fevereiro 14, 2014

a arte do retrato

"The Art of Portrait Photography" (2013) é um episódio da série OffBook dedicado à fotografia de retrato. Não sendo nada de novo, está muito interessante pela forma como aborda rapidamente a história do retrato desde a pintura, seguido da apresentação de algumas variantes do retrato, tais como a fotografia narrativa, a exploração das relações do sujeito e espaço, ou ainda da criação de momentos de estranheza. Em termos visuais, os trabalhos apresentados são bastante ricos e belos. Vale a pena investir os sete minutos a ver o filme.




"Humans have been creating likenesses of each other for thousands of years, but with the introduction of photography, a new language developed for capturing the human image. Photography created opportunities for not just for biography and documentation, but also depth, empathy, and experimentation. Many portrait photographers today elevate their work from mere photo to art, communicating ideas and capturing the human subject with dignity, all while exploring the meaning and potential of portraiture."



"We’re drawn to portraits, because they are human beings, and we're human beings."

fevereiro 13, 2014

A condição da amizade numa animação dramática

"Junkyard" (2012) é um trabalho absolutamente impressionante do ponto de vista visual, ao ponto de apetecer parar a cada mudança de plano, para ficar ali a contemplar. Criado por Hisko Hulsing que se envolveu na animação "por mero acaso" enquanto estudava Pintura na Academia de Artes de Roterdão. É inevitável identificar nesta animação o impacto da arte da pintura, que torna o filme um trabalho único do ponto de vista estético. Não é por acaso que ao longo de dois anos foi aceite em mais de 100 festivais e premiado 22 vezes. Respira-se detalhe nesta obra, e a isso não é alheio, de forma alguma, o facto de ter estado em produção mais de 6 anos.




Em termos mais específicos o trabalho não vive apenas da beleza visual, Hisko Hulsing apresenta um enorme savoir-faire técnico no campo do storytelling, sendo capaz de gerir muito bem a informação que vai dando, o suspense que vai criando, por meio de uma narrativa complexa que assenta num conjunto de flashbacks em paralelo com a realidade do presente. Claro que contribui imenso para a gestão do storytelling a forma como é composto cada quadro do filme, já que estes não se limitam a ser belos, eles são profundamente narrativos.
“A man is robbed and stabbed on a metro train. As he lays dying, a friendship from his youth flashes before his eyes.”
Se em termos formais temos excelência, o tema e a história apresentam tanta ou mais excelência. Tratando a temática da amizade, fá-lo de modo a tocar os interstícios da condição humana, e a subjugar assim, o receptor à força desse sentimento. Tudo em menos de 20 minutos.

"Junkyard" (2012) de Hisko Hulsing

[via Short of the Week]

fevereiro 11, 2014

o excedente cognitivo de Shirky

Clay Shirky é professor de media na NYU e reconhecido como um grande defensor das tecnologias sociais baseadas na Internet. As ideias apresentadas em, "Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age" (2011), são a algumas passagens bastante interessantes e relevantes, nomeadamente porque apresentam um discurso optimista contra alguns ataques mais pessimistas relativos ao efeitos destas novas tecnologias. No entanto, o discurso de tão optimista leva Shirky a trabalhar alguns aspectos sociais, que regulam muito das nossas vidas, de um modo por vezes demasiado ligeiro.


De forma sucinta, o excedente cognitivo de que Shriky nos fala, é o tempo que hoje gastamos na internet a interagir, a criar, e a partilhar, em vez de ficar sentados no sofá a ver televisão. O problema com esta abordagem é que esquece que nem sempre as pessoas querem interagir, nem agir, e menos ainda criar. Somos definidos por um conjunto de modos e comportamentos, que se vão alterando ao longo de um dia, semana, ou meses.

Porque quando se trabalhou arduamente ao longo de um dia, no final desse dia resta pouca energia para continuar a empurrar ideias e ações para fora de si! Ou seja, uma coisa que Shirky nunca fala é sobre a economia por detrás de todos esses comportamentos de produção criativa. Todos os exemplos dados por Shirky são servidos por "modelos do grátis", dependendo de pessoas que podem apoiar com o seu tempo livre, suportado noutras fontes de rendimento, a criação e partilha.

