julho 09, 2012

montagem como poesia

I need one dollar (2012) é pura poesia na forma de montagem audiovisual. As imagens não significam nada em concreto, nem a sua ligação se preocupa com tal, temos apenas uma cidade como pano de fundo que serve de tema a toda elaboração. Gioacchino Petronicce está totalmente focado na visceralidade das sensações que o seu processo de montagem possa desencadear. Não recorre a qualquer montagem metafórica para o fazer, basta-lhe usar a base técnica, o ritmo, e manipulá-lo no sentido de desenvolver uma estilística capaz de atingir os efeitos estéticos desejados. O autor diz-nos,

These images were shot during a travel in New York City. I wanted to create a video on this city which made me feel of incredible feelings. Upon my arrival I was impressed by the visual and sound variety of this city. Really, sound is everywhere.
So I wanted to create this video as an experiment between sound and image where they progress together. I had to try to make that none of them "eats" the other one.
I envisaged this work to create relations and transitions between images by the movement by playing on various sound, break, restart, etc.

I didn't try to tell a real story, it's just about real... For me, this is a visual and sound creation made to share a personal experiment to the people who looks at it. I hope that the effect will work.

Por isso mesmo é que não posso dizer que temos uma montagem de excelência e um design de som de grande qualidade, aqui sou obrigado a chamar montagem ao todo, som+imagem. O que está aqui em causa é todo um trabalho de edição visual e sonora, ou seja no sentido mais clássico da designação de audiovisual. Por isso vejam o filme como bom som.

I need one dollar (2012) de Gioacchino Petronicce

julho 08, 2012

Filmes de Junho 2012

Mais um mês, mais um lote de filmes mas com pouca surpresas. Indie Games, apesar de ter sido muito criticado é um excelente trabalho, inspirador para todos os que desejam entrar na área. Chronicles acaba por ser mais um filme sobre filmes perdidos, mas com um enredo muito bem escrito. Depois nos filmes menos surpreendentes, Iron Sky revela-se diferente, interessante mas não o suficiente para se destacar. Eagle é também uma espécie de road movie através da antiga Irlanda em tempos de Roma, não fossem alguns exageros e talvez tivesse conseguido subir de patamar. Uma desilusão foi Alex de la Iglesia, a ideia era boa, mas fico com a ideia que a meio do filme se perdeu sem saber para onde queria ir.

xxxx Indie Games: The Movie 2012 Lisanne Pajot, James Swirsky EUA

xxxx Chronicle 2012 Josh Trank EUA

xxx Iron Sky 2012 Timo Vuorensola Finlândia

xxx The Eagle 2011 Kevin Macdonald UK

xxx Sherlock Holmes - A Game Of Shadows 2011 Guy Ritchie EUA

xxx L'Ordre et la Morale 2011 Mathieu Kassovitz França

xxx J. Edgar 2011 Clint Eastwood EUA

xxx Safe House 2011 Daniel Espinosa EUA

xx La chispa de la vida 2011 Álex de la Iglesia Espanha
xx Coriolanus 2011 Ralph Fiennes UK
xx Intruders 2011 Juan Carlos Fresnadillo EUA
xx Drag Me To Hell 2009 Sam Raimi EUA

julho 07, 2012

Minecraft of Thrones, dedicação e talento

Desde que tomei conhecimento do projecto WesterosCraft Project que procuro mais informação sobre os criadores por detrás de tamanha aventura, mas pouco consegui saber, para além de que Jacob Granberry é o líder de uma equipa de sete pessoas. Não há entrevistas por enquanto, mas acredito que em breve começarão a aparecer, dada a dimensão do trabalho aqui em questão.


O WesterosCraft Project é um trabalho incrível apenas possível graças uma grande dedicação e a um enorme talento. O projecto pretende reconstruir todo o continente de Westeros, o lugar aonde se passa a trama da série televisiva Game of Thrones. O local a construir é já em si um espaço geográfica e arquitectonicamente grande e diverso, mas como se não bastasse a ferramenta de criação da representação é o Minecraft. Ou seja, estamos a falar de uma construção bloco a bloco, cubo a cubo, pedra a pedra.


