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agosto 16, 2023

" A Trilogia de Copenhaga" de Tove Ditlevsen

Tove Ditlevsen (1917-1976) foi uma das mais importantes escritoras da Dinamarca no século XX, tal como Sophia Andersen (1919-2004) foi em Portugal. Mas se Andersen tinha também raízes dinamarquesas, os estatutos sociais das suas famílias não poderiam ser mais opostos. Nascida numa família da classe operária, os pais de Ditlevsen estavam mais focados em empurrá-la para o primeiro que aparecesse disposto a casar e levá-la do que a educá-la. O seu principal legado são três pequenos livros de memórias romanceadas, escritas entre 1967–1971, só totalmente traduzidas para inglês em 2019 e publicadas num volume único pela Penguin, alcançando reconhecimento na imprensa internacional em 2020 e traduzidas para português em 2022 pelo João Reis. A sua escrita é lírica mas escorreita, centrada na compreensão psicológica de si através das suas atitudes, motivações e comportamentos.

Edição portuguesa da D. Quixote com tradução de João Reis

junho 12, 2023

"Infra 5" de Max Richter

O álbum "Infra" (2008) de Max Richter é talvez o álbum que mais vezes ouvi. Em particular a faixa "Infra 5" tem estado nos últimos anos quase sempre nos primeiros lugares das músicas mais ouvidas no meu Spotify. Existe algo por debaixo desta sonoridade que faz mover o meu interior. Assim que começa, desligo de tudo o resto. Fico ali, atento, a tentar seguir o tom, o ritmo, os instrumentos, tentando perceber para onde vai evoluir a cada momento, aonde me vai conduzir. Hoje, resolvi voltar a pesquisar sobre o álbum e encontrei um pequeno vídeo do compositor em que explica a motivação por detrás do álbum, e depois detalha a "narrativa" que suporta a "Infra 5". Deixo a transcrição:

"So Infra is a ballet [choreographed by Wayne McGregor] based around the events of 7/7 [subway bombings in London]. And I guess the other thing that feeds into that is the psychological landscape of the wasteland, T.S. Eliot's "The Waste Land", which sets up this idea of an unreal city, this kind of hallucinatory sort of vision of a city. The music of Infra is a series of reflections on those events."
"Infra 5 is probably the most, I guess, directly representative music on the record, in the sense that you have this music which basically gets faster and faster. So, the image of people running, that's what Infra 5 is about. And there are various kinds of other things buried in the music. Like, there's sort of melodic material, which is sort of basically sirens. The violins just play these kind of siren melodies. So it sort of embodies that people running, trying to get out. So, yeah, that's Infra." 
"Music is a sort of catalyzer for thought and reflection." 
-- Max Richter 

setembro 19, 2022

Facebook e a Saúde Mental

O estudo, "Social Media and Mental Health" (2022) (publicado em preprint na SSRN, em breve disponível no American Economic Review) que retrata os efeitos do Facebook na saúde mental dos seus utilizadores foi tornado público por estes dias e os dados são pouco animadores. O estudo foi feito a partir de dados empíricos de: a) momento em que o Facebook foi tornado a acessível em cada universidade americana no ano de 2014, que permitiu perceber o exato momento em que cada aluno começou a aceder à ferramenta; e b) os questionários semi-anuais da National College Health Assessment, que chegam a mais de 430,000 respondentes, inquirindo sobre saúde mental e bem-estar nas universidades americanas. Os resultados: a introdução do Facebook nas universidades levou a um aumento da depressão grave em 7% e do distúrbio da ansiedade em 20%. Para além destes resultados, uma percentagem de estudantes iniciaram tratamento com psicoterapia e/ou antidepressivos. "O efeito negativo do Facebook é comparável, em magnitude, a cerca de 22% do efeito da perda de emprego na saúde mental". Os investigadores apontam como principal razão o facto do Facebook promover "comparações sociais desfavoráveis".

setembro 18, 2022

Uma Breve História da Igualdade

Se como eu já quiseram ler Piketty mas tiveram receio de se abalançar aos seus anteriores livros pela densidade de dados económicos ou pela enormidade de alguns com as suas mais de mil páginas, então são o público-alvo deste seu novo livro, "Uma Breve História da Igualdade" (2021/2022). Piketty resume em 300 páginas mais de 20 anos da sua investigação e as principais ideias que tem vindo a defender para uma nova era de igualdade, numa escrita imensamente acessível, sempre suportada por dados e gráficos. Confesso que me surpreendeu no discurso, pela enorme amplitude de ciências sociais que convoca desde a Sociologia à História, passando pela ciência política, o direito e a filosofia. Piketty usa dados económicos, mas acima de tudo trabalha, investiga e interpreta esses dados usando o conhecimento mais atual de cada uma das ciências envolvidas. Por isso, não se estranhe que a discussão vá das guerras e revoluções ao reformismo e alterações climáticas, mas assuma também como fundamentais a discussão do pós-colonialismo, racismo e feminismo. Contudo, para quem espera encontrar aqui um crítico das grandes desigualdades do mundo em que vivemos, Piketty é muito claro ao afirmar que nos últimos 200 anos a desigualdade diminuiu fortemente, sendo a partir desse ponto que projeta as suas ideias, apresentando-as como estímulos à manutenção e intensificação dessa tendência.

setembro 26, 2021

Incas e Europeus: para que servem as histórias alternativas?

"Civilizations" é um excelente sucessor de "A Sétima Função da Linguagem" (2015) (análise VI), deixando para trás as teorias da comunicação para se focar na história da descoberta do Novo Mundo, só que agora o Novo Mundo já não é a América, mas a Europa. "Civilizations" usa um artifício inicial para garantir imunidade adquirida às populações das Américas aquando da chegada dos espanhóis, a partir do que se desenvolve todo um volte-face. Assim, em vez de termos Pizarro a dominar Atahualpa, como muito bem nos conta Jared Diamond, em "Guns, Germs, and Steel" (1997) (análise VI), temos Atahualpa a dominar Carlos V, o grande Imperador Romano-Germânico. 

Representação do Deus Sol Inca

maio 09, 2021

A Tirania de Ter de Ser o "Melhor"

Apesar de repetitivo, "The Tyranny of Merit: What’s Become of the Common Good?" (2020) de Michael Sandel foi o livro mais transformador que li nos últimos anos, por tocar em aspetos fundamentais da atualidade que explicam as intrincadas relações humanas da nossa sociedade neste início de século. 