Ao mesmo tempo, e apesar da atividade criativa e de partilha nos realizar, não podemos criar sem consumir. Supor que todas as tecnologias de comunicação do futuro obedecerão a paradigmas de comunicação bidirecional, está longe de ser uma realidade palpável. E a questão não é de sermos ou não nativos digitais, a questão é muito mais simples que isso, a interação é um estado distinto da introspecção.

De qualquer forma Shirky acaba por tocar em várias ideias interessantes a propósito da sociedade criativa, e das novas possibilidades abertas pelas comunicação via internet. Ainda assim ideias que precisam de ser lidas com alguma contenção, já que o discurso da democratização do acesso às tecnologias esquece, por demasiadas vezes, que a criação não é feita pela tecnologia mas pelas pessoas. Como dizia Franny Armstrong, uma documentarista britânica citada por Evgeny Morozov,
"Yes, the internet is democratizing in that sense that the cheap equipment is democratizing. But just because a football is cheap and anyone can kick one around, it doesn’t mean that everybody is Ronaldo
Deste modo o que me interessa neste discurso, não é a democratização do acesso, mas a democratização da experiência e o seu potencial feedback imediato. Ou seja, as tecnologias criativas abriram novos caminhos para que qualquer um possa tentar uma ampla gama de atividades criativas e assim descobrir pela experiência, o que mais diretamente fala consigo. Num mundo de muitas escolhas, poder experimentar sem investir muito esforço é importante, porque pode contribuir para conduzir as pessoas a encontrar os seus próprios talentos.

O facto de muitas destas tecnologias estarem em rede, e incentivarem a partilha, abre a possibilidade de obtenção de feedback imediato às criações. Apesar das reacções online poderem nem sempre vir das melhores referências, nem com as melhores intenções, elas poderão contribuir para manter o interesse em continuar a via criativa. A atividade criativa depende fortemente do feedback, que deve ser filtrado em função da sua origem (se é um par com trabalho efectivo na área ou não), porque só este pode ajudar no processo de auto-aprendizagem. O feedback contribui para levar a pessoa a investir e a repetir o exercício de técnicas menos conseguidas, assim como descobrir os caminhos em que melhor se exprime. O feedback é uma das peças da atividade criativa que a rede veio tornar mais acessível.

No final, o assunto aqui discutido não tem apenas uma abordagem ou uma resposta, nem sequer uma posição correta. Aproximar o tema com preconceito é fácil, por isso Shirky acaba afirmando, "Proponents of the new and defenders of the old can’t merely discuss the transition, because each group has systematic biases that make its overall vision untrustworthy". Estamos a viver esta mudança na nossa sociedade agora, dentro de alguns anos, quando olharmos para trás, vamos com certeza rir de muitas das nossas ideias ingénuas, assim como de muitos dos nossos receios.

fevereiro 09, 2014

Ira Glass sobre Storytelling e Criatividade

Ira Glass é um dos mais conceituados apresentadores da rádio americana, um meio no qual trabalha há mais de 30 anos. Ao longo da sua carreira foi agraciado com vários prémios e um doutoramento honoris-causa. A sua capacidade e mestria como contador de histórias é amplamente reconhecida, e é por isso que vale a pena parar para ouvir o que tem a dizer nesta entrevista para Public Radio International, sobre o modo como conta histórias, como as encontra, assim como como se atinge este estado de mestria.




Definição de história nos Media
Na primeira parte da entrevista, Glass fala sobre o que define uma história. Começa por dizer que as histórias nos media são diferentes daquelas que nos habituámos a escrever na escola. Assim Glass define dois blocos de construção para qualquer história a ser contada através dos media,

1 - A anedota, ou pequena história 
É uma sequência de acções, "primeiro aconteceu isto… e depois aconteceu isto… e a seguir aquilo… depois ele fez assim… e chegou àquele sítio…"
"The power of the anecdote is so great...No matter how boring the material is, if it is in story form...there is suspense in it, it feels like something's going to happen. The reason why, is because literally it's a sequence of events...you can feel through its form [that it's] inherently like being on a train that has a destination...and that you're going to find something..."
Esta sequência tem de ser gerida por meio de um ritmo, determinada por uma batida (beats) que são as questões que se vão colocando a cada momento: "Porque aconteceu isto? Porque foi ele para lá? Onde é aquele sitio?"
"The anecdote should raise a question right from the beginning. It's implied that any question you raise, you're going to answer it. The shape of the story is that you are throwing out questions, to keep people watching or listening, and then answering them along the way."
Isto que Ira Glass define como a "anedota", é no fundo aquilo que David Bordwell define como "hipothesizing". Bordwell explica-nos que no cinema estamos continuamente a lançar hipóteses mentais sobre o que vai acontecer a seguir. A nossa curiosidade guia-nos e mantém o nosso interesse desperto. Por isso tendo a definir muitas vezes a arte do storytelling como a arte de gerir expectativas.

