agosto 12, 2018

"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" de Michael Chabon

Pode definir-se como romance histórico, ou melhor, pretensamente histórico já que apenas o pano de fundo dos eventos e geografia são reais, a trama é fruto da invenção de Michael Chabon. Não segue a linha dos atuais documentários ficcionados (mockumentaries) já que o objetivo não é satírico, mas continua a ser histórico, mais como obra criativa de homenagem, seguindo explicitamente o exemplo de Orson Welles com "Citizen Kane" (1941). Enquanto Welles usa a vida real de William Randolph Hearst para dar corpo ao seu protagonista Charles Foster Kane, Chabon usa a vida de Jack Kirby para criar Joe Kavalier. Kirby foi um dos principais mentores da banda desenhada de super-heróis do século passado, um dos maiores expoentes da Era Dourada, entre 1930 e 1950, criador de vários super-heróis que ainda hoje pululam o imaginário global — Quarteto Fantástico, Homem de Ferro, Thor, Hulk, X-Men, Os Vingadores, Doutor Estranho, Pantera Negra, Feiticeira Escarlate, Homem-Formiga, Nick Fury.  Chabon não se ficaria pela primeira camada, a da pessoa do criador, optando por oferecer-lhe a criação de um super-herói que nomeia de Escapista, sendo também este decalcado da realidade e criação de Kirby, o Capitão América. Para quem conhece as origens do Capitão América facilmente depreenderá o que move o Escapista e acaba assim a suportar a introdução dos efeitos e tragédias da Segunda Guerra Mundial nesta obra.

A cena amplamente descrita como o nº1 da revista "O Escapista", não é mais do que a cena do nº1 da revista "Capitão América" de 1941.

A partir deste primeiro parágrafo pode-se compreender desde já, não só o modelo utilizado, mas também a complexidade de inter-relações existentes na obra de Chabon que obriga a uma leitura informada, ou seja com um bom lastro de contexto presente para se poder fruir completamente a obra. Desengane-se aquele que atraído pelos super-heróis espera encontrar aqui uma leitura fácil, rápida ou superficial. Ao longo das quase 700 páginas somos continuamente atirados para um mundo de referências reais: à BD, à sua linguagem expressiva, aos seus temas e seus problemas de afirmação enquanto arte; aos super-heróis e seus criadores, as suas editoras e editores; assim como ao tecido social americano dos anos 30-50 do século XX feito de discriminação da mulher, do desprezo pelo trabalho criativo, ou da enorme violência moral e física contra a homossexualidade; e ainda aos efeitos devastadores da Segunda Guerra Mundial sobre a comunidade judaica na Europa, centrado em Praga, com Portugal a servir de porta de saída para muitos refugiados, e os EUA a declinarem a aceitação desses refugiados. A tudo isto podemos ainda acrescentar personagens reais que vão passeando ao fundo e por vezes dialogando com os nossos personagens tais como Salvador Dali, Orson Welles, Eleanor Roosevelt, Stan Lee, Will Eisner, ou Fredric Wertham (autor do livro, "Seduction of the Innocent" (1954), responsável pela polémica social à volta da violência na BD).

O Empire State Building em Nova Iorque é o principal cenário da história, e motivo da capa da edição americana.

A capa portuguesa, assim como o título usado, são muito maus, não ajudando em nada à promoção do mesmo. Aliás não admira que o livro, com o número considerável de páginas que tem, esteja à venda por um valor tão baixo.

Na contra-capa do livro fala-se em Nabokov, o que me parece completamente despropositado, Chabon enreda-se muito, usa metáforas nem sempre muito conseguidas, nomeadamente no campo do olfacto, e apesar de alguma crítica catalogar a estrutura como pós-moderna, considero-a antes frágil e pouco suportada pelas intenções do autor. Mas se faço estes reparos é mais pelos prémios e elogios recebidos que poderiam passar a ideia de perfeição, já que na verdade a escrita apresenta um nível bastante elevado de elaboração e maturação. Quanto a rotularem o livro no género Épico não me choca. A história atravessa várias décadas, permitindo-nos acompanhar a vida de dois grandes criadores de banda desenhada, focando-se na arte mas também nas suas vidas, e no modo como as suas próprias tragédias alimentaram a sua arte. O romance atravessa uma parte importante da história da 9ª arte, assim como da história da América e da Europa, é impossível ficar-lhe indiferente, e não sentir que uma parte do que aqui se relata é História de que todos somos feitos. Claro que aqueles que, como eu, iniciaram a sua paixão pela leitura com muitos dos personagens imaginários aqui referenciados sentirão mais de perto, mas como disse antes o livro é muito mais do que BD, é uma resenha histórica de um período da nossa história que teve um lado destrutivo e mau, situado na Europa, que acabou por contribuir para um outro lado bom e construtivo na América.