Deixo múltiplos pontos que o livro suscitou, com argumentação de Sandel, algumas conclusões e  discussões desses. Começo com o ponto principal:

1. A dignidade do nosso trabalho não é medida pelo ordenado que recebemos. 

abril 10, 2021

O código da interação humana

O livro "The Culture Code" (2017) de Daniel Coyle fez-me lembrar "Blink" (2005) de Gladwell, pelo modo como discute algo tão presente na nossa realidade mas que temos imensa dificuldade em especificar e enunciar. Se Gladwell tentava definir o que torna o olhar de um especialista diferente, o modo como a sua capacidade percetiva imbuída de saber e experiência vai além do que é evidente. Coyle, procura definir aquilo que emerge da cola entre humanos quando interagem e faz com que juntos sejam mais do que a mera soma dos indivíduos. Ambas à superfície parecem dotadas de alguma magia, por não serem facilmente explanáveis nem racionalizáveis. O que é também interessante é o facto de Coyle ter feito anteriormente um trabalho soberbo na análise do talento individual, em “The Talent Code” (2009), e ter-se visto aqui obrigado a concluir que o talento dos indivíduos não é a força motriz do talento dos grupos.

março 21, 2021

A agência de si

As palavras não saem. Deixei passar alguns dias e mesmo assim escrevo e apago, escrevo e apago... Li-o muito rapidamente, não conseguia parar, queria saber o que aconteceria a seguir, mais do que isso, queria saber porquê, e porquê, e novamente porquê. Mas a autora não responde, lança algumas pistas para o ar, mas não se fixa nelas. No final, voltamos ao ponto de partida, só que não, porque a impressão é forte e dificilmente nos deixa. "A Vegetariana" é um livro de 2007, escrito pela autora sul-coreana, Han Kang.

fevereiro 04, 2021

A luta de quem o quiser ler

Estou a ler “A Minha Luta”, paro e fecho o livro, levanto-me vou à cozinha e olho pela janela, vejo a oliveira ainda jovem a querer dar ares de si. Abro o armário tiro uma caneca branca alta e esguia, encho-a com água até meio, coloco-a no micro-ondas. Abro o frigorífico tiro o leite, apanho o vidro de café, pouso ambos na mesa. O micro-ondas toca, abro a porta tiro a caneca ouço o borbulhar da água que se evapora da fervura, pouso-a na mesa. Aparece a Cookie, abana o rabo, dou-lhe uma festa na cabeça enquanto abro o vidro de café. Ela não parece satisfeita, viro o café sobre a taça batendo ligeiramente com o dedo no fundo do vidro para que entorne a quantidade certa. Olho novamente para ela, ela olha para mim, quer dizer-me algo. Vou até à janela ela segue-me contente, abro-a e ela sai a correr, ladra para a árvore alta do vizinho de onde saem chilreios. Está frio, volto a fechar a janela bebo um gole de café, sinto o calor da taça nas mãos, volto ao escritório. Sento-me no sofá, duas almofadas de cada lado, olho para a capa de “A Minha Luta” volto a pegar-lhe leio mais algumas páginas volto a parar e a fechar. Olho pela janela e interrogo-me, "porque continuo a ler-te?"

janeiro 23, 2021

“Retrato de Uma Senhora” (1881) de Henry James

“Retrato de Uma Senhora” (1881) é considerada a obra central do legado de Henry James. A mim serviu de porta de entrada, ficando a conhecer o mesmo, mas apesar de alguma admiração suscitada, deixou-me sem motivação para o continuar a ler. James realiza um trabalho soberbo de análise dos processos da consciência humana, na senda do que já nos tinha dado Balzac e Dostoiévski, capturando a nossa atenção ao longo de páginas e páginas de escalpelização dos mundos interiores dos seus personagens. Diga-se que James era irmão de William James, um dos grandes pioneiros da psicologia. O problema surge no conteúdo, nos personagens trabalhados, pela pertença à aristocracia, ou a uma burguesia muito próxima, que torna aquilo que se conta muito pouco interessante.

novembro 17, 2020

Transcend: The New Science of Self-Actualization (2020)

Maslow é para mim um dos mais importante teóricos da psicologia, nomeadamente do domínio da motivação humana, por isso este trabalho de Barry Kaufman, "Transcend: The New Science of Self-Actualization" (2020), enquanto tentativa de atualização do maior legado de Maslow, a Pirâmide de Necessidades Humanas de 1943, é uma obra fundamental. Não deixa de impressionar como uma teoria criada há quase 80 anos continua tão atual como quando proposta, no entanto existe sempre espaço para melhorar, e é isso que Kaufman aqui se propõe. 

Neste livro Barry Kaufman, assente na Pirâmide de Necessidades e em estudos multidisciplinares — de áreas como “positive psychology, social psychology, evolutionary psychology, clinical psychology, developmental psychology, personality psychology, organizational psychology, sociology, cybernetics, and neuroscience” — juntamente com um estudo aprofundado do legado e dos últimos escritos deixados pro Maslow, apresenta uma revisão da proposta na forma de “Sailboat Metaphor”.

Representação da “Sailboat Metaphor” de Barry Kaufman

Neste conceito o foco deixa de ser a “necessidade” e passa para a “auto-realização”. No modelo de Maslow essa realização surgia apenas no topo da pirâmide, Kaufman propõe uma revisão em que oferece mais espaço à conceptualização da realização humana, tornando-a central para aquilo que definimos como “sentido da vida”. Assim, e como se pode ver na imagem, mantém-se um conjunto de necessidades que estão situadas dentro do barco, fundamentais para garantir a segurança dos indivíduos e mantê-los à tona da água. No topo do barco, surge a vela, aquela que nos pode levar “mais longe” se aprendermos a manejar a mesma. 

“To use the sailboat metaphor, while we each travel in our own direction, we’re all sailing the vast unknown of the sea (…) you don’t ‘climb’ a sailboat like you’d climb a mountain or a pyramid. Instead, you open your sail, just like you’d drop your defenses once you felt secure enough. This is an ongoing dynamic: you can be open and spontaneous one minute but can feel threatened enough to prepare for the storm by closing yourself to the world the next minute. The more you continually open yourself to the world, however, the further your boat will go and the more you can benefit from the people and opportunities around you. (…) And if you’re truly fortunate, you can even enter ecstatic moments of peak experience—where you are really catching the wind. In these moments, not only have you temporarily forgotten your insecurities, but you are growing so much that you are helping to raise the tide for all the other sailboats simply by making your way through the ocean. In this way, the sailboat isn’t a pinnacle but a whole vehicle, helping us to explore the world and people around us, growing and transcending as we do.”

Esta metáfora é bastante mais rica que a da pirâmide, desde logo porque se introduz com dinâmica, o que permite compreender o funcionamento de cada elemento na dimensão tempo. Mas também porque a separação realizada, entre a segurança, ou necessidades fundamentais, e o crescimento humano, leva o modelo bastante além na compreensão da auto-realização humana, algo que urge compreender para podermos trabalhar as nossas sociedades em registos aceitáveis de sanidade mental.