2 - Momento de reflexão
A sequência de acções, que nos colocou dentro de um comboio em movimento, tem de nos conduzir a algum lado, tem de nos questionar e surpreender, tem de dizer alguma coisa.
"Why am I wasting time hearing this story... you have the two parts of the structure, you have the anedocte and the moment of reflection... and often you'll have an anedocte that just kills, that is so interesting... but in the end it means absolutely nothing... it doesn’t tell you anything new...
And sometimes we know we have something here, something kind of compelling but it just doesn’t seem to become together... and often it's your job to be kind of ruthless and understand that either you don't have a sequence of actions or you don't have a moment of reflection, and you're going to need both."
Primeira parte da entrevista

Em suma, os dois blocos que Ira Glass considera centrais para a construção de qualquer história, são os mesmo que se consideram centrais desde o início dos estudos da narratologia, a Fabula e o Syuzhet, ou seja o conteúdo e a forma, a história e o discurso. Aquilo que Glass aqui faz diferente, é que lhes dá um tom específico, não fica pelo discurso seco e objectivo do nosso discurso académico. Glass concretiza como deve funcionar o syuzhet e a que deve responder a fábula.


Encontrar uma boa história
Na segunda parte da entrevista Glass fala dos problemas de se encontrarem boas histórias, ou seja boas fabulas para contar. E apesar de parecer um queixume da profissão, acaba por ser imensamente relevante, já que tão poucas vezes se fala da mesma:
“Often the amount of time it takes to find a good story, takes more  time than to produce it.”
Uma frase que vem totalmente de encontro ao que não me canso de repetir, a propósito dos aspectos criativos, da criatividade, e da produção e partilha de conteúdos, que é que nada podemos criar, sem muito antes consumir.
"You’ll have to get rid of a lot of crap before you get to anything special. Because you don’t want to do mediocre work. The only reason you want to do this, is because you want to do something memorable, something special."

A evolução do processo criativo
Na terceira parte Glass vai apresentar um dos pontos altos da entrevista, e que mais tem sido partilhado online a propósito do processo criativo ao longo da vida. Mais uma vez, não é nada de novo, mas sim a forma como é exposto, a sinceridade e autenticidade da apresentação.
"Nobody tells people who are beginners — and I really wish somebody had told this to me — is that all of us who do creative work … we get into it because we have good taste. But it’s like there’s a gap, that for the first couple years that you’re making stuff, what you’re making isn’t so good, OK? It’s not that great. It’s really not that great. It’s trying to be good, it has ambition to be good, but it’s not quite that good. But your taste — the thing that got you into the game — your taste is still killer, and your taste is good enough that you can tell that what you’re making is kind of a disappointment to you, you know what I mean?

A lot of people never get past that phase. A lot of people at that point, they quit. And the thing I would just like say to you with all my heart is that most everybody I know who does interesting creative work, they went through a phase of years where they had really good taste and they could tell what they were making wasn’t as good as they wanted it to be — they knew it fell short, it didn’t have the special thing that we wanted it to have.

And the thing I would say to you is everybody goes through that. And for you to go through it, if you’re going through it right now, if you’re just getting out of that phase — you gotta know it’s totally normal.

And the most important possible thing you can do is do a lot of work — do a huge volume of work. Put yourself on a deadline so that every week, or every month, you know you’re going to finish one story. Because it’s only by actually going through a volume of work that you are actually going to catch up and close that gap. And the work you’re making will be as good as your ambitions. It takes a while, it’s gonna take you a while — it’s normal to take a while. And you just have to fight your way through that, okay?"

"The Gap" (2014) de Daniel Sax, é um pequeno filme que procura dar corpo a este momento da entrevista de Ira Glass. Algo que já tinha sido antes também transposto para visualização tipográfica por David Liu

Glass expressa tudo isto a propósito daqueles que querem criar vídeo, mas serve para qualquer atividade criativa. O que Glass aqui fala é do desenvolvimento da mestria, um processo moroso, o qual ficou conhecido nos últimos anos como as 10 mil horas necessárias para nos tornarmos especialistas. Mas mais uma vez, Glass apresenta isto de uma forma tão vívida, e sentida, que se torna impossível para nós, não nos revermos naquilo que ele diz.

