Já está disponível o ebook "Abordagens da Narrativa nos Media", resultado do Workshop ‘Narrativa, Media e Cognição’ que decorreu em junho 2014 na UM. O objectivo do workshop tinha o intuito de gerar discussão à volta das formas narrativas usadas nos media. Os resultados do workshop foram entretanto estendidos e aprofundados e agora publicados com o propósito de alargar o debate ocorrido.
Para este ebook produzi um texto que já andava com intenção de escrever há algum tempo, tendo sido o workshop muito útil para trabalhar teorias, conceitos e especulações. Neste texto, "Da Experiência Narrativa em Diferentes Media", exploro as potenciais diferenças decorrentes da experiência de mensagens sob a forma narrativa através de diferentes media (livro, cinema e videojogos).
Fica o agradecimento a todos os participantes do workshop e a todos os que colaboraram na elaboração deste ebook. Todos os textos estão assim disponíveis completos online para descarregar nas Publicações CECS.
dezembro 30, 2014
dezembro 28, 2014
Um conto de natal interativo
A Simogo, empresa sueca constituída por Simon Flesser e Magnus Gardebäck, conhecida por trabalhos como "A Year Walk" (2013), "Device 6" (2013) ou "The Sailor's Dream" (2014), resolveu criar um presente de natal este ano para presentear os seus fãs por todas as mensagens que lhes fazem chegar sempre que lançam um novo trabalho. "The Sensational December Machine" (2014) é um 'conto interactivo', escrito e desenvolvido ao longo de três semanas, que se pode experienciar em PC ou Mac gratuitamente.
"The year is almost over, and it's that time of the year when you look back, get a bit contemplative and perhaps even a little misty eyed. What we found looking back, is that we always get so much support and kindness from our fans, and we wanted to find a way to express our gratitude. So, we’ve spent the last three weeks creating this thing as a Christmas present for you, our dear fans." [blog]
O conto trata da invenção das máquinas, dos seus propósitos e desígnios, do que as move, e do que nos move. Porque criamos máquinas, o que esperamos delas, porque temos medo delas... É um conto curto mas capaz de estimular muitas interrogações...
Com pouco tempo de desenvolvimento, não seria de esperar algo muito aprofundado na forma, apesar disso a Simogo nunca desilude, apresentando desta vez um universo 3d, no qual nos movemos em perspectiva, criando uma espécie de viagem entre futuro e presente interligados, permitindo-nos literalmente viajar no tempo da narrativa. Para a construção plástica do universo, conta muito o modo como foi desenhada a faixa sonora que nos permite avançar e recuar mantendo-nos sempre dentro do acorde e ritmos "correctos". Simon Flesser desvendou, para o Kill Screen, um pouco o modo como foi pensado o movimento em perspectiva,
"We stood up a lot and studied what happens when you actually move and look around in real life (..) So we play a lot with moving the camera sideways when you are looking around in the game, because in real life, when you look around you tend to move your shoulders and back, which creates a parallax effect you won't get if you only rotate a camera like you normally do in first person games."Para experienciar descarregar aqui.
dezembro 27, 2014
IGN: comentário à violência em GTA
Esta semana publiquei o último texto do ano no IGN, "A Liberdade da Violência", tendo escolhido para tal o tema da violência e os problemas que os videojogos têm apresentado no trato do mesmo. Este é um assunto imensamente problemático porque: de um lado temos os opositores dos videojogos que usam e abusam do tema para maltratar o meio; do outro lado temos os jogadores que se sentem atacados e reagem em defesa, mesmo que seja indefensável. Por isso mesmo acaba sendo um tema que evito, porque não gosto de polarizações, se o fiz foi apenas porque desmultipliquei o foco do assunto, introduzindo três casos para análise: retirada da versão remasterizada de "GTA V" de algumas lojas; o trailer de "Hatred"; e a apresentação de um jogo de guerra pela UNICEF.
Apesar destas minhas preocupações, a polémica acabou por surgir nos comentários do IGN. Normalmente não respondo, mais ainda quando os comentários surgem em tom desadequado, no entanto acabei por responder, porque entendi que podia adicionar algo mais ao que tinha dito no artigo. Os artigos que escrevo raramente ultrapassam as mil palavras, não por razões de espaço, mas por razões de atenção e respeito pelo tempo de quem lê. Por isso por vezes não é possível dizer tudo, mais ainda quando se discute um assunto de múltiplas perspectivas como acontece neste caso. Desta forma o texto desta semana acaba por se prolongar nos comentários, com ênfase para o caso de "GTA V".
O texto completo pode ser lido em "A Liberdade da Violência".
Apesar destas minhas preocupações, a polémica acabou por surgir nos comentários do IGN. Normalmente não respondo, mais ainda quando os comentários surgem em tom desadequado, no entanto acabei por responder, porque entendi que podia adicionar algo mais ao que tinha dito no artigo. Os artigos que escrevo raramente ultrapassam as mil palavras, não por razões de espaço, mas por razões de atenção e respeito pelo tempo de quem lê. Por isso por vezes não é possível dizer tudo, mais ainda quando se discute um assunto de múltiplas perspectivas como acontece neste caso. Desta forma o texto desta semana acaba por se prolongar nos comentários, com ênfase para o caso de "GTA V".
O texto completo pode ser lido em "A Liberdade da Violência".
dezembro 26, 2014
Análise: “O Meu Irmão” (2014)
Portentoso debute. “O Meu Irmão” é dono de uma escrita sublime e dotado de um enredo matematicamente alinhavado, em nome do contar de uma história capaz de nos arrancar um grito de alma. Peguei nas primeiras páginas na noite, já tarde e sem grande ideia de o começar a ler, contudo a beleza do que comecei a ler num fio encadeado de palavras fluídas, logo me manteve ali preso.
Afonso Reis Cabral é jovem e por isso com muito ainda para dar às letras nacionais, apesar de primeira novela a maturidade apresentada dá conta de tanto e tanto trabalho realizado para chegar aqui, temos por detrás destas páginas alguém que leu centenas se não milhares de obras, temos alguém que escreveu centenas se não milhares de páginas, no que podemos ler ao longo destas 360 páginas fica demonstrado um domínio exímio da nossa língua, assim como uma noção muito concreta do que comporta uma novela.
Não foram poucos os que criticaram o escritor, não a obra porque nem sequer a tinham lido, só foi publicada depois de escolhida pelo júri do Prémio Leya 2014. Ganhar um prémio literário num valor de 100 mil euros é algo que levanta o sobrolho a qualquer um, ganhar com apenas 24 anos faz disparar o espanto, mas dizer que é trineto de Eça de Queirós faz surgir a desconfiança.
Contudo a capacidade de criar um texto destes não se define pela idade e menos ainda pela herança genética. Como nos dizem os vários estudos sobre o talento humano (Colvin, 2008; Coyle, 2009) esta capacidade só surge com muito, imenso, trabalho. Afonso Reis Cabral pode ter apenas 24 anos, mas se começou a escrever, como diz, aos 9 anos, tem 15 anos de labor em cima da arte. Do que nos é dado a ler é fácil ver as influências dos grandes clássicos da literatura, mas também se sente muito do seu mundo vivido, o que nos diz que o autor não só foi buscar muito aos outros que o precederam, como devia, mas também que é extremamente atento à realidade que o circunda.
Para Alain de Botton "a literatura é o maior simulador de realidade", capaz de nos fazer passar por experiências para as quais precisaríamos de várias vidas. O escritor Afonso Reis Cabral, e a sua idade, são a prova viva desse capacidade da literatura. Claro que não basta ler muito para se tornar num grande escritor, é preciso agir e trabalhar sobre aquilo que se lê e se consome, correndo o risco de nos deixarmos consumir. Ou seja, escrever, escrever todos os dias e sempre. Mas para poder evoluir falta ainda a motivação e a orientação, porque por muito solitária que seja a vida de quem escreve, o crescimento só é possível com o feedback de quem nos lê. Nesse sentido, ter tido bons professores no secundário e seguir uma licenciatura e mestrado na área das letras ajudou bastante.
Para quem entretanto o leu, dizer, ou criticar sob o preconceito dos 24 anos, que não se pode ainda escrever com profundidade (não vou nomear), é infantil porque se busca a infantilização do ser humano. Podemos sem dúvida questionar se esta será a sua maior obra, pois espero que não, é apenas o início de um caminho, que deve ser valorizado enquanto tal, não se analisa uma primeira obra como se analisa a obra de uma vida.
Falei acima do sentimento matemático que percorre o texto, que é no fundo um sentir profundamente académico que vibra ao longo de todo o livro e que de forma inteligente é atribuído pelo autor ao personagem principal, na sua profissão de investigador e professor universitário. O enredo entre cada uma das pequenas histórias cozidas num todo, segue um processo de harmonização em busca de uma perfeição, com cada lugar, personagem e evento a trabalharem para um sentido muito concreto e altamente coerente. Por outro lado, existe uma fuga, que me parece consciente, a essa racionalização ou perfeccionismo que acaba por emergir numa espécie de mancha naturalista. Ou seja, existem diálogos com expressões duras, a roçar o mau gosto, incomodativas, chegando a tornar-se perturbadoras se pensarmos que este autor pode sequer ter pensado o que está ali escrito, mas que não estão ali por acaso, antes objectivam o tal naturalismo, um dar a sentir o que se diz e pensa em determinados momentos das nossas vidas, mesmo que isso não represente a forma polida de o escrever. Aliás este naturalismo é também em certa medida fruto do traço estilístico escolhido para a narração que se faz a duas vozes, ainda que da mesma pessoa, como se o narrador fosse dotado de um homúnculo que vai corrigindo e aprofundando a ‘verdade’ do que se vai narrando. Ou seja, nota-se aqui uma certa vontade de imprimir honestidade ao que é dito, e para que essa funcione, limpar e polir os diálogos poderia facilmente desacreditar essa frontalidade.
Ao longo do livro fui sentindo uma certa influência de cinema francês (ex. Eric Rohmer ou Alain Resnais), na forma como as relações humanas são descritas e moldadas, a suavidade e delicadeza da sua exposição. Parece nunca haver pressa para dar conta de um personagem, das suas relações ou daquilo que o afecta, como se a vida corresse a seu tempo ignorando as nossas angústias e a velocidade a que nos fomos acostumando que tudo gire. Para isto contribui imenso o lugar no interior do país, o constante apego ao passado, e claro o ritmo alternativo da vida de alguém que sofre de síndrome de Down. Ao longo de todo o livro o síndrome é tratado como algo perfeitamente normal, encaixável nos ritmos dos dias de hoje, muito pelo suporte das associações que tomam conta da maior parte destes indivíduos durante o dia, aliviando imenso o peso sobre as famílias. Não que se mascare o problema, ele é bem evidenciado, por vezes de forma diria mesmo perfurante, assim como nunca se usa o ‘problema’ para desenhar o sentimentalismo ou a melancolia fácil.