Kaufman propõe uma visão além do barco, correspondendo ao céu acima do mesmo, no qual pode acontecer a chamada transcendência do humano:

 “At the top of the new hierarchy of needs is the need for transcendence, which goes beyond individual growth (and even health and happiness) and allows for the highest levels of unity and harmony within oneself and with the world. Transcendence, which rests on a secure foundation of both security and growth, is a perspective in which we can view our whole being from a higher vantage point with acceptance, wisdom, and a sense of connectedness with the rest of humanity.”

Confesso que esta parte relativa a transcendência, e que no fundo dá nome ao livro foi a que menos me falou. Compreendendo o objeto de Kaufman, e até que o próprio Maslow passou os últimos anos a trabalhar neste campo, considero-o demasiado próximo da individualidade de cada um, excessivamente íntimo, o que acaba fazendo com que aquilo que se propõe se pareça mais com abordagens espirituais e de auto-ajuda, do que fruto da ciência. 


Não me parece que a metáfora de Kaufman venha substituir a de Maslow, mas julgo que a complementa, acabando por a tornar mesmo mais relevante, no sentido em que o trabalho de Maslow continua atual e assim a ser atualizado.

outubro 01, 2020

"Metro Exodus" (2019)

"Metro 2033" (2010) foi uma enorme surpresa, "Metro: Last Light" (2013) elevou a qualidade em todas as dimensões, nomeadamente direção de arte e narrativa, tornando difícil qualquer nova sequela e por isso acaba a não surpreender a sensação de mera incrementação de "Metro Exodus" (2019) que se limita a adicionar enxertos de mundo-aberto. A partir do meio da jornada já só o fechar da última página parece manter-nos a jogar, mas continuar até ao final leva-nos à redenção da experiência, do jogo como um todo, em impacto e prazer estético de uma forma quase memorável.

setembro 09, 2020

A publicação de "Engagement Design" (2020)

O meu mais recente livro, "Engagement Design: Designing for Interaction Motivations", foi publicado a meio de março 2020, exatamente aquando do início da quarentena provocada pela pandemia COVID-19. Tinha intenção de dar conta da publicação do mesmo no blog e nas redes sociais, mas com a quarentena e todos os impactos da mesma acabou por ser algo sempre protelado. Aproveitando agora o início do novo ano letivo fiz um pequeno texto sobre a publicação do livro, focado na génese e motivação por detrás da sua escrita, assim como na inovação da proposta que apresenta.

Este livro começou a ser germinado no ano 2014/2015, como obra de introdução ao design de interação, com um forte enquadramento no domínio da Interação Humano-Computador (IHC), na altura com o intuito de publicar o mesmo na editora portuguesa FCA, onde tinha publicado o "Videojogos em Portugal: História, tecnologia e arte" (2013). Contudo, pouco depois de anunciar que ia escrever o livro dei por mim dentro de uma espiral de acumulação de material sobre a área, não conseguindo parar de colecionar obras, textos, capítulos, modelos, projetos... Quanto mais informação acumulava mais me questionava sobre a relevância de escrever um livro introdutório que iria ser igual a tantos outros, mesmo que sendo em português, língua em que existiam parcos recursos.

Foi apenas quando resolvi escrever o primeiro capítulo que me dei conta da minha insatisfação com a área, em particular na aplicação das metodologias do design de interação ao design de jogos e em geral ao design de media interativos. Tinha ocorrido uma mudança grande no discurso da IHC, com o foco a mudar da Usabilidade para a Experiência, mas quanto mais lia sobre a experiência e o tão em voga UX, mais me desolava. Na verdade, parecia-me que pouco tinha efetivamente mudado. A experiência era algo tão vago e ambíguo que parecia servir apenas de moldura, mantendo-se em uso muitas das mesmas metodologias que eram utilizadas nos estudos da usabilidade.

Foi então que me dei conta da necessidade de concretizar o conceito de Experiência, e ao fazê-lo acabei chegando ao conceito de Engajamento. O que importava a quem discutia a Experiência era que essa fosse significativa para os utilizadores, mas o significado em si não podia ser medido, sequer antecipado, já que cada indivíduo tem um mundo de experiências prévias que contaminam sempre qualquer nova experiência. Por isso era preciso trabalhar algo mais formal que fosse generalizável, e o engajamento permitia isso mesmo. Ao trabalhar o design para o engajamento podíamos aperfeiçoar a experiência sem depender dos elementos subjetivos, porque estávamos a adequar a forma estética, funcional e de criação de significado a um conjunto de generalizações humanas. 

Para chegar a generalizações relevantes no modelo tive de trabalhar perfis e esses acabariam por ser desenhados em função da personalidade, de modo que os traços de personalidade humana acabariam por traçar a base daquilo que viria a definir no livro como "streams of engagement" (fluxos de engajamento). Ou seja, usamos a personalidade para generalizar o design da interação, a partir do que podemos, nas fases subsequentes, aprofundar em função da resposta dos utilizadores particulares de cada universo cultural, e em função do tema concreto do artefacto a desenvolver. Para ter uma noção rápida do que o livro pretende e como pode ser utilizado, podem ler o texto “Applying the Engagement Design Model” que fiz para acompanhar a saída do livro.

Com o capítulo escrito, que acabaria por ser o segundo do livro, enviei a proposta para a Springer, em inglês, e o retorno acabou sendo imensamente positivo, o que me motivou a avançar com os restantes capítulos e a criação do modelo final proposto no livro. Ou seja, o livro que tinha começado como estudo introdutório a uma disciplina, acabaria por tornar-se num livro de investigação sobre um tema e apresentação de um novo modelo de design não apenas teórico mas aplicável. Quando terminei o livro, enviei o mesmo ao Jeffrey Bardzell que fez o favor de escrever o prefácio que acabaria por surgir depois no livro.

