centro da Bulgária, no meio do nada, longe de tudo. Talvez um dia possamos ler algo sobre a história da sua construção, porque desde que vi as primeiras imagens me interrogo sobre quem esteve envolvido em tal obra, e como, e agora depois de ler o relato Solzhenitsyn sobre as construções que os prisioneiros dos Gulags faziam, mais ainda me interrogo. Hoje por cima das grandes portas de entrada para este monumento abandonado, está escrito “Forget your Past”. Seria mais fácil, ou mais suave, mas é algo que não podemos permitir.




fevereiro 26, 2016

Gentrificação

Sublime, é o que me vem à cabeça terminada a curta “Gentrification” (2015) de Alberto Mielgo, de quem já aqui tinha falado antes a propósito de uma outra curta, Innocent, in a way” (NSFW), na qual Mielgo entrava como personagem, dando vida a si mesmo, enquanto artista, e à sua expressão em pintura a óleo. Já nessa altura tinha dado conta do facto de Mielgo trabalhar a animação além da pintura, mas esta sua nova curta apresenta toda uma evolução no controlo da linguagem cinematográfica que merece toda a nossa contemplação.




Esta curta é toda uma obra autoral em busca da expressão de uma única ideia, um conceito. A gentrificação é uma tendência dos bairros urbanos, normalmente centrais e anteriormente plenos de vida, que por via do enorme aumento de valor dos imóveis, obriga ao deslocamento das famílias de baixos recursos e pequenas empresas para a periferia das cidades.

Meigo cria uma obra simbólica para dar conta do real, optando por trabalhar em profundidade a estética audiovisual, nomeadamente a arte da animação (multiplicação e movimento no After Effects), em conjunto com as técnicas de cinematografia (desfocagem, velocidade), usando como elementos da sua narrativa, bases pictóricas criadas por si, dotadas de enorme expressividade e das melhores técnicas de ilustração e pintura (“black Inks, pencil, watercolors”). Claro que o filme não é alheio ao poder da música, tendo Mielgo socorrido-se de Franz Schubert com o seu String Quintet in C Major, D. 956: ll. Adagio.

“Gentrification” (2015) de Alberto Mielgo

“Gentrification is a visual poem that expresses the mix of feelings Mielgo has about the way cities transform when new money moves in. “I’m not criticizing gentrification and I’m not promoting it—I have a lot of mixed feelings about it, and this is just one way to look at it,” he says.” (Adobe Creator)

fevereiro 21, 2016

"Meridiano de Sangue"

Tanta análise boa se pode ler por essa imprensa afora a propósito do “Meridiano” e de Cormac McCarthy, só coisas boas, um tanto em antítese a tanta coisa má que ele descreve nas suas obras, porque este é o seu tema, não apenas nesta obra, mas nesta particularmente, o do mal. E do meu lado tenho múltiplos ângulos por onde pegar, mas nenhum deles resulta em algo de bom, já que daqui pouco consegui levar.


Começo com Harold Bloom. O homem que lia 1000 páginas numa hora quando tinha 30 anos, e que é provavelmente o maior responsável por toda adoração que o livro tem recebido nas últimas décadas. Retiro contudo algo de Bloom, é que ele só conseguiu acabar de ler o livro à terceira tentativa. Eu pelo menos cheguei ao final, ainda que com uma pausa pelo meio, mas a minha impressão não deve ser muito diferente da sua, quando na primeira vez parou na página 60. Diz que na segunda tentativa parou pela 140. Fico a pensar, quando acabar a lista de clássicos que me acometi, talvez volte para reler, porque numa coisa Bloom tem razão, talvez a releitura seja mais importante do que a constante leitura de novo.