Embora sendo num ambiente digital com múltiplas possibilidades incomparavelmente superiores ao mundo físico, em termos de paciência e dedicação à criação, falamos de algo do tipo criar representações com dominós, fósforos, ou simplesmente Lego.


Mais, temos visto projectos impressionantes em termos de escala no Minecraft, não é a primeira vez que vemos cidades, grandes arquitecturas, grandes conjuntos de estruturas diversas. Mas é a primeira vez que vejo algo tão grande, e com tanto nível de detalhe. Ao ponto de certas imagens quando vistas em tamanho mais reduzido, manterem toda a legibilidade, e deixar de se perceber que os contornos gráficos se constroem sob a forma de cubos. Isto é verdadeiramente impressionante, capaz de nos fazer suster a respiração.


O objectivo parece ser criar um mapa para um RPG de Games of Thrones. Os fãs da série não estão muito satisfeitos com os jogos que foram criados até agora, e isto parece ser uma excelente alternativa. Para além de que a própria construção tem estado aberta a receber trabalhos da comunidade online, embora o crivo de qualidade seja bastante alto, e talvez por isso mesmo a equipa tenha até à data apenas sete pessoas.


Para terminar e poderem acreditar que realmente todas as imagens que estão neste artigo, não foram desenhadas ou pré-construídas por um qualquer processo computacional, mas foram criados bloco-a-bloco por seres humanos, fica o vídeo de construção de um dos locais das imagens acima. Mais vídeos e mais imagens podem ser encontradas no site do projecto.

Source Film Maker (por João Morais)

Para começar gostaria de cumprimentar todos os que se encontram a ler esta análise. Chamo-me João Morais e encontro-me a tirar a licenciatura em Design de Jogos Digitais no Instituto Politécnico de Bragança. Em part-time costumo fazer traduções para os jogos da Valve, em troca tenho direito a acesso a versões beta dos seus jogos Dota 2 e Counter Strike: Global Offensive) e aplicações (Steam para Android), e de vez em quando, se a equipa de tradução cumprir com as metas, também recebemos umas encomendas recheadas de produtos da Valve Store. Não foi o caso com a beta do Source Film Maker (SFM) pois ainda não nos foi pedido para traduzir a mesma para português, no entanto increvi-me no site através da Steam e acabei por receber a beta na segunda ronda de convites.


Não vou entrar em detalhes sobre como funciona cada parte do programa, pois já existe uma série de vídeos da Valve no site do SFM que trata disso mesmo, darei apenas uma breve explicação sobre cada parte do mesmo. Quando falei com o Professor Nelson Zagalo, foi-me pedido para descrever a usabilidade e potencialidade do programa, começarei então pela usabilidade.

Neste momento só existe suporte oficial da Valve para o Team Fortress 2 (TF2) suporte para todos os outros jogos que correm no motor Source está planeado mas não existem datas concretas. Com alguma modificação dos ficheiros é possível abrir praticamente todos os jogos e mods tirando os que usam uma versão do ficheiro de mapas “BSP” mais recente, sendo estes o Dota 2, Counter Strike: Global Offensive e o Left 4 Dead 2Incluo três capturas de ecrã, do Left 4 Dead, do Portal e do Counter Strike Source a funcionar no SFM, para o resto da análise irei usar o mapa do Team Fortress 2 “ctf_2fort”.




Como pudemos verificar, o Source Film Maker já possui algum suporte para os outros jogos Source, o que nos leva à sua usabilidade. O foco principal do SFM é criar filmes animados utilizando as ferramentas disponíveis, a interface é escura com texto claro, tal como muitos programas actuais como por exemplo os programas da Adobe e da Autodesk, no entanto achamos que neste caso a razão é apenas que a interface da Steam também é assim, logo decidiram manter o mesmo estilo.

A interface é bastante simples em apresentação e no entanto bastante complexa em termos de funcionalidade, o editor ainda possui alguns bugs que afectam tanto o viewport como o render final, de momento podem ser corrigidos manualmente, como é o caso das luzes com um brilho intenso e os padrões estranhos na água.