Claro que tudo isto é passado, o meu interesse é agora procurar aplicar e melhorar o modelo proposto nos projetos a desenvolver no DigiMedia, e que possa servir a comunidade científica na busca por uma melhor compreensão do próprio design de interação e de experiência. Com o feedback que for recebendo, continuar a trabalhar para otimizar o modelo, nomeadamente nos diferentes domínios do design de interação em que possa vir a ser aplicado.

maio 31, 2020

Design de Experiência através do “Power of Moments”

“The Power of Moments: Why Certain Experiences Have Extraordinary Impact” (2017) é o terceiro livro que leio dos irmãos Heath depois de “Made to Stick: Why Some Ideas Survive and Others Die” (2006) e “Switch: How to Change Things When Change Is Hard” (2010). Direi que este “Power of Moments” se aproxima bastante de “Made to Stick” pela estrutura, mas em termos de objetivos congrega os dois anteriores. Em “Made to Stick” tínhamos o modo como podíamos desenhar experiências que permanecessem na memória das pessoas. Em “Switch” tínhamos o modo como poderíamos contornar as dificuldades que se colocam à mudança. Em “Power of Moments” juntam-se ambos e temos então a discussão sobre o modo como o design de experiências pode contribuir para a transformação de pessoas. Percebe-se que é o mais ambicioso dos três, mas apesar de algumas boas ideias dificilmente entrega o que promete, principalmente pela dimensão da ambição. Ainda assim vale a leitura para quem trabalha na área.

abril 27, 2020

O Enigma de Nabokov

Li vários livros de Nabokov, li sobre a sua pessoa, os seus gostos, preferências e aversões, fui visitar a sua casa de infância e juventude quando estive em São Petersburgo, no entanto nunca compreendi muito bem porque era um autor que eu amava sem conseguir amar completamente a sua obra. “Lolita” deslumbrou-me totalmente em termos formais, contudo, nenhum outro livro seu alguma vez se aproximou. Ao mesmo tempo, não conseguia compreender o seu total desprezo por Dostoiévski, chocava-me ler o que dizia sobre ele, não muito diferente do que me choca ler o que diz Lobo Antunes sobre Fernando Pessoa. E agora, depois de ler "Fala Memória" (1951), julgo ter finalmente compreendido o enigma, sobre o que me deterei nas próximas linhas.
Nabokov teve uma infância digna da monarquia, mas com pais profundamente preocupados com a sua formação, tendo ele, por inclinação própria, sabido bem aproveitar tudo o que lhe foi oferecido. Antes de ter sido exilado, em fuga da Revolução Russa, para Cambridge em 1919, onde foi fazer o seu curso com cerca de 20 anos, tinha já viajado por quase toda a Europa. Aprendeu inglês antes do russo, falava e escrevia fluentemente além destas o francês e o alemão. O seu pai era profundo amante de literatura e ofereceu-lhe todo um mundo de leituras desde a mais tenra idade. Nabokov teve todas as condições para aceder ao melhor de tudo o que ser humano tinha criado até então nas artes literárias. Além disso, começou a prática de escrita desde muito cedo. Juntando a inclinação própria e diga-se alguma sorte pela particularidade oferecida pela sinestesia e o ambiente apropriado, Nabokov iria tornar-se num maestro das letras. A sua prosa evoluiria, o poético ganharia enorme densidade, e isso serviria para impulsionar intensamente a sua arte. Contudo, sinto que Nabokov seria sempre mais artesão do que artista.

Sempre considerei estranhos os dois papéis mais reconhecidos em Nabokov, escritor e colecionador de borboletas, por qualquer razão nunca senti que combinassem. No entanto, a relacioná-los colocava a beleza. A beleza das suas frases e a beleza dos padrões das borboletas. Foi agora, ao ler as suas memórias que compreendi o quão essas duas partes se aproximam, e como definiam a própria escrita de Nabokov. Desde logo, essa relação é evidente no modo distante e frio como fala da sua infância e família, como se tivesse estado sempre a janela vendo os eventos passar. Perto do final, demonstra para meu maior espanto, o prazer que retirava da criação de problemas de xadrez (estes problemas consistiam em montar uma jogada no tabuleiro e definir um número máximo de jogadas permitidas para fazer xeque-mate). O gosto por jogar xadrez não é per se qualquer motivo de surpresa, mas obter profundo prazer na conceção e resolução de problemas formais é um marcador indissipável da psicologia de um criador.

Esta análise que faço está naturalmente imbuída do trabalho que tenho vindo a desenvolver no campo dos perfis psicológicos e do modo como estes definem a nossa curiosidade e motivação, no modo como nos predispõem para o envolvimento com a realidade. Tendo eu definido três perfis — Abstracionista, Experimentador, Dramatista —, Nabokov parece não se encaixar em nenhum, ou encaixar nos dois mais opostos. Em favor do abstracionista, Nabokov apresenta o seu lado colecionista obsessivo e a resolução de problemas. Para o lado dramatista, Nabokov apresentava naturalmente a sua literatura e os seus romances. Contudo, da análise da sua literatura e relação com as qualidades de cada perfil, a conclusão a que chego é que Nabokov foi muito mais abstracionista do que dramatista, ou seja, foi alguém focado em sistemas e estruturas, pouco interessado em pessoas e nos seus dramas, algo que espero demonstrar nos pontos seguintes:


1 – Nabokov não gostava de Dostoiévski porque não compreendia a dramatização da psicologia humana colocada em cena por este. Para Nabokov a escrita era fraca, os enredos repetitivos, faltava beleza formal. Mas Nabokov na verdade não compreendia o que se passava efetivamente no interior de Raskólnikov, e menos ainda daqueles que o liam.

2 – Do mesmo modo Nabokov ridicularizava Stendhal, Balzac, Mann, Faulkner, Camus ou Roth, escritores que muito fizeram pelo avanço do psicologismo no romance, em choque frontal com a larga maioria dos escritores e críticos e de forma ostensiva. Na verdade, Nabokov não conseguia chegar a certos tipos de escrita, não por não ser capaz, mas porque não lhe tocavam, não lhe falavam.

3 - Durante alguns anos admirei Nabokov por ser frontal e falar abertamente contra Sigmund Freud, contudo só agora compreendi que aquilo que o incomodava nada tinha que ver com os seus métodos muito pouco científicos, mas apenas e só com o facto deste trabalhar a psicologia humana.

4 – A curiosidade de que Nabokov terá visitado os 46 estados americanos, referido neste livro mais de uma vez, em busca de borboletas, é mais do que isso, é um elemento central para compreendermos o seu comportamento obsessivo. Nada o faria impedir de ir atrás das suas metas e objetivos, eles foram sempre o seu norte.

5 – Do mesmo modo, os ataques a Boris Pasternak e Alexander Solzhenitsyn, os dois russos a ganhar o Nobel (1958 e 1970) quando Nabokov já era considerado um génio das letras, têm mais que ver com o competitivo inato em Nabokov do que com qualidades desses autores ou até mesmo inveja. O Nobel é um prémio, apesar da competição ser algo exótico no domínio da narrativa, das histórias e das letras, mas era isso apenas que interessava a Nabokov, atingir os objetivos.

6 — Um dos seus livros mais estudados é um poema, mas não é um poema qualquer. “Pale Fire” é um conjunto de significados escondidos por debaixo da capa e forma de um poema, mas “Pale Fire” não é nenhum poema, porque antes de o ser é um puzzle. Os críticos deslumbram-se com as intrincadas métricas que perfazem o poema de exatas  999 linhas, e o modo como os cantos podem ser lidos em série ou paralelo, abrindo caminho ao chamado hipertexto e cibertexto. “Pale Fire” é um problema textual criado por Nabokov, tal como os problemas que adorava criar para xadrez.