Sobre o “Meridiano…” nada a apontar à escrita, é simplesmente virtuosa, ao nível de Melville, mas tal como ele, de tanto trabalhar o texto, torna-o denso, escamoso, assumindo um negrume pela inacessibilidade que constantemente cria ao leitor. O Juíz é claramente Moby Dick, e nós leitores, temos de penar páginas e páginas para chegar às suas essências. Em ambos se justifica, o ofuscamento criado pela densidade do texto aproxima-nos da dureza das condições dos marinheiros que atravessam os mares, assim como nos aproxima da dureza das planícies banhadas de sol intenso, áridas e repletas de morte. Penamos, mas não estamos sós, muitos outros como nós, penaram até perderem suas vidas, por isso damos graças ao facto de estarmos apenas perante palavras no papel.

Tenho pena que uma escrita tão repleta, puro barroco, não me toque, logo eu que adoro barroco, mas não é pelo excesso, é simplesmente porque não me fala, não me toca, não me arrepia. Por vezes sentimos, outras vezes não, e isso é difícil de gerir, porque por mais que diga a mim mesmo, “repara no modo como está delineada a frase, como se adensa e se dá”, repara “como a paisagem emerge das palavras, como a forma surge irmanada no sentido de cada palavra” leio e percebo o que tenho na frente, mas não me comove, como se ficasse à porta, impedido de alcançar a beleza em que tantos outros antes de mim tocaram.

Já sobre o tema penso diferentemente, não que alinhe com o interesse que gerou junto de muitos, mas porque simplesmente não o compreendo. Dizer, como diz Bloom, que esta é a "autêntica obra americana", é difícil de engolir. Percebo o fascínio que os americanos têm pelo tema do western, o cinema clássico é disso um bom exemplo, por todo o enaltecimento que a crítica lhe tem dedicado, mas Cormac vai muito para além do western, e podemos até afirmar, que aqui está a essência do western, do tal "apocalipse americano", mas parecendo-me excessivo, é verdadeiramente redutor. É só isto? O mal, o mal puro, sem causa nem culpa? Sabe-me a pouco.

Voltando a Melville, “Moby Dick” leva-nos até essa fronteira, mas tem um objetivo para o fazer, Cormac não. Podem dizer que já não é de romantismo que se fala, mas de pós-modernismo, e aqui a redenção não cabe, foi ultrapassada, já não há esperança, e a única forma de levar o leitor, é atirá-lo pelo precipício abaixo. Pois pode até ser, mas então não sou esse leitor.

fevereiro 18, 2016

tributo a Emmanuel Lubezki

Existem vários filmes na web feitos como tributo ao trabalho de Emmanuel Lubezki, mas ainda não encontrei um estudo em profundidade que dê conta da razão porque Lubezki é um dos mais importantes artistas da arte cinematográfica da atualidade. Olhando mesmo à história da arte será difícil encontrar comparável, não pela qualidade, mas pela quantidade de qualidade, com apenas 52 anos, as suas obras maiores já perfazem uma lista com mais de uma dezena, algumas dessas obras foram filmadas no mesmo ano, o que demonstra uma capacidade de trabalho absolutamente impressionante.



Dos vários que vi, escolhi um dos que mais gostei, embora não sendo perfeito, é apenas uma colagem de excertos, mas um dos mais bem compostos, faltando contudo muitos exemplos da mestria de Lubezki, nomeadamente pela brevidade como alguns deles são mostrados. De qualquer modo servirá para abrir o apetite para ver, ou voltar a ver, alguns destes filmes.

"Tribute to Emmanuel Lubezki" (2015) de Jorge Luengo Ruiz


Actualização a 1 Março 2016
Depois de ganhar o terceiro oscar seguido, um novo recorde n categoria de criadores de cinema, começam a surgir novos videos dedicados ao seu trabalho na web, dos quais este de Wolfcrow é bastante interessante pela forma como especifica as técnicas de lentes utilizadas por Lubezki.