O editor é bastante versátil e permite animar de dois modos diferentes que se complementam um ao outro: jogabilidade ou keyframing. No primeiro pode-se assumir o papel de uma ou mais personagens do jogo e aproveitar toda a jogabilidade para capturar os movimentos, disparos, falas, etc… podendo posteriormente pegar nessas capturas e adicionar qualquer outra animação, e trabalhar em detalhe o processo de animação via keyframes.

Uma das funcionalidades mais interessantes do SFM é a capacidade de pegar em qualquer fala e fazer o lip sync automático das personagens, animando assim facilmente as suas expressões faciais conforme o que dizem. Podemos também adicionar os modelos que quisermos à cena e alterar as suas texturas e movimentos em qualquer momento. Segue uma captura onde gravei o Scout a correr e posteriormente alterei a sua posição a meio do ar, a sua expressão facial e a sua skin de equipa.



O SFM está divido principalmente em três partes, do lado esquerdo temos uma divisão com duas tabs, a primeira é o Animation Set Editor, este permite adicionar sequências de animação quer seja para câmara, personagens, props, luzes ou partículas, tudo o que é animado tem que antes ser adicionado ao Animation Set, mesmo o que já se encontra em cena (como no caso do Scout controlado por mim) tem de ser adicionado aqui antes de poder ser modificado.

Nesta tab encontram-se também os controlos para alterar o comportamento da animação (fazer um ease in, ease out, camera shake, etc) e sliders para tudo o que diz respeito aos modelos animados (a face das personagens tem de ser controlada aqui).

A outra tab é o Element Viewer, nesta tem-se acesso a toda a hierarquia de elementos que fazem parte da cena, podendo estes ser modelos, partículas, sons, etc… Tem-se acesso e controlo sobre toda a informação de cada elemento, podendo fazer com que uns elementos estejam dependentes de outros (parenting), substituir um modelo por outro rapidamente, e tudo o que seja relacionado com propriedades específicas de cada elemento não relacionadas com a animação em si.


A segunda divisão situa-se do lado superior direito do editor, esta possui duas tabs, uma com a consola de desenvolvedor do jogo que permite utilizar comandos para ligar “cheats” ou alterar o grafismo do jogo, entre outros.

Na outra tab, a principal, temos o viewport (que pode ser alterado para que mostre mais que uma câmara ao mesmo tempo) e os controlos de navegação ao longo da animação (no centro), assim como os controlos para o posicionamento dos modelos (à esquerda) e controlos para criar, remover e alterar a posição das várias câmaras (à direita), quando se está a trabalhar é habitual utilizar a “Work Camera” pois esta é utilizada apenas no editor, podem-se criar outras câmaras de modo a gravar a mesma cena de várias perspectivas.

Clicando no botão de gravação (o círculo) leva-nos para o modo de jogo e põe-nos na pele de uma personagem (que podemos alterar), deixando assim gravar os movimentos da mesma, podem ser feitas várias animações na mesma sequência, no entanto estas não interagem automaticamente umas com as outras, isto quer dizer que eu posso gravar dois Scouts de equipas diferentes a dispararem um contra o outro, gravando primeiro um e depois o outro, no entanto nenhum deles leva dano ou morre, todo esse processo tem que ser feito manualmente após gravar os movimentos principais.


Por fim, temos a terceira divisão que se encontra no canto inferior direito do editor, aqui encontra-se apenas a Timeline com vários modos de visualização, no primeiro temos o Clip Editor, este permite criar clips ou sequências de animação, quer de imagem como som e efeitos especiais. No segundo modo de visualização temos o Motion Editor, este demonstra informação em forma de gráfico sobre o movimento que está a ser efectuado pelo objecto seleccionado, no entanto não temos grande controlo sobre os vários parâmetros de cada objecto, para isso temos o terceiro modo de visualização, o Graph Editor. Neste temos também vários gráficos sendo cada um correspondente a um parâmetro do objecto que se encontra seleccionado, no caso de um dos ossos do Scout temos três parâmetros de rotação e três de posição (a rotação sobre os eixos e a sua posição no espaço tri-dimensional). Em qualquer um destes modos podemos adicionar keyframes para animar tudo o que quisermos ao nosso gosto.




