dezembro 13, 2015

Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt"

A escolha de um jogo capaz de representar o melhor que se fez ao longo de todo um ano é impossível de realizar-se de modo objetivo, por isso aquilo que aqui apresento é como não poderia deixar de ser, subjetivo. Aquilo que é relevante para mim num videojogo não o é para outra pessoa, seja um jogador, um criador ou crítico. Cada um de nós tem abordagens e motivações distintas sobre o meio, logo os relevos que encontramos são também distintos. No meu caso, a principal razão para escolher “The Witcher 3: Wild Hunt” (W3), como o videojogo AAA de 2015, assenta na sua contribuição para a inovação formal do meio, destacada pela sua escrita interativa e mundo aberto.

1. Modo de Jogo
O primeiro elemento a considerar aqui é o modo de jogo. Quando entramos em “W3”, somos convidados a escolher um de 4 modos — Just the Story!"; "Story and Sword!"; "Blood and Broken Bones!"; "Death March!". Pode parecer apenas mais um tradicional sistema de escolha entre fácil e difícil, mas é bem mais do que isso, a escolha entre os dois extremos comporta verdadeiramente dois modos distintos de aceder ao universo de W3. Fundamentalmente o primeiro modo centra a nossa experiência na história, enquanto o último centra a nossa experiência no jogo. Como sabemos os videojogos são constituídos a partir destes dois ingredientes, a história e o jogo que se entrelaçam para criar uma experiência.

Assim ao jogarem no primeiro modo todas as batalhas, puzzles espaciais, e bosses são desenhados para encaixar no ritmo progressivo de uma história. A nossa passagem por estes raramente nos obriga a voltar a repetir sequências, porque dificilmente morremos. Exceptuando claro quando entramos em áreas em que temos “experiência” insuficiente, e aí somos totalmente abalroados, uma componente de extrema relevância na manutenção do foco num mundo aberto. Por outro lado, torna secundário toda a componente de poções, óleos, bombas e signos, permitindo que se jogue todo o jogo sem preparar qualquer poção, nem nos preocuparmos muito com as capacidades específicas de cada signo. O foco na manutenção e atualização da armadura e armas é suficiente. Deste modo consegue-se concentrar toda a atenção do jogador na história de Wild Hunt com Ciri, fazê-lo focar-se nos personagens, e jogar muito mais com as decisões que se vão tomando. Esta experiência do jogo, quase sem morrer, perfaz uma viagem de mais de 50 horas (apenas a história principal).

Por outro lado no quarto modo, todas as sequências de ação assumem um lugar central no jogo. É impossível ultrapassar cada batalha, ou eliminar monstros no terreno, sem primeiro se focar nas suas fragilidades, para as quais é preciso desenvolver as poções correctas, e desenhar a melhor estratégia de signos para conseguir ultrapassar o obstáculo. Neste modo, mais do que a história de Wild Hunt ou Ciri, estamos focados em ser um Witcher (um caçador de monstros), temos de aprender a arte, das poções e espada, para conseguir progredir no jogo. Deste modo, se o jogador não passar à frente as partes narrativas, poderá estar a apontar para uma história principal com cerca de 100 horas, dificilmente se poderá fazer em menos.

Existe muita discussão sobre qual o melhor modo, mas mais uma vez volto à subjetividade que referi no início deste texto, não existe um modo melhor, já que existem jogadores diferentes. Não podemos, como se faz nestas discussões, esquecer que falamos de uma obra interativa, não de um filme ou livro. A obra deve trabalhar com o interator, e não forçar a experiência que o designer imaginou. Se acredito que o aqui temos representa uma evolução séria e refletida desta adaptabilidade à participação do jogador no mundo, acredito mais ainda que dentro de alguns anos deixaremos de precisar de fazer estas escolhas à entrada de cada jogo. Os jogos irão interpretar a forma como jogamos, e estruturar-se em função daquilo que estamos a fazer no mundo de jogo. Porque na verdade, apesar de podermos apontar aqui variações no desenho da jogabilidade, se as virmos a funcionar em conjunto com as acções que cada jogador está disposto a realizar, poderemos ver como a experiências que se retiram acabam por no final se aproximar para ambos os tipos de jogadores, congregando-os em redor do mesmo do jogo. Construir uma poção ou uma bomba pode garantir uma enorme gratificação para alguns, mas não lhes dá mais conhecimento sobre a profissão do personagem, já que tudo não passa de metáforas de representação muito distantes do real. E assim, se para uns ajuda a criar a ilusão de proximidade, o tornar-se no personagem, para outros funciona como uma desconexão da história, já que as acções se configuram como meras tarefas sem apelo narrativo.


2. O género e a consequencialidade
W3 é um videojogo que vai além dos rótulos existentes, não existindo ainda uma forma única capaz de categorizar o tipo de experiência aqui em questão, precisando nós de recorrer a 4 etiquetas para definir o género: Ação, Role-Playing Game, Terceira-pessoa e Mundo Aberto.
Em termos de género W3 faz parte do grande processo evolutivo da forma plástica dos videojogos. A capacidade para mesclar jogo e história esteve desde o início muito mais ao alcance do texto do que do audiovisual. A chamada ficção interativa dos anos 1970 abriu todo um mundo de possibilidades à integração do jogo de papeis dramáticos nos videojogos, que por trabalhar apenas elementos de texto, facilmente manipuláveis por algoritmos, conseguiu atingir picos de interação com o interator, que o vídeo interativo por essa altura nem sequer imaginava. Com a evolução tecnológica avançámos imenso na capacidade expressiva do meio, nomeadamente com o surgimento do CGI 3D, que permitiu começar a manipular a plástica visual com o mesmo nível de detalhe que manipulávamos palavras e letras de um texto.

Existem várias obras que são dignas de menção nesta tentativa de fusão entre RPG (a participação narrativa) e Ação (manipulação e navegação virtual) de entre os quais “Fallout 3” (F3) e a série “Mass Effect” (ME), ainda que tanto F3 como ME1 mantenham uma impressão RPG muito forte, o que se alterou bastante no tomo seguinte da série,  ME2 o mais equilibrado, resvalando já demais para a ação em ME3. Ao contrário destes, temos por exemplo “Walking Dead” capaz de nos levar a participar na história, mas à custa da nossa imersão no mundo (baixa manipulação e navegação), ficando ainda muito colado ao tipo de experiência criada pelos textos interativos. Por outro lado temos “The Last of Us” capaz de criar um nível de manipulação e navegação do mundo que funciona em perfeita sintonia com a história que vai sendo relatada, sendo no entanto totalmente incapaz de se abrir à nossa participação, porque limita a nossa interação à Plástica (manipulação e navegação), forçando o linear no Enredo.
Diagrama da narrativa interativa nos videojogos

Deste modo, W3 é uma espécie de sucessor de F3 e ME2, mas mais do que isso, uma coroação desta abordagem artística à linguagem do meio, capaz de nos oferecer um mundo história audiovisual que reage às ações do jogador, criando uma experiência de profunda consequencialidade. Isto torna-se possível por dois componentes fundamentais: a narrativa interativa e o mundo aberto.


