janeiro 09, 2016

Videojogos por uma cinéfila

Shannon Strucci é autora da série web "So You Wanna Be a Film Nerd", tendo decidido fazer uma pausa no seu louvar da arte que tanto adora, o cinema, para dedicar um episódio aos videojogos, na expectativa de convencer os seus seguidores de que, os videojogos não são em nada menos interessantes que o cinema.



Cheguei a este vídeo através de Philip Kollar do Polygon, que referencia o trabalho de Strucci por lhe ter feito recordar as razões porque gosta tanto de videojogos, estando eu em total sintonia com ele. Senti particularmente toda a discussão que Strucci faz à volta de "Silent Hill 2" (2001) porque juntamente com "Ico" (2001) foram responsáveis por eu voltar a interessar-me por videojogos, em vez de apenas me focar no cinema. Não esperem um trabalho em profundidade, é um documento vídeo, como tal discute vários outros jogos como "The Stanley Parable" (2013), "Papers, Please" (2013) ou "The Walking Dead" (2012) ligando-os com excertos do documentário de Charlie Brooker "Como os videojogos mudaram o mundo" (2013), sempre de uma forma fluída e informativa.

"Why you should care about video games" (2016) Shannon Strucci

“Debt: The First 5,000 Years”

Brilhante, incisivo e ao mesmo tempo angustiante. David Graeber é um antropólogo especializado em economia, o que lhe dá uma visão bastante distinta do comum economista, já que coloca lado a lado o humano e as finanças, estudando em profundidade as suas implicações e dependências. O facto de ter sido professor em Yale e agora na London School of Economics, apenas possível pela qualidade do seu trabalho, garante sustentabilidade ao que afirma ao longo de todo este livro, mesmo quando se afirma como anarquista. Graeber foi um dos principais mentores do movimento Occupy Wall Street, nomeadamente da sua premissa de partida, "We are the 99 percent”.


Debt: The First 5,000 Years” é um trabalho de fundo sobre os papéis do dinheiro e poder na organização das sociedades humanas que explica o modo como toda a nossa civilização se sustenta em processos de dívida. Graeber dá conta dos primeiros registos escritos que dão conta dessas mesmas dívidas, algo que não me surpreendeu já que essa é uma percepção que fui construindo com a visita a vários museus arqueológicos, nos quais vi alguns dos primeiros registos em pequenas pedras, tendo percebido que na generalidade se tratavam de inventários, heranças ou sentenças judiciais de pagamentos de dívidas.

São vários os mitos desmontados por Graeber ao longo do livro, um dos mais gritantes, o da economia de troca, algo que existe no nosso imaginário como uma cultura existente anterior ao dinheiro, e que por isso mesmo vimos florescer nos anos recentes como tentativa de resposta aos efeitos da austeridade, mas que aqui ao longo de muitas páginas, dezenas de exemplos, e muita história vamos perceber como nunca tendo passado de mero desejo do nosso imaginário. Seria insustentável desenvolver a civilização até ao ponto de complexidade que chegámos, baseado numa economia desse género, já que a possibilidade de trocas entre indivíduos seria imensamente mais lenta e reduzida na ausência de um qualquer registo (dinheiro) que garante a troca entre todos e em qualquer momento.