Devo ainda mencionar que clicando com o botão direito do rato em qualquer parte do editor abre menus com funcionalidades extra, o contexto destas opções depende de onde se clica.

É possível entender então que o SFM é bastante útil para criar animações em tempo real, mas tem potencial para muito mais. Ao exportar temos a escolha de exportar para Filme ou Imagem, dando assim a possibilidade de criar tanto pequenos filmes como um filme completo em 3D, fundos de ecrã ou comics.

Não nos encontramos apenas restritos aos jogos existentes, pois tendo algum conhecimento de modelação, texturização e animação é possível combinar o SFM com as outras ferramentas da Valve como o Hammer (para criar mapas, servindo como cenários) e o Particle Editor (para criar efeitos com partículas) assim como todas as ferramentas do Source SDK para importar novos modelos, animações, sons, texturas, etc… Permitindo assim criar animações com outros temas que não apenas os jogos da Valve sem ter a desvantagem de esperar dias ou mesmo meses a fazer o render da animação final, como acontece de momento com outras ferramentas de animação 3D.

Em conclusão, o SFM era uma ferramenta interna da Valve utilizada para criar spots publicitários para os seus jogos, assim como os “Meet the” vídeos criados para o TF2, que é agora disponibilizado para concorrer com o Cry Engine for Cinema da Crytek, no entanto a Valve volta mais uma vez a demonstrar a sua dedicação aos clientes e fãs, disponibilizando esta ferramenta gratuitamente (assim que acabar a beta) ao contrário da alternativa referida.



Nota do editor: 
Quero agradecer ao João Morais o interesse manifestado em realizar esta análise para o Virtual Illusion. Quero também dar-lhe os parabéns pela excelência da análise, que não só detalha o editor, como apresenta o seu potencial em termos do contexto de uso. Além disso ficamos com uma visão do potencial no momento actual e no futuro próximo. Obrigado

julho 05, 2012

engagePress, Investigação e Arte

Ontem foi dia de lançamento da engagePress e dos seus dois primeiros eBooks, Contos e Jogos de Liliana Rocha e Jogar com Histórias de Damas de Raquel Pinto, lançados em PDF aberto e versão iPad. Para marcar esta data convidámos o Heitor Alvelos que nos proporcionou um serão imensamente recompensador em termos de discussão sobre Arte+Ciência.

Diapositivo de Heitor Alvelos

O Heitor apresentou-nos um assunto que continua na ordem do dia, que é o de saber como é que o processo artístico pode fazer parte do discurso científico. Algo com que eu e outros colegas continuamos a debater-nos, porque quando trouxemos a arte para as Universidades e para os Laboratórios de Investigação esquecemo-nos que o seu processo de produção de conhecimento, era distinto, e muito, do método experimental que é a base de produção do conhecimento em ciência.

Heitor Alvelos

A abordagem do Heitor é como ele diz pouco ortodoxa, mas revejo-me totalmente nela. Não sei se por ter restado alguma costela dos tempos que passei em engenharia, mas não consigo ver a investigação científica de outra forma. Para o Heitor a Arte a partir do momento em que entra pelas portas da Universidade adentro tem de se subjugar ao método de trabalho desta, tal como acontece com qualquer outra área de trabalho. Ou seja, uma investigação científica seja um doutoramento ou qualquer projecto de investigação, não pode nunca escudar-se detrás da Esteticização ou do Hermetismo. O objecto de estudo tem de se dar à Mediatização e à Comunicabilidade, correndo o risco de se encerrar nos meros subjetivismos, esoterismos ou transcendências do processo de criação artística. Não cabe na discussão científica o inexplicável, ou o mero interpretativo, porque a ciência precisa de um edifício seguro de sustentação das ideias e conceitos capaz de suportar um pensamento lógico.