Tudo o que elenquei não diz que Nabokov não era escritor, nem que não era dotado de génio na escrita, mas diz-nos que Nabokov era fraco contador de histórias e que na verdade tinha pouco para dizer. O seu foco foram eram coisas e objetos, os humanos eram para si secundários, não relevantes, tal como diz o próprio George Steiner:
"O caso de Nabokov parece envolver uma desumanidade profunda, ou, mais precisamente, uma desumanização. Há compaixão em Nabokov, mas é superada em muito pelo desdém elevado, sombrio." George Steiner, Grandmaster, The New Yorker, December 10, 1990, pp. 153-157.
Para alguém que se considerava a si mesmo um génio e que prezava a arte acima de tudo, parece parco. Porque se admitimos a um cientista que se foque nos objetos em vez das pessoas é porque o seu trabalho contribui para o avanço do conhecimento humano que por sua vez servirá a todos. Já quando um artista se foca apenas na sua arte, no virtuosismo da mesma desligada de tudo e todos, é apenas a si mesmo que serve. No final de cada livro seu, fico sempre encantado com a forma, com a estrutura, com o virtuosismo, mas o que retiro verdadeiramente da leitura sabe a pouco. O único livro em que a forma me bastou, talvez porque tinha de bastar para compensar a abjeção da história contada foi “Lolita”, e é falando sobre esse que quero terminar, porque acredito que o enigma aqui desvelado nos pode ajudar a compreender um pouco melhor essa obra.

“Lolita” apresenta uma escrita absolutamente singular. Não é mera poesia, é toda a textura textual que cria um sentimento de espanto e surpresa no modo como o universo nos vai sendo oferecido, do ritmo do texto às metáforas ricas. Por sua vez, toda essa beleza é contraposta à descrição do mais profundo horror. Esse horror continua, até hoje, a não ser compreendido por quem o lê, gerando interrogações e dúvida sobre o que verdadeiramente está em questão na história que se conta. Contudo, a partir do que discuti acima, parece-me que a explicação está no perfil psicológico de Nabokov, alguém profundamente focado em coisas, não em pessoas. O seu foco era o livro, a obsessão pelo texto perfeito era total, já os personagens e os eventos eram apenas mais uma história, igual a tantas outras. O enigma emerge assim pela falta de empatia de Nabokov, pelo modo como se alheava completamente da relação emocional criada pelos personagens das suas obras com os seus leitores. O abjeto e nojo são por demais evidentes em “Lolita”, contudo Nabokov não parece apresentar nunca consciência de tal ao longo de todo o livro. Claro que se podem evocar sentidos escondidos na relação entre a beleza do texto e a beleza da ninfeta, contudo nada dessas interpretações poderá esconder o negrume do que se apresenta. Ou mais facilmente poderíamos dizer que pessoas más não fazem más histórias, para o que bastaria evocar Raskólnikov, mas para tal o escritor não poderia "esquecer-se" de evidenciar de que lado estava.

janeiro 19, 2020

Virtual Illusion: textos de 2019 mais lidos

Este ano tinha decidido não listar os textos mais lidos, contudo como acabei dando conta de várias mensagens perdidas no blog, e andei a responder às mesmas, acabei por me fixar nos números, e extrair a lista que costumava fazer anteriormente. Na verdade, é interessante para o blog, porque permite a algumas pessoas repescar textos que lhes tinham passado, mas para mim acaba sendo também um profundo exercício de viagem mental no tempo que me permite olhar para as ideias do lado de fora. Permite-me não só recordar certos momentos de composição, mas mais importante do que isso obriga a refletir sobre essas ideias e a tentar compreender se ainda se mantém ou se foram entretanto alteradas. Por isso, talvez faça em breve este exercício para a última década, poderá ser muito interessante viajar dentro de posts ao longo de 10 anos.
1. Sobre o mito: “desde que se leia”, abril 2019
2. Quem fala inglês na Europa e porquê, janeiro 2019
3. SciMed e a humildade em ciência, abril 2019
4. Quando é necessário dizer Não, maio 2019
5. Talento ou motivação para criar?, maio 2019
6. Leonardo, março 2019
7. A ciência de Steven Pinker, e dos seus, junho 2019
8. Design de narrativa, desenho de significado na experiência interativa, abril 2019
9. Red Dead Redemption 2, um mundo-história admirável, janeiro 2019
10. Como ler um livro, outubro 2019
11. Viajar, uma volição de posse, abril 2019
12. Brincando com a mente, Claude Shannon, março 2019
13. Uriel da Costa (1585-1640), março 2019
14. Como começou a linguagem: a história da maior invenção da humanidade, agosto 2019
15. 5 razões porque é difícil fazer videojogos, julho 2019

janeiro 06, 2020

Saunders, o Bardo retornado

Lembro-me de quando "Lincoln no Bardo" (2017) saiu, da comoção da crítica e do público, seguida de múltiplos prémios, mas só agora que o li me apercebi totalmente da motivação do uso da expressão Bardo. O meu primeiro contacto com a definição tinha sido exatamente por via do budismo do Tibete, no qual o conceito se define como espaço-tempo que intermedeia a morte e o renascimento. Contudo esta definição do termo é menos comum no ocidente, onde o bardo define também os contadores de histórias medievais — sendo um epíteto muito associado hoje a Shakespeare —, principais responsáveis pelas histórias que se contavam, nomeadamente das façanhas de reis e nobres, criadores da cultura que preservaria momentos e pessoas para a eternidade. Assim, enquanto fui contactando com o livro fui-me sempre movendo entre ambas as definições, apesar de ir lendo que se tratava de uma história passada num cemitério, lia também que era onde os fantasmas contavam as suas histórias. Quando agora resolvi entrar no livro e parei para ler um pouco sobre o mesmo, percebi que era concretamente do bardo tibetano que se falava, dito pelo próprio autor que utilizou tudo aquilo que condicionou o enterro do filho de Lincoln como motivo para o seu enredo no além. Contudo, e talvez contaminado por tudo isto que disse, ao chegar ao final do livro fiquei honestamente em dúvida. Sim, estamos naquele momento após a morte, em que os fantasmas/almas/pessoas aguardam pelo que há-de vir, que cada autor/pensador vai definindo em função da influência religiosa — do bardo ao purgatório, passando pelo limbo — mas na verdade, o que temos neste livro são histórias, histórias de vidas simples e de presidentes quase-reis. Saunders não só "foi" ao Bardo pescar essas histórias, como se transformou ele próprio no Bardo que as relata para todo o sempre.
Entrando no livro, aconselho previamente o visionamento de “Lincoln” (2012), um filme muito acessível sobre os momentos marcantes da presidência de Abraham Lincoln, em que Steven Spielberg explica porque este 16º presidente se tornou num dos três mais influentes da história dos EUA. Para além disso, interessa saber que um, dos três de quatro dos seus filhos que morreram, tendo morrido em 1962, em plena Guerra Civil americana, ficou temporariamente num cemitério em Washington até ser trasladado com o pai em 1965 para a morada final no Illinois. Saunders aproveita este hiato tornado acontecimento, com tudo aquilo que historicamente o circundou, para produzir a sua ficção.
Daniel Day-Lewis como Abraham Lincoln no filme "Lincoln" (2012) de Steven Spielberg