"Understanding the Cinematography of Emmanuel Lubezki" (2016) Wolfcrow

fevereiro 17, 2016

Criar histórias originais

Não faltam definições sobre o conceito de história, sobre o que a constitui, o seu design, a sua forma, como criar mundos, sobre a sua escrita, sobre a aplicação nos jogos, ou ainda sobre o seu futuro, nos últimos anos o interesse da sociedade em geral pelas histórias explodiu, tornando a discussão em seu redor uma constante. Nesse sentido o pequeno filme que aqui trago hoje é mais um desses trabalhos, mas não é apenas mais um, é um trabalho feito com muita paixão pela arte que conta com o contributo de um apaixonado pela criação de histórias, George Saunders.




Saunders é um escritor americano de pequenas histórias que publica o seu trabalho normalmente em revistas como a New Yorker, Harper’s Magazine ou a Esquire, tendo ganho já o National Magazine Award por quatro vezes. Por ser escritor de pequenas histórias, passa mais vezes pelo processo de iniciar uma nova história que os escritores de romances, sendo através dessa sua experiência que nos conta como decorre o processo para chegar à história.
"the better state in my experience is to have some idea what the story is, and sometimes it’s just the tiniest kernel of something that you enjoyed writing. Then once you put it down on the page and write it and rewrite it, it’s actually your own discontent with it that in some slow mysterious way urges it to that higher ground. And often it’ll do so in ways that surprise you." George Saunders
O processo aqui descrito por Saunders é tão simples que pode a alguns servir de desencanto, mas é no fundo o processo base da generalidade das construções criativas. Agitar o pensamento, começar num ponto e ir seguindo o mesmo por forma a deixar o nosso não-consciente contribuir também para a elaboração. Saunders é peremptório neste processo, “a bad story is one where you know what the story is and you're sure of it”, ou seja, o modo de chegar ao original, à essência da criação, é pela libertação e audição do “sentir” interno.
"I think that a good story is one that says, at many different levels, we’re both human beings, we’re in this crazy situation called life that we don’t really understand, can we put our heads together and confer about it a little bit at a very high non-bullshitty level? Then all kinds of magic can happen." George Saunders
O documentário foi criado pela Redglass Pictures e produzido por Ken Burns, o documentarista que sintetizou o storytelling como "1+1=3". O filme estreou no final do ano passado no The Atlantic.

"George Saunders: On Story" (2015) de Tom Mason e Sarah Klein

fevereiro 11, 2016

“Ruído Branco”, escrever para pensar

Demorei a escrever sobre este livro porque me obrigou a alguma reflexão mais elaborada, já que por um lado sentia que estava perante um trabalho de escrita e aprofundamento cultural de relevo, mas por outro sentia muitas reticências face à essência daquilo que nos queria dizer o seu autor. Li várias críticas de quando saiu em 1985, li mais algumas à edição comemorativa dos 25 anos de 2010, mas não consegui extrair muito mais do que aquilo que tinham sido as minhas impressões positivas, encontrei pouco esforço de interpretação de algumas das ideias que atravessam o livro. Aproveitei então o Goodreads para ler algumas críticas mais atuais, distanciadas no tempo, por quem como eu não leu o livro quando saiu, e assim totalmente despegado de memórias e nostalgias, e comecei a encontrar aqui e ali, alguns pontos negativos em consonância com as minhas dúvidas. Mas foi ao ler uma entrevista de DeLillo à Paris Review de 1993, que comecei a compreender a razão das minhas impressões.


De forma sintética, e abstraindo do enredo que nos faz virar as páginas, “Ruído Branco” procura respostas para as ansiedades contemporâneas, nomeadamente as produzidas pela velocidade e abundância de mensagens introduzidas pelos media na paisagem diária em que vivemos. Para produzir esta crítica DeLillo cria um mundo a partir de uma pequena cidade americana, na qual seguimos um professor universitário, especializado em Estudos de Hitler. Como rapidamente se depreende esta especialização é o foco da sátira de DeLillo, servindo de ponte para o questionamento final que nos propõe, a angústia do Medo de Morrer.

Capa da edição comemorativa dos 25 anos de "White Noiseda Penguin.