Eu próprio fico a questionar-me, quando há quase 15 anos tomei a decisão de abandonar a realização/edição video, para me dedicar exclusivamente à investigação. Nessa altura, dei-me conta que tudo aquilo que tinha conseguido fazer até ali, estava longe de me satisfazer. Conhecia à minha volta quem fosse capaz de fazer melhor, e na confrontação, não consegui continuar aquele caminho. Talvez tivesse precisado de investir mais tempo, como diz Glass. Por outro lado, não me arrependo. Julgo que tudo passa por decisões que tomamos em certos momentos da nossa vida, e decidimos avançar. Podemos olhar para trás e questionar como teria sido, mas não adianta ficar parado a questionar.

fevereiro 07, 2014

Problemas das teorias de Gottschall sobre o Storytelling

“The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human” (2012) é um livro de Jonathan Gottschall que procura apresentar uma teorização do ato de contar histórias (storytelling) a partir de uma abordagem evolucionária. Gottschall traça a partir da universalidade da presença das histórias na espécie humana, alguns factores que contribuíram, e continuam a contribuir, para a sua centralidade nas nossas vidas. Apesar de ser um bom livro, que traz algumas ideias interessantes e algumas deduções inovadoras, não deixa de apresentar alguns problemas que procurarei aqui discutir.


A minha maior objecção ao livro está na abordagem absolutista seguida por Gottschall na busca por uma única resposta à função primordial das histórias, questionando tudo aquilo que sabemos. Colocando em causa, muitas vezes sem qualquer razão para tal, apenas porque precisa de preparar o caminho para a resposta que tem em mente. Esta problemática acontece essencialmente porque Gottschall não delimita o conceito de história, cometendo um dos maiores erros que se pode cometer numa pretensa análise científica de um objecto/conceito, a ausência de delimitação do objecto. Gottschall trabalha assim ao longo de todo o livro, o conceito de história, como se ele pudesse ser sinónimo de: Ficção, Cognição, Teoria da Mente ou Simulação Mental. Deste modo, a encruzilhada a que chega é pior do que um enredo não-linear, com múltiplos finais.

Para agravar este problema, Gottschall trabalha toda a sua problemática a partir de um único modelo de histórias, o dos contos de fadas, seguido por Hollywood. A razão porque o faz, é porque segundo ele, as alterações a esse modelo de contar histórias, realizadas por Proust ou Joyce na Literatura, e posso acrescentar por exemplo Jarmusch no Cinema, interessará apenas aos “English professors, no one much wants to read them”. Isto é de uma boçalidade, sem sentido. Uma incapacidade de compreender a evolução da formação do gosto. Sim, nascemos desenhados para nos questionar sem parar, sobre “o que vai acontecer a seguir”, a isso chamamos curiosidade. Mas ela é apenas rudimentar à nascença, à medida que crescemos, e consumimos histórias, a nossa percepção e cognição vai-se alterando, porque cada vez mais educada. O mais ridículo, é que a meio do livro Gotschall até define a importância das histórias, embora limite isso à ficção,
“The constant firing of our neurons in response to fictional [sic] stimuli strengthens and refines the neural pathways that lead to skillful navigation of life’s problems. From this point of view, we are attracted to fiction [sic] not because of an evolutionary glitch, but because fiction [sic] is, on the whole, good for us. This is because human life, especially social life, is intensely complicated and the stakes are high. Fiction [sic] allows our brains to practice reacting to the kinds of challenges that are, and always were, most crucial to our success as a species.” (p.124)
É isto que podemos encontrar em Brian Boyd em “On the Origin of Stories: Evolution, Cognition, and Fiction” (2009), as histórias são o brincar virtual, um brincar em potência. Aquilo que nos prepara para a vida adulta, mas continua sempre connosco depois de deixarmos de brincar fisicamente. Mas Gottschall insatisfeito, quis ir mais longe, e determinar que as histórias, são mais do que isto, que
“Story enculturates the youth. It defines the people. It tells us what is laudable and what is contemptible. It subtly and constantly encourages us to be decent instead of decadent” (p.237)
Um argumento sem qualquer sustentação. A história não tem moral, a história é um modo de organização de informação. Se essa informação é moralmente correcta ou incorrecta, não é relevante para a estrutura. Se as histórias tivessem como função essencial humana a moralidade, não existiriam histórias sem moral, nem contra moral, e assim os filmes de Goebbels nunca teriam existido.