“Lincoln no Bardo” poderia assim ser mais um livro de ficção-histórica, ainda que original pela componente fortemente fantasiosa, ao utilizar o pós-morte para dar conta dos efeitos e impactos da História, mas é mais do que isso. Porque se tudo isto que até aqui relatei parece original, dá apenas conta do contexto daquilo que é a verdadeira originalidade da obra. Saunders queria mais, não fosse ele reconhecido pela sua veia mais cómico-sarcástica, por isso além das vozes dos mortos, resolveu ir buscar vozes reais de registos deixados por múltiplas pessoas que viveram os dias que cercaram o dia retratado no livro. Deste modo, temos além da ficção, registos reais transcritos com aspas — de diários, cartas, registos estatais, livros, jornais, etc. — que Saunders entremeia num relato único. É uma escrita imensamente comum no meio académico — a narração do investigador intermediada com as citações de múltiplos outros autores em debate —, mas imensamente estranha em romance, mesmo histórico.
Lincoln lendo para o seu filho mais novo, Thomas "Tad" Lincoln

Contudo se o ponto de partida (o bardo) e a estrutura (intermediação entre ficção e registos escritos reais) eram já caso para oferecer o rótulo de originalidade, o que realmente faz do livro uma obra original é a inovação de Saunders, ao transformar a forma para nos dar a sentir diferentemente. Ele faz isso exatamente através do cruzamento entre o real e o ficcional, nomeadamente entre as vozes/pensamentos/corpos dos mortos e dos vivos. O presidente Lincoln é dado a ver e a sentir como em nenhuma outra obra antes, tal como aquilo que sente um pai quando perde um filho, e um filho que parte e deixa o pai para trás. Claro que o momento é per se imensamente melodramático, mas o relato de Saunders está longe da lamechice, antes cruza habilmente humor e melancolia, como tão raras vezes se pôde já ver. Porque é de verdade histórica que se trata, de humanos que existiram, mas é de muitos outros que sendo meras invenções em busca da consciência do estado em que se encontram, servem de veículos, de autênticos condutores, entre mundos, pessoas e sentires.
"Lincoln in the Bardo: 360 VR Video" (2017) The New York Times

Notas finais. Além do Booker, o livro foi adaptado a audiolivro tendo sido utilizadas vozes de 160 atores para dar conta da imensidade humana que atravessa o livro, tendo ainda um excerto sido adaptado para uma instalação do New York Times, que pode ser experienciado em parte no Youtube 360º.

dezembro 22, 2019

Explicação dos Pássaros (1981)

Confesso que comecei com grande entusiasmo, sentindo uma intensa admiração por cada linha nos seus saltos temporais e nas mudanças inusitadas de narradores, surpreendendo-me com a originalidade de cada metáfora e a acutilância das descrições intensamente poéticas, mas a meio do livro comecei a sentir um certo cansaço, no final já só o queria fechar. Explicações?
Rui S. é assistente universitário, num Portugal recentemente saído de uma ditadura e da Revolução. Filho de famílias da elite, deseja abraçar o outro lado, o do povo. O que consegue é ser recusado por todos. Do pai e irmãs, à primeira mulher, da elite, e filhos, assim como a segunda mulher, revolucionária comunista, e seus camaradas. Rui sente-se um espécime, um pássaro a quem abrem a barriga para estudar, catalogar e depois arrecadar numa qualquer gaveta, como fazia o seu pai com a sua estranha coleção. Arrecadado e incapaz de escapar às imposições sociais, ou ausente de vontade e motivação para o fazer, entrega-se aos “pássaros”.
O enredo é profundamente dramático, e em vários momentos acompanhamos o protagonista sentindo a tragédia com ele, mas na maior parte do tempo somos brindados com sarcasmo e sátira moldados na forma de ataques, do autor, contra as elites assim como contra o suposto proletariado, o que retira força à leitura e interpretação do personagem, desgastando-nos. A nossa expectativa assenta no encontrar de uma explicação final, completa, capaz de dar conta de todo o sofrimento apresentada, mas ALA recusa-se a tal.

ALA dá conta do modo como as vidas humanas são feitas de relações e interações que não têm de ter explicações nem sustentações muito claras. Tudo é assim, mas tudo podia ser de outro modo, e tudo o que parece pode simplesmente não o ser. Cada instante é fruto de muitos instantes anteriores, mas mais importante, é fruto da interpretação e catalogação que lhe atribuímos que depende do contexto de cada um desses instantes. As descrições e amostras de cada personagem e eventos lançados no texto por ALA seguem o modo como pensamos e sintetizamos a realidade, os outros e tudo aquilo que representam para nós. Tendemos a construir o mundo como histórias — lógicas com princípio, meio e fim — mas aos poucos vamos percebendo que essas histórias, explicações do mundo, não passam de ilusões construídas por nós para nos podermos apresentar e facilitar aos outros a nossa catalogação.

O final do livro, com o modo Circo, é no fundo a grande explicação de ALA, que demonstra como somos atores e espetadores de primeira fila das nossas próprias vidas. Ainda que o cenário seja profundamente satírico, não fosse um circo. Contudo penso que esta foi a opção de ALA para não cair no melodrama, para não lançar mão da tragédia assente nas eternas questões existenciais. Ou então, porque simplesmente faz parte do modo como ALA prefere olhar o mundo, não aceitando a excessiva seriedade com que tendemos a filosofar sobre aquilo que somos.