3. Consequencialidade: Narrativa interativa
O resultado do trabalho narrativo efetuado em W3 é tão impressionante, que a meio do jogo dediquei-lhe um texto, que criei a partir de uma entrevista com um dos escritores principais da obra. Se estiverem interessados nesta componente do jogo, recomendo a leitura e a visualização da entrevista. Focar-me-ei aqui apenas naquilo que ainda não disse nesse texto.

A estrutura da história principal resume-se nos três actos clássicos, para os quais trabalham dezenas de quests principais, mas que funcionam em plena sintonia com as quests secundárias, e em parte tornando mesmo quase obrigatório fazer muitas das secundárias, para se ganhar o aprofundamento completo da história. Ou seja, as ações secundárias, não são aquilo a que nos habituámos em ME2 ou F3, são mesmo dotadas de consequencialidade na narrativa principal, nomeadamente na forma como conseguimos compreender e sentir todo aquele mundo. Em termos de história, subscrevo a descrição do Aníbal Gonçalves no IGN, de que temos aqui por um lado o poder da fantasia de "The Lord of the Rings" a funcionar com a força da intriga humana e familiar de "Game of Thrones", o que torna W3 num dos jogos mais maduros em termos de história, na linha "The Last of Us". Apesar da abordagem interativa, W3 não deixa de seguir o modelo dramático em 3 atos, no sentido de potenciar ao máximo a experiência emocional dos jogadores, e que passo a elencar:
[Prólogo: Introdução ao mundo pelo sonho

Ato 1: Iniciamos a nossa busca por Ciri (a jovem feiticeira, imensamente poderosa, treinada por Geralt, o nosso witcher/bruxo), que nos vai permitir conhecer quase todos os personagens do jogo, assim como ficar a conhecer quase todo o território [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 2: Encontrado o rasto final de Ciri, teremos de reunir todos os nossos amigos de viagem do Ato I, para impedir que Ciri seja levada [cerca de 20 horas no Modo História].

Ato 3: Aqui chegados, é necessário encontrar uma solução final para dar conta de quem pretende raptar Ciri [cerca de 12 horas no Modo História].

Epílogo: Erradicação da superstição]
O nível de detalhe da escrita da história - composta de 450,000 palavras, o equivalente a 4 romances - é fundamental na capacidade de resposta do jogo. Ao longo das 50 horas de jogo encontramos milhares de diálogos, na sua maioria dotados de escolhas que geram caminhos narrativos específicos, no sentido de atender à participação concreta do jogador. Por aqui desenvolve-se um sentido de conversação plena com a obra, em que apesar de muito ser desenhado e delimitado pelos criadores, muitas são as possibilidades que se abrem na nossa frente para decidir o que fazer, para realizar escolhas que se aproximam do modo — como eu em concreto vejo o mundo, como eu na especificidade acredito que as pessoas se devem relacionar, colaborar e cooperar. W3 é um mundo imaginado por um colectivo de criadores, mas cabe-me a mim, no momento da minha experiência, colaborar com este colectivo na criação daquele universo.
A experiência final que retiro de ter passado 50 horas naquele mundo, não é de mero relato, mas de ter vivido, porque contribuí para o modo como aquele relato se concretizou e fechou. Fui eu que resolvi salvar uns, deixar à sua sorte outros, assim como matar outros; fui eu que decidi romancear com uma e não com outra; fui eu que decidi destronar uns e coroar outros; fui eu que decidi salvar o planeta ou em sua vez proteger aqueles que me eram mais queridos. Isto é participação narrativa, é colaboração autoral na experiência que se desenvolve. Isto é fazer acontecer, e não simplesmente aceder ao que já aconteceu. Isto é a linguagem dos videojogos, agir no presente, em vez de simplesmente testemunhar o passado. Mais do que aprender com os outros que já viveram experiências, aprendemos fazendo, assumindo as responsabilidades de cada uma das nossas ações.
A tentativa falhada de criar uma moral difusa em "Mass Effect"

Se ME2 tinha todo um sistema de impacto das escolhas — Renegade/Paragon — que procurava tornar difusa a moralidade das nossas ações, e assim impossibilitar o jogar estratégico para a construção de um ideal de personagem, W3 simplesmente opta por eliminar qualquer feedback diagramático da moral. Esse feedback por muito difuso que seja, será sempre motivo de manipulação por parte do jogador. Em W3 não existe uma árvore moral das nossas opções, nem sequer somos confrontados com feedback bruto a cada uma das nossas escolhas. Porque mais do que escolher e decidir, é do diálogo que emerge a especificidade da nossa experiência, tal como no mundo real — posso optar por mentir agora, ser honesto daqui a pouco, manipular as crenças das pessoas, ou simplesmente dar-lhes o que elas pedem. Como seres humanos, somos tudo menos binários, somos um caos moral que vive do acaso do contexto em que nos encontramos em cada momento.


4. Consequencialidade: Mundo aberto
Li várias discussões que procuravam pôr em causa o interesse do desenho de W3 em mundo aberto, dando conta que uma jogabilidade mais linearizada, poderia ser mais relevante para os jogadores, nomeadamente porque evitaria a dispersão, mas também porque garantiria um mundo mais coeso e detalhado, já que os criadores não teriam de investir massivamente na criação de um mundo que muito de nós não verão. Ora, parece-me que tudo isto é um contrassenso, já que joga em desfavor do meio, nomeadamente da sua expressividade.
Voltando ao que falei acima, sobre os três grandes domínios da interatividade de um videojogo - manipulação, navegação e participação - só o mundo aberto pode permitir os três. Um jogo como “The Last of Us”, que funciona linearmente, seguindo a abordagem espacial de túnel de storytelling, permite belíssimos níveis de manipulação e navegação, mas impede a participação. Não falo aqui das escolhas e decisões nas árvores de diálogos, mas das escolhas e decisões no espaço. Ou seja, o mundo aberto não se vem tornando standard por mero capricho, ou por tentar competir no marketing de quem faz o maior mundo como se acusa, ele é um elemento vital. Veja-se um dos casos mais emblemáticos na demonstração da participação espacial, o “Dishonored” (2012), em que a navegação e manipulação do espaço é aberta obrigando-nos a tomar decisões, que por sua vez produzem consequencialidade ao nível da jogabilidade, podendo mesmo resultar em alterações narrativas. Isto foi também explorado mais recentemente na série “Assassin’s Creed”, que começou por ter um mundo aberto apenas nas áreas jogáveis, sem efeito prático nos momentos de cutscene, e mais recentemente em “Assassin's Creed: Unity” (2014) apesar de continuar de portas fechadas à participação especificamente narrativa (com os diálogos), abriu-se a este modo participativo por via do espaço no momento de cada grande assassinato.