Estas ideias acabam por surgir a Gottschall a partir de outras ideias que vai defendendo ao longo do livro, como o facto das histórias servirem de pouco em termos biológicos já que apenas servem de entretenimento e evasão. Ou seja cometendo a gafe de equivaler as histórias a ficção, esquecendo que toda a não-ficção continua a servir-se do modelo de história. Algo que bem se vê no exemplo hipótese que estabelece entre a tribo prática e a tribo contadora de histórias. Ali só cabem as histórias de evasão, esquecendo toda a restante forma de passar conhecimento entre gerações. Esquecendo, que se a nossa espécie progrediu foi apenas porque foi capaz de transmitir e acumular conhecimento de geração para geração, e o modo como essa transmissão aconteceu foi totalmente fundamentado no contar de histórias.

Gottschall enreda-se numa circularidade, na busca pelo fundamento biológico, do qual acaba por não conseguir sair, dizendo a certo ponto mesmo:  “It suggests that the human mind was shaped for story, so that it could be shaped by story”. O que dizer disto? Pela teimosia absolutista de encontrar o fundamento funcional, acaba a defender o acaso evolutivo! O que incomoda, porque o brincar mental, com ideias organizadas em modo história, não é um acaso, foi aquilo que permitiu a esta tribo sobreviver num ambiente hostil, ser selecionada pela natureza, por causa da sua capacidade de verbalizar ideias, e passá-las de geração em geração.

As histórias não surgiram porque sim, nem porque as pessoas queriam um cinema privado na sua mente. Assim como as histórias não são tábuas de mandamentos, que dizem aos seres humanos como se devem comportar. As histórias são bocados de conhecimento, que cada um de nós possui sobre algo que experienciou, e que cada um de nós transmite, de forma mais ou menos abrilhantada, ao próximo, através de uma estrutura que convencionámos apelidar de história. Essa é no fundo a essência da arte, transmitir algo que conhecemos, recontado da realidade ou inventado por nós, ainda que sempre baseado em vestígios de realidade, ao próximo.

No último capítulo Gottschall procura responder ao futuro do storytelling, dizendo que este não desaparecerá, assim como nunca houve tanto como existe hoje, apesar de muitos reclamarem que as pessoas não leem, ou que a poesia desapareceu. O que dizer do sucesso de Harry Potter, ou Game of Thrones, ou Dan Brown, entre muitos outros! Ou das dezenas de séries de TV, dos milhares de novos filmes por ano! Na poesia, como diz Gottschall, o que dizer da canção, do rap! Concordo, só não concordo quando concretiza as suas ideias de futuro.

Gottschall agarra-se aos videojogos, em particular aos MMORPG, e às suas encarnações anteriores, Live Action RPG (LARP), para avançar para um suposto novo mundo de histórias no qual todos contamos a nossa própria história, encarnando personagens, improvisando, e fazendo-de-conta. Aqui mais uma vez mistura coisas distintas, o improviso, o fazer-de-conta, e a ação efetiva. Esquece que as histórias são diferentes do Brincar, e são diferentes do Jogar. Que não são algo menor, que todas estas componentes são necessárias e que até podemos cruzar as mesmas para criar abordagens mais completas e ricas. Mas isso não quer dizer que o futuro será apenas e só esta fusão, uma fusão que no fundo foi aquela que deu origem à tribo que contava histórias.

Para fechar, é um livro interessante, que se lê muito rapidamente, e permite ficar a conhecer alguns conceitos mais alargados sobre a ciência das histórias, mas deve ser lido com alguma parcimónia, já que no que toca a conceitos, existe aqui muita coisa colocada no mesmo prato da balança, que em termos científicos não é aceitável, e pode causar alguma confusão.

fevereiro 06, 2014

Resultados da investigação portuguesa

No seguimento do texto de ontem, sobre a acusação de ausência de resultados da investigação nacional, quero deixar aqui mais uma demonstração dessa falsidade. Uma patente desenvolvida pelo engageLab a partir de um projecto financiado pela FCT, EngageBook: touch, read and play, esteve na base da tecnologia Bridging Book, que agora foi licenciada para uso exclusivo mundial pela Hung Hing Printing (Hong Kong).