O romance está dividido em três grandes blocos — o primeiro de crítica dos media; o segundo do impacto dos media sobre o modo como vemos a realidade; e o terceiro como tentativa de explicar o que tudo isso representa. A primeira parte é a mais bem conseguida, tanto no conteúdo como na escrita, a erudição das metáforas e uma impressionante capacidade para escalpelizar ações e comportamentos num modo incisivo. A segunda parte é dedicada à ação mas numa lógica concentrada que nos permite aproximar mais da intimidade das relações da família do personagem principal. Por fim, a terceira parte é a mais simbólica, abandonam-se as descrições e a ação, e é tudo focado na explicação dos porquês, com recurso a algum devaneio filosófico.

As primeiras questões que me surgiram tiveram que ver com o facto de trabalhar especificamente na grande área de Estudos dos Media o que me torna mais sensível ao conteúdo. Falo especificamente do momento em que o livro é escrito, há 30 anos, e toda a crítica que foi produzida antes e depois sobre os mesmos problemas identificados aqui por DeLillo. Não tendo nada de errado a apontar, surge-me como um discurso um pouco saturado, mesmo nos anos 1980 já o era, as principais obras de McLuhan são dos anos 1960. Embora tenhamos de admitir que foi nos anos 1980 que a cultura popular se hegemonizou, e por via dos media de massas assumiu ascendente sobre a realidade. Aliás, daí a catalogação de uma nova era, a da pós-modernidade, nomeadamente pela via da tal hiperrelidade, como bem definiram Baudrillard ou Eco, em que o real deixa de existir porque substituído pela realidade criada pelos media.
" — Eles estão a tirar fotografias de gente a tirar fotografias." p. 20
“— Compreendi finalmente que este meio de comunicação social [a televisão] é uma força primordial no lar americano. Fechado, independente do tempo, contido em si mesmo auto-referenciado. É como se, mesmo ali, no meio da nossa sala, um mito estivesse a nascer, algo que fosse já do nosso conhecimento, de uma forma onírica e pré-consciente.” p. 68
De certo modo parece-me que o livro envelhece menos bem, apesar de ser ainda contemporâneo por vezes sobressai como crítica/sátira de uma era já longínqua. Talvez aqui o problema não seja sequer de DeLillo, mas antes da velocidade que se imprimiu à sociedade, nomeadamente por via das tecnologias de comunicação que transformaram drasticamente os media e a nossa relação com os mesmos, e tudo nos pareça já tão distante. Ainda assim gostei de ler, e não foi por aqui que me surgiram impressões menos positivas.

As minhas dúvidas ou incómodos surgem na terceira parte do livro, quando DeLillo entra no modo explicativo, e faz a sua proposta de teorização sobre a crise humanista criada pelos media, em que o acessório se tornou central, em que o mesquinho, o irrelevante ou insignificante passou a dominar o real, e a dominar os interesses das nossas vidas. Para Delillo isto explica-se como modo de fuga ao Medo da Morte. Seria uma tentativa de alheamento de si, de concentração no exterior de nós mesmos, para olvidar os nossos anseios. Diga-se que não discordo completamente desta ideia, muito do cinema e literatura de puro entretenimento que produzimos hoje tem esse desígnio como objetivo, esquecermo-nos de nós mesmos, escapar ao real que nos restringe a liberdade. A minha dúvida, e mesmo contestação à premissa é que não acredito que isso tenha qualquer relação com o Medo da Morte, desde logo porque se essa fosse a condição, então cada um de nós procuraria antes aproveitar o máximo possível antes de morrer, e não investir o tempo em futilidades para esquecer, para apagar o resto do tempo que nos resta por cá.

Verifiquei depois mais algumas referências de textos académicos que a proposta a que Delillo chega é, admitido por ele, influenciada por um texto de grande sucesso dos anos 1970, “The Denial of Death”, e que encaixa totalmente aqui em termos de argumento. Não vou dizer mais nada sobre esse livro, para além do que disse na resenha que lhe fiz logo depois de ter terminado “Ruído Branco”. Dizer apenas que é um texto sem valor na atualidade do conhecimento científico, e que tenho pena que o escritor se tenha deixado enredar por tal argumentação. Apesar disso, e enquanto romance, já que não se trata de um livro científico, DeLillo consegue manter todo o nosso interesse até ao final, assim como a nossa admiração pela forma como vai montando a argumentação com alguns casos e diálogos verdadeiramente lancinantes.