Sendo a participação o mais importante no design de mundos abertos, temos ainda o factor de imersão por via da credibilidade. Poder navegar por mapas espaciais sem impedimento, escolhendo as quests que se fazem a meu bel-prazer e não por imposição linear, operada pelos autores do jogo, garante para além da minha participação no desenrolar da progressão da experiência, a credibilidade da minha ação, que por sua vez oferece a credibilidade no universo de jogo, e assim a imersão. É verdade que por vezes entramos em áreas adjacentes em que os inimigos nos matam com um único golpe, porque estão muito acima da minha experiência, mas isso faz parte do design de mundos abertos, e na vejo isso como um problema para a experiência, apenas diz ao jogador que é melhor não ir já por ali, não o impedindo de tentar ir se assim o desejar.

Dou o exemplo da primeira travessia para Skellige que é suposta só acontecer depois de várias quests principais em Novigrad, e consequentemente elevação do XP, mas que eu de tanto insistir acabei por conseguir realizar mesmo não tendo os supostos XP necessários. Claro que notei no fim de passar as duas sequências, que existia ali um clímax narrativo a que eu tinha chegado antes do tempo, mas na verdade foi para mim muito interessante ter lá chegado antes, já que a primeira passagem por Novigrad é talvez dos momentos menos conseguidos em todo jogo, pela sua calma e quests demasiada tarefeiras. Ou seja, o mundo aberto permitiu-me criar toda uma experiência em função da minha volição no jogo, e não do que me ditam os seus criadores.
Numa outra situação, menos relevante mas contudo impactante, fruto do mundo aberto e persistente, abandonei um barco meio partido por sereias voadoras junto a uma ilha pequena numa determinada fase do jogo, tendo depois, muito mais tarde e por outras razões, voltado a passar por esse local, e encontrado esse mesmo barco, identificado porque partido tal como o tinha deixado, criando a estranha impressão "é o meu barco", uma sensação de posse, mais do que de um barco, do território de jogo, o que só por si funciona como um poderoso argumento de credibilidade, diria quase um afrodisíaco de imersão.

É deste conjunto, participação narrativa e espacial, que emerge aquilo que consideramos ser o elemento fundamental da expressividade dos videojogos, a agência, ou consequencialidade. Ou seja, o sentimento de que a minha atuação sobre aquela obra é consequente, de que eu, enquanto indivíduo sou levado em consideração. É isto que andamos há 30 anos a tentar desenvolver no campo dos jogos narrativos, e é isto que W3 faz bem, não querendo dizer que atingimos o último estágio deste processo, mas estamos cada vez mais perto de poder dizer "missão cumprida".

O menos bom do jogo anda à volta da arte visual, principalmente a animação. W3 tem bons artistas visuais, tecnicamente muito dotados, mas não tão bons artisticamente como por exemplo a equipa de “Assassin’s Creed: Unity”. Já os seus animadores, por culpa própria ou das equipas de programação, raramente conseguem brilhar. Não podendo de forma alguma dizer que é mau, longe de mim tal ideia, o trabalho é muito bom, só não consegue chegar ao nível excepcional que apresenta a escrita e o design de jogo. Contudo, esta equipa merece todo o nosso respeito, tanto pelo trabalho brilhante que apresenta como pela forma humilde como o faz, veja-se o texto abaixo que vem dentro da caixa do jogo, inspirador.
Nota de agradecimento da equipa CD Projekt que vem no interior da caixa de W3


Saber mais:
"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa
Videojogos de 2015.

dezembro 06, 2015

"Witcher 3": indústrias criativas e escrita de narrativa interativa

Estou a 2/3 da história principal de “The Witcher 3: Wild Hunt”, mas posso dizer desde que já que estou apaixonado pela sua escrita, não apenas pela profundidade psicológica imprimida à história, mas pelo seu discurso, a forma ou o "como", a história está a ser contada, é impressionante. Jogando Witcher 3 podemos sentir como todo o universo narrativo nos videojogos evoluiu ao longo dos últimos 20 anos, não apenas a sua construção, mas também nas expectativas que temos face a estes. Witcher 3 não está apenas interessado em criar jogo ou interatividade, em criar uma relação sensorial, existe uma vontade enraizada na equipa de criadores de desenvolver algo capaz de tocar o imaginário semântico dos jogadores, de criar nestes, novas formas de ver o mundo, nomeadamente de aprender mais sobre o modo como nos relacionamos enquanto espécie. Witcher 3 pode até partir de um universo de pura fantasia, mas fá-lo com profundas preocupações humanas, e foi por isso que procurei saber mais sobre quem estava por detrás de tudo isto, tendo encontrado na rede uma belíssima entrevista com Jakub Szamałek, um dos escritores principais de Witcher 3, e da qual darei conta nas próximas linhas.



Antes de entrar nas questões relacionadas com o jogo em si, queria dar conta do contexto, que se por um lado parece estranho que um jogo desta dimensão, em termos financeiros (o custo de produção rondou os 75 milhões de dólares), surja num país do leste da Europa, a Polónia, é provável que isso seja aquilo que justifica que tenhamos aqui algo bastante diferente, com um posicionamento que vai buscar inspiração fora de Hollywood, procurando antes beber nos clássicos da literatura europeia.
We show people in Poland that it’s a serious business, that you can produce works of culture that are a hit globally… this is something that up until now has been very difficult, there are a lot of books and films that are written or produced in Eastern Europe but they usually don’t become terribly popular in the west. I think video games are the only medium in which we have been able to produce something that has been appreciated on a global scale. It’s very satisfying.”
Mas se isto é possível a partir da Polónia não é por acaso, e as suas razões devem servir na reflexão da indústria portuguesa de videojogos, não apenas esta, mas de toda a nossa indústria criativa. Porque as razões não passam pelo clima, como ainda há pouco tempo se discutia numa entrevista da GameReactor a José Teixeira que trabalhou nos Efeitos Visuais de Witcher 3, embora possa ter a sua influência, mas assenta essencialmente na formação e cultura da massa cinzenta que suporta estas indústrias. Veja-se o caso do responsável pela escrita do jogo,
“Jakub is a former Oxbridge student with a PhD in ‘Ancient Mediterranean and Near Eastern Studies and Archaeology’. If that doesn’t sound impressive enough, he has authored two (soon to be three I hear) critically acclaimed novels, while also writing for developer CD Projekt Red on a small project called The Witcher 3: Wild Hunt. With all of those credentials under his belt you could suppose that he’d be doing something like lecturing at universities or researching the origins of mankind. The reality is that he predominantly writes for video games — a pretty great profession if you ask me.”
Desta frase ressaltam dois elementos de grande relevância para o caso português: a necessidade de formação; e sua valorização/aceitação. Ou seja, trabalhar nas indústrias criativas em 2015 requer das mais altas competências algumas vez exigidas por alguma indústria, além da investigação científica. Não basta jogar muitos jogos, consumir muito produto criativo, embora ajude, assim como não basta paixão e querer fazer, embora seja fundamental. É necessária toda uma estrutura de base capaz de potenciar, catapultar, tudo o que se consome juntamente com toda a vontade de fazer, para se poder ir verdadeiramente além. Não nos podemos esquecer que estamos competir a um nível global, e não com os nossos vizinhos de bairro.