Na discussão falou-se também muito dos processos atuais de Open Publishing, dos processos de filtragem de informação, da automação da busca, do afunilamento dos conteúdos. O Heitor levantou uma questão deveras pertinente, "se vivemos numa sociedade com acesso global a praticamente todo o conhecimento produzido e em produção, como se explica que a grande maioria de pessoas, as massas, continuem a seguir de enfiada as celebridades da música pop, do cinema mainstream ou da literatura do momento?" E isto leva a um outro ponto, "apesar de termos canais à disposição para dizer tudo o que nos vai na cabeça, o que é que nos faz acreditar que os outros nos têm de ouvir a nós?"

Diapositivo de Heitor Alvelos

O Pedro Branco trouxe ainda para a discussão as aulas de Stanford dadas para mais de 100 mil alunos em simultâneo que nos levou à discussão da aprendizagem e auto-aprendizagem, acabando por nos deixar a defender que mais do que nunca cada indivíduo precisa de contar consigo próprio como o principal filtrador de informação. Acabaram-se os tempos em que podíamos delegar essa função nos gatekeepers, porque agora mais do que nunca, informação e contra-informação co-existem no mesmo espaço e no mesmo tempo, e apenas cada indivíduo pode verdadeiramente discernir o que melhor lhe serve em cada momento.

julho 03, 2012

mergulho no azul

Hectometer - World Record (2012) é o mais recente trabalho de Matthew Brown, criador de belíssimos pequenos filmes como Look Up at the Stars, Portugal! (2010) ou Dreaming It{aly} (2011).


Hectometer trabalha as ideias que passam pela cabeça de um atleta de apneia em profundidade durante os minutos em que permanece debaixo de água. Mais uma vez Brown usa a montagem no seu melhor para trabalhar ideias, para construir sentidos, e dar vida a um momento que visualmente não teria muito mais a dar.


No filme podemos ver William Trubridge a ir ao fundo do Buraco Azul nas Bahamas, percorrendo 101 metros em profundidade, sem qualquer ajuda, e apenas com o ar que os seus pulmões conseguem levar.

Hectometer - World Record (2012) de Matthew Brown

Obra-prima do imaginário contemporâneo

I, pet goat II (2012) é a nova pérola das curtas de animação 3d, uma verdadeira obra-prima criada pelo novo estúdio de Montreal, o Heliofant. Como já vai sendo hábito cada estúdio novo que se lança no mercado abre-se ao mundo com um pequeno filme capaz de demonstrar do que são capazes e também deixando uma mensagem sobre aquilo ao que vêm.


Como nos diz Andrew Allen do Short of the Week, os melhores filmes inovam no estilo ou na história, ou seja conteúdo ou forma, e raramente em ambos, ocasionalmente existem alguns que se destacam e este é um desses. É um filme capaz de nos questionar, sem propriamente elaborar demasiado as questões, ou desvendar aquilo ao que vem mas fazendo-o com um recurso estético tão elaborado que somos incapazes de lhe ficar indiferentes. Diria que temos uma obra experimental capaz de ser surreal, mas porque mantém um certo nível de classicismo, obriga-nos reconsiderar para uma obra minimalista, no que ao conteúdo se refere. Já na estética visual estamos perante uma obra claramente barroca, capaz de extrair o máximo de efeito de cada dimensão visual e sonora.


A história do filme, apesar de algo bizarra e muito experimentalista, joga na base de um grande minimalismo que nos vai dando pequenas pistas visuais e construções de relações que nos permitem extrair sentidos. Abaixo procuro contruir sentido do que vi, provavelmente cada um de vós verá coisas diferentes, ainda assim o ponto nevrálgico da história assenta numa mescla de elementos do imaginário contemporâneo popular criado pelo fluxo de informação que circula na televisão e internet.