Mais para o final o modo calmo e suave, ainda que sempre fluidamente ritmado, sofre uma ligeira alteração assumindo um tom mais policial que inicialmente me afastou, pois soou-me a necessidade de cumprir as regras do storytelling, mas pouco depois altera-se de novo quando tudo se resume e encaixa no fechamento do todo, fazendo antes com que este episódio assuma o brilho da genialidade do autor, comportando em si mesmo tudo aquilo que na verdade este pretendia expressar, tudo aquilo que provavelmente o terá levado a escrever este livro.
Deixo apenas três frases que dão conta da escrita de Afonso Reis Cabral, do modo como este consegue simplificar o discurso, metaforizando sentires com imagens do quotidiano, tornando o mundo descrito extremamente acessível, mas demonstrando toda a sua capacidade para elaborar textualmente universos. Mais transcreveria se tivesse o livro em digital:
Nota quantitativa no GoodReads.
Afonso Reis Cabral é jovem e por isso com muito ainda para dar às letras nacionais, apesar de primeira novela a maturidade apresentada dá conta de tanto e tanto trabalho realizado para chegar aqui, temos por detrás destas páginas alguém que leu centenas se não milhares de obras, temos alguém que escreveu centenas se não milhares de páginas, no que podemos ler ao longo destas 360 páginas fica demonstrado um domínio exímio da nossa língua, assim como uma noção muito concreta do que comporta uma novela.
Não foram poucos os que criticaram o escritor, não a obra porque nem sequer a tinham lido, só foi publicada depois de escolhida pelo júri do Prémio Leya 2014. Ganhar um prémio literário num valor de 100 mil euros é algo que levanta o sobrolho a qualquer um, ganhar com apenas 24 anos faz disparar o espanto, mas dizer que é trineto de Eça de Queirós faz surgir a desconfiança.
Contudo a capacidade de criar um texto destes não se define pela idade e menos ainda pela herança genética. Como nos dizem os vários estudos sobre o talento humano (Colvin, 2008; Coyle, 2009) esta capacidade só surge com muito, imenso, trabalho. Afonso Reis Cabral pode ter apenas 24 anos, mas se começou a escrever, como diz, aos 9 anos, tem 15 anos de labor em cima da arte. Do que nos é dado a ler é fácil ver as influências dos grandes clássicos da literatura, mas também se sente muito do seu mundo vivido, o que nos diz que o autor não só foi buscar muito aos outros que o precederam, como devia, mas também que é extremamente atento à realidade que o circunda.
Para Alain de Botton "a literatura é o maior simulador de realidade", capaz de nos fazer passar por experiências para as quais precisaríamos de várias vidas. O escritor Afonso Reis Cabral, e a sua idade, são a prova viva desse capacidade da literatura. Claro que não basta ler muito para se tornar num grande escritor, é preciso agir e trabalhar sobre aquilo que se lê e se consome, correndo o risco de nos deixarmos consumir. Ou seja, escrever, escrever todos os dias e sempre. Mas para poder evoluir falta ainda a motivação e a orientação, porque por muito solitária que seja a vida de quem escreve, o crescimento só é possível com o feedback de quem nos lê. Nesse sentido, ter tido bons professores no secundário e seguir uma licenciatura e mestrado na área das letras ajudou bastante.
Para quem entretanto o leu, dizer, ou criticar sob o preconceito dos 24 anos, que não se pode ainda escrever com profundidade (não vou nomear), é infantil porque se busca a infantilização do ser humano. Podemos sem dúvida questionar se esta será a sua maior obra, pois espero que não, é apenas o início de um caminho, que deve ser valorizado enquanto tal, não se analisa uma primeira obra como se analisa a obra de uma vida.
Falei acima do sentimento matemático que percorre o texto, que é no fundo um sentir profundamente académico que vibra ao longo de todo o livro e que de forma inteligente é atribuído pelo autor ao personagem principal, na sua profissão de investigador e professor universitário. O enredo entre cada uma das pequenas histórias cozidas num todo, segue um processo de harmonização em busca de uma perfeição, com cada lugar, personagem e evento a trabalharem para um sentido muito concreto e altamente coerente. Por outro lado, existe uma fuga, que me parece consciente, a essa racionalização ou perfeccionismo que acaba por emergir numa espécie de mancha naturalista. Ou seja, existem diálogos com expressões duras, a roçar o mau gosto, incomodativas, chegando a tornar-se perturbadoras se pensarmos que este autor pode sequer ter pensado o que está ali escrito, mas que não estão ali por acaso, antes objectivam o tal naturalismo, um dar a sentir o que se diz e pensa em determinados momentos das nossas vidas, mesmo que isso não represente a forma polida de o escrever. Aliás este naturalismo é também em certa medida fruto do traço estilístico escolhido para a narração que se faz a duas vozes, ainda que da mesma pessoa, como se o narrador fosse dotado de um homúnculo que vai corrigindo e aprofundando a ‘verdade’ do que se vai narrando. Ou seja, nota-se aqui uma certa vontade de imprimir honestidade ao que é dito, e para que essa funcione, limpar e polir os diálogos poderia facilmente desacreditar essa frontalidade.
Ao longo do livro fui sentindo uma certa influência de cinema francês (ex. Eric Rohmer ou Alain Resnais), na forma como as relações humanas são descritas e moldadas, a suavidade e delicadeza da sua exposição. Parece nunca haver pressa para dar conta de um personagem, das suas relações ou daquilo que o afecta, como se a vida corresse a seu tempo ignorando as nossas angústias e a velocidade a que nos fomos acostumando que tudo gire. Para isto contribui imenso o lugar no interior do país, o constante apego ao passado, e claro o ritmo alternativo da vida de alguém que sofre de síndrome de Down. Ao longo de todo o livro o síndrome é tratado como algo perfeitamente normal, encaixável nos ritmos dos dias de hoje, muito pelo suporte das associações que tomam conta da maior parte destes indivíduos durante o dia, aliviando imenso o peso sobre as famílias. Não que se mascare o problema, ele é bem evidenciado, por vezes de forma diria mesmo perfurante, assim como nunca se usa o ‘problema’ para desenhar o sentimentalismo ou a melancolia fácil.
Mais para o final o modo calmo e suave, ainda que sempre fluidamente ritmado, sofre uma ligeira alteração assumindo um tom mais policial que inicialmente me afastou, pois soou-me a necessidade de cumprir as regras do storytelling, mas pouco depois altera-se de novo quando tudo se resume e encaixa no fechamento do todo, fazendo antes com que este episódio assuma o brilho da genialidade do autor, comportando em si mesmo tudo aquilo que na verdade este pretendia expressar, tudo aquilo que provavelmente o terá levado a escrever este livro.
Deixo apenas três frases que dão conta da escrita de Afonso Reis Cabral, do modo como este consegue simplificar o discurso, metaforizando sentires com imagens do quotidiano, tornando o mundo descrito extremamente acessível, mas demonstrando toda a sua capacidade para elaborar textualmente universos. Mais transcreveria se tivesse o livro em digital:
“Torna-se complicado quando ao cuspir também se quer projectar o ódio acumulado nas paredes do estômago.”
“...o tempo deixa-se escorregar como uma faca bem afiada: quando damos por isso, o corte está feito”
“Estalou os dedos e gaguejou, tropeçou nos gestos e nas palavras enquanto tentava ordenar o relato”
Nota quantitativa no GoodReads.
dezembro 23, 2014
Interagindo com o tempo
“Five Minutes” (2014) é um filme interactivo, inicialmente desenvolvido como protótipo por Maximilian Niemann e Felix Faißt, enquanto estudantes de Cinema na Filmakademie Baden-Württemberg, tendo apenas sido transformado no produto final depois de apresentado à Casio e obtido o financiamento para a sua produção completa. Ou seja, é branded content, mas funciona de modo quase independente desse aspecto, nomeadamente se não conhecermos o objecto da marca quase nem damos conta da componente publicitária.
Enquanto objecto fílmico está muito conseguido, com excelente storytelling, muito bons planos e desenho de sequências, os actores não são de topo, mas funcionam bastante bem. Temos uma curta de cinco minutos que nos mantém agarrados e com vontade de saber o que vai acontecer a seguir até ao último segundo.
Em termos de conteúdo, é mais uma historieta de zombies, nada de novo, apenas os sintomas são distintos e daí refrescantes, sendo o principal a perda de memória e o tempo até que isto suceda que acaba por ser aproveitado de forma brilhante pelo guião, e nomeadamente pela camada interativa. Inevitável pensar na influência estética de “The Last of Us” (2013) que muito me satisfaz, dando conta do impacto cultural dos videojogos.
A componente interactiva, que era aquela que mais me interessava, fica-se por uma simples camada de ações gráficas no ecrã, claramente desenhadas para interacção em tablet, que pouco acrescenta à história, contribuindo apenas para trabalhar a questão do tempo, o que não deixa de ser interessante tendo em conta que o objecto da acção de branded content é um relógio. Sentimo-nos a seguir o filme, surgindo a interacção num modo algo intrusivo, acabando nós por percepcionar a interacção como um dilatar do tempo que contribui para a elevação da tensão da experiência. Ou seja, a interatividade aqui destina-se a construir uma percepção mais acentuada da pressão do tempo, aproximando-nos dos sentires dos nossos protagonista, em sintonia com os objectivos dos criadores, como nos diz Maximilian Niemann
Para ver seguir para Five Minutes.
Enquanto objecto fílmico está muito conseguido, com excelente storytelling, muito bons planos e desenho de sequências, os actores não são de topo, mas funcionam bastante bem. Temos uma curta de cinco minutos que nos mantém agarrados e com vontade de saber o que vai acontecer a seguir até ao último segundo.
Em termos de conteúdo, é mais uma historieta de zombies, nada de novo, apenas os sintomas são distintos e daí refrescantes, sendo o principal a perda de memória e o tempo até que isto suceda que acaba por ser aproveitado de forma brilhante pelo guião, e nomeadamente pela camada interativa. Inevitável pensar na influência estética de “The Last of Us” (2013) que muito me satisfaz, dando conta do impacto cultural dos videojogos.