Temos que nos deixar de frases bacocas como — “Portugal tem licenciados a mais” ou “somos um país de Drs” — fundamentadas apenas no preconceito, sem qualquer suporte empírico, e que apenas servem para nos atirar mais para o fundo no cenário global. Em 2015 já passou tempo suficiente para termos uma democracia amadurecida, para nos deixarmos de tiques salazarentos, e assumir que para enfrentar o mundo em que vivemos, o ponto de partida começa numa simples licenciatura. Que se queremos verdadeiramente enveredar pelo desenvolvimento de indústrias criativas como solução para a nossa falta de matérias primas, teremos de investir na educação, não apenas financeiramente, mas essencialmente em vontade de aprender, de aprofundar o real, ser capaz de abstrair mais e mais camadas da sua estrutura constituinte.

Dito isto, que me parece relevante, e não é novo para quem segue este blog, tenho vindo a falar disto com outros exemplos, como a clássica Escandinávia ou a Coreia do Sul e as suas indústrias electrónica e automóvel (2011, 2013, 2013) ou até no caso por exemplo da artista nacional Capicua. A Polónia é apenas mais um exemplo, é verdade que é um país muito maior que o nosso, podíamos alegar fatores de escala, mas estaríamos apenas a iludir-nos, já que no caso da indústria de videojogos, a escala nunca pôde depender do país de origem. Verdade que um país maior gera maior fricção criativa, mas cabe-nos a nós encontrar a melhor forma de potenciar essa fricção, por exemplo tendo menos grandes cidades, concentrando mais os esforços nas que temos.

E agora o sumo da entrevista da Forerunner a Jakub Szamałek. Podem ver o vídeo realizado ou ler desde já os pontos que me pareceram mais relevantes na conversa, com algumas considerações sobre as mesmas.

Entrevista com Jakub Szamałek, escritor principal de Witcher 3


Sobre a complexidade da escrita
A escrita nos jogos é completamente diferente da escrita para um livro, desde logo por duas razões: a repetição e a avaliação. Ou seja, os personagens podem interagir repetidamente com o jogador, gerando repetição de um diálogo ou monólogo que pode perder todo o seu efeito dramático, enquanto num “book you don’t have to worry about how to make a repetitive conversation interesting”. Por outro lado, como o texto segue em estruturas em árvore, é necessário testar todos os caminhos possíveis e analisar se os seus elementos constituintes continuam a fazer sentido depois das múltiplas interações permitidas.

Sobre a agência e criação de personagens credíveis em Witcher 3
Os personagens com quem interagimos, não são adereços do mundo de jogo, todos eles possuem os seus objetivos e motivações intrínsecas, o que faz com que se tornem sujeitos, vão além da caracterização gráfica. O objetivo, como descreve Jakub passa por eliminar aquela sensação estranha que temos muitas vezes nos jogos, de que os personagens estão ali apenas para debitar informação, de forma a realizar a progressão da narrativa.

Acaba sendo desta vontade dos criadores que emana uma outra característica menos positiva, que por vezes surge mais acentuada: a constante necessidade de dar algo em troca de algo. Ou seja, sempre que vamos falar com alguém que pode ter algo que nos interessa, já sabemos que vamos ter de proceder a uma troca de favores, o que se torna em si repetitivo do ponto de vista da interação e escrita. Contudo, nem sempre é visível este efeito, já que o guião não se limita a este ciclo de interação com o jogador. Ou seja, existe desde logo uma preocupação de desenhar as trocas por via de verdadeiras necessidades e preocupações dos personagens, mas o que garante a envolvência assenta no modo como os personagens tomam conta da relação connosco e procuram, em diversos ciclos interativos, ganhar a nossa confiança e obter de nós o que não estávamos inicialmente preparados para dar. No fundo temos uma escrita profundamente entrosada graças ao desenho de ciclos de conversação, dotados de acessos participativos ou de interação pelo jogador, em que as nossas escolhas no diálogo e ações vão influenciando os personagens e a sua relação connosco, servindo assim um aprofundamento da nossa relação com estes, e por sua vez com todo o universo de jogo. Falamos essencialmente de agência, da consequencialidade da nossa presença naquele mundo.
“It’s very gratifying to see how people get invested in the game, the other day I saw I giant thread on Reddit about a quest that I wrote and people were discussing what they did and why they did it… something that I think is unique to video games is that people identify more strongly with characters because they assume the role of that character while they are playing. The decisions that you face in a game touch you more profoundly than choices you read about in a book for instance; in a video game it’s more personal to you.”
O mais interessante que Jakub nos diz sobre tudo isto é o quão barato é na verdade construir todo este sentimento de agência, tudo aquilo que os jogadores verdadeiramente procuram extrair de um jogo está ao alcance de uma simples caneta e papel. Basta saber ativar a imaginação dos jogadores,  o que claramente requer, como diz Jakub, “competência na escrita”, e que se pode ver em abundância em Witcher 3, mas que ainda se vai vendo pouco no mundo dos videojogos, o que facilmente se percebe, já que uma grande parte das pessoas que está na indústria domina muito pouco a componente da escrita. Aliás basta recordar os tempos áureos dos videojogos, que o entrevistador aqui relembra, com Carmack a lançar uma das mais ridículas frases de sempre do meio, mas que tanto sentido fazia e continuou a fazer durante muitos anos depois: “Story in a game is like story in a porn movie. It’s expected to be there, but it’s not that important”. Como tudo mudou, e em tão pouco tempo.



Sobre a não-linearidade e multilinearidade
Desde logo Witcher 3 apresenta um problema que poucos outros videojogos ou projetos de narrativa interativa apresentaram até agora, uma gigantesca dimensão de estrutura de eventos, algo provavelmente apenas comparável com as séries de televisão e telenovelas. A estrutura central, a chamada “main quest”, é enorme, mas as “secondary quests”, que se revelam aqui ao contrário da grande maioria dos outros jogos, partes integrantes da narrativa central, ao serem dotadas de consequencialidade bidireccional, tornam todo o jogo insanamente gigante. Como diz Jakub, o desenho dos diálogos acaba por dar origem a “massive flowcharts e branching trees”, o que eleva a complexidade do que está a ser feito em Witcher 3 a um patamar que vai muito além da mera boa escrita, sim tem de ser boa, mas tem de existir todo um trabalho de lógica e racionalidade na gestão do sistema que dá estrutura a tudo o que vemos no ecrã. Ou seja, não se trata de um simples trabalho imaginativo, tudo isto assume uma complexidade de abstracionamento que exige dos criadores elevadas competências.

Não deixa de me impressionar a quantidade de personagens e diálogos que se podem encontrar ao longo do mundo de jogo fora da narrativa principal, mas que se interligam perfeitamente com esta, mais ainda quando percebemos que por não serem centrais, serão acedidos por uma minoria de jogadores, e no entanto não deixam de apresentar um enorme cuidado no seu desenho.