Desde a política americana, à guerra contra terrorismo, ao fundamentalismo religioso, passando pelo afogamento do socialismo, pela destruição das novas gerações em África, e pelo encantamento da China e India pelo capitalismo, assim como à produção de pensamento único por via da televisão. O mundo desmorona-se mas temos Cristo que atravessa tudo de olhos fechados como que evitando a agressão, atingindo um momento em que a mudança se dá com as primaveras árabes, em que o mundo se abre em direcção à luz, e nos desprendemos por completo de todos os fundamentalismos. Como dizem os autores do filme, é "uma história sobre o fogo no coração do sofrimento".


No campo da estilística ou forma, temos um filme quase sublime. A modelação e animação 3d são muito boas, mas o que nos impressiona são os shadings levados ao limite, correndo o risco quase de resvalar para o kitsh, em que as superfícies assumem uma dimensão muito plástica, mas que faz sentido no jogo com a história. A palete de cores é muito forte e altamente saturada, contribuindo para o efeito plástico, mas que fica muito bem trabalhada com a iluminação criada. O character design é belíssimo, os personagens estão não só muito bem desenhados como são dotados de uma excelente coreografia que os cola numa sintonia total com aquilo que o filme nos vai dizendo. A juntar a isto a cinematografia é construída sob uma base de movimento contínuo, com enquadramentos perfeitamente fotografados e uma montagem completamente invisível. Para fechar, este filme seria completamente diferente, não tivesse a banda sonora que têm, que é muito poderosa e carrega o metrónomo de todo o desenvolvimento cénico e narrativo às costas.


Todo este conjunto é apenas possível graças ao facto de a Heliofant apresentar na sua equipa pessoas tradicionalmente pouco comuns num estúdio de 3d, como sejam os artistas de dança ou os músicos que trabalham em conjunto com os artistas visuais e de 3d. O resultado final funciona como uma elaborada jornada de grande teatralismo à custa do desempenho de todos estes artistas que participam para a criação de um objecto convergente, capaz de identificar a especificidade da Heliofant.

I, pet goat II (2012), de Heliofant

julho 02, 2012

Vessel, curta sci-fi/horror através do Kickstarter

Vessel (2012) de Clark Baker é mais um excelente projecto financiado no modelo de crowdfunding. O valor pedido no Kickstarter foi de 8 mil dólares, conseguiram 10 mil a partir de cerca de 100 apoiantes. Tenho aqui falado várias vezes desta forma de produzir obras criativas, embora nem sempre pelas melhores razões, contudo é um modelo que continua a conseguir surpreender-nos.


Claro que um filme com este nível de produção precisaria de muito mais do que 10 mil dólares, o que se passa é que toda a equipa é constituída de pessoas licenciadas na área e que trabalha na indústria americana do audiovisual e isso abre imensas portas para se conseguir aceder a espaços, materiais e know-how de forma gratuita. De outra forma os custos reais poderiam facilmente ultrapassar dez vezes o valor pedido.


O nível de qualidade técnica do filme é muito alta, tanto em termos de design de produção como nos efeitos especiais que não se limitam aqui ao CGI mas fazem uso de monstros em materiais físicos e com uma qualidade impressionante. A realização é muito bem conseguida assim como a cinematografia. Em termos narrativos os personagens estão perfeitamente bem delineados, são credíveis, sendo que a direcção de actores cumpre com eficácia o seu papel.



Quanto à história é muito interessante porque ficamos a pensar como é que nunca ninguém se tinha lembrado disto, ou talvez até tenham, o modelo não está muito longe da série Twilight Zone e não sei se esta ideia não terá sido aí alguma vez explorada. Para uma curta de 13 minutos, está muito bom, embora o final tenha deixado a desejar, como que se os guionistas não soubessem muito bem o que fazer chegados ali. É um filme de género, lida com OVNIs e aliens numa mistura de sci-fi e horror perfeita.



Outro link para o filme no YouTube.

envolver na história

I Remember The Rain (2012) de Jordan Browne (Nova Zelândia) é uma pequena história interactiva, que apesar de não representar nenhum avanço significativo no meio, consegue envolver-nos, e nada é mais importante que isso num jogo com história.