A componente interactiva, que era aquela que mais me interessava, fica-se por uma simples camada de ações gráficas no ecrã, claramente desenhadas para interacção em tablet, que pouco acrescenta à história, contribuindo apenas para trabalhar a questão do tempo, o que não deixa de ser interessante tendo em conta que o objecto da acção de branded content é um relógio. Sentimo-nos a seguir o filme, surgindo a interacção num modo algo intrusivo, acabando nós por percepcionar a interacção como um dilatar do tempo que contribui para a elevação da tensão da experiência. Ou seja, a interatividade aqui destina-se a construir uma percepção mais acentuada da pressão do tempo, aproximando-nos dos sentires dos nossos protagonista, em sintonia com os objectivos dos criadores, como nos diz Maximilian Niemann
“The core idea was to add another emotional dimension to the medium of film by putting the viewer in the main character’s perspective and exposing him to the same time pressure. In our opinion it is ultimately important to immerse the viewer in the story completely, thus he should feel that his interaction makes all the difference. We wanted to create an experience, where it’s not about collecting some abstract points, but a game in which you have to succeed to see the end of the film.” [ShortoftheWeek]Podemos dizer que cumpriram plenamente com o que pretendiam, essencialmente a camada interactiva acaba por enfatizar o tempo, e pressionar-nos tal como o protagonista se sente pressionado. Contudo e apesar de bem excetuado, sabe a pouco, acabando por gerar alguma frustração uma vez que de todas as vezes que não conseguimos cumprir, simplesmente morremos sendo levados a repetir a mesma acção, nunca existindo alternativa. Tirando o final, com a escolha das cores, tudo o resto acaba por não ir além do mero artifício interactivo, acabando por não surgir o esperado “diálogo” entre o espectador e a obra.
Para ver seguir para Five Minutes.
dezembro 22, 2014
o Belo
Rino Stefano Tagliafierro criou "Beauty" (2014), aquilo que parecia ser mais um trabalho no campo da animação de obras de arte, algo que se foi tornando cliché com o advento das tecnologias de edição audiovisual (ver Movimento de: Gogh, Munch e Picasso ou Recriação de grande quadro em 3D). Por isso demorei tanto tempo a ver o trabalho, que já está online há quase um ano, e agora deixou de estar online por andar a percorrer os festivais de cinema. A verdade é que encontrei o filme completo e pude finalmente dar-me ao deleite de o saborear, e compreender porque não era apenas mais um filme do género.
"Beauty" socorre-se de um conjunto extenso de obras para construir uma espécie de mini-narrativa que é fortemente suportada pelos períodos Renascentista, Barroco e Romantismo, reconhecidos pelo enaltecimento da beleza do corpo, do drama e da tragédia. Deste modo Tagliafierro desenvolve um conjunto de temas que se repetem em várias obras desses períodos, criando uma certa causalidade coadjuvada por uma banda sonora que força o sentimento de progressão narrativa, conseguindo assim criar algo de verdadeiramente único, pode-se mesmo dizer, belo. O filme consegue assim transpor o sentimento que percorre cada tela para um objecto temporal e sonoro, criando uma experiência nova, rica, e altamente sensorial.
"Beauty" socorre-se de um conjunto extenso de obras para construir uma espécie de mini-narrativa que é fortemente suportada pelos períodos Renascentista, Barroco e Romantismo, reconhecidos pelo enaltecimento da beleza do corpo, do drama e da tragédia. Deste modo Tagliafierro desenvolve um conjunto de temas que se repetem em várias obras desses períodos, criando uma certa causalidade coadjuvada por uma banda sonora que força o sentimento de progressão narrativa, conseguindo assim criar algo de verdadeiramente único, pode-se mesmo dizer, belo. O filme consegue assim transpor o sentimento que percorre cada tela para um objecto temporal e sonoro, criando uma experiência nova, rica, e altamente sensorial.
"Beauty" (2014) de Rino Stefano Tagliafierro
dezembro 14, 2014
Narrativas que Bifurcam a nossa Percepção
"Neblina" (2014) é um belíssimo trabalho de experimentação com a linguagem audiovisual ao nível da participação do receptor, uma busca pela criação de acessos à plástica da matéria audiovisual, um redesenhar da experiência do espectador que o obriga a participar na construção do sentido. "Neblina" é uma obra audiovisual interactiva enquadrada no âmbito do projecto "Os Caminhos que se Bifurcam" do colega Bruno Mendes da Silva, professor da Universidade do Algarve.
Do ponto de vista plástico temos, para começar, vários elementos de enorme qualidade que são combinados para engendrar toda uma atmosfera capaz de nos conduzir à suspensão da descrença, desde logo começando pela neblina que paira ao longo de quase todo o filme e cria um universo próprio, muito ficcional mas ao mesmo tempo cinematograficamente crível. Aliás todo o trabalho respira influências profundamente cinematográficas, desde logo com a banda sonora que começa num registo Nymaniano, muito atmosférico capaz de nos colar aos personagens que vão surgindo no ecrã, para a seguir nos levar para um registo clássico e Hitchcockiano que nos questiona - quem são, porque estão ali, o que fazem, para onde vão - num suspense que emerge e adensa o sentido, acalentando o nosso interesse pelo que estamos a experienciar. Tudo isto é envolvido por uma fotografia a preto e branco de grande qualidade do Rui António, com contrastes marcados, servindo a luz como pincel da expressividade de cada momento que se vive na tela.
Ainda no campo audiovisual tenho de ressaltar o uso da narração ao longo de todo o filme, porque se por um lado a podemos encarar como uma estratégia menor no dar a ver, porque colando sentidos aonde a imagem não consegue chegar, neste caso concreto acaba servindo um papel estruturante, questionando-me mais uma vez, porque obcecamos nós tanto com a especificidade de cada linguagem? Porque é que o cinema tem de ser capaz de mostrar tudo e nada deve dizer, ou porque é que o videojogo tem de ser totalmente interactivo e não pode por vezes também parar, e simplesmente dar a ver? Não será a linguagem audiovisual a linguagem de síntese, aquela que se forma do todo, que tanto pode dar a ver, como dar a ouvir, como logo a seguir dar a participar?
Desconstruindo agora a componente de interacção, em "Neblina" temos 3 fluxos de imagem em movimento e 1 fluxo único sonoro. A interface permite-nos saltar entre os 3 por meio de dois botões, à esquerda e direita da projecção central, sem que a componente sonora se altere. Do ponto de vista do design da interacção diria que a abordagem do Bruno se aproxima bastante da abordagem escolhida por Miquel Dewever-Plana e Isabelle Fougère no seu documentário “Alma, a Tale of Violence” (2012), que tinha já sido muito feliz, e aqui volta a demonstrar todo o seu interesse. Ou seja, a manutenção de um fluxo contínuo sonoro facilita a vida aos criadores, que podem assim desenhar a experiência num tempo fixo, mas para o espectador torna também a obra mais acessível. Ou seja, o facto de existir uma faixa sonora contínua mantém-me dentro da atmosfera da obra, porque me oferece a garantia de que continuo no caminho certo, isto é, esperado pela obra, e assim relaxa-me para que aproveite e desfrute da interacção com a componente visual, sem o receio de me perder, ou de perder algo que possa comprometer a obtenção de significado.
Chegando agora ao desenho dos acessos participativos na narrativa, tenho a dizer que funcionam de forma soberba muito por força da narração. Mesmo apontando a crítica que já apontei acima, do facilitismo que é usar o texto em vez da imagem para contar, a verdade é que não consigo deixar de pensar em duas grandes obras do espectro audiovisual, provenientes de extremos opostos e que se socorrem da mesma técnica - o filme “Europa” (1991) de Lars Von Trier e o videojogo “Bastion” (2011) da Supergiant Games. A narração em “Europa” tem um efeito profundamente hipnótico, pela atmosfera que vai construindo, ao passo que em “Bastion” tem como missão conduzir o jogador ao longo do espaço-história. Ora em “Neblina” acontecem ambas as coisas, já que a voz começa por nos introduzir ao universo, seduzindo-nos e enlaçando-nos, para depois nos conduzir e atribuir sentido à nossa participação. A voz é a nossa companheira de viagem, se por um lado me faz sentir dentro do universo ficcional pelo seu tom misterioso, faz-me também sentir seguro o suficiente para experimentar com a navegação do sistema, para saltitar entre fluxos, e à medida que o vou fazendo vou ganhando um conhecimento mais profundo do sistema, e por conseguinte dos significados daquilo que estou a experienciar.
Esta segurança no visionamento que a voz confere por meio de uma cola sonora, é também fortemente sustentada por uma outra técnica empregue de forma deliciosa pelo Bruno, que é a repetição de planos, assim como o seu uso em câmara lenta. A repetição juntamente com o desaceleramento do tempo da acção, permite-me saltitar entre fluxos sem que se crie aquela sensação de que se perdeu algo. Ou seja, quando salto entre fluxos, e vejo a repetição, ou o resto da repetição dada a sua languidez temporal, sinto-me aliviado porque não perdi o "novo", nada de "novo" surgiu ainda, e por isso posso voltar a saltitar sem medo em busca do "novo" noutro fluxo.
Deste modo, pouco depois de entrarmos na experiência damos por nós a interagir continuamente com a obra, porque à medida que a narrativa vai progredindo sentimos que cada um dos fluxos nos vai oferecendo uma compreensão que alarga os horizontes do fluxo principal. Acabamos por perceber que é na constante mudança entre os 3 fluxos que acaba por se desenhar o todo, e é por isso que “Neblina” acaba sendo uma experiência interactiva tão interessante. Porque a nossa participação, a nossa acção e interacção com a obra se torna um vício, não conseguimos parar de saltitar entre fluxos em busca de sentidos, tentando completar, tentando complementar. O Bruno conseguiu desenhar uma interacção narrativa que divide os sentidos presentes na faixa sonora pelas 3 faixas visuais de um modo que nos impele a interagir, não apenas porque queremos mais, mas também porque sentimos recompensa nessa interacção, sentimos que a obra se vai abrindo a nós, se nos vai oferecendo, e por isso nos mantemos ali, hipnotizados e à mercê da mesma.