Uma patente que demorou mais de um ano a desenvolver, tendo surgido sem um objectivo concreto. Apenas procurávamos criar novas interfaces para o livro em papel. Foi da muita teoria à mistura com a experimentação constante que surgiu o novo objecto. O modo como se gerou foi assim bastante orgânico, a partir do choque de diferentes culturas científicas, e de modelos de trabalho.

Inicialmente alguns de nós fomos até incrédulos quanto ao seu potencial, mas as diferenças culturais que se cruzaram no laboratório permitiram ver caminhos futuros diferentes para o seu uso. O impacto e a excelente recepção que a tecnologia teve online (Gizmodo, Time, Mac Observer, CNET, etc.), contribuiu também para perceber o potencial, que se confirmaria nas primeiras reuniões com grandes editoras internacionais.

Este trabalho é assim fruto do engageLab, um laboratório criado em 2009, pelo Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade e pelo Centro Algoritmi, ambos da Universidade do Minho. Todas as pessoas que aqui trabalham fizeram parte deste projecto, e contribuíram de muitas maneiras para que este se concretizasse. Contudo não posso deixar de frisar que o núcleo foi constituído pela Ana Figueiredo, que implementou boa parte, e defendeu a sua tese de mestrado sobre esta tecnologia, pela Ana Lúcia responsável por toda a ilustração e que fará dos usos da tecnologia o fundamento do seu doutoramento, pelo Pedro Branco que introduziu toda a sua vontade de experimentação e de fazer coisas fora da caixa, em conjunto comigo que procurava novas interfaces na teoria, juntando toda a sabedoria e conhecimento acumulado da Eduarda Coquet.

Bridging Book Technology (2014) by engageLab

Press Release Oficial

fevereiro 05, 2014

Manipulação da democracia, e a praxe da Ciência

Foi hoje revelado pela RTP que “O Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia tem em mãos um documento interno cuja divulgação estará a ser retardada devido ao tom crítico com que se refere às políticas do Governo para a área da ciência e da investigação em Portugal”. [1] Passaram-se 3 semanas depois da reunião do CNCT, e ninguém mais questionou sobre este relatório, crucial para o futuro da Ciência em Portugal. Porquê?


A resposta está à vista, olhe-se para AGENDA dos media durante este período, e facilmente se perceberá, como foi possível tornar um dos assuntos mais relevantes para o futuro nacional, num assunto menor, sem importância. Ora vejamos,

15 Dezembro 2013 - Morrem na Praia do Meco 6 Jovens
26 Dezembro 2013 - Último corpo encontrado.

15 de Janeiro 2014 - Decorre uma missa em honra dos 6 jovens, com toda a normalidade   [2]
15 de Janeiro 2014 - Revelação do desastre ocorrido com as bolsas da FCT [3]
16 de Janeiro 2014 - Revelados os primeiros indícios sobre o Meco (trajes e telemóveis) [4]

18 Janeiro 2014 - Pais dos jovem pressionam sobrevivente [5]
20 Janeiro 2014 - Lusófona abre inquérito [6]
22 Janeiro 2014 - Meco em Segredo de Justiça [7]

23 Janeiro 2014 - Reunião do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia [8]
24 Janeiro 2014 - Revelado que jovens traziam pedras amarradas aos tornozelos. [9]

27 Janeiro 2014 - Secretário de Estado pronuncia-se sobre Praxe e Meco [10]
3 Fevereiro 2014 - Prós e Contras sobre a Praxe [11]

4 Fevereiro 2014 - Passos critica anterior política para a ciência [12]
5 Fevereiro 2014 - Comunicado crítico para o Governo deixa Conselho para a Ciência num impasse [13]

Os bolseiros da FCT foram arrumados na prateleira, e as vozes dos cientistas, mais respeitados internacionalmente, caladas. Um assunto complexo, difícil de explicar à sociedade, e muito incómodo para o governo, é atirado para debaixo do tapete, de forma verdadeiramente magistral.