Trata-se de uma experiência muito curta, menos de cinco minutos, mas interessante pelas ideias que estimula e os sentires que cria. A estética 8 bits em preto e branco dá-lhe um toque de profundidade, o tema atira-o ainda mais ao fundo, e a música envolve tudo. Ficamos agarrados, queremos saber o que nos quer dizer, o porquê, o quem, o como, queremos saber o que vai acontecer a seguir. Quando acaba sabe a pouco, mas foi interessante.


Existe apenas em versão Windows, façam o download aqui.

julho 01, 2012

"A Doutrina do Choque", o novo fundamentalismo

Ler A Doutrina do Choque - A Ascensão do Capitalismo de Desastre de Naomi Klein é hoje em Portugal uma obrigação. O livro data de 2007, e nesse sentido a sua análise detém-se no exacto momento em que estalou uma das maiores crises de sempre deste modelo económico, mas o livro não perde nada. Tudo aquilo que Klein faz, ao longo das mais de 500 páginas, é desmontar historicamente as reacções do chamado Mercado-Livre (Free-Market) a grandes desastres e estados de emergência, desde o golpe de estado no Chile nos anos 1970 até ao desastre do furacão Katrina em plenos EUA, passando pelas ilhas Malvinas e Thatcher, pelo pós-perestroika e os oligarcas russos, pelo 11 de Setembro, atingindo o seu pico na Invasão do Iraque.


Klein traça uma linha que liga o desmantelamento de estados e da desregulação comercial a grandes desastres da contemporaneidade. Como que se esses desastres tornassem inevitável a mudança de políticas seguidas. Mesmo quando os desastres acontecem por meras causas naturais. A resposta de quem ajuda, parece ser sempre a mesma, abrir o mercado.
Só uma crise - verdadeira ou percepcionada - produz mudanças reais. Quando a crise ocorre, as acções que se tomam dependem das ideias à sua volta. Isto, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível, se torne no politicamente inevitável." Milton Friedman Capitalism and Freedom, 1962, p.IX
Lendo Klein sobre o pensamento de Friedman, a uma determinada altura senti que deixámos o fundamentalismo religioso mas as Cruzadas não morreram, só que agora vivem de um novo fundamentalismo, o do mercado-livre.
Salvador Allende, presidente do Chile que iniciou processos de nacionalizações e colectivizações foi retirado à força do poder por imposição americana, tendo a CIA servido Pinochet nas suas práticas de tortura, e os economistas de Chicago nas transformações do país numa chamada economia livre.
Os últimos 50 anos de caminho em frente na total desregulação, flexibilização e privatização trouxe-nos até aqui. Os efeitos para a Europa e o seu modelo social, estão aí. As palavras de ordem são, tornar privado e terminar com o estado. Teorias que defendem que o Estado tem custos insuportáveis, que tudo pode ser feito de forma melhor pelos privados, desde a Saúde à Educação. Na última guerra do Iraque como muito bem fica demonstrado por Klein, até as estruturas militares foram privatizadas. Porque segundo alguns é muito mais barato fazer outsourcing. Ter um estado que apenas dite leis, com meia dúzia de cabeças, um estado fantasma que deixe a sociedade auto-regular-se. Segundo Milton Friedman é preciso libertar as pessoas, maximizar a força do indivíduo e fazer definhar o colectivo, destruir o comunitário.

Só esquecemos que deixamos de pagar os desperdícios em impostos necessários à regulação das estruturas colectivas, mas em troca passamos a pagar pela perda de qualidade, perda de responsabilidade, perda de solidariedade. Alguns enriquecem brutalmente, enquanto uma enorme franja é despojada de qualquer direito. E o livro de Klein está carregado de exemplos, sendo um dos mais gritantes, o desastre Katrina, por ser recente e no interior dos EUA, mas que demonstra claramente que o mundo voltou ao ter pessoas de primeira, e pessoas de segunda. Mas o que se está a passar neste momento pós crise financeira não é em nada diferente, apenas na escala, a destruição da classe média americana e europeia está à vista.

Estádio que albergou os desalojados do desastre Katrina, e que foram ali largados à sua sorte pelo governo americano.