Posto isto quero agora ligar tudo com a entrevista de DeLillo, e explicitar um pouco daquilo que retiro de toda a experiência de leitura e reflexão de “Ruído Branco”, começando desde logo pela primeira pergunta sobre a razão pela qual DeLillo começou a escrever
"Eu queria aprender a pensar. A escrita é uma forma concentrada de pensar. Eu não sei o que penso sobre determinados assuntos, ainda hoje, até me sentar e tentar escrever sobre eles. Talvez eu estivesse à procura de formas mais rigorosas de pensar." [DeLillo à Paris Review]
Foi esta frase que me fez compreender “Ruído Branco”, que passei a ver como ensaio, à lá Saramago, em que uma determinada ideia lhes surge à mente e recorrem à escrita para a compreender, dar-lhe sentido e significado. A semelhança com Saramago termina aqui, já que DeLillo é muito mais orgânico, menos estruturado, mais próximo de Faulkner, como ele próprio gosta de afirmar. Aproximei-me de DeLillo porque esta revelação vai de encontro ao que faço com muitos dos textos que crio não científicos, nos quais começo com uma ideia e a meio do texto dou por mim a pensar algo completamente diferente, encadeado pela exploração mental dos diferentes conceitos que vão aflorando à consciência. O que me ajuda a compreender como se pode partir da discussão sobre os media e chegar ao medo da morte, e mais ainda, como ao longo do tempo pós-escrita, e de novas escritas, vamos vendo as nossas ideias mudar. Ou seja, não assumo aquilo que DeLillo aqui escreveu, como o seu modo único de ver a realidade, mas antes o modo como a viu na altura em que escreveu este livro, apenas isso.

Não menos interessante, e que me aproximou um pouco mais da sua pessoa, foi a resposta à questão sobre a fase da vida em que tinha começado a ler, DeLillo surpreendentemente revela que em criança só lia banda desenhada, e que só começou a ler mais seriamente a partir dos 18 anos. Não me poderia ter identificado mais, embora a minha identificação termine aqui, já que fiquei depois embasbacado pensando na elevada qualidade do seu trabalho, e no como tinha na minha frente mais um exemplo do modo como o talento se constrói, que não nasce, mas também não tem de ser condicionado desde o berço.

“Ruído Branco” tem alguns problemas de conteúdo, muito fruto do tempo em que foi escrito, mas enquanto romance, obra artística, continua intacto, dono de uma escrita soberba capaz de abrir pequenos orifícios na realidade e conduzir-nos pelo seu interior na tentativa de nos ajudar a compreender, perscrutando por dentro.

Motion designer: Danny Yount

A Adobe Create criou um pequeno filme sobre Danny Yount, um dos mais brilhantes designers de genéricos a surgir depois de Kyle Cooper. Vale a pena ver, pela qualidade do resumo, mas acima de tudo pela enorme simplicidade, humildade e autenticidade de Yount.






Young tornou-se conhecido com os genéricos de Six Feet Under, Kiss Kiss Bang Bang e RocknRolla desde então criou a sua própria produtora a Prodigal Pictures e dezenas de genéricos para alguns dos filmes mais caros de Hollywood, tendo ganho vários Emmys que guarda numa básica prateleira Ikea.

Young dá algumas pistas sobre o modo de entrar na indústria, nomeadamente fala do sentido de oportunidade que surge num momento limitado e que precisa de ser aproveitado. De qualquer modo podem ver no site da sua empresa aquilo que neste momento conta e o que se procura neste domínio em termos de competências.