A 4 de Fevereiro quando se suspeita que a comunicação social poderá vir falar sobre o atraso do relatório, Passos Coelho fala, antecipando o que eles possam dizer, descredibilizando-os totalmente.
“Durante vários anos, conseguimos transferir mais recursos para o sistema e atribuir mais bolsas. No entanto, quando medimos depois o número de patentes que são registadas, o número de artigos científicos que são publicados, quando medimos o resultado e a qualidade desse resultado, nós passávamos de indicadores que pareciam comparar muito bem com os países com que gostamos de nos comparar para comparar muito mal sempre que olhávamos à substância dos indicadores” Passos Coelho a 4.2.2014 [12]
Aquilo que foi ontem dito por Passos Coelho, é FALSO, é MENTIRA. As provas estão na imagem abaixo, criada pela revista Nature e publicada a 19 de Dezembro de 2012 [14]. Ou como se pode ver no último levantamento da Times Higher Education (THE), das 100 Melhores Universidades com menos de 50 anos, em que aparecem destacadas três universidades nacionais [15]. Ou como se pode ver ainda na comparação que realizei entre Portugal e três países europeus, com densidade populacional aproximada.

Mapa das publicações científicas mundiais de todo o ano de 2012, no qual se pode ver Portugal bastante bem representado face aos países da sua dimensão. [14]

THE 100 Under 50 de 2013, com 3 Universidades portuguesas. [15]

Comparação de produção de artigos científicos entre países de dimensão aproximada (1996-2012). Em 15 anos Portugal aumentou 7 vezes a sua produção, enquanto todos os outros três países o fizeram apenas 2 vezes.  [17]


Troca-se a Ciência pelo Meco. O país passa a preocupar-se com a Praxe, algo terrível, que apenas por coincidência brota das Universidades. Tudo isto não é em nada diferente do modo como Passos Coelho foi eleito Primeiro Ministro, já explicado por um dos manipuladores de opinião online, na sua recente tese de mestrado, que deu origem a uma reportagem na Visão, Ascensão e queda de Passos, versão 2.0 [16].

Para todos estes actores nacionais, não interessa verdadeiramente o país, não interessa o futuro de um povo, interessa primeiro o seu futuro, e esse depende apenas e só das aparências. Quanto melhor ficarem na fotografia, ou seja quanto melhor conseguirem manipular os que os rodeiam, mais hipóteses terão de serem contratados por uma grande empresa à saída, ou um cargo de relevo no FMI, na Comissão Europeia, no BCE ou até no Goldman Sachs.

Porque esse é o trabalho de um verdadeiro político, manipular as crenças, não resolver problemas.

[1] RTP Online, 5 Fevereiro 2014
[2] Correio da Manhã, 15 de Janeiro 2014
[3] Público, 15 de Janeiro 2014
[4] DN, 16 de Janeiro 2014
[5] Expresso, 18 Janeiro 2014
[6] Sol, 20 Janeiro 2014
[7] ASJP, 22 Janeiro 2014,
[8] RTP, 23 Janeiro 2014
[9] Público, 24 Janeiro 2014
[10] RR, 27 Janeiro 2014
[11] RTP, 3 Fevereiro 2014
[12] Público, 4 Fevereiro 2014
[13] RTP Online, 5 Fevereiro 2014
[14] Nature, 19 Dezembro 2012
[15] THE, 2013
[16] Visão, 21 Novembro 2013
[17] SJR, 6 Fevereiro 2013

fevereiro 04, 2014

criatividade, participação e experiência

Os últimos shots of awe de Jason Silva, Creativity is Madness (2014) e Transfixed by Beauty (2014), fizeram-me reflectir sobre várias questões que me perseguem há vários anos, nomeadamente a problemática da relação entre a loucura e a arte, assim como as razões que suportam a existência desta, o sentimento de belo e os problemas da criação colaborativa. Para esta segunda questão, prefiro seguir "The Art Intinct" de Dennis Dutton, ainda assim a abordagem de Silva é aqui bastante relevante.