Ler Doutrina do Choque é ver um mundo novo abrir-se em frente aos nossos olhos, começar a compreender os modos de funcionamento de uma sociedade assente nos princípios desenhados por economistas da Universidade de Chicago, que tiveram como grande maestro, Milton Friedman. Todos os grandes desastres descritos no livro foram seguidos por grandes operações de recuperação baseadas não na ajuda desinteressada, mas sempre em estruturas privadas que procuraram fazer dinheiro com o desastre dos outros. Quanto mais no fundo do poço, mais rentável se torna ajudar. É isto que podemos assistir neste momento na Europa, a crise das dívidas soberanas e o acosso constante dos mercados totalmente desregulados, para quem o Social deixou de existir.

Os oligarcas russos (na foto Abramovich) aproveitaram o desmantelamento da URSS para legalizar as suas práticas ilegais e apoderarem-se de todo o aparelho financeiro do Estado a custos irrisórios. Uma mão cheia de indivíduos tornou-se milionária à escala mundial, muitos milhões de russos e caíram na pobreza total, milhares de crianças foram abandonadas em instituições sem condições para os receber, a droga e a prostituição tornou-se nos únicos ganha-pão de milhões de pessoas. Tudo isto está à vista de todos.
Concordo com o nobel Stiglitz quando este diz que Klein exagerou com a metáfora dos procedimentos dos anos 1950 para a realização de lavagens cerebrais. Mas percebo a frustração activista de Klein, ao perceber que tudo se passa à nossa frente, mas continuamos sem nos dar conta. Ela precisava de uma metáfora forte que chamasse à atenção, mas julgo que em certo sentido acaba por perder alguns leitores. Porque na primeira parte do livro poderão sentir que se trata de mais um livro demagógico com teorias da conspiração. Por isso aconselho vivamente que mantenham a leitura, aquilo que este livro tem para revelar vale isso, e muito mais. Mas é o próprio Stiglitz a defender o discurso, nomeadamente a suportar toda a lógica económica descrita por Klein,
Klein provides a rich description of the political machinations required to force unsavory economic policies on resisting countries, and of the human toll. She paints a disturbing portrait of hubris, not only on the part of Friedman but also of those who adopted his doctrines, sometimes to pursue more corporatist objectives (..)
Indeed, the case against these policies is even stronger than the one Klein makes. They were never based on solid empirical and theoretical foundations, and even as many of these policies were being pushed, academic economists were explaining the limitations of markets — for instance, whenever information is imperfect, which is to say always. [#]
A invasão do Iraque foi a última grande machadada do mercado privado contra o estado e as funções públicas. Rumsfeld, ministro da defesa americano, conseguiu despedir milhares de pessoas do Pentagono e das forças militares, e em sua vez foram contratadas empresas privadas de fornecimento aos militares. Empresas nas quais o próprio ministro da defesa tinha interesses e acções. No Iraque, o número de equipas mercenárias privadas a actuar é desconhecido. As empresas envolvidas no fornecimento ao exército americano viu os seus lucros aumentar exponencialmente durante toda a guerra. Assim esta não pode terminar, sem guerra não haverá fonte de receitas.

Klein não é economista, mas como jornalista fez um magnífico trabalho de investigação, realizando entrevistas in loco em muitas das partes do globo de que fala no livro. Não baseia o seu trabalho em meras teorias económicas, antes faz um levantamento e procura respostas, e actores que as possam confirmar ou não. Este seu trabalho ganhou imenso reconhecimento internacional, e acredito estar na base de muito daquilo que são os movimentos internacionais Occupy.


Muito dirão que isto são teorias da conspiração. Mas o que aqui temos foi descrito anteriormente por Althusser na sua conceptualização de ideologia. Ou seja o que aqui temos é fruto de empurrar as pessoas, as instituições, a sociedade para o pensamento único, do consumo como sinal de progresso. E assim, quando o desastre acontece, existe apenas uma resposta possível para manter o status quo da ilusão do progresso, que passa por tirar a muitos para manter alguns na redoma protegida. É tempo de nos levantarmos e dizer basta. A Europa e Portugal estão a saque, disso já não restam dúvidas.