Tenho de dizer que fui levado a visionar a obra várias vezes, daí que aquilo que aqui relato possa ser fruto desta minha ligação à experiência que se intensificou com cada uma das repetições da experiência. Sei que este modelo de interacção narrativa não serve todas as narrativas, é apenas um modelo, mas é um modelo que funciona, que pode servir na criação de novos trabalhos e que apresenta espaço para melhorias. E por isso quero agradecer profundamente ao Bruno por esta obra que rasga e trilha um novo caminho na produção audiovisual interactiva nacional. Esperemos que mais pessoas, nomeadamente alunos de mestrado ou doutoramento, vejam neste trabalho um ponto de partida para a criação de novos projectos na área.
Para experienciarem "Neblina" devem aceder à página da obra, clicar primeiro em "Como ver", e depois então entrar no primeiro link "Neblina". Utilizem o Safari para o visionamento, já que no meu caso tanto o Chrome como o Firefox apresentaram alguns problemas técnicos.
Nota: Não raras vezes enviam-me projectos (filmes, videojogos, aplicações, etc.) para analisar/avaliar aqui no blog, acontecendo muitas vezes não dar resposta. Deste modo quero aproveitar este trabalho para explicar porquê. O Bruno, sendo um colega com quem tenho trabalhado nos últimos anos, fez-me chegar este link em Julho de 2014, contudo demorei seis meses a dar conta do mesmo aqui. As razões para tal são variadas, neste caso a complexidade do trabalho exigia que eu dedicasse tempo de qualidade, e para isso precisava de tempo mas também da disposição mental correcta. Por vezes numa análise na diagonal consigo descartar de imediato os projectos que me enviam, sendo maus não falo, mas quando são interessantes procuro dedicar-lhes algum tempo, e isso acaba por os atirar para baixo na lista de coisas a fazer no blog. Isto não desculpa alguns esquecimentos da minha parte, mas espero que ajude a dar a conhecer um pouco melhor o processo.
Do ponto de vista plástico temos, para começar, vários elementos de enorme qualidade que são combinados para engendrar toda uma atmosfera capaz de nos conduzir à suspensão da descrença, desde logo começando pela neblina que paira ao longo de quase todo o filme e cria um universo próprio, muito ficcional mas ao mesmo tempo cinematograficamente crível. Aliás todo o trabalho respira influências profundamente cinematográficas, desde logo com a banda sonora que começa num registo Nymaniano, muito atmosférico capaz de nos colar aos personagens que vão surgindo no ecrã, para a seguir nos levar para um registo clássico e Hitchcockiano que nos questiona - quem são, porque estão ali, o que fazem, para onde vão - num suspense que emerge e adensa o sentido, acalentando o nosso interesse pelo que estamos a experienciar. Tudo isto é envolvido por uma fotografia a preto e branco de grande qualidade do Rui António, com contrastes marcados, servindo a luz como pincel da expressividade de cada momento que se vive na tela.
Ainda no campo audiovisual tenho de ressaltar o uso da narração ao longo de todo o filme, porque se por um lado a podemos encarar como uma estratégia menor no dar a ver, porque colando sentidos aonde a imagem não consegue chegar, neste caso concreto acaba servindo um papel estruturante, questionando-me mais uma vez, porque obcecamos nós tanto com a especificidade de cada linguagem? Porque é que o cinema tem de ser capaz de mostrar tudo e nada deve dizer, ou porque é que o videojogo tem de ser totalmente interactivo e não pode por vezes também parar, e simplesmente dar a ver? Não será a linguagem audiovisual a linguagem de síntese, aquela que se forma do todo, que tanto pode dar a ver, como dar a ouvir, como logo a seguir dar a participar?
Desconstruindo agora a componente de interacção, em "Neblina" temos 3 fluxos de imagem em movimento e 1 fluxo único sonoro. A interface permite-nos saltar entre os 3 por meio de dois botões, à esquerda e direita da projecção central, sem que a componente sonora se altere. Do ponto de vista do design da interacção diria que a abordagem do Bruno se aproxima bastante da abordagem escolhida por Miquel Dewever-Plana e Isabelle Fougère no seu documentário “Alma, a Tale of Violence” (2012), que tinha já sido muito feliz, e aqui volta a demonstrar todo o seu interesse. Ou seja, a manutenção de um fluxo contínuo sonoro facilita a vida aos criadores, que podem assim desenhar a experiência num tempo fixo, mas para o espectador torna também a obra mais acessível. Ou seja, o facto de existir uma faixa sonora contínua mantém-me dentro da atmosfera da obra, porque me oferece a garantia de que continuo no caminho certo, isto é, esperado pela obra, e assim relaxa-me para que aproveite e desfrute da interacção com a componente visual, sem o receio de me perder, ou de perder algo que possa comprometer a obtenção de significado.
Chegando agora ao desenho dos acessos participativos na narrativa, tenho a dizer que funcionam de forma soberba muito por força da narração. Mesmo apontando a crítica que já apontei acima, do facilitismo que é usar o texto em vez da imagem para contar, a verdade é que não consigo deixar de pensar em duas grandes obras do espectro audiovisual, provenientes de extremos opostos e que se socorrem da mesma técnica - o filme “Europa” (1991) de Lars Von Trier e o videojogo “Bastion” (2011) da Supergiant Games. A narração em “Europa” tem um efeito profundamente hipnótico, pela atmosfera que vai construindo, ao passo que em “Bastion” tem como missão conduzir o jogador ao longo do espaço-história. Ora em “Neblina” acontecem ambas as coisas, já que a voz começa por nos introduzir ao universo, seduzindo-nos e enlaçando-nos, para depois nos conduzir e atribuir sentido à nossa participação. A voz é a nossa companheira de viagem, se por um lado me faz sentir dentro do universo ficcional pelo seu tom misterioso, faz-me também sentir seguro o suficiente para experimentar com a navegação do sistema, para saltitar entre fluxos, e à medida que o vou fazendo vou ganhando um conhecimento mais profundo do sistema, e por conseguinte dos significados daquilo que estou a experienciar.
Esta segurança no visionamento que a voz confere por meio de uma cola sonora, é também fortemente sustentada por uma outra técnica empregue de forma deliciosa pelo Bruno, que é a repetição de planos, assim como o seu uso em câmara lenta. A repetição juntamente com o desaceleramento do tempo da acção, permite-me saltitar entre fluxos sem que se crie aquela sensação de que se perdeu algo. Ou seja, quando salto entre fluxos, e vejo a repetição, ou o resto da repetição dada a sua languidez temporal, sinto-me aliviado porque não perdi o "novo", nada de "novo" surgiu ainda, e por isso posso voltar a saltitar sem medo em busca do "novo" noutro fluxo.
Deste modo, pouco depois de entrarmos na experiência damos por nós a interagir continuamente com a obra, porque à medida que a narrativa vai progredindo sentimos que cada um dos fluxos nos vai oferecendo uma compreensão que alarga os horizontes do fluxo principal. Acabamos por perceber que é na constante mudança entre os 3 fluxos que acaba por se desenhar o todo, e é por isso que “Neblina” acaba sendo uma experiência interactiva tão interessante. Porque a nossa participação, a nossa acção e interacção com a obra se torna um vício, não conseguimos parar de saltitar entre fluxos em busca de sentidos, tentando completar, tentando complementar. O Bruno conseguiu desenhar uma interacção narrativa que divide os sentidos presentes na faixa sonora pelas 3 faixas visuais de um modo que nos impele a interagir, não apenas porque queremos mais, mas também porque sentimos recompensa nessa interacção, sentimos que a obra se vai abrindo a nós, se nos vai oferecendo, e por isso nos mantemos ali, hipnotizados e à mercê da mesma.
Tenho de dizer que fui levado a visionar a obra várias vezes, daí que aquilo que aqui relato possa ser fruto desta minha ligação à experiência que se intensificou com cada uma das repetições da experiência. Sei que este modelo de interacção narrativa não serve todas as narrativas, é apenas um modelo, mas é um modelo que funciona, que pode servir na criação de novos trabalhos e que apresenta espaço para melhorias. E por isso quero agradecer profundamente ao Bruno por esta obra que rasga e trilha um novo caminho na produção audiovisual interactiva nacional. Esperemos que mais pessoas, nomeadamente alunos de mestrado ou doutoramento, vejam neste trabalho um ponto de partida para a criação de novos projectos na área.
Para experienciarem "Neblina" devem aceder à página da obra, clicar primeiro em "Como ver", e depois então entrar no primeiro link "Neblina". Utilizem o Safari para o visionamento, já que no meu caso tanto o Chrome como o Firefox apresentaram alguns problemas técnicos.
Nota: Não raras vezes enviam-me projectos (filmes, videojogos, aplicações, etc.) para analisar/avaliar aqui no blog, acontecendo muitas vezes não dar resposta. Deste modo quero aproveitar este trabalho para explicar porquê. O Bruno, sendo um colega com quem tenho trabalhado nos últimos anos, fez-me chegar este link em Julho de 2014, contudo demorei seis meses a dar conta do mesmo aqui. As razões para tal são variadas, neste caso a complexidade do trabalho exigia que eu dedicasse tempo de qualidade, e para isso precisava de tempo mas também da disposição mental correcta. Por vezes numa análise na diagonal consigo descartar de imediato os projectos que me enviam, sendo maus não falo, mas quando são interessantes procuro dedicar-lhes algum tempo, e isso acaba por os atirar para baixo na lista de coisas a fazer no blog. Isto não desculpa alguns esquecimentos da minha parte, mas espero que ajude a dar a conhecer um pouco melhor o processo.
dezembro 13, 2014
A inovação em “Dishonored”
Harvey Smith conseguiu mais uma vez apresentar inovação no âmbito da fusão história/jogo. Depois de ter desenhado, com a direcção de Warren Spector, o revolucionário “Deus Ex” (2000), chegou agora a sua vez de dirigir e escrever, contribuindo com mais um passo em frente na resolução dos problemas da narrativa nos videojogos. “Dishonored” (2012) apresenta um sistema aberto com múltiplas possibilidades de acção colocando o jogador no centro e oferecendo-lhe um grau de liberdade quase ilimitado, criando assim uma experiência de realização poderosa a partir da ideia de que as escolhas, acções e caminhos são uma criação puramente pessoal. Estamos a falar de jogabilidade emergente com narrativa interactiva, estamos a falar de storytelling emergente. E o que é afinal isto?