Graeber começa o primeiro capítulo de forma brilhante tocando o âmago da discussão do momento, a crise das dívidas soberanas, explicando como se chegou a este ponto, como evoluiu a sociedade por meio de uma obsessão quantitativa suportada por um moralismo judicial, no qual o FMI é o píncaro global, o grande cobrador de dívidas. Nos vários capítulos que se sucedem vários momentos da história da evolução da civilização são apontados como basilares, nomeadamente processos de exploração, desde os Romanos à expansão colonial europeia, ao tráfico de escravos, tráfico sexual, etc.. Tudo processos de poder e domínio por via da dívida permanente entre partes, que serve de justificativa moral na exploração do mais fraco pelo mais forte.
"Why debt? What makes the concept so strangely powerful? Consumer debt is the life-blood of our economy. All modern nation-states are built on deficit spending. Debt has come to be the central issue of international politics. But nobody seems to know exactly what it is, or how to think about it.
The very fact that we don’t know what debt is, the very flexibility of the concept, is the basis of its power. If history shows anything, it is that there’s no better way to justify relations founded on violence, to make such relations seem moral, than by reframing them in the language of debt — above all, because it immediately makes it seem like it’s the victim who’s doing something wrong." p.5-6
“It is the secret scandal of capitalism that at no point has it been or­ganized primarily around free labor. The conquest of the Americas began with mass enslavement, then gradually settled into various forms of debt peonage, African slavery, and "indentured service" that is, the use of contract labor, workers who had received cash in advance and were thus bound for five-, seven-, or ten-year terms to pay it back (.. ) This is a scandal (..) because it plays havoc with our most cherished assumptions about what capitalism really is­ particularly that, in its basic nature, capitalism has something to do with freedom.” p.350 
Concordando com muito, ou toda a forma como Graeber desconstrói e critica o desenvolvimento e estado da nossa civilização, o encanto deste seu livro esvai-se quando chega o momento de propor alternativas. Mas seria expectável que um homem só, no tempo de uma vida pudesse chegar a propor tal alternativa? Ou mesmo recuando a Marx e ligando ao mais recente trabalho de Piketty? O que acaba por ser imensamente angustiante é perceber que se estes que tiveram a capacidade de destrinçar a malha que nos encurrala, tal prisão invisível, não conseguiram ver como, que podemos então nós esperar? Existirá mesmo alternativa?

Acredito que sim, mas só num nível de consciência e autocontrolo muito superior ao que temos atualmente enquanto sociedade. O grande problema é que se somos profundamente gregários, cooperativos e colaborativos, não somos menos profundamente dependentes uns dos outros para sobreviver, daí que a dívida seja a base da civilização, porque ela é no fundo a base da classe mamífera, que ao contrário da dos répteis, não consegue sobreviver individualmente, apenas em grupo.

"The Last of Us: Left Behind" (2014)

É um dos poucos DLC que joguei, e não fossem as ramificações narrativas brotarem de um primeiro jogo maior, poderia perfeitamente funcionar como um pequeno jogo autónomo, tendo em conta o seu arco e intensidade dramáticas. Aliás chegou a ser vendido em modo stand alone, mas a sua força comunicativa, nomeadamente o seu final, está umbilicalmente ligada ao jogo original, "The Last of Us" (2013), sem o qual não se consegue chegar a essência do seu desfecho.




"Left Behind" não inova com o duplo enredo, mas ainda vai sendo algo que os videojogos não aproveitam completamente. O DLC surge num momento cronológico da história de "The Last of Us" para estender e explicar em maior detalhe os eventos decorridos, ao que acopla um segundo enredo por via de recordações da personagem principal, Ellie. No friso do tempo presente enfrentamos o jogo, obstáculos e ação, no passado temos acesso ao mundo interior da personagem, revivendo momentos de uma amizade marcante da sua adolescência.

Como já acontecia com TLOUS, mais do que inovar LB faz muito bem o contar de história, com uma sensibilidade imensamente apurada, capaz de construir e densificar personagens que nos emocionam, falam conosco. Ficamos a conhecer melhor Ellie, ficamos a compreender ainda melhor as suas angústias, de forma íntima e cuidada as personagens são apresentadas com vidas próprias, medos e alegrias, entre romance e melancolia.

Posso dizer que foi um choque para mim jogar LB enquanto jogava "Until Dawn" (2015), dois videojogos focados em adolescentes, mas tão longe um do outro em termos dramáticos, narrativos, comerciais e acima de tudo maturidade criativa. LB pode ser apenas um DLC ou um pequeno videojogo, mas aquilo que tem para nos contar leva a que seja mais do que isso, é uma experiência dramática completa.

janeiro 06, 2016

“Jogo de Influências”, um jogo sério e dramático

Jeu d'influences” é um serious game muito interessante pela forma como consegue traduzir os recursos dramáticos em proveito do jogo e do assunto que pretende tratar. Sendo um jogo sobre processos de gestão de comunicação de crise, consegue colocar o jogador no centro da crise e fazer com que este seja levado a agir e decidir em função dos vários interesses — financeiros, políticos e morais.