A questão da loucura em Creativity is Madness (2014), é abordada seguindo uma lógica suportada por muitos dos maiores artistas que se apresentaram por meio de personalidades neuróticas, com caráter depressivo e grande excentricidade. De certa forma são essas características que permitem a estes artistas aceder a universos e mundos de ideias distintos que a maior parte de nós não consegue aceder. Sabemos que a criatividade advém de um olhar distinto, do sair da caixa da formatação que nos rodeia, e em certa medida isso é conseguido através deste modo de estar no mundo. No meio dessa abordagem Jason acaba por dizer algo que me deixou ali estático a pensar,
"We pay money, for them [artists] to take us to spaces where we can not go by ourselves." 
Creativity is Madness (2014)

Verdade. Mas isto fez-me questionar, não a propósito da arte ou criatividade em si mesmas, mas antes sobre as suas variantes participativa e colaborativa, tão em voga nestes tempos de internet. Porque se aquilo que buscamos na ficção é verdadeiramente ser surpreendidos pelo criador, é que este nos leve até ao "buraco" encontrado por Alice, e nos faça sentir aí, porque razão haveremos de ser nós a criar esse mundo, no sentido das narrativas interactivas? Porque razão hei-de querer escolher o que faz um personagem, ou escolher um caminho a seguir numa história?

Tudo isto não pode ser alheio ao facto de sempre ter sido muito difícil criar objectos profundamente inovadores em modo colaborativo. A esmagadora maioria das grandes obras de arte, têm apenas um director, podendo ter colectivos que suportam tecnicamente a implementação da visão do artista.

Transfixed Beauty (2014)

Como diz depois Jason em Transfixed Beauty, o que nós queremos e esperamos da arte e do belo, é conseguir parar o tempo, é ser transportado para um espaço não-existente, sem regras nem obrigatoriedades. A evasão para fora do Eu, momentos de pura Transfixação.

Porque a arte não é objecto, é mundo, como diz Roy Ascott,
"Stop thinking about art works as objects, and start thinking about them as triggers for experiences. (Roy Ascott's phrase.) That solves a lot of problems: we don’t have to argue whether photographs are art, or whether performances are art, or whether Carl Andre's bricks or Andrew Serranos's piss or Little Richard’s 'Long Tall Sally' are art, because we say, 'Art is something that happens, a process, not a quality, and all sorts of things can make it happen.' ... [W]hat makes a work of art 'good' for you is not something that is already ‘inside’ it, but something that happens inside you — so the value of the work lies in the degree to which it can help you have the kind of experience that you call art." Brian Eno

fevereiro 02, 2014

Filmes de Janeiro 2014

O mês de Janeiro foi recheado, acabei jogando muito pouco, sobrando para o cinema. Dei uma nota máxima ao último de Jonze, Her, e quase dei também a Prisoners de Villeneuve e Everyday de Winterbottom. 12 Years a Slave é também muito bom, e um forte candidato ao Oscar, ao contrário de Her, mas McQueen já nos deu trabalhos superiores. Pelo caminho algumas desilusões, Jeune et Jolie de Ozon, e o badalado Fruitvale Station de Coogler. Também esperava mais de Frozen, ou talvez não, julgo que a Pixar nos habituou mal, e a Disney do momento não passa de uma máquina de fazer dinheiro, o verdadeiro talento do grupo está todo refugiado no seio da Pixar. Já o remake de Evil Dead, é mesmo para esquecer.

xxxxx Her 2013 Spike Jonze USA [Análise]

xxxx Le Passé 2013 Asghar Farhadi Iran/France

xxxx Prisoners 2013 Denis Villeneuve USA

xxxx 12 Years a Slave 2013 Steve McQueen USA

xxxx Captain Phillips 2013 Paul Greengrass USA

xxxx Everyday 2012 Michael Winterbottom UK

xxxx Le Prénom 2012 Matthieu Delaporte France

xxxx Last Station 2009 Michael Hoffman UK


xxx Frozen 2013 Chris Buck USA

xxx This Is the End 2013 Evan Goldberg, Seth Rogen USA

xxx Gloria 2013 Sebastián Lelio Chile

xxx Hannah Arendt 2012 Margarethe von Trotta Germany

xxx Aguirre The Wrath Of God 1972 Werner Herzog Germany


xx Jeune et Jolie 2013 François Ozon France
xx Fruitvale Station 2013 Ryan Coogler USA
xx The Call 2013 Brad Anderson USA
xx Escape Plan 2013 Mikael Håfström USA
xx Riddick 2013 David Twohy USA

xx Passion 2012 Brian De Palma France
xx Girl Most Likely 2012 Shari Springer Berman USA
xx Mother and Child 2009 Rodrigo García USA

x Evil Dead 2013 Fede Alvarez USA
x Lockout 2012 James Mather, USA


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