A jogabilidade emergente produz-se quando um jogador podendo realizar uma tarefa de múltiplas formas distintas, pode fazê-lo misturando diferentes formas inventivamente. O mais comum nos videojogos é existir apenas uma forma de atingir um objectivo, e quando nos são oferecidas alternativas, essas funcionam de modo independente, pré-concebidas como meras hipóteses de alcançar o sucesso. No caso emergente, o jogador pode construir o seu caminho para alcançar o sucesso - escolher e fundir poderes, ferramentas, caminhos, tempos, etc. - e assim desenhar o modo como vai lá chegar, levando a que emerjam modos que não foram previamente pensados pelos designers, daí emergentes. Como nos diz Harvey Smith,
A jogabilidade emergente produz-se quando um jogador podendo realizar uma tarefa de múltiplas formas distintas, pode fazê-lo misturando diferentes formas inventivamente. O mais comum nos videojogos é existir apenas uma forma de atingir um objectivo, e quando nos são oferecidas alternativas, essas funcionam de modo independente, pré-concebidas como meras hipóteses de alcançar o sucesso. No caso emergente, o jogador pode construir o seu caminho para alcançar o sucesso - escolher e fundir poderes, ferramentas, caminhos, tempos, etc. - e assim desenhar o modo como vai lá chegar, levando a que emerjam modos que não foram previamente pensados pelos designers, daí emergentes. Como nos diz Harvey Smith,
“Dishonored is a linear series of hand-crafted missions, where each mission takes place in a mini-open world that is full of nonlinear options. There are bottlenecks here and there, and between missions, for sure. And we iterate around all this to achieve the end results. One of our relevant values here is to reward the player for accomplishing a goal (i.e. getting inside the room somehow), rather than rewarding for how he accomplished the goal (i.e. picking the lock). Our core values always lead us to push for general purpose interactions in the name of allowing the player to improvise, or to choose from a wider-than-average range of actions and approaches. When you play Dishonored, it feels like you’re being crafty or strategically creative.” Harvey SmithNo caso da narrativa interactiva em Dishonored, ela surge por via da ramificação, sendo determinada pelas acções que o jogador vai produzindo no decorrer do jogo, construindo uma multilinearidade muito concreta. No entanto como as escolhas narrativas se processam a partir de acções directas em jogo e não por questões colocadas ao jogador (ler constatação do guionista Austin Grossman), este nem sempre se apercebe dessa multilinearidade, ou ausência de linearidade, sentindo a progressão como um processo linear mas consequente.
“One thing I came to accept early on is that language written and spoken is not the central tool in games… It is not as central as it is in film. Language is just not the main show. The main show is that connection you have with the controller in your hand and motion on the screen and the image on the screen. It's not about the words so much. That was kind of the basic thing to accept when you're the writer working in games. I think it's one of the many confusions that can attack as we try to integrate writers and their craft into games, which has been done historically very poorly." Austin GrossmanDa junção de uma estrutura de opções narrativas multilineares com uma jogabilidade emergente, acaba por surgir uma experiência completa de narrativa emergente, bastante mais rica do que aquelas que a série GTA nos tem proporcionado. A razão desta inovação prende-se com o facto da emergência não estar desenhada apenas no mundo aberto, como faz GTA, mas ser o núcleo das próprias missões. Isto pode parecer uma alteração simples, mas de todo, implica um design absolutamente insano de opções, obrigando a um nível de produção exponencial, assim como profundamente matemático, no sentido de garantir um nível lógico de opções que permita fechar, ou impedir, opções que possam destruir por completo a experiência. Como diz Tom Bissel na sua análise,
“The designers of this game spent a ridiculous amount of time building systems and levels that they had to know only a tiny portion of the audience would ever see. Most game-makers would regard such a gesture as an utter waste of time and resources. But I suspect that the men and women behind Dishonored regard such a gesture as the entire point of making a video game.” Tom BisselO mais interessante de tudo isto é que acaba por definir o modo como as histórias deveriam ser encapsuladas nos videojogos, por via da emergência, da liberdade criativa de acção e experimentação. Jogar é experimentar, testar, explorar, se existe apenas um modo de fazer, e se se faz sempre da mesma forma, então não vale a pena rejogar, questiono mesmo se vale sequer a pena jogar, se não valeria mais ver um filme ou ler um livro? Smith resume isto na perfeição,
“We have some conversations and in-game first-person scenes, but no real cinematics. We try to stay in the world. When we talk about story we describe embedded, designer-proscribed narrative (“you’re the bodyguard of the Empress, falsely accused of her murder”) and emergent, player-driven narrative (“I bumped a bottle and the guard heard it, coming over to investigate, but at the last second I possessed a rat and slipped past him…”). We feel the former is a good wrapper/intro to the game, but the latter is the goal and is the thing unique to our medium.” Harvey Smith
dezembro 08, 2014
A Hora do Código
Começa hoje a Computer Science Education Week 2014 que tem como principal objectivo fomentar a aprendizagem da programação de computadores junto de todos os estratos etários, sociais e económicos. A actividade principal da Semana assenta na "Hora do Código" que passa por convencer pessoas que nunca programaram, a investirem uma hora das suas vidas a programar. O objectivo é simples, lançar as pessoas sobre os carris da programação e assim criar o "bichinho".
Em Portugal a "Hora do Código" está a ser coordenada pela ANPRI (Associação Nacional de Professores de Informática) que disponibiliza um conjunto de ferramentas na sua página e na página no Facebook. Para a promoção da "Hora do Código" a ANPRI convidou várias pessoas nacionais ligadas ao mundo das tecnologias e educação para participar de um conjunto de flyers online com frases de incentivo à programação. Deixo aqui a frase que enviei à ANPRI,
Para este ano, um grupo de engenheiros da Google, Microsoft, Facebook e Twitter com o apoio da Rovio e da EA, desenvolveram um tutorial de Blockly absolutamente fantástico. Fazendo uso dos personagens de Angry Birds, Plants vs. Zombies e ainda o esquilo Scrat do filme Ice Age criaram um tutorial linear em 20 passos que permite a qualquer pessoa, sem qualquer noção de programação, dar os primeiros passos na arte de forma extremamente divertida. Aconselho vivamente a realização deste tutorial, e se houver crianças por perto incentivem-nas, apesar de estar em inglês. Se ainda faltar motivação vejam o vídeo novo da "Hora do Código", abaixo!
“A criatividade é a competência chave dos próximos anos, mas esta não se resume a ter ideias, precisa de se realizar num concreto, algo que a programação pode potenciar pelo modo como estabelece a ligação entre o pensar e o fazer.”A linguagem de eleição para a Hora do Código é o Blockly, uma linguagem visual desenvolvida pela Google, decalcada do Scratch do MIT, mas muito mais poderosa, pela simples razão de poder traduzir toda a programação em Blockly automaticamente para Javascript ou Python. Deste modo o Blockly serve não apenas os iniciantes na programação, mas pode acompanhar-nos mesmo depois de dominarmos os básicos, através da flexibilidade do Javascript ou Python.
Nelson Zagalo
Tutorial de Blockly com Angry Birds
Para este ano, um grupo de engenheiros da Google, Microsoft, Facebook e Twitter com o apoio da Rovio e da EA, desenvolveram um tutorial de Blockly absolutamente fantástico. Fazendo uso dos personagens de Angry Birds, Plants vs. Zombies e ainda o esquilo Scrat do filme Ice Age criaram um tutorial linear em 20 passos que permite a qualquer pessoa, sem qualquer noção de programação, dar os primeiros passos na arte de forma extremamente divertida. Aconselho vivamente a realização deste tutorial, e se houver crianças por perto incentivem-nas, apesar de estar em inglês. Se ainda faltar motivação vejam o vídeo novo da "Hora do Código", abaixo!
dezembro 01, 2014
viajantes do espaço
O artista digital Erik Wernquist criou um belíssimo filme que mais parece um documento audiovisual enviado do futuro no qual dá conta das nossas hipotéticas viagens através do sistema solar - passando por Jupiter, Saturno Marte, etc - para aproveitar a estonteante beleza natural deste magnífico universo. Para intensificar a viagem escolheu excertos da leitura de "Pale Blue Dot" (1994) por Carl Sagan para acompanhar a viagem em "Wanderers" (2014).
O mais interessante deste impressionante trabalho é que tudo foi feito com base em material verdadeiramente recolhido do nosso sistema solar. Wernquist recorreu à NASA para aceder a documentação e imagens e assim conseguir recriar, do modo mais próximo possível, os vários ambientes que podemos ver no filme. Claro que o fez acrescentando, a camada que torna o trabalho verdadeiramente impressivo, a presença do ser humano. Mais informação sobre cada uma das montagens, pode ser acedida na Galeria de Imagens, clicando em cada uma.
O mais interessante deste impressionante trabalho é que tudo foi feito com base em material verdadeiramente recolhido do nosso sistema solar. Wernquist recorreu à NASA para aceder a documentação e imagens e assim conseguir recriar, do modo mais próximo possível, os vários ambientes que podemos ver no filme. Claro que o fez acrescentando, a camada que torna o trabalho verdadeiramente impressivo, a presença do ser humano. Mais informação sobre cada uma das montagens, pode ser acedida na Galeria de Imagens, clicando em cada uma.
"Wanderers" (2014) de Erik Wernquist
"For all its material advantages, the sedentary life has left us edgy, unfulfilled. Even after 400 generations in villages and cities, we haven't forgotten. The open road still softly calls, like a nearly forgotten song of childhood. We invest far-off places with a certain romance. This appeal, I suspect, has been meticulously crafted by natural selection as an essential element in our survival. Long summers, mild winters, rich harvests, plentiful game—none of them lasts forever. It is beyond our powers to predict the future. Catastrophic events have a way of sneaking up on us, of catching us unaware. Your own life, or your band's, or even your species' might be owed to a restless few—drawn, by a craving they can hardly articulate or understand, to undiscovered lands and new worlds.
Herman Melville, in Moby Dick, spoke for wanderers in all epochs and meridians: "I am tormented with an everlasting itch for things remote. I love to sail forbidden seas..."
Maybe it's a little early. Maybe the time is not quite yet. But those other worlds— promising untold opportunities—beckon.
Silently, they orbit the Sun, waiting."
Excerto de 'Pale Blue Dot: A Vision of the Human Future in Space' (1994) lido por Carl Sagan
novembro 29, 2014
Voando sobre Pripyat e Chernobyl
Depois de aqui ter dado conta, por meio da fotografia assombrosa de Robert Polidori, do estado atual das cidades de Pripyat e Chernobyl, agora trago esse mesmo espaço visto por meio de vídeo, com sliders e drones, num trabalho espantoso de Danny Choke, que teve a oportunidade de aí se deslocar no âmbito da reportagem "Chernobyl: The catastrophe that never ended" (2014) para o "60 Minutes" (CBS).