Sobre a história e tema
Como disse na abertura deste texto, e apesar da entrevista com Jakub versar mais sobre o discurso e forma, Witcher 3 não deixa de nos impressionar profundamente em termos de história, nomeadamente nos vários temas chamados à discussão, mais ainda quando sabemos que o território de Witcher 3 não deveria ir além da fantasia. Assim temos que Witcher 3 é muito mais do que bruxos e monstros, poções e alquimias, aliás arrisco mesmo a dizer que a contrário da restante fantasia, tudo isso é aqui apenas decorativo. O cerne de Witcher 3 acaba por emergir das pequenas histórias profundamente humanas que vamos desvelando ao longo da nossa viagem pelo seu território fantástico. Ainda tenho de finalizar o jogo para chegar à sua essência, assim espero, mas encontrar e interagir ao longo destes 2/3 com — personagens vítimas de violência doméstica, famílias destroçadas pelos efeitos da guerra, abusos de poder, suicídios por amor, fanatismos religiosos, abortos espontâneos ou discriminação por homosexualidade — tudo tratado com imenso cuidado, detalhe e enorme credibilidade narrativa é para além de inovador, profundamente inspirador no alimentar do sonho de tudo aquilo que este meio ainda tem para nos oferecer.


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Videojogo do Ano [AAA:2015] - "The Witcher 3: Wild Hunt",  VI, 2015

dezembro 05, 2015

Os metavideojogos

Mais um trabalho brilhante de William Pugh, co-criador de “The Stanley Parable” (2013) (sobre o qual teci algumas reflexões para a Eurogamer). Ainda não tive oportunidade de jogar “The Beginner’s Guide” (2015) do segundo co-criador de “The Stanley Parable”, Davey Wreden, mas se for pelo menos tão bom como este, quer dizer que os videojogos estão de parabéns pela maturidade que conseguiram atingir, que tão bem se espelha na criatividade por detrás de toda esta metacomunicação.




O título, Dr. Langeskov, The Tiger and The Terribly Cursed Emerald: A Whirlwind Heist é uma clara homenagem a “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (1964) de Kubrick, procurando de certo modo emular a satirização de um momento de tensão, não com a relevância do lançamento de uma guerra nuclear, mas não menos emocionante para todos aqueles que jogam e criam videojogos.

A jogabilidade está reduzida à típica “walking simulation” envolvida, mais uma vez, por uma voz em off que “dialoga” connosco, recorrendo a um texto belissimamente bem escrito, capaz de criar uma das experiências mais cómicas dos videojogos.

Não avançarei muito mais, correndo o risco de revelar em excesso, o jogo tem apenas 20 minutos, mas é gratuito, podendo ser jogado o Steam.

novembro 29, 2015

Impressionismo animado

Com um atraso indesculpável de mais de um ano, por vir de um dos estúdios que mais respeito no mundo da animação, vi hoje "Song of the Sea" (2014), e o deslumbre esteve ao mesmo nível do que senti quando vi "The Secret of Kells" (2009). O estúdio irlandês Cartoon Saloon não precisa de fazer mais nada no cinema, estas suas duas obras são suficientes para que a sua identidade e legado fiquem acesos por muitos e muitos anos na arte. Não me alongarei muito, já que a impressão criada é intensa, mas pode apenas ser dada a compreender vendo, de modo que deixarei mais imagens do que palavras.












Existem várias particularidades nestas obras da Cartoon Saloon, desde logo o seu conteúdo imbuído de mitologias celtas, ao qual se junta o facto de ambas as obras procurarem distanciar-se do mainstream, criando um universo visual muito próprio, seja pela fuga às regras da perspectiva, seja pelo forte contraste entre o geométrico e orgânico, seja pelo imenso detalhe tanto no traço como na palete de cores. A Saloon desenvolveu toda uma lógica estética que poderíamos facilmente catalogar de impressionismo animado.

novembro 28, 2015

Microinterações

Vivamente recomendado para todos os que desenvolvem IxD ou UX. Dan Saffer é um dos mais interessantes autores da área, sendo capaz de fazer todo um trabalho de tradução e síntese das práticas de interação em linguagem acessível, concreta e de aplicada. Para quem se interesse por iniciar a área costumo recomendar o seu primeiro livro “Designing for Interaction”, este é dirigido a quem já está no mundo da interação, e procura formas de aprofundar o trabalho que faz, assim como compreender aquilo que faz. Este novo livro de Saffer está dentro das dimensões a que nos habitou, sensivelmente 200 páginas e de leitura leve, lendo-se muito rapidamente, mas mais importante que isso, assimilando-se a base conceptual e sua aplicação.


Microinteractions” fala-nos de interação, mas não qualquer tipo, como o nome indica fala das interações mais pequenas, quase reduzidas a um único ciclo - ligar/desligar - tais como ligar um alarme, realizar o login num sistema, regular um termostato, ou realizar uma pesquisa num motor de busca. Falamos de um tipo de ação que pela sua natureza se poderia qualificar mais de reativa do que interativa. Ainda assim, e tendo em conta o enfoque em plataformas computacionais, e ainda o peso que normalmente todo o contexto assume, estas ações não se podem categorizar como meramente reativas. Ou seja, ter uma caixa de pesquisa que tenta adivinhar o que estou à procura à medida que vou escrevendo, ou um alarme que decide se toca ou não quando silencio os sons do telemóvel, implica muitos mais ciclos de informação, do que a mera ação à superfície parece indiciar.



Saffer resume as microinterações a uma base constituída por 4 componentes:  trigger, regras, feedback e loops:

Trigger: Falamos do despoletador da interação, que pode ser um mero botão, simples e direto, a algo mais complexo, menos intuitivo, como uma caixa de inserção de texto ou uma barra de arrastar. Este elemento é em essência a base da affordance da micointeração, aquilo não só que permite iniciar, mas antes de mais aquilo que convida, e incita mesmo à interação.

Regras: Aqui entramos no território da regulação dos efeitos da nossa ação. O que se pressupõe que aconteça, e como é que isso acontece (em que ordem, durante quanto tempo, etc.).

Feedback: A garantia da efetividade das nossas ações, e a forma de garantir ao interator uma compreensão completa do desenrolar das regras da interação.

Loops & Modos: Este elemento poderia perfeitamente estar enquadrado no âmbito das regras, contudo acredito que Saffer opta por o destacar por forma a enfatizar a particularidade do funcionamento da microinteração, que apesar da sua ação focada, se pode ampliar por via da sua componente cíclica. Um exemplo pode ser visto no modo como um simples sensor repete, em loop, a detecção de movimento, tentando perceber se deve manter uma luz acesa ou não.

Se estes 4 componentes são centrais na proposta de Saffer, não deixa de ser interessante um segundo grupo de regras que este vai propondo e repetindo ao longo do livro, sobre o modo como devemos mudar a nossa aproximação ao desenho da microinteração, a que podem desde já aceder através da leitura do poster de referência rápida, mas que aproveito para aqui listar e explicar:

Bring data forward: um princípio que procura garantir que o nosso trigger é capaz de nos incentivar a agir, mas que é também capaz de garantir feedback do estado inicial, durante e final, se possível. Ou seja, uma capacidade de dar conta do estado interno da microinteração. Exemplo: pode ser visto nas barras de loading por vezes incluídas em ícones, que nos permitem saber a posição temporal de uma música que está a tocar, ou perceber a posição em percentagem de um download que estou a realizar num browser.