"The Film Before the Film - Title Designer Danny Yount" (2015) Adobe Create


Mais sobre este tema:
Off Book: "The Art of Film and TV Title Design"
Histórias do Title Design

fevereiro 09, 2016

Vertigem audiovisual

Parece fácil, parece ad hoc, coincidências suportadas por processamento computacional, mas não, é muito pouco disso, é muito trabalho, muito tempo investido no desenvolvimento de sensibilidade capaz de captar e editar assim. É a primeira vez que aqui trago trabalho de Leonardo Dalessandri que segue uma linha de filmes web desenvolvida por criadores como Matty Brown e Jason Silva, e que podemos apelidar de vertigem audiovisual.





Esta abordagem estética caracteriza-se essencialmente pela velocidade e ritmo imprimido por via da montagem, assim como pela alternância entre planos gerais e planos de pormenor, socorrendo-se ainda de artifícios como a câmara lenta, acelerada e reversa. A experiência constrói uma espécie de pequena janela para uma realidade nova, que se consome em poucos minutos deixando uma impressão profunda, que perdura como uma essência de perfume.

Deixo apenas um dos filmes de Leonardo Dalessandri, Watchtower of Turkey, mas aconselho vivamente uma visita ao seu Vimeo, no qual destaco a recente colaboração com Jason Silva em "Captains of Spaceship Earth" (2015), pelo texto de Silva sobre os efeitos dos media.

"Watchtower of Turkey" (2014) de Leonardo Dalessandri

fevereiro 06, 2016

“Frankenstein: ou O Prometeu Moderno”

É um clássico, não porque fez melhor mas porque fez primeiro. Mary Shelley cria todo um universo a partir das preocupações da época em que vivia — eletricidade, ciência e industrialização — e cria algo completamente novo, um rasgo de pura criatividade que se veio a tornar num ícone dos mundos de ficção.

Ilustração do interior de capa da 3ª edição

Como texto é muito acessível, e os símbolos vão surgindo de forma explícita, desde logo com o subtítulo — “O Moderno Prometeu” — e o colocar da “criatura” a ler o “Paraíso Perdido” de John Milton. Ou seja, Shelley é muito direta no que pretende dizer com a sua obra, dedicando-se essencialmente à construção da hipótese que nos serve de ambiente de reflexão. Esta hipótese, no fundo dar vida a partes de corpos mortos, surge na senda dos anseios desse tempo que rodeavam a electricidade e a energia das células nervosas descobertas por Luigi Galvani. A ciência estava no seu auge, nomeadamente com a sua aplicação em crescendo na industrialização e automatização da atividade humana.

A narrativa segue todo um padrão romântico, também do seu tempo, com tendências góticas. O humano é aqui o centro do mundo, e em seu redor tudo é dramático e trágico, a noite e o negro perseguem os personagens, e a insanidade toma facilmente conta das emoções, tudo isto serve de pressão psicológica para fuga na ânsia do fim dos medos, nem que isso implique a própria morte.

Frankenstein” é uma crítica do seu tempo, mas sobreviveu ao mesmo porque foi além, apontando problemas e levantando questões que se nos continuam a colocar hoje — o que é o ser humano? que responsabilidades temos para com os outros?. Mais recentemente estas mesmas questões retomaram toda a relevância com o surgimento dos robôs e da inteligência artificial, tornando o romance de Shelley numa obra novamente atual e relevante. Por isso não admira que o livro seja hoje uma das obras de ficção mais estudadas nas Universidades americanas.

Para quem viu vários dos filmes, nomeadamente os grandes clássicos dos anos 1930 da Universal Pictures, o imaginário criado tem pouco que ver com o que se pode aqui ler. A primeira vez que, via cinema, me aproximei da ideia aqui contida foi na versão de 1994 de Kenneth Branagh com Robert de Niro no papel da “criatura”, intitulado “Mary Shelley's Frankenstein”, que como o próprio título indica, pretendia voltar à fonte e fazer um filme o mais próximo possível da ideia original de Shelley.