Nas notas ao filme "Postcards from Pripyat, Chernobyl", Danny Choke dá conta da sua experiência pessoal vivida em 1986, quando com um ano apenas e vivendo em Itália, a sua mãe se viu obrigada a acorrer à compra de leite enlatado para o poder continuar a alimentar, isto porque as autoridades davam conta de uma nuvem radioativa que se aproximava do território italiano, a partir do acidente nuclear ocorrido em Chernobyl.
O filme criado por Choke mostra pela primeira vez imagens aereas do espaço e com movimento, contribuindo para um renovar do nosso espanto com o lugar. Se as primeiras imagens a chegar do local, dando conta de todo aquele verde e abandono humano, já eram impactantes o suficiente, estas novas imagens, com a introdução do movimento e pontos de vista aéreos, servem no incremento do nosso imaginário, deslumbrando pela qualidade e novidade. A banda sonora utilizada, "Promise land" de Hannah Miller, funciona muitíssimo bem na ampliação do etéreo da atmosfera.
Nas notas ao filme "Postcards from Pripyat, Chernobyl", Danny Choke dá conta da sua experiência pessoal vivida em 1986, quando com um ano apenas e vivendo em Itália, a sua mãe se viu obrigada a acorrer à compra de leite enlatado para o poder continuar a alimentar, isto porque as autoridades davam conta de uma nuvem radioativa que se aproximava do território italiano, a partir do acidente nuclear ocorrido em Chernobyl.
"Postcards from Pripyat, Chernobyl" (2014) de Danny Choke
O filme criado por Choke mostra pela primeira vez imagens aereas do espaço e com movimento, contribuindo para um renovar do nosso espanto com o lugar. Se as primeiras imagens a chegar do local, dando conta de todo aquele verde e abandono humano, já eram impactantes o suficiente, estas novas imagens, com a introdução do movimento e pontos de vista aéreos, servem no incremento do nosso imaginário, deslumbrando pela qualidade e novidade. A banda sonora utilizada, "Promise land" de Hannah Miller, funciona muitíssimo bem na ampliação do etéreo da atmosfera.
IGN: "UnLove the Gate"
Novo texto no IGN Portugal, no qual procuro dar conta do meu silêncio a propósito da controvérsia GamerGate. Faço-o a partir de um estímulo despoletado pelo novo videojogo, "UnLove", lançado por estes dias por alunos da Universidade de Aveiro.
O texto "UnLove the Gate" pode ser lido na íntegra online.
O texto "UnLove the Gate" pode ser lido na íntegra online.
novembro 28, 2014
Hipótese da Simulação Corpórea
Um dos livros que tenho andado a trabalhar, para textos que ando a desenvolver, deixou-me uma impressão grande, por isso resolvi pegar no que fui escrevendo sobre o mesmo, e juntar tudo num texto para dar conta do mesmo aqui no blog. Falo do livro "Louder Than Words: The New Science of How the Mind Makes Meaning" de Benjamin Bergen de 2012. Este livro não é uma mera discussão pessoal do modo como criamos sentido do mundo, antes desenvolve um conjunto de hipóteses assentes em dezenas de estudos realizados ao longos das últimas décadas, tendo o próprio Bergen contribuído para o desenvolvimento de vários desses estudos.
Bergen começa o livro discutindo a teoria vigente categorizada como, a “Hipótese da Linguagem do Pensamento”, que procura definir o modo como criamos sentido da realidade, e que nos diz que compreendemos a realidade por meio da linguagem, que não é propriamente a língua nativa, porque esta não passa de mera convenção cultural, mas antes uma linguagem interna do pensamento, que permite compreender por meio de um descodificador interno o mundo à nossa volta, e que ficou conhecida por “mentalese” (um conceito amplamente defendido por “Fodor (1975) e Pinker (1994) mas que já aparecia na lógica de Bertrand Russell (1903)”). Ou seja para cada objecto, propriedades, conceitos, ações, etc. teríamos um símbolo mental que corresponderia e que atribuiria sentido ao real que enfrentamos em cada momento. O mentalese funcionaria de certo modo como uma normal linguagem, com substantivos, verbos, adjetivos, etc. Ou seja é possível construir ideias, frases, como numa linguagem normal, mas é algo sem forma, sem som nem imagem, não concreta.
Ora isto levanta um problema, sem solução à vista, de onde vem o mentalese? Como se cria, como se desenvolve, como se processa, onde está alojado? Para Pinker, partindo da sua ideia da inexistência de um "Blank Slate" (2002), defende que o mentalese é algo inato, que nasce inscrito em nós, e por isso somos seres dotados de linguagem.
Mas outros procuraram dar resposta por outros meios, nomeadamente por meio de algo que vai além do reduto da mente, e usando o corpo como um todo, como detentor de conhecimento, adquirido pela experiência do mundo. Autores como George Lakoff na linguística, Mark Johnson na filosofia, ou Eleanor Rosch nas ciências cognitivas procuraram compreender a ideia de significado no corpo. Uma ideia que claramente deve a vários princípios discutidos nos últimos 20 anos no ramo da neurociência, nomeadamente com os estudos da emoção de António Damásio (1994) e depois com os Neurónios Espelho de Gallese e Rizzolatti (1999). Assim esta abordagem pelo corpo, apresentada como ideia rival do mentalese, ficaria conhecida como “Hipótese de Embodied Simulation” (que opto aqui por traduzir como Hipótese da Simulação Corpórea), definindo-se como
Ou seja, nós sabemos o que é simular mentalmente. Nós passamos a vida a fazê-lo, é assim que imaginamos a cara dos nossos amigos ou filhos, ou imaginamos um passeio pela praia, é assim também que imaginamos sons, sem sequer sentir qualquer onda sonora bater nos nosso tímpanos. Acordados ou a dormir, somos verdadeiros especialistas da simulação mental. Mas aquilo que Bergen nos diz, é que estes exemplos que imaginamos através do “olho da nossa mente”, são no fundo apenas aquilo que designamos por “mental imagery”, ou seja processo de criação de imagens mentais, sendo que o processo de simulação é algo mais vasto e profundo.
Uma das grandes questões que se levanta de imediato, é que se em vez de recorrermos a uma linguagem inata, igual e universal para todo o ser humano, recorrermos a processos que simulam experiências perceptivas anteriores, então o significado da realidade passa a ser algo extremamente pessoal e subjetivo. O que mais uma vez nos indica que estamos no caminho correto, se olharmos para as grandes questões da semiótica, desde a “Obra Aberta” (1962) de Umberto Eco, que discutimos a ideia de interpretação da realidade, as realidades convergentes e as realidades pessoais. O que temos é uma cultura humana como dotadora de códigos que permitem a criação de uma comunicação humana, e à qual cada um de nós ajusta as suas próprias impressões e experiências pessoais do mundo.
“Perky Effect”
O “Perky Effect” consiste em estar a olhar para uma parede branca enquanto se imagina um objecto (uma banana ou uma folha), e projectar nessa parede uma imagem desse objecto com variações de transparência. O que Perky descobriu é que muitos acreditavam que estavam apenas a imaginar a banana ou a folha, não reconhecendo que esse objecto estava verdadeiramente na sua frente. Deste modo este efeito demonstra que, realizar imagens na mente pode interferir com a percepção que temos do mundo. Isto é o que acontece quando sonhamos acordados, vemos imagens sobrepostas sobre a realidade que nos rodeia, que no fundo bloqueiam essa mesma realidade. Os estudos sobre este efeito demonstraram que não apenas imagens mas também as suas posições no espaço, assim como os seus movimentos visuais ou verbais, podem interferir com o modo como percepcionamos a realidade.
Ao nível do movimento e espaço, os estudos demonstraram algo verdadeiramente relevante sobre o modo como organizamos mentalmente a espacialidade que nos rodeia. Estudos que me deixaram a reflectir particularmente na organização de espaço em ambientes virtuais. Em estudos desenvolvidos sobre processos mentais que procuravam realizar acções de de rotação de objetos ou movimentação espacial, verificou-se que “you perceive motion in mental images like you do real motion in the world — the things that take longer in the world also take longer in the mind. Because it’s like real motion, mental motion is useful”.
A criatividade por detrás dos Porcos Voadores
Uma questão que se levanta quando se lança a hipótese da teoria de simulação a partir de experiências, é que se a construção de significado é realizada na nossa mente, então nós devemos ser capazes de gerar ideias a partir de ideias que não existem no mundo real. Daí que a ideia de “Porco Voador”, algo que não existe, sirva de exemplo perfeito aos intentos de Bergen, estando inclusive na capa do livro. Então como é que chegamos a essa ideia?
1 - A ideia de Porco Voador é comum à grande maioria de pessoas, e parece significar algo. Apesar de este não existir, o que coloca um problema ao Mentalese, que defende que o significado surge da relação com o real, o que obrigaria então a que este existisse de algum modo.
2 - A ideia de Porco Voador, não estimula apenas o surgimento mental de uma imagem de um porco, mas de um porco com asas, em que montamos uma ideia nova, a partir da junção de dois conceitos distintos. Ao mesmo adicionamos os efeitos das suas condições, neste caso sendo porco e não pássaro, é natural que nos surja a imagem de um porco, e as asas, normalmente apenas duas por imitação das aves, e sendo voador é natural que surja voando no ar e não sentado no chão.
3 - A imagem criada para o Porco Voador é altamente subjectiva, cada um imaginará algo completamente distinto, porque não existindo uma imagem real, que coloque em comum, cada um terá repescar as imagens que possui de Porcos e Aves Voando, para construir a nova. Alguns poderão mesmo construir ideias de Porcos com capas voadoras, do tipo Super Porco.
Ou seja, o processo de Simulação Mental é um processo profundamente pessoal, e que está na base explicativa do que é a Criatividade (“how you breathe life into your own personal Pigasus”). Neste sentido o uso de texto é profundamente mais criativo, já que obriga os sujeitos a construírem, a inovar na construção mental de ideias, a que se acedeu apenas a partir de texto. Se visse um porco voador num filme, nada haveria a simular de novo, seria dado como adquirido, e o processo de simulação mental seria reduzido à integração de uma nova experiência na memória.
Treino e prática mental
Vários estudos realizados com atletas de golfe, ténis, basquetebol demonstraram que os atletas que treinavam apenas vendo imagens de jogos e imaginando sequências de ações de jogo, melhoravam concretamente nas suas competências. A grande questão que se coloca então é: porque é que estando apenas a imaginar o uso do corpo de uma forma particular, se torna mais fácil ao nosso corpo mover-se depois?