Este, como muitos outros livros vêm colocar o dedo numa ferida que queremos esquecer mas que não podemos. A Segunda Guerra não foi apenas estúpida por todas as pessoas que matou e violentou, mas também porque acabou demonstrando aos seus promotores o quão errados estavam, já que a fuga dos judeus para os EUA contribuiu fortemente para estes se tornarem na super-potência que hoje ainda são. Foi a massa cinzenta de excelência de judeus que habitavam a Europa e daqui conseguiram escapar que fez com que os EUA se tornassem grandes criadores de banda-desenhada (Jerry Siegel e Joe Shuster, Jack Kirby e Joe Simon, Will Eisner, Stan Lee) assim como de cinema, de ciência e tecnologia. Aliás, isto mesmo seria reconhecido por Churchill quando depois de receber Einstein como refugiado em Inglaterra acedeu ao seu pedido de trazer mais cientistas judeus da Alemanha para Inglaterra. Ironicamente, Churchill não conseguiria aprovar a naturalização de Einstein no parlamento inglês, tendo este acabado por rumar aos EUA, país em que finalmente se naturalizaria após ter renunciado a cidadania alemã.

Na senda ainda do reconhecimento destas capacidades empreendedoras das comunidades, a leitura desta obra permite-nos aceder a um dos momentos de puro empreendimento tão tipicamente impulsionado pelas lógicas mercantis americanas. Repare-se como ao contrário da Europa, a sociedade não se moveria pela qualidade da BD, mas pelo seu lado comercial, pelo interesse e popularidade das obras criadas. Já antes, no início do século XX, tinha sido assim com a indústria do cinema, e a diferença entre a criação americana e europeia que se denota até aos dias de hoje. E repare-se como este cenário se volta a repetir nos anos 1970 com a indústria dos videojogos. Aliás, se Chabon estabelece várias relações entre o Cinema e a BD, eu não deixei de estabelecer imensas com os Videojogos ao longo de toda a leitura. Sobre isto deixo uma discussão imensamente pertinente sobre a linguagem e aceitação social da BD que hoje se aplicaria de igual modo aos videojogos:
“It was that Citizen Kane represented, more than any other movie Joe had ever seen, the total blending of narration and image that was—didn't Sammy see it?—the fundamental principle of comic book storytelling, and the irreducible nut of their partnership. Without the witty, potent dialogue and the puzzling shape of the story, the movie would have been merely an American version of the kind of brooding, shadow-filled Ufa-style expressionist stuff that Joe had grown up watching in Prague. Without the brooding shadows and bold adventurings of the camera, without the theatrical lighting and queasy angles, it would have been merely a clever movie about a rich bastard. It was more, much more, than any movie really needed to be. In this one crucial regard—its inextricable braiding of image and narrative— Citizen Kane was like a comic book. 
"I don't know, Joe," Sammy said. "I'd like to think we could do something like that. But come on. This is just, I mean, we're talking about comic books." 
"Why do you look at it that way, Sammy?" Rosa said. "No medium is inherently better than any other." Belief in this dictum was almost a requirement for residence in her father's house. “It's all in what you do with it.” 
[Não tendo acesso ao texto português em formato digital deixo o excerto em inglês]
Para fechar, uma leitura mais abstraída e focada no conteúdo. Chabon opta por enlaçar o universo da BD com o do ilusionismo, nomeadamente com Houdini e as suas artes do escapismo. São ainda hoje memoráveis as proezas de Houdini a escapar-se de correntes e caixas debaixo de água. O protagonista aqui é aficionado da arte, e o super-herói criado por ele faz homenagem ao escapismo. Ora a BD, especialmente de super-heróis, assim como toda a fantasia e ficção-científica, são comumente conotadas com o escapismo, neste caso o mental e não físico. Ler certos géneros de histórias podem conduzir a um certo escapismo da realidade, o que pode ser visto como crítico e o livro fala dessa preocupação por parte da sociedade, por poder representar uma tentativa de fugir ao seu quotidiano, de se furtar às suas responsabilidades sociais. Do meu ponto de vista parece-me que a relação com Houdini e o seu lado do espetáculo é um tanto forçada, no entanto considero que o modo como Chabon utiliza o escapismo ilusionista com os seus personagens funciona muito bem. Kavalier & Clay vivem toda uma vida em fuga, tanto física como mental, e desse modo acabam sendo ambos personagens muito mais ricas do que Houdini.

Em 2004 Brian K. Vaughan acabaria por criar uma série de BD para a Dark Horse, baseada no livro de Chabon, dando assim pela primeira vez"vida" ao super-herói Escapista.

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