Don’t start from zero: Este princípio é muitas vezes repetido por Saffer, já que ele enquadra todo o design de interação, contudo neste caso específico ele refere-se à necessidade de pensar a interação, e conceber o seu contexto, procurando desta forma antecipar as necessidades do utilizador, tanto as internas da microinteração, como as que podem surgir após o término da mesma. Exemplo: quando preciso de teclar o e-mail num form no meu smartphone, o sistema de teclado quando chamado, e prevendo a necessidade do símbolo @, pode apresentá-lo desde logo no teclado principal.

Long loops: Este princípio está intimamente ligado ao componente loops assim como ao princípio “don’t start from zero”, e assim o que se procura é, garantir que a interação possa antever as próximas interações, e nesse sentido evoluir o seu funcionamento em função de acções anteriores. Exemplo: se eu nunca uso a função snooze no meu alarme, então ao fim de um determinado número vezes de interações, o sistema pode simplesmente desligar essa opção, não me incomodando depois de eu já estar acordado.

Use the overlooked: No último princípio fica a recomendação do design gráfico e sua preocupação cognitiva, no sentido de facilitar o processo aos interatores, e que passa por evitar adicionar novas componentes visuais ou sonoras para garantir o feedback. O exemplo mais comum na computação está sempre na nossa frente na forma de cursor, que como sabemos vai alterando a sua expressão visual, em função da posição que ocupa no ecrã e o que está por baixo (um botão, um campo de texto, o computador a processar, etc.).


Como disse no início, e se pode ver por estes componentes e princípios que resumem, de forma genérica o livro, a obra de Saffer é bastante direta e aplicada, servindo imensamente todos aqueles que trabalham na área.

O espírito natalício animado

Belíssima animação criada para o anúncio anual da lotaria espanhola de fim de ano, "El Gordo". A curta foi conceptualizada pela agência Leo Burnett (Espanha), produzida pela Blur (Espanha) e Passion Pictures (UK) e executada pela Milford (Suécia). Apesar de toda a polémica despoletada pela comunidade de animação espanhola, pelo não recurso a uma companhia espanhola, e em sua vez sueca, quero dizer que o traço de trabalho que aqui vemos sofre de uma clara influência da Passion, a "Pixar da publicidade".




"Justino" encarna todo o espírito natalício de uma forma bastante simples, sem maneirismos nem piruetas muito piegas, por via da personagem principal que nos conduz e faz sentir, sempre nos limites do humor e solidário. A modelação e animação são sólidas, sem grande exibicionismo, servem-nos um universo paralelo credível mas adorável. O making of não dá muita informação sobre a construção técnica, mas contribui para o conhecimento mais claro do modo como foi concebido o conceito pela agência.

Concordo com a comunidade de animação espanhola, que a execução deveria ter sido realizada em Espanha, já que isto é algo que também vemos acontecer muito em Portugal. Somos países de parcas oportunidades para este tipo de projectos, e por isso acaba por ser muito triste ver projectos desta envergadura, e ainda por cima com dinheiro público, voarem para outros países, sem que para isso se apresentem claras mais valias. Até porque não vejo os grupos suecos, como por exemplo a IKEA a tentar promover outras culturas que não sejam as do próprio país.



A música que serve de banda sonora é, "Nuvole bianche" de Ludovico Einaudi, retirada do álbum Una Mattina (2007). Einaudi vai estar em Portugal em Abril 2016.

novembro 23, 2015

O sonho dos videojogos

Tom Bissell tem escrito sobre videojogos para publicações como Slate, The New Republic, The New York Times Book Reviews, em 2010 após recuperar de um período de três anos em que viveu dependente de drogas e videojogos resolveu escrever um livro e expor a sua dependência, mas sem contudo deixar de separar os videojogos das drogas. Esta componente da sua história surge apenas no último capítulo, o que permite ao livro libertar-se e dedicar-se quase completamente à discussão sobre os videojogos, focando-se sobre alguns dos mais representativos exemplos da última década - Fallout 3, Mass Effect, Far Cry II, Braid, LittleBigPlanet, GTA IV, Fable II, etc.


O livro é escrito num tom jornalístico e por isso não esperava aprofundamentos tanto no campo tecnológico, como design ou estético. Bissell desenvolve um conjunto de pequenas histórias bem contadas à volta da sua experiência com cada um destes videojogos, que nos vão permitir ganhar uma noção daquilo que tratam e como tratam estes jogos. São textos que refletem experiências, sentimentos e reflexões, à volta do tempo de contacto com cada uma das obras, que permitem a quem nunca jogou aceder ao limiar da compreensão do que envolvem. Por outro lado para quem os jogou, funcionam como uma espécie de relato pejado de alguma nostalgia, de “vidas” vividas, as tais “vidas extra” que nos permitem por vezes refletir sobre o poder real destes videojogos sobre nós.

Como disse a reflexão não é profunda, contudo podemos encontrar muitos momentos relevantes para quem estuda o meio, nomeadamente no belíssimo conjunto de entrevistas realizadas com os criadores de cada um destes jogos, uma das quais surge no final do livro com um dos mais amados, assim como odiado, o designer Peter Molyneux. Habituados às suas grandiloquências e megalomanias, não pude no entanto deixar de me emocionar e deixar levar no fluxo das suas palavras que ditam o propósito de quem trabalha nesta área, indústria ou academia, definindo-se num parágrafo o porquê de todo o sucesso desta área cultural a nível mundial (ler abaixo).

A ideia do videojogo querer chegar a ser real, não se joga apenas nos gráficos, mas em tudo, desde logo na inteligência artificial, na capacidade para recriar no interior de máquinas, cópias exactas de nós mesmos. Este é o desígnio da arte de representação desde sempre, e cada arte tem usado o seu melhor para daí se aproximar, veremos onde chegarão os videojogos, porque tudo se motiva por sonhos, são eles que mantêm vivas a discussão e a criação, fazendo dos videojogos uma das indústrias mais relevantes da atualidade.

Peter Molyneux
“If I were to draw on the wall what a computer-game character was just twenty years ago it would be made up of sixteen-by-sixteen dots, and that’s it. We’ve gone from that to daring to suggest we can represent the human face.
And pretty much everything we’ve done, we’ve invented. There wasn’t this technology pool that we pulled it out of. Ten, fifteen years ago, you couldn’t walk into a bookshop and learn how to do it. There weren’t any books on this stuff. They did not exist.
Painting the ceiling of the Sistine Chapel? No. We had to invent architecture first. We had to quarry the stones. We had to invent the paint. That really is amazing. Think of word processors and spreadsheets and operating systems—they’re all kind of the same as they were fifteen years ago. There is not another form of technology on this planet that has kept up with games.
The game industry marches on in the way it does because it has this dream that, one day, it’s going to be real. We’re going to have real life. We’re going to have real characters. We’re going to have real drama. We’re going to change the world and entertain in a way that nothing else ever has before.”