O maior problema da “Simulação Corpórea”
Solução: a Metáfora
A resposta apresentada por Bergen assenta na ideia de Metáfora, algo que faz imenso sentido nomeadamente no campo do design de interação, mas faz ainda mais sentido no campo do Cinema. Quando preciso de transmitir uma ideia abstracta, a primeira coisa que fazemos é procurar ideias concretas, que possam metaforizar a ideia abstracta que se quer transmitir. Uma das mais trabalhadas no cinema, é a ideia de Tempo, que Bergen também trabalha aqui.
Um dos exemplos que começa por trabalhar é o conceito de “sociedade”, através dos exemplos:
- “Japan has been a closed society for long despite its huge ”
- “War veterans struggle to fit back into society”
- “those who without assistance and guidance would fall through the cracks of society”
Ou seja, o que aqui temos é uma discussão sobre a ideia de sociedade, realizada de um modo perfeitamente concreto. Uma sociedade que pode ser fechada, que pode encaixar pessoas, ou pode apresentar fissuras. Ou seja, sociedade, nestas expressões parece uma espécie de “contentor”. O problema é que podemos falar de sociedade, de modos completamente distintos, e passar por exemplo, de contentor a uma espécie de “organismo”:
- “Farmers are the backbone of our society.”
- “Sexual violence disempowers women and cripples society.”
- “A healthy society requires an ongoing dialogue between faith and reason.”
Claro que percebemos que “sociedade” não é um contentor nem um organismo vivo, mas usamos essas ideias concretas, como metáforas do seu significado. E é assim que surge a “metaphorical simulation hypothesis”, que nos diz que “ we understand abstract concepts through concrete, though metaphorical, simulation.”. Exemplos, do uso do sistema motor,
- “grasping ideas”
- “clubbing you over the head with study after study”
- “bite the apple”
- “kick the bucket”
Esta ideia sustenta-se nas duas seguintes hipóteses,
Hipótese 1: “understanding a metaphorical action phrase, like grasp a concept, activates the motor apparatus responsible for performing the same action; in other words, mentally simulating the metaphorical action.”
Hipótese 2: “merely simulating an action makes you understand a phrase faster if it metaphorically uses that same action. ”
Mas um estudo demonstrou que “language that appears metaphorical like familiar metaphorical idioms that, when you read it as whole sentences, doesn’t always massively activate the relevant parts of the brain that we might expect to light up if people are performing motor simulations.”. Ou seja, a familiaridade das metáforas, evita o uso da simulação motora.
Por outro lado um outro estudo demontrou, “a sentence describing metaphorical motion upward, like The rates climbed, doesn’t interfere with perceiving a shape, no matter where it appears on the screen.” Assim “the Perky method shows no effect for metaphorical language - “if there’s no specific object being mentally simulated, then there’s no image to interfere with actual perception.” Ou seja, não estamos a usar a mesma parte do cérebro, e isto diz-nos que não estamos então a simular mentalmente.
Deste modo temos que “a compreensão da linguagem metafórica é feita através da construção de simulações corpóreas que são menos detalhadas, do que as literais, mas que ainda assim fazem uso do sistema motor e perceptual.”
Uso da Metáfora sem Linguagem
Utilizamos todo o tipo de metáforas, mesmo quando não se trata de linguagem, mas apenas e só de compreender o real. No caso do tempo, que é um conceito extremamente abstracto, não existe nada palpável que lhe possa conferir forma. Ainda assim, temos tendência a medir o tempo em função do espaço (exemplo: linha de progressão de download). Uma linha maior dará indicação de maior duração, ou por exemplo um salto em comprimento, quanto maior, mais tempo terá levado. Por outro lado, o inverso não se confirma para nós, em termos metafóricos, ou seja, mais tempo não nos dá indicação clara de mais espaço.
Outro exemplo dado, é o Macbeth Effect. num estudo em que foi pedido a pessoas para pensarem em ações éticas e não éticas, tendo a seguir oferecido um objecto para levar, verificou-se que quem tinha pensado em ações éticas tendia a escolher o lápis, ao passo que as não-éticas tendiam a escolher um objecto de limpeza. Assim o efeito corresponde à ideia de que quando as pessoas pensam em ações pouco éticas que fizeram no passado, sentem uma certa necessidade de se “limpar”.
Todos estes exemplos de metáforas fora do domínio da linguagem acabam por demonstrar que “concepts like time, morality, and affection are tightly linked to the very concrete things that they’re metaphorically described in terms of—distance, cleanliness, and warmth.”
Contudo e apesar destes exemplos, a verdade é que a simulação corpórea não responde a todos os problemas, nomeadamente ao facto de sabermos quando devemos simular uma metáfora como real percepção/ação real ou quando simular como mera metáfora conducente a um sentido abstracto. Como acaba dizendo Bergen, “the more that understanding abstract language is like understanding concrete language, the more infrastructure we must have to keep them apart.” E isso está longe de estar explicado.
Conclusão
No final Bergen questiona a funcionalidade e utilidade da simulação, toma o lado oposto, e questiona de várias formas a sua possibilidade, acabando por concluir, que apesar de muitas dúvidas termos, a hipótese é muito mais sustentada que a do mentalese, deixando vários exemplos, recordando de novo a questão do japonês, que ao contrário das línguas europeias, que apesar de trazer o verbo de acção, no final das frases, leva a processos de simulação mental muito aproximados na interpretação de frases, quando comparados com os das línguas ocidentais. Ou seja, o mentalese “doesn’t explain why Japanese speakers already have expectations about the shape of a mentioned object before they even come to the verb.”
Um último ponto surge neste livro de relevância, e que no fundo está subjacente a toda esta discussão, e que tem que ver com a Comunicação. O que é, e como se serve de toda esta maquinaria.
Bergen começa o livro discutindo a teoria vigente categorizada como, a “Hipótese da Linguagem do Pensamento”, que procura definir o modo como criamos sentido da realidade, e que nos diz que compreendemos a realidade por meio da linguagem, que não é propriamente a língua nativa, porque esta não passa de mera convenção cultural, mas antes uma linguagem interna do pensamento, que permite compreender por meio de um descodificador interno o mundo à nossa volta, e que ficou conhecida por “mentalese” (um conceito amplamente defendido por “Fodor (1975) e Pinker (1994) mas que já aparecia na lógica de Bertrand Russell (1903)”). Ou seja para cada objecto, propriedades, conceitos, ações, etc. teríamos um símbolo mental que corresponderia e que atribuiria sentido ao real que enfrentamos em cada momento. O mentalese funcionaria de certo modo como uma normal linguagem, com substantivos, verbos, adjetivos, etc. Ou seja é possível construir ideias, frases, como numa linguagem normal, mas é algo sem forma, sem som nem imagem, não concreta.
Ora isto levanta um problema, sem solução à vista, de onde vem o mentalese? Como se cria, como se desenvolve, como se processa, onde está alojado? Para Pinker, partindo da sua ideia da inexistência de um "Blank Slate" (2002), defende que o mentalese é algo inato, que nasce inscrito em nós, e por isso somos seres dotados de linguagem.
Mas outros procuraram dar resposta por outros meios, nomeadamente por meio de algo que vai além do reduto da mente, e usando o corpo como um todo, como detentor de conhecimento, adquirido pela experiência do mundo. Autores como George Lakoff na linguística, Mark Johnson na filosofia, ou Eleanor Rosch nas ciências cognitivas procuraram compreender a ideia de significado no corpo. Uma ideia que claramente deve a vários princípios discutidos nos últimos 20 anos no ramo da neurociência, nomeadamente com os estudos da emoção de António Damásio (1994) e depois com os Neurónios Espelho de Gallese e Rizzolatti (1999). Assim esta abordagem pelo corpo, apresentada como ideia rival do mentalese, ficaria conhecida como “Hipótese de Embodied Simulation” (que opto aqui por traduzir como Hipótese da Simulação Corpórea), definindo-se como
“Maybe we understand language by simulating in our minds what it would be like to experience the things that the language describes.”O mais interessante é que esta ideia de conceber o mundo por via do corpo, é bem mais antiga que os estudos aqui apresentados por Bergen, nomeadamente toda a Fenomenologia, nomeadamente com Merleau-Ponty, assenta sobre este princípio base, em que se procurava desviar o foco da mente para o fenómeno externo. Mesmo dentro da psicologia com Gibson, em que este procurou claramente desviar-se do foco do cognitivo, para a ecologia visual, o mundo externo, concebendo a construção de realidade, por meio da interação e experienciação do mundo externo. É claro que aquilo que se apresenta agora aqui é mais desenvolvido, muito mais elaborado, e acima de tudo mais relevante porque sustentado em imensos estudos empíricos.
Ou seja, nós sabemos o que é simular mentalmente. Nós passamos a vida a fazê-lo, é assim que imaginamos a cara dos nossos amigos ou filhos, ou imaginamos um passeio pela praia, é assim também que imaginamos sons, sem sequer sentir qualquer onda sonora bater nos nosso tímpanos. Acordados ou a dormir, somos verdadeiros especialistas da simulação mental. Mas aquilo que Bergen nos diz, é que estes exemplos que imaginamos através do “olho da nossa mente”, são no fundo apenas aquilo que designamos por “mental imagery”, ou seja processo de criação de imagens mentais, sendo que o processo de simulação é algo mais vasto e profundo.
“Simulation is an iceberg. By consciously reflecting, as you just have been doing, you can see the tip—the intentional, conscious imagery. But many of the same brain processes are engaged, invisibly and unbeknownst to you, beneath the surface during much of your waking and sleeping life. Simulation is the creation of mental experiences of perception and action in the absence of their external manifestation. That is, it’s having the experience of seeing without the sights actually being there or having the experience of performing an action without actually moving. When we’re consciously aware of them, these simulation experiences feel qualitatively like actual perception; colors appear as they appear when directly perceived, and actions feel like they feel when we perform them. The theory proposes that embodied simulation makes use of the same parts of the brain that are dedicated to directly interacting with the world. When we simulate seeing, we use the parts of the brain that allow us to see the world; when we simulate performing actions, the parts of the brain that direct physical action light up. The idea is that simulation creates echoes in our brains of previous experiences, attenuated resonances of brain patterns that were active during previous perceptual and motor experiences. We use our brains to simulate percepts and actions without actually perceiving or acting.”Nós temos consciência deste processo de simulação, é perfeitamente natural, e não há nada de muito novo aqui, a grande questão é saber se processamos a linguagem do mesmo modo. Ou seja, se compreendo as palavras, as frases, as ideias aí inscritas, por meio de processos de simulação, em vez de por meio de uma linguagem interna, o mentalese. Porque na verdade, o que temos é algo bastante mais natural, em termos de rentabilização de recursos do nosso corpo e cérebro. Faz mais sentido que utilizemos os nossos sistemas de percepção (o sistema sensorial, os 5 sentidos, embora haja uma tendência para privilegiar a visão e audição) e a ação (sistema motor) para compreender a realidade, do que tenhamos criado algo novo, à parte, para processar apenas a linguagem. No fundo, isto vem reforçar fortemente a ideia de que a linguagem nos ajuda a construir sentidos mais elaborados do mundo, já que ela faz uso directo das experiências desse mundo. Ou seja, o modo como trabalhamos a gramática da linguagem, serve-nos para processar de modos mais elaborados a realidade que experienciamos, as vivências que adquirimos, o mundo a que acedemos.