Em síntese, somos colocados no lugar de um diretor de uma empresa de sucesso, acarinhada por políticos e banca devido à criação de um novo tipo de betão ecológico, contudo uma noite o nosso sócio mais próximo, o investigador por detrás desse novo betão, comete suicídio. É aí que a crise começa, como gerir a comunicação das razões dessa morte? Motivos profissionais ou familiares? Em que estava ele a trabalhar nessa altura? Como é que os média estão a lidar com o assunto? Como é que lidamos com os média? E os bloggers, como lidamos com eles? E a verdade deve prevalecer, ou a mentira faz parte? E o rumor alimenta-se ou cria-se?

Tudo questões que veremos surgir na nossa frente, muito bem dissimuladas como parte da narrativa, e que nos farão questionar sobre tudo aquilo que fundamenta a gestão da comunicação de crise. Diga-se que com a evolução para o modelo atual de Sociedade de Informação em que vivemos, os assessores e estrategas de comunicação tornaram-se tão ou mais importantes que os jornalistas. Se até aqui a comunicação era toda controlada pelas redações, existia aquilo que chamávamos de gatekeeping, controlo do que se publica e não publica, hoje tudo isso se democratizou, não apenas porque o número de órgãos de comunicação social explodiu via web — blogs, facebook, twitter, etc — mas também porque quem está do outro lado deixou de ser ingénuo, ganhou uma nova literacia e passou a saber gerir aquilo que quer comunicar. No fundo o espaço mediático deixou de ser aquele domínio de aparente transparência, de aparente acesso direto à pura verdade, para se transformar numa arena de luta entre as múltiplas verdades. Isto porque como diz Christophe Reille, gestor de comunicação: "A verdade é aquilo em que a maioria das pessoas acredita."

Durante seis capítulos somos conduzidos por uma narrativa bem desenhada, bem ilustrada e com excelente performance de vozes, tudo sendo complementado por pequenos documentários vídeo que servem para ilustrar os conceitos mais complexos, que podemos decidir ver ou não em função do conhecimento que já detemos sobre o tema. As questões vão surgindo e à medida que vamos agindo e decidindo, três medidores vão contabilizando o nosso desempenho: UBM (unidade de medida de ruído média), isto é, a importância que o caso está a assumir nos média; a Confiança do nosso gestor de comunicação; e o nosso Stress. Se deixarmos o UBM chegar aos 100, o jogo termina; se o nosso gestor de comunicação deixar de confiar em nós (chegar a 0), o jogo termina; e por fim, se ficarmos demasiado stressados durante o processo (chegar a 100) o jogo é terminado também. No fundo temos de fazer um gestão interna das nossas ações, tendo em conta estas três variáveis. A experiência vai levar-nos a situações de dilema moral, criando pressão para a realização de atos potencialmente reprováveis, cabendo-nos decidir ir atrás do nosso gestor ou seguir os nossos modelos mentais do real.

O interessante — e a aprendizagem acontece nestes momentos — surge quando os nossos modelos mentais do que achamos que seria melhor colide com aquilo que o jogo nos apresenta, e faz com que percamos. Aí começamos a perceber que o mundo que pintamos interiormente pode diferir daquele que uma boa gestão de comunicação requer, e é aí que começamos a ganhar noção do que está em jogo nesta literacia dos media.

Jeu d'influences” (2014) foi criado pela francesa The Pixel Hunt para a cadeia de televisão France 5, com um orçamento incrivelmente magro de apenas 90 mil euros, mais ainda para os níveis franceses, mas que resulta num trabalho surpreendente, nomeadamente no design de jogo, a sua sintonia com o tema retratado, assim como no detalhe artístico e extensão do jogo. O jogo está online e é gratuito, mas está em francês, podem experienciar em “Jeu d'influences”.

janeiro 05, 2016

“O Meu Nome é Vermelho”

Magnífica viagem pela história das civilizações através do choque entre as suas filosofias da arte. Localizado em Istambul no auge do império Otomano, em 1591, numa altura em que a arte Otomana se debatia com a chegada das inovações do renascentismo italiano, nomeadamente a Perspectiva e o Retrato, tudo isto é envolvido numa história de crime e mistério que nos mantém agarrados à narração até à última página.

“Mas os quadros deles são muito mais persuasivos, aproximam-se mais da verdadeira vida. Em vez de pintarem como se estivessem no alto de um minarete, de uma altura suficiente que os faça desdenhar aquilo que os ocidentais chamam perspectiva, eles põem-se, pelo contrário, ao nível da rua, ou no interior do quarto de um príncipe, para pintarem a cama, a colcha, o escritório, o espelho, o seu leopardo, a sua filha, as suas moedas de ouro. Eles põem lá tudo, como sabes. Aliás, nem tudo o que eles fazem me seduz. Indispõem-me e acho mesquinha, sobretudo, aquela maneira de quererem a todo o custo representar o mundo tal como parece. Mas há tanta sedução no resultado que eles obtêm com esse método! Porque eles pintam o que vêem, o que o seu olho vê, exactamente como a visão o recebe, enquanto nós pintamos o que contemplamos.” 
"Siege of Rhodes" (~1564) Pintura em miniatura otomana, sem recurso a perspectiva.
"Deus quis certamente que a pintura exista como forma de arrebatamento, de maneira a mostrar que, para quem sabe olhar, o mundo é também um arrebatamento."
"Mona Lisa" (~1591), retrato em perspectiva de Leonardo da Vinci

Toda esta nova forma de representar o mundo assustou as pessoas, mais ainda numa sociedade em que a representação de certas figuras era considerada blasfémia, ao que se juntava o receio da criação de figuras de adoração. Pamuk pega em tudo isto, bem caracterizado historicamente, e cria um universo seu de grande beleza expressiva e intelectual. Como que cose todos estes ingredientes, à partida tão distantes, num único novelo, garantindo-nos acesso a todo um mundo de ideias por meio de um aparente simples romance detetivesco.
Quanto às técnicas de pintura europeias, os jesuítas portugueses já as introduziram lá [na Índia] há muito tempo, como por todo o lado.p. 457
Ao longo de todo o livro sentimos esta tensão entre representar de modo natural ou formal, uma discussão que se tornou central com a chegada da fotografia muitos anos depois e acabou dando origem ao modernismo e toda a sua força criativa. Mas ainda hoje continuamos a discutir tudo isto, já não subjugados a visões esotéricas do mundo, nem mesmo a conceitos do que objetiva a arte, mas subjugados à impossibilidade da verdade científica.

Mas Pamuk mais do que centrado na verdade, está centrado no humano. O facto de ter estruturado o romance em capítulos atribuídos a cada um dos personagens, que falam cada um na primeira pessoa, parece inicialmente apenas uma abordagem estilística, mas é muito mais do que isso, é uma afirmação da sua visão do mundo, do modo como critica essa tentativa de então, de aniquilar o indivíduo, aniquilar a expressão pessoal, o Estilo, conceito da estética que se torna central e acaba estando no cerne da investigação do romance.

O livro de Pamuk grita pela força do indivíduo, pelos seus anseios, desejos, e vontades. Mais do que saber se é a verdade que enfrenta, o ser humano quer sentir-se. Cada um de nós é um ser, e por mais que gostemos e dependamos uns dos outros, estamos enredados em nós mesmos, buscamos compreender-nos antes de tudo o mais. Mais do que conhecer o real, precisamos de nos conhecer a nós mesmos, para assim podermos fazer os outros à nossa volta felizes.

O Meu Nome é Vermelho” recordou-me por várias vezes Saramago e o seu “Memorial do Convento”, não por serem duas obras históricas, ou terem ambos um Nobel (2006 e 1998), mas pela força expressiva que imprimem ao ambiente e personagens, como as estruturam e tornam credíveis num tempo passado, tão real e tão cru, mas também porque em ambos o centro roda em redor da grande arte dos seus monarcas de então, a demonstrar mais uma vez que se alguma coisa perdura de todo o nosso esforço nestas vidas, é a arte que deixamos em legado.

janeiro 04, 2016

Fotografia do fragmento

O fotógrafo Alexander Yakovlev tornou-se conhecido pelo seu trabalho de fotografia dinâmica de dança, tendo recentemente adotado a técnica de adicionar farinha em movimento às imagens garantindo-lhes assim uma dinâmica impossível de conseguir de outra forma em imagens estáticas.


Inevitável ver nestas imagens resquícios do trabalho de Vhils, embora construídos a partir de técnicas completamente diferentes, resultando em objetos finais totalmente distintos, conseguem por momentos tocar-se e fazer-nos sentir a força do fragmento, da sua relevância no conjunto, capaz de formar um todo dos muitos fragmentos, fascinando o nosso olhar.






Podem ver uma enorme coleção de imagens no site de Alexander Yakovlev.

janeiro 02, 2016

"É assim que começa"

Trago mais uma curta da Bezalel, a escola de animação israelita que continua a oferecer-nos, ano após ano, curtas dos seus estudantes, com enorme cunho autoral e poder impressivo. A curta "This is How it Starts" de Shahaf Ram já ganhou vários prémios em vários festivais, entre os quais a competição de estudantes na Monstra 2015.





Nesta obra Ram propõe-se dar conta de uma viagem à infância e sua inocência por meio de cassetes antigas de vídeo. O trabalho de rotoscopia realizado para algumas imagens captadas dessas cassetes é tão detalhado que nos deixa em dúvida se realmente estamos perante material previamente criado em vídeo, ou se é ilustração animada a imitar o movimento e os defeitos do vídeo. Uma abordagem que segue no resto do filme, por via de um uso barroco da texturização sobre o qual projeta verdadeiros excessos de exposição que depois dessatura, oferencendo-lhe assim uma tonalidade vítrea, tudo em busca de uma espécie de mundo irreal, fantasmagórico.

O texto é fragmentado e nem sempre seguimos Ram, mantendo-se o interesse mais colado ao virtuosismo da plástica, conseguindo contudo no final imprimir em nós um forte traço de melancolia.

"This is How it Starts" (2014) de Shahaf Ram 
[contém imagens de teor adulto]

dezembro 31, 2015

Livros de 2015 (o meu ano Proust)

Foi um ano de leitura do cânone, tendo aproveitado para ler alguns clássicos da história da literatura — Lolita, Crime e Castigo, O Som e a Fúria, O Vermelho e o Negro — assim como alguns contemporâneos — A História Secreta, A Piada Infinita, Beloved, A Mancha Humana — li ainda alguns clássicos históricos como — Moby Dick, D. Quixote, Ensaios — e ainda algumas das melhores romancistas de sempre — Emily Brontë, Charlotte Brontë, Virginia Woolf. Mas, e apesar de tanto e tanto, o ano 2015 ficará marcado como, o meu ano proustiano.


Em Busca do Tempo Perdido é um romance em 7 volumes, são 3200 páginas da mais bela prosa, que nos levam através de um universo interior com o propósito de compreender a essência da Arte. Proust foi e continua a ser o expoente máximo da arte literária, difícil de superar porque termina em si próprio a essência de um estilo literário.
"Ainsi ce que j’avais cru n’être rien pour moi, c’était tout simplement toute ma vie. Comme on s’ignore !"
“L’oubli est un puissant instrument d’adaptation à la réalité parce qu’il détruit peu à peu en nous le passé survivant qui est en constante contradiction avec elle.”
“Nous ne savons jamais si nous ne sommes pas en train de manquer notre vie.”
Se quiserem ver tudo o que li, o Goodreads criou este ano uma página especial, My Year in Books, na qual apresenta todas as obras que lemos, destacando aquelas a que demos maior pontuação, apresentando ainda alguns dados estatísticos.

GoodReads - My Year in Books

dezembro 30, 2015

Videojogos de 2015

Aproveito o final do ano para deixar um conjunto de brevíssimos apontamentos sobre todos os videojogos que joguei ao longo do ano, aproveitando para os colocar por ordem de preferência, ou seja relevância e impacto. Deixo a lista dos jogos deste ano, e numa segunda lista os jogos de anos anteriores.

The Witcher 3: Wild Hunt, 2015, CD Projekt, Ação RPG, Poland, PS4
São múltiplos os argumentos que fazem deste um dos jogos mais relevantes do meio. Sobre uma história que ombreia com o melhor da literatura, e um mundo de jogo que ombreia com o melhor do cinema, temos toda uma camada de interatividade capaz de dar conta de efetiva agência narrativa. [Pré-análise e Análise]


Her Story, 2015, Sam Barlow, Video Interativo, USA, Steam
O reviver de um género de jogo, o vídeo interativo, dotado de enorme brilho na escrita do guião e seu design. Para compreender em maior profundidade o design recomendo o documental de Mark Brown, mas apenas depois de jogarem. [Análise]


Soma, 2015, Frictional Games, FPS, Sweden, PS4
Uma história brilhante, trabalhada por meio de uma experiência visceral e impactante. [Análise]


Everybody's Gone to the Rapture, 2015, The Chinese Room, Passeio Virtual, UK, PS4
Capaz de demonstrar que os passeios virtuais podem ser muito mais do que mera navegação, podem conter história, e essa pode mexer conosco. [Análise]


Fallout 4, 2015, Bethesda, Ação RPG, USA, PS4
Verdadeira sequela de Fallout 3, em que pouco se altera, sendo que mantém a enorme capacidade de criar uma experiência de puro flow.


The Beginner’s Guide, 2015, Davey Wreden, Passeio Virtual, USA, Steam
Um digno sucessor de “The Stanley’s Parable”. [Análise]


Life is Strange, 2015, Dontnod, Narrativa Interativa, USA, PS4
Ainda que tratando uma história de adolescentes, fá-lo com bastante profundidade psicológica tornando toda a experiência mais interessante do que grande parte dos romances YA. Um excelente sucessor de “Remember Me”.


Dr. Langeskov..., 2015, Galactic Cafe, Experimental, USA, Steam
O lado cómico da meta-análise dos videojogos. [Análise]


Neurotic Neurons, 2015, Nicky Case, Serious Game, Browser
Um pequeno jogo que nos ajuda a compreender como funciona a criação de memórias humanas. [Análise]


Pacapong, 2015, Dick Poelen, Experimental, Holanda, LD58
O que aconteceria se fizéssemos resamplagem de videjogos? [Análise]


Grow Home, 2015, Ubisoft, Platforma, USA, PS4
Uma mecânica original — fazer crescer flores tendo de as escalar, sempre a crescer, sempre a progredir — com gratificação enorme, bem balanceada através da fraca agilidade do robô.


Way to Go, 2015, Vincent Morisset, Experimental, Canada, Browser
Obra de arte interativa que bebe nas linguagens de jogo para se dar à experienciação. [Análise]


Freshman Year, 2015, Nina Freeman, Relato interativo, EUA, Steam
Pequeno experimento de jogo-testemunho que dá conta dos ataques sexuais fugazes que sofrem algumas caloiras durante as festas universitárias e suas marcas. [Análise]


Until Dawn, 2015, Sony, Narrativa Interativa, USA, PS4
Mais uma história de adolescentes, mas ao contrário de “Life is Strange”, limita-se a copiar modelos do cinema, sem verdadeiramente acrescentar algo de novo. Parece uma espécie de mix entre os Morangos com Açúcar, versão thriller, e o videojogo Walking Dead.


Downwell, 2015, Ojiro Fumoto, Platforma, Japan, iOS
O arcade deste ano, mas ao contrário do que vem sendo hábito nos revivals, não é castigador, antes garante um enorme sentido de progressão, tornando-se rapidamente viciante por toda essa progressão.


Rocket League, Psyonix, Desporto, 2015, PS4 e Steam
O fluxo é tudo, é isso que aqui se consegue de melhor, por meio de um conceito completamente novo.


V8ORS – Flying Rat (2015), Deivis Tavares, Portugal, Android
Um pequeno jogo arcade, imensamente fluído e envolvido por uma belíssima arte visual. [Análise]


Prune, 2015, Joel McDonald, Experimental, USA, iOS
O jogo zen do ano, sem grande consequência somos enredados na busca dos padrões, deixando-nos seduzir muito rapidamente.


Alto’s Adventure, 2015, Snowman, Platform, Canada, iOS
Um jogo que trabalha a mecânica original de Tiny Wings, elevando o seu poder gratificante e a progressão.


Sunless Sea, 2015, Failbetter, RPG, UK, Steam
Nomeado pela Writing Guild inglesa para melhor Escrita em Videojogos, acaba por se destacar apenas nesse campo, já que é mais Ficção Interativa do que Videojogo, não que nos admire já que a especialidade da Failbetter é nesse domínio, e Sunless Sea surge como uma evolução da sua ficção interativa imensamente reconhecida, Fallen London (2009).


Undertale, 2015, Toby Fox, RPG, USA, Steam
Muito badalado, com um conceito interessante, mas numa implementação que deixa muito a desejar, que percebo que possa dizer muito a quem nutra imenso apreço por revivalismos. Apesar de Undertale se afirmar por uma abordagem contra-corrente, trocando a luta pelos atos, o seu discurso não segue essa troca, mantendo-se simplista.


Missing, 2015, Zandel Media, Video Interativo, USA, Steam
Mais um exemplo que só reforça a importância de “Her Story”. Nada de interessante aqui.



Videojogos jogados em 2015

The Legend of Zelda: Skyward Sword, 2011, Nintendo, Adventure/Action, Japan, Wii
Experiência inesquecível, uma aventura difícil de igualar, por mais que nos sintamos manipulados pelas métricas de jogo. [Análise]


Middle-earth: Shadow of Mordor, 2014, Warner / Monolith, Adventure/Action, USA, PS4
Uma jogabilidade imensamente fluída, capaz de dar conta de uma experiência de enorme agência. [Análise]


Assassin’s Creed: Unity, 2014, Ubisoft, Adventure/Action, Canada, PS4
A Revolução Francesa como nunca antes a pudemos ver e sentir, tirando os problemas de jogabilidade, é um marco do poder e arte audiovisual dos videojogos. [Análise]


Valiant Hearts - The Great War, 2014, Ubisoft, Sidescroller, França, PS3
Um jogo de entretenimento de valor sério, capaz de nos ajudar a compreender uma das guerras menos discutidas, a primeira grande guerra. [Análise]


The Vanishing of Ethan Carter, 2014, Astronauts, Adventure/Action, Poland, PS4
Uma viagem visualmente muito apelativa, dotado de uma história muito bem escrita. [Análise]


Alien: Isolation, 2014, Creative Assembly, Adventure/Action, USA, PS4
Dotado de uma visceralidade excessiva, recomendado apenas a quem gosta de sensações fortes. [Análise]

dezembro 29, 2015

“The Beginner's Guide” (2015)

Numa primeira impressão surge-nos como uma espécie de pequena história entre dois amigos, um criativo com vergonha de falar do seu trabalho, e um seu amigo que se dedica a demonstrar o trabalho por si. Os vários projectos vão sendo demonstrados, e no final percebemos que a relação entre ambos não é tão próxima ou tão íntima como o segundo nos quer fazer crer, mas o interessante surge quando percebemos a razão do conflito e o ligamos com a história do verdadeiro autor do jogo, David Wreden, é aí que percebemos que “The Beginner's Guide” pode ser bastante mais do que uma mera história de ficção na forma de jogo.






(O texto que se segue apresenta ligeiros spoilers).

Tendo em conta esse contexto, podemos qualificar “The Beginner's Guide” como uma espécie de grito catártico, provável fruto do impacto do sucesso inusitado do seu jogo anterior, “The Stanley Parable”. Ou seja, Wreden terá passado os últimos dois anos a experimentar conceitos de game design em busca do graal que lhe iria permitir ir além do seu sucesso anterior, servindo “The Beginner's Guide” como diário/roteiro criativo desses dois anos de esforços. Para nos contar a sua história Wreden socorre-se do género walking simulator que lhe permite revelar o processo criativo de modo expositivo e linear, fazendo uso da sua componente interativa para demonstrar alguns elementos dos conceitos que foi explorando. Se a história passa, nem sempre a escolha do walking simulator ajuda a dar conta das várias mecânicas (veja-se o caso da máquina criativa).

Tendo o foco na análise dos processos criativos assim como na crítica do design de videojogos, “The Beginner's Guide” torna-se num videojogo obrigatório para qualquer criador ou estudioso de videojogos, já como experiência de jogo para o comum jogador dificilmente consegue fazer passar a ideia, desde logo porque este conta com o facto de conhecermos a obra anterior do autor, mas mais do que isso, porque os conceitos explorados e a meta-análise envolvida dificilmente ecoará nas cabeças dos jogadores, o que toca no questão central explorada pelo jogo em termos criativos.

Ou seja, “The Beginner's Guide” questiona quão longe pode ir um criador em termos criativos tendo em conta a capacidade do jogador para entender o que pretende dizer. Uma discussão que bate de frente com um dos mais antigos tópicos da arte, a intenção artística, nomeadamente se uma obra precisa de “trabalhar” para se aproximar dos seus receptores, ou se são os receptores que precisam de “trabalhar” para chegarem ao que o autor tem para dizer. Falamos aqui da essência do que deve ser a arte, deve ela ser fundamentalmente expressiva ou ter uma função comunicativa?

Um dos exemplos discutidos acontece numa prisão, quando o jogador se enclausura numa cela, este teria de aguardar 1 hora de tempo real até que a cela se voltasse a abrir para poder sair. Assim seria possível ao criador expressar bem o conceito de se estar preso, o problema é que o pedido pode não encontrar receptividade no jogador, a comunicação pode não acontecer, e desse modo este simplesmente desistir do jogo, provocando o dilema criativo. Diga-se que seria algo bem menos “doloroso” do que ver um filme de 8 horas, no qual se vê, ao longo de todo esse tempo, apenas uma pessoa a dormir num sofá (“Sleep”, 1963 de Andy Warhol). Este exemplo da arte cinematográfica, é um exemplo que dá conta da experimentação artística, capaz de pôr a prova a intenção do artista e o modo como choca com os standards aceites pelos espectadores, habituados a exigir e a conseguir, filmes narrativos de 1h30.

A farsa por detrás de “The Beginner's Guide” dá bem conta deste tópico, através da relação entre o criador e o amigo (que no fundo representa o público), nomeadamente quando o amigo começa a alterar estas mecânicas, para as poder demonstrar rapidamente — no caso da prisão, em vez de ficarmos uma hora ali presos, ele altera o jogo para nos permitir saltar essa parte. Quando o criador descobre que andam a alterar os seus jogos para os mostrar, fica decepcionado, chegando ao ponto de desistir da criação de videojogos. Sendo este o clímax, assim como a essência da mensagem, com a intenção autorial a afundar-se face à não aceitação do público.

Dito tudo isto, é um jogo para quem cria, qualquer tipo de arte, e está habituado a refletir sobre o processo, ou para quem se interesse pelos processos criativos, mas é um jogo difícil para o jogador comum, porque apesar de até poder chegar à compreensão do que se discute, dificilmente sentirá o dilema, já que o assunto é apenas debatido, nunca chegando a ser verdadeiramente representado, isto é não existe nenhuma parte do jogo em que sejamos levados a experienciar o processo criativo, ou a intenção artística, desse modo o jogo trabalha sobre o pressuposto de que o seu público já compreende os seus fundamentos.

The Beginner's Guide” acaba sendo um magistral sucessor, em termos conceptuais, de "The Stanley Parable", pois se este questionava o sentido das ações do jogador num jogo, este questiona o sentido das ações do criador de um jogo.