dezembro 21, 2019

Comportamento: sobre o nosso melhor e o pior

As razões que fazem de “Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst” (2017) um livro obrigatório para todos os que estudam o Humano são as mesmas que Robert M. Sapolsky utiliza para descrever o comportamento humano enquanto “arco multifactorial”. Ou seja, o comportamento humano é apresentado enquanto resultado de um conjunto alargado de fatores biológicos e experienciais, produzindo a necessidade em Sapolsky de escrever um livro evocando um conjunto imensamente alargado de ciências — da biologia à psicologia, passando pela neuroendocrinologia, genética, psicologia evolucionária, primatologia, economia comportamental, teoria dos jogos, educação e ainda a antropologia, a política e a filosofia — não dando primazia a qualquer uma destas, antes buscando em cada uma as partes que contribuem para o resultado final do comportamento humano. Sapolsky não diferencia os genes da experiência, antes coloca ambos como pólos de um eixo dimensional entre os quais atuam múltiplos e variáveis fatores, e em que cada um destes afeta o funcionamento do anterior e posterior, tornando impossível determinar com certeza o que produz o quê. Este problema é o cerne das ciências que estudam o humano e acaba por explicar porque as humanidades nunca se vergaram às ciências. A leitura do comportamento, seja ele expressivo ou meramente funcional, requer além da descrição processual, que a ciência fornece, uma interpretação desse processo que só as humanidades podem fornecer. Por outro lado, é neste problema ou impossibilidade de fechar o ciclo causal que reside o núcleo do nosso livre-arbítrio.
Para entrar na abordagem proposta por Sapolsky apresento um excerto da Introdução que sintetiza a essência:
A behavior has just occurred. Why did it happen? Your first category of explanation is going to be a neurobiological one. What went on in that person’s brain a second before the behavior happened? Now pull out to a slightly larger field of vision, your next category of explanation, a little earlier in time. What sight, sound, or smell in the previous seconds to minutes triggered the nervous system to produce that behavior? On to the next explanatory category. What hormones acted hours to days earlier to change how responsive that individual was to the sensory stimuli that trigger the nervous system to produce the behavior? And by now you’ve increased your field of vision to be thinking about neurobiology and the sensory world of our environment and short-term endocrinology in trying to explain what happened.
And you just keep expanding. What features of the environment in the prior weeks to years changed the structure and function of that person’s brain and thus changed how it responded to those hormones and environmental stimuli? Then you go further back to the childhood of the individual, their fetal environment, then their genetic makeup. And then you increase the view to encompass factors larger than that one individual—how has culture shaped the behavior of people living in that individual’s group?—what ecological factors helped shape that culture—expanding and expanding until considering events umpteen millennia ago and the evolution of that behavior.
(…)
There are not different disciplinary buckets. Instead, each one is the end product of all the biological influences that came before it and will influence all the factors that follow it. Thus, it is impossible to conclude that a behavior is caused by a gene, a hormone, a childhood trauma, because the second you invoke one type of explanation, you are de facto invoking them all. No buckets. A “neurobiological” or “genetic” or “developmental” explanation for a behavior is just shorthand, an expository convenience for temporarily approaching the whole multifactorial arc from a particular perspective.”
Do meu lado pessoal, e além do que introduzi acima, o que me fez apaixonar pelo livro foi o facto do caminho científico-teórico reproduzido por Sapolsky ao longo do livro estar tão de acordo com o percurso que eu próprio tenho feito no estudo da Emoção e Cognição, e no modo como estas impactam a interação, comunicação e expressão humanas. Desde logo a evocação de Robert McLean e o cérebro triúnico, assumindo que é mais metáfora do que ciência, mas assumindo que é fundamental para compreendermos o funcionamento do processo cognitivo e emotivo do nosso cérebro. Passando depois pela discussão sobre a Amígdala, o Córtex Frontal, os Marcadores Somáticos, a Testosterona, a Oxitocina, a Serotonina e a Dopamina que impactam a Motivação, a Curiosidade e o Brincar, o Vínculo Parental, a Seleção Natural, a Seleção Sexual que por sua vez impactam os Genes e os transformam, desenvolvendo variações dimensionais do Competitivo ao Colaborativo, produzindo a Empatia que regula os níveis do "Nós vs. Eles". Muito disto foi amplamente discutido por tantos outros autores aqui evocados por Sapolsky desde o grande mentor Darwin até Dawkins, Damásio ou Kahneman, passando por Harlow, Zimbardo, Milgram e Pinker ou ainda Voltaire, Hobbes e Rousseau. Este percurso requer obrigatoriamente a multidisciplinaridade como poderão ver na minha prateleira Human Engagement no GoodReads.

Existem tantas partes do livro relevantes que gostaria de aqui transcrever, muitas delas apenas como re-afirmação de ideias e conceitos, outras como crítica social assente naquilo que a ciência nos vai deixando entrever, outras como portas para novas investigações e interesses. Mas é um livro impossível de sintetizar em duas ou três páginas, é um livro que precisa de ser lido e relido, apesar das suas 800 páginas, para que possamos interiorizar a compreensão da ciência existente e ganhar assim um maior entendimento sobre o que somos:
“Neuroimaging studies show the dramatic sensitivity of adolescents to peers. Ask adults to think about what they imagine others think of them, then about what they think of themselves. Two different, partially overlapping networks of frontal and limbic structures activate for the two tasks. But with adolescents the two profiles are the same. “What do “you think about yourself?” is neurally answered with “Whatever everyone else thinks about me.” (Cap. 6)
“Are we a pair-bonded or tournament species? Western civilization doesn’t give a clear answer. We praise stable, devoted relationships yet are titillated, tempted, and succumb to alternatives at a high rate. Once divorces are legalized, a large percentage of marriages end in them, yet a smaller percentage of married people get divorced—i.e., the high divorce rate arises from serial divorcers (...) Measure after measure, it’s the same. We aren’t classically monogamous or polygamous. As everyone from poets to divorce attorneys can attest, we are by nature profoundly confused—mildly polygynous, floating somewhere in between.” (Cap. 10)
“Worldwide, monotheism is relatively rare; to the extent that it does occur, it is disproportionately likely among desert pastoralists (while rain forest dwellers are atypically likely to be polytheistic). This makes sense. Deserts teach tough, singular things, a world reduced to simple, desiccated, furnace-blasted basics that are approached with a deep fatalism. “I am the Lord your God” and “There is but one god and his name is Allah” and “There will be no gods before me”— dictates like these proliferate (...) In contrast, think of tropical rain forest, teeming with life, where you can find more species of ants on a single tree than in all of Britain. Letting a hundred deities bloom in equilibrium must seem the most natural thing in the world." (Cap. 9)
“That when it comes to empathy and compassion, rich people tend to suck (..) Across the socioeconomic spectrum, on the average, the wealthier people are, the less empathy they report for people in distress and the less compassionately they act (..) (a) wealthier people (as assessed by the cost of the car they were driving) are less likely than poor people to stop for pedestrians at crosswalks; (b) suppose there’s a bowl of candy in the lab; invite test subjects, after they finish doing some task, to grab some candy on the way out, telling them that whatever’s left over will be given to some kids—the wealthier take more candy. (..) Make people feel wealthy, and they take more candy from children. What explains this pattern? (..) wealthier people are more likely to endorse greed as being good, to view the class system as fair and meritocratic, and to view their success as an act of independence — all great ways to decide that someone else’s distress is beneath your notice or concern.” (Cap. 12)
“But Pinker failed to take things one logical step further—also correcting for differing durations of events. Thus he compares the half dozen years of World War II with, for example, twelve centuries of the Mideast slave trade and four centuries of Native American genocide. When corrected for duration as well as total world population, the top ten [of world ever conflicts] now include World War II (number one), World War I (number three), the Russian Civil War (number eight), Mao (number ten), and an event that didn’t even make Pinker’s original list, the Rwandan genocide (number seven), where 700,000 people were killed in a hundred days." (Cap. 17)
Contudo, e apesar de tantos e tantos estudos, a verdade é que determinar o comportamento humano, as suas razões ou efeitos continua a ser imensamente complexo, e por isso termino com a grande conclusão do livro, que para mim é inspiradora:
If you had to boil this book down to a single phrase, it would be “It’s complicated.” Nothing seems to cause anything; instead everything just modulates something else. Scientists keep saying, “We used to think X, but now we realize that...” Fixing one thing often messes up ten more, as the law of unintended consequences reigns. On any big, important issue it seems like 51 percent of the scientific studies conclude one thing, and 49 percent conclude the opposite. And so on. Eventually it can seem hopeless that you can actually fix something, can make things better. But we have no choice but to try. And if you are reading this, you are probably ideally suited to do so. You’ve amply proven you have intellectual tenacity. You probably also have running water, a home, adequate calories, and low odds of festering with a bad parasitic disease. You probably don’t have to worry about Ebola virus, warlords, or being invisible in your world. And you’ve been educated. In other words, you’re one of the lucky humans. So try.
Finally, you don’t have to choose between being scientific and being compassionate.
No final do livro, no Epílogo, Sapolsky lista um conjunto de grandes conclusões, cerca de 30, das quais opto por destacar 5:

  • “Repeatedly, biological factors (e.g., hormones) don’t so much cause a behavior as modulate and sensitize, lowering thresholds for environmental stimuli to cause it.”
  • “Cognition and affect always interact. What’s interesting is when one dominates.”
  • “Adolescence shows us that the most interesting part of the brain evolved to be shaped minimally by genes and maximally by experience; that’s how we learn—context, context, context.”
  • “Often we’re more about the anticipation and pursuit of pleasure than about the experience of it.”
  • “We implicitly divide the world into Us and Them, and prefer the former. We are easily manipulated, even subliminally and within seconds, as to who counts as each.”

O livro já foi editado em Portugal pela Temas & Debates, sob o título "Comportamento: A Biologia Humana No Nosso Melhor e Pior".

outubro 31, 2019

Autoajuda para artistas?

"The Artist's Way: A Spiritual Path To Higher Creativity" (1992) é um livro muito problemático porque contém ideias muito interessantes misturadas com ideias muito censuráveis. Claramente que apelando ao nosso sentido crítico qualquer um pode extrair a parte boa e negligenciar a má, contudo é preciso ter algum arcaboiço de experiência de vida para compreender os problemas do que vai sendo apresentado, o que não acontecerá com alguém até aos vinte e poucos anos. Isto torna-se ainda mais problemático quando o livro serve exatamente melhor alguém em crescimento, alguém em busca do seu caminho, com necessidade de alguém que lhe fale daquilo que sente e que lhe diga que não está sozinho. Em parte, quase me atreveria a dizer que para quem está na bifurcação das escolhas de futuro profissional, o livro pode ser todo ele bastante interessante, mesmo o lado mau, já que ele funciona como um garante extra de motivação para essa escolha. Contudo, considero que deixar-se seduzir por este tipo de discurso, apesar de poder ajudar nessa fase, pode vir a trazer bastantes dissabores, mais à frente, quando se perceber que a realidade é distinta daquela aqui apresentada.


Vou elencar alguns dos elementos imensamente positivos e relevantes para quem pretende seguir uma carreira artística, seguido dos vários problemas enunciados ao longo do discurso:

Lado Positivo e Criativo

  • Proposta de escrita de "morning pages" (todos os dias de manhã escrever 3 páginas do que nos vier à cabeça, para alguns isto já acontece com o Diário, para outros com um blog...)
  • Proposta de escrever a partir do nosso passado, a partir de sonhos não realizados, de gostos e preferências de criança, de objetos espaços e locais que falam ao nosso Eu.
  • Proposta de escrever sobre vidas imaginárias que gostaríamos de ter vivido.
  • Todo o modo como trabalha os bloqueios criativos, especialmente os medos e a baixa autoestima para garantir a criação de espaços e tempos criativos, tal como parar de nos recriminar, de nos culpar, queixar ou questionar a capacidade de fazer.

Lado Problemático

Para além de ser um livro de autoajuda, vem ainda disfarçado de livro de terapia, o que acentua o problema destes livros que se baseiam exclusivamente na experiência pessoal dos autores, suportados em mero anedotário, não corroborados por quaisquer estudos. Funcionará muito bem para pessoas que se enquadrem no tipo de personalidade e experiência de vida da autora, mas dirá muito pouco a uma grande parte de leitores. Alguns dos exemplos problemáticos que esta abordagem nos dá:

  • Uma visão demasiado assente em princípios teológicos, disfarçados pelos conceitos do movimento New Age.
  • Uma visão demasiado egocêntrica, por vezes quase a roçar o Objetivismo de Ayn Rand 
  • Demasiada ingenuidade (ou de sobranceria) quanto às definições da Arte, agravando-se na definição do Artista.

Se querem um livro sobre como desenvolverem-se como artistas, não posso deixar de recomendar vivamente o livro de Stephen King “On Writing: A Memoir of the Craft” (2000), ainda que baseado na experiência do autor, resulta de um método aplicado durante décadas e com largos frutos, não havendo lugar a justificações transcendentes. O que é feito neste livro é a tradução em texto de um processo criativo, o que permite a qualquer pessoa aprender pela imitação, sem espaço para qualquer autopiedade.

Por outro lado, e agora falando em concreto das pessoas, porque isso é também relevante, já que a autora faz questão de trazer a sua vida pessoal para o centro da cena, a verdade é que pesquisando a vida e obra de Julia Cameron, não existe aquilo que à partida pareceria existir, ou seja, uma vida de produções artísticas, nem grandes nem pequenas, apenas uma mão cheia, sendo a coisa mais importante um episódio da série Miami Vice, e o casamento de um ano com Martin Scorsese. Cameron escreveu mais de 20 livros, mas todos após o sucesso deste, e todos a falar destas mesmas coisas. Ou seja, seguir Cameron não é um processo de imitação do processo de desenvolvimento de um artista, mas antes ouvir boas palavras de incentivo à persistência. No fundo Cameron tornou-se uma guru da autoajuda para iniciantes ou desejosos de se tornarem artistas, e isso também explica muito das discussões em sua defesa que encontramos na net.