Uma das grandes questões que se levanta de imediato, é que se em vez de recorrermos a uma linguagem inata, igual e universal para todo o ser humano, recorrermos a processos que simulam experiências perceptivas anteriores, então o significado da realidade passa a ser algo extremamente pessoal e subjetivo. O que mais uma vez nos indica que estamos no caminho correto, se olharmos para as grandes questões da semiótica, desde a “Obra Aberta” (1962) de Umberto Eco, que discutimos a ideia de interpretação da realidade, as realidades convergentes e as realidades pessoais. O que temos é uma cultura humana como dotadora de códigos que permitem a criação de uma comunicação humana, e à qual cada um de nós ajusta as suas próprias impressões e experiências pessoais do mundo.
“Perky Effect”
O “Perky Effect” consiste em estar a olhar para uma parede branca enquanto se imagina um objecto (uma banana ou uma folha), e projectar nessa parede uma imagem desse objecto com variações de transparência. O que Perky descobriu é que muitos acreditavam que estavam apenas a imaginar a banana ou a folha, não reconhecendo que esse objecto estava verdadeiramente na sua frente. Deste modo este efeito demonstra que, realizar imagens na mente pode interferir com a percepção que temos do mundo. Isto é o que acontece quando sonhamos acordados, vemos imagens sobrepostas sobre a realidade que nos rodeia, que no fundo bloqueiam essa mesma realidade. Os estudos sobre este efeito demonstraram que não apenas imagens mas também as suas posições no espaço, assim como os seus movimentos visuais ou verbais, podem interferir com o modo como percepcionamos a realidade.
Ao nível do movimento e espaço, os estudos demonstraram algo verdadeiramente relevante sobre o modo como organizamos mentalmente a espacialidade que nos rodeia. Estudos que me deixaram a reflectir particularmente na organização de espaço em ambientes virtuais. Em estudos desenvolvidos sobre processos mentais que procuravam realizar acções de de rotação de objetos ou movimentação espacial, verificou-se que “you perceive motion in mental images like you do real motion in the world — the things that take longer in the world also take longer in the mind. Because it’s like real motion, mental motion is useful”.
A criatividade por detrás dos Porcos Voadores
Uma questão que se levanta quando se lança a hipótese da teoria de simulação a partir de experiências, é que se a construção de significado é realizada na nossa mente, então nós devemos ser capazes de gerar ideias a partir de ideias que não existem no mundo real. Daí que a ideia de “Porco Voador”, algo que não existe, sirva de exemplo perfeito aos intentos de Bergen, estando inclusive na capa do livro. Então como é que chegamos a essa ideia?
“The writer John Steinbeck imagined such a winged pig and named it Pigasus. He even used it as his personal stamp. What do you know about your own personal Pigasus?Daqui podemos extrair várias ideias:
It probably has two wings (not three or seven or twelve) that are shaped very much like bird wings. Without having to reflect on it, you also know where they appear on Pigasus’ body—they’re attached symmetrically to the shoulder blades. And although it has wings like a bird, most people think that Pigasus also displays a number of pig features; it has a snout, not a beak, and it has hooves, rather than talons”
1 - A ideia de Porco Voador é comum à grande maioria de pessoas, e parece significar algo. Apesar de este não existir, o que coloca um problema ao Mentalese, que defende que o significado surge da relação com o real, o que obrigaria então a que este existisse de algum modo.
2 - A ideia de Porco Voador, não estimula apenas o surgimento mental de uma imagem de um porco, mas de um porco com asas, em que montamos uma ideia nova, a partir da junção de dois conceitos distintos. Ao mesmo adicionamos os efeitos das suas condições, neste caso sendo porco e não pássaro, é natural que nos surja a imagem de um porco, e as asas, normalmente apenas duas por imitação das aves, e sendo voador é natural que surja voando no ar e não sentado no chão.
3 - A imagem criada para o Porco Voador é altamente subjectiva, cada um imaginará algo completamente distinto, porque não existindo uma imagem real, que coloque em comum, cada um terá repescar as imagens que possui de Porcos e Aves Voando, para construir a nova. Alguns poderão mesmo construir ideias de Porcos com capas voadoras, do tipo Super Porco.
Imagem retirada do livro de Bergen
Ou seja, o processo de Simulação Mental é um processo profundamente pessoal, e que está na base explicativa do que é a Criatividade (“how you breathe life into your own personal Pigasus”). Neste sentido o uso de texto é profundamente mais criativo, já que obriga os sujeitos a construírem, a inovar na construção mental de ideias, a que se acedeu apenas a partir de texto. Se visse um porco voador num filme, nada haveria a simular de novo, seria dado como adquirido, e o processo de simulação mental seria reduzido à integração de uma nova experiência na memória.
Treino e prática mental
Vários estudos realizados com atletas de golfe, ténis, basquetebol demonstraram que os atletas que treinavam apenas vendo imagens de jogos e imaginando sequências de ações de jogo, melhoravam concretamente nas suas competências. A grande questão que se coloca então é: porque é que estando apenas a imaginar o uso do corpo de uma forma particular, se torna mais fácil ao nosso corpo mover-se depois?
“When we visualize actions—consciously and intentionally activating mental images—we use the very parts of our brain that control our body’s movements. When we imagine the footwork we employ to serve a tennis ball, the part of our brain that controls foot motion starts firing. When we think about how we hold a basketball in our hands, the part of our brain controlling hand motion lights up. As a result, whether you call it mental imagery, visualization, or mental rehearsal, imagining doing things is extremely effective at solidifying motor skills. And that’s because, to a large extent, when we’re visualizing, our brain is doing the same thing it would in actual practice.”
O maior problema da “Simulação Corpórea”
“in understanding language, we use our perceptual and motor systems to run embodied simulations. That’s all fine and good... about concrete stuff—polar bears that have a visual appearance, door knobs that you can physically turn, and rock classics that actually sound like something. But this only scratches the surface of what we can talk about. One of the unique and powerful things about human language is that we can use it to talk not just about the easy, concrete stuff but also about ideas that we can’t see or feel. We can talk meaningfully about truth, responsibility, or justice, none of which really look like anything. Or, for that matter, we can talk about meaning itself, like this book does... If simulation of sights, sounds, and actions is really at the heart of meaning, then how could we ever understand language about things that we can’t see or do?”
Solução: a Metáfora
A resposta apresentada por Bergen assenta na ideia de Metáfora, algo que faz imenso sentido nomeadamente no campo do design de interação, mas faz ainda mais sentido no campo do Cinema. Quando preciso de transmitir uma ideia abstracta, a primeira coisa que fazemos é procurar ideias concretas, que possam metaforizar a ideia abstracta que se quer transmitir. Uma das mais trabalhadas no cinema, é a ideia de Tempo, que Bergen também trabalha aqui.
Um dos exemplos que começa por trabalhar é o conceito de “sociedade”, através dos exemplos:
- “Japan has been a closed society for long despite its huge ”
- “War veterans struggle to fit back into society”
- “those who without assistance and guidance would fall through the cracks of society”
Ou seja, o que aqui temos é uma discussão sobre a ideia de sociedade, realizada de um modo perfeitamente concreto. Uma sociedade que pode ser fechada, que pode encaixar pessoas, ou pode apresentar fissuras. Ou seja, sociedade, nestas expressões parece uma espécie de “contentor”. O problema é que podemos falar de sociedade, de modos completamente distintos, e passar por exemplo, de contentor a uma espécie de “organismo”:
- “Farmers are the backbone of our society.”
- “Sexual violence disempowers women and cripples society.”
- “A healthy society requires an ongoing dialogue between faith and reason.”
Claro que percebemos que “sociedade” não é um contentor nem um organismo vivo, mas usamos essas ideias concretas, como metáforas do seu significado. E é assim que surge a “metaphorical simulation hypothesis”, que nos diz que “ we understand abstract concepts through concrete, though metaphorical, simulation.”. Exemplos, do uso do sistema motor,
- “grasping ideas”
- “clubbing you over the head with study after study”
- “bite the apple”
- “kick the bucket”
Esta ideia sustenta-se nas duas seguintes hipóteses,
Hipótese 1: “understanding a metaphorical action phrase, like grasp a concept, activates the motor apparatus responsible for performing the same action; in other words, mentally simulating the metaphorical action.”
Hipótese 2: “merely simulating an action makes you understand a phrase faster if it metaphorically uses that same action. ”
Mas um estudo demonstrou que “language that appears metaphorical like familiar metaphorical idioms that, when you read it as whole sentences, doesn’t always massively activate the relevant parts of the brain that we might expect to light up if people are performing motor simulations.”. Ou seja, a familiaridade das metáforas, evita o uso da simulação motora.
Por outro lado um outro estudo demontrou, “a sentence describing metaphorical motion upward, like The rates climbed, doesn’t interfere with perceiving a shape, no matter where it appears on the screen.” Assim “the Perky method shows no effect for metaphorical language - “if there’s no specific object being mentally simulated, then there’s no image to interfere with actual perception.” Ou seja, não estamos a usar a mesma parte do cérebro, e isto diz-nos que não estamos então a simular mentalmente.
Deste modo temos que “a compreensão da linguagem metafórica é feita através da construção de simulações corpóreas que são menos detalhadas, do que as literais, mas que ainda assim fazem uso do sistema motor e perceptual.”
“So much of what we actually talk about is abstract that we could hardly say we understand the process of understanding without figuring out how people grasp abstract concepts. The idea that we’ve come to is that we take