Peter Molyneux em excerto de “Extra Lives” (2010) de Tom Bissell

novembro 21, 2015

Storytelling visto por quem escreve videojogos

A VentureBeat conseguiu uma entrevista longa e exclusiva à volta do storytelling nos videojogos com duas das mais importantes figuras femininas dos videojogos da atualidade, Amy Hennig responsável pelos três primeiros jogos da série Uncharted, incluindo os guiões, e Jade Raymond produtora dos dois primeiros "Assassin’s Creed" e "Watch Dogs". A entrevista não traz nada de muito novo, mas é sempre bom perceber que existe sintonia entre a indústria e a academia.

Amy Hennig (1965), diretora e guionista 

Jade Raymond (1975), produtora

A entrevista reflete muita da discussão patente na academia relacionada com a Agência, Autoria, Liberdade, Interatividade. Questões como Hennig lança, “in the literal sense, is there a story if there’s no author?”, são centrais nas nossas preocupações no que toca ao desenvolvimento da narrativa num meio que tem permitido evoluir uma estrutura que estava de algum modo estagnada nos restantes meios. Claro que apesar de a história ser central no puxar da carroça emocional do jogador, tudo isto só faz sentido, como diz Henning quando um videojogo nos faz “sentir algo através das mecânicas”.

Apesar desta insistência na narrativa, que assumo como minha obsessão nos videojogos, temos de ser mais abertos, e condescender que nem tudo pode ou deve ser feito da mesma forma. Raymond diz a determinado momento algo próprio do senso comum, mas que muitas vezes esquecemos,
“Different players are looking for a different amount of authorship and a different amount of agency. We’re trying to find how to push and redefine that type of narrative-driven experience. We’re looking for more player agency and different types of interaction.” Raymond
Reforçado por Hennig de novo quando o entrevistador fala da sua dificuldade em lidar com a complexidade dos mundos de jogo abertos,  “It’s like what we said – different tastes for different players. Not everybody likes the same movies. Not everybody is going to like the same type of game.

Nos últimos anos tenho dado comigo a gostar mais e mais de mundos de jogo abertos que multiplicam as possibilidades de acesso narrativo, que no fundo ampliam a minha agência sobre o mundo e história, mas compreendo que é algo bastante complexo e exigente para o jogador, embora admitamos que se usarmos bem as ferramentas disponibilizadas pelos HUDs facilmente nos conseguimos orientar. Claro que gosto de mundos abertos, mas porque sou ajudado pelos designers, discordo totalmente da ideia de jogar num mundo aberto sem qualquer sistema de referência como ainda na semana passada defendia Mark Brown no seu Game Maker's Toolkit.

Game Maker's Toolkit "Following the Little Dotted Line" (2015) de Mark Brown

Tudo isto se reflete no modo como Hennig, alguém com enorme experiência em termos de direção e escrita para videojogos, define a abordagem do storytelling aos videojogos:
“there’s no right way to do it. The right way is what works for your audience, and that’s all kinds of things. There are games that have linear stories, games that have branching stories, games that have minimal story – you’re inferring the story as you play. But they’re all effective (..) Our challenge as game designers is not so much to be dogmatic about the right or wrong way to tell stories." Hennig
Tenho mais dificuldade em seguir Hennig quando se escuda na interpretação como forma de interatividade.
“One form of interactivity is interpretation. I find poems and lyrics more interactive than a non-fiction book, because I’m actively engaged in interpreting that experience through the collision of metaphor and information. Games are like that.” Hennig
Bem sei que assim é do ponto de vista cognitivo, mas isso em nada se diferencia de qualquer outro meio narrativo, e acaba mesmo por chocar com o que ela defende logo a seguir que deve surgir como central no desempenho de um videojogo
“Our goal as game-makers, always, is to make sure we enable as much player agency and choice as possible within the space that makes sense in the game.“ Hennig
Claro que temos o reverso da medalha, e que ela bem expõe naquilo que se supõe ser uma história,
“story implied authorship. It implies intent and structure. A well-told story generally doesn’t meander. It has very specific landmarks and beats and upturns and downturns and obstacles and reversals. It has a resolution that you want to feel both surprising and inevitable. That’s story." Hennig
No fundo, andamos nesta batalha há décadas, e estamos longe de ter encontrado uma solução, como acaba dizendo Raymond
“I don’t think anyone has found the secret recipe, though. Like you said, some games are striving for 100 percent player agency, and you end up getting lost or missing the story entirely or off on random quests to fetch things. On the opposite end of the spectrum, you feel like you have no agency. You’re just doing quick time events, pressing buttons. Neither of those is the answer. But I think there’s a sweet spot, and that’s what excites me personally. We have to find out what the perfect interactive game can be.” Raymond
Noutra parte da entrevista a discussão aborda uma complexidade que para nós académicos, menos habituados a lidar com as complexidades da produção de um artefacto, menos ainda destas dimensões, tendemos a esquecer, as cutscenes. Vistas de fora parecem ser tapa-buracos, estratégias estudadas para desculpar a inabilidade e fazer progredir o jogo narrativamente, quando no fundo os criadores gostam menos delas que nós, como já ontem lia no livro “Extra Lives” (2010), Clint Hocking (diretor criativo de "Far Cry 2" e "Splinter Cell: Chaos Theory") dizer a Tom Bissel:

Clint Hocking, diretor e guionista
"I despise cut scenes, we have a mandate, actually, not to use cut scenes. It's not necessarily engraved in stone, but most of us believe we need to try to tell a story in an interactive way (..) The constraints that they bring are significant. Once a cut scene is built and in the game, you can't change it. You're done. A lot of my work on the original Splinter Cell was building cut scenes, which is a massive waste of time. They were taking my time away from making the game more fun.” Hocking 
Algo que surge aqui quando Raymond e Hennig procuram dar resposta a essa inabilidade de dar conta da progressão e consequências no jogo
Raymond: "But I feel like the link should be —If, for example, you’re writing 2000 lines of dialogue for your story anyway, wouldn’t it be easier to just say, “I have these five bits I’m tracking. How many civilians have you killed?” And just reflect that somehow in the story, so that when you encounter someone, they comment, “Okay, you must be a real badass now, because you’ve been driving like an asshole."
Hennig: "But if you have a game that has cinematics, now you have to maintain all these branches."
No final fica a interessante reflexão de Raymond sobre a que objetivamos com os videojogos, que no fundo não é diferente do que fazemos com o cinema e literatura, embora aqui talvez possamos ver isto de modo ainda mais objetivo, discreto e concreto:
“When I think about games — You go to school and you take tests. You get it back and you got a 90. Great, good job, you’re a smart kid, pat on the back. After you finish school you go out in the real world. You get evaluations at your job, but it’s all in this soft style. Who knows? It’s not like I got the math questions right. I don’t really know how well I’m doing. Your life is missing that sense of clear accomplishment and doing well. Promotions are so vague.
What I love about games is that a lot of these systems are trying to boil down the rules we deal with in real life into something simple. You can have the sense of clear satisfaction that you don’t necessarily get in real life after you finish school.”
Raymond

Isto é central, os mundos narrativos decorram no meio que decorram têm como missão central dar sentido à nossa vida, e fazem-no simplificando a sua complexidade, a sua variabilidade, e a sua infinitude.

novembro 17, 2015

No interior de uma mente autista

A brasileira Lobo criou mais um anúncio social brilhante para a ONG Autism Speaks. Recorrendo a uma mescla muito interessante de materiais ("mixed-media"), foi criada uma animação que consegue dar conta do mundo interior vivido por uma criança com autismo, de forma muito explícita e direta.




Se o resultado final é brilhante, todo o processo de design para chegar até ali não é menos, já que apesar de falarmos de um trabalho de foro artístico, ele é profundamente baseado numa lógica centrada no utilizador. No pequeno making of percebemos como decorreu o processo e a partir de onde surgiram as ideias centrais para o desenho daquilo que podemos ver ao longo do curto minuto de duração, algo que o próprio realizador confirma em entrevista ao Motiongrapher.

Toda a informação recolhida foi depois trabalhada em termos visuais e materiais, sobre os quais se desenhou então uma pequena história que desse coerência ao interior do mundo da criança, e conseguisse num breve minuto conferir uma experiência completa (com princípio, meio e fim) aos espectador, como se pode ver na imagem abaixo.

Design do fluxo emocional do anúncio [fonte]

Todos os cenários são reais, fabricados em estúdio, apenas os personagens foram criados em 3D por razões de tempo. Existe uma clara tentativa de misturar diferentes materiais, procurando assim dar vida à diversidade intrínseca da mente de cada um de nós. Neste minuto estiveram envolvidas 50 pessoas ao longo de 2 meses.

"Autism Speaks" (2015) da Lobo

novembro 15, 2015

“Everybody’s Gone to the Rapture”

De novo se levantam questões sobre as fronteiras entre jogo, simulação e narrativa. Tenho sempre defendido este tipo de jogos, que agora se vão denominando de “walking simulations” - “Dear Esther”, “Gone Home”, ou o mais recente “The Vanishing of Ethan Carter” - mas desta vez ao iniciar a escrita dei comigo a construir uma nova taxonomia de análise dos videojogos... O trabalho avançou mas perdi-me na imensidade de possibilidades, e por isso resolvi parar e deixar para um próximo texto, aqui vou apenas concentrar-me em "...Rapture", e deixar as considerações sobre jogo ou não-jogo para outra altura.




Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) é um espaço-história que podemos explorar na primeira-pessoa. O espaço situa-se numa pequena aldeia britânica, nos anos 1980, abandonada à pressa a julgar pelo estado da cidade. À medida que avançamos na exploração vamos encontrando espaços em que luzes dão vida a encenações de grupos de pessoas que conversam entre si, como se estivéssemos a assistir a uma cena passada há não muito tempo. A aldeia é relativamente extensa, dada a reduzida velocidade a que nos deslocamos, mas para nos ajudar na escolha da ordem das casas e locais a visitar, existe uma luz forte que deambula por toda a aldeia que parece querer servir-nos de guia. Podemos encontrar mais diálogos ou monólogos em rádios e telefones perdidos, assim como em certos momentos temos de ativar umas luzes mais fortes que surgem e que nos abrem para mais uma cena de personagens de luz, mais extensa, ou pelo menos narrativamente mais significativa e que nos permite progredir na compreensão do que se terá passado ali.

O cerne de “Everybody’s Gone to the Rapture” é a narrativa, que se desenrola por meio de um enredo duplo, por um lado a descoberta do que terá acontecido na aldeia, por outro as vidas e relações entre os habitantes dessa aldeia. Ou seja, ao longo da progressão na experiência vamos descobrindo o que terá acontecido recentemente ali, assim como vamos ganhando conhecimento sobre as personagens que ali habitavam. No final, os dois enredos enlaçam-se para dar um sentido uno a toda a experiência, despoletando toda uma enorme recompensa pelo investimento realizado na compreensão do universo. Esta técnica do duplo enredo é bem conhecida do cinema, e serve por um lado para manter o espectador mais atento já que temos duas linhas de eventos a surgir em simultâneo, e por outro lado, quando o sentido se fecha na união de ambas as linhas de progressão, o espetador sente uma recompensa maior por dar sentido ao todo. Neste caso, posso apenas dizer que tal acontece, mas não posso entrar no detalhe correndo o risco de destruir essa possibilidade.

Pouco depois de estar em “…Rapture” torna-se inevitável recordar o início de “Village of the Damned” (1960), mas aqui a simulação é ainda mais forte na construção do sentimento de abandono do espaço, a falta de vida sente-se, com a nossa navegação em primeira-pessoa a funcionar na enfatização de todo esse abandono. Em sentido contrário, a performance das personagens que vamos encontrando espalhadas pela vila estão cheias de vida, com diálogos que nos chegam quase apenas por meio de voz, já que a linguagem corporal só por vezes nos é mostrada pelas luzes que constituem os corpos, ainda assim dando conta da idade e personalidade de cada um dos seus habitantes, do quão reais todas elas terão sido.

Everybody’s Gone to the Rapture” é um jogo sobre o fim do mundo, mas muito diferente daquilo a que estamos habituados a assistir, aliás esse era o objetivo de Pinchbeck:
“We talked about it, and we said, well, what is the important thing about the end of the world? It’s not about cities being consumed in fire. Take the movie 2012 – the whole of California vanishes and you don’t feel a thing, it’s just ridiculous. The apocalypse is about people, and the connections between them. What’s really touching is parents waiting for their kids to come home - and what they’re worried about is that the buses aren’t running, not that the world is ending. It’s the little moments that get you.” [fonte]
É isso que vemos, ouvimos e sentimos. O cenário escolhido toca-nos pela beleza, infelizmente não tanto como parece tocar os jogadores britânicos, que revelam sentir um enorme impacto nostálgico ao visitar os vários espaços no jogo. Mas a visualização daquele mundo é suportada por brilhantes dramatizações audio, que só poderiam ter sido conseguidas por atores de rádio, que conseguem fazer-nos sentir mesmo sem ver. Se tudo isto trabalha muito bem na construção do conhecimento dos eventos, toda a banda sonora adicionada ao jogo é imensamente poderosa, trabalhando com música coral que enfatiza o sentimento e conduz as sensações que vamos sentindo na progressão do jogo. Posso dizer que existe algum exagero no recurso musical, já que quase tudo é conduzido por este, o que claramente dá conta das fragilidades narrativas do objeto, muito por lhe faltarem personagens que possamos chegar a conhecer e empatizar completamente.

Trailer de “Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) de The Chinese Room

Mas é o no final que tudo se dá, e é poderosamente gratificante, ainda que possamos sentir alguma lógica “new age” em toda a conceptualização da vida e universo, mas a forma como se constrói toda a sequência final é feita de modo gerar arrepios emocionais nos mais sensíveis. Quando tudo começa a fazer sentido dentro de nós, quando as duas linhas de enredo se cruzam e se tornam numa só, quando percebemos o que representa tudo aquilo que experienciámos até ali, dá-se a catarse cognoscente que acompanhada pela banda sonora e imagens finais nos deixa ali colados aos créditos finais, sem vontade de arredar até que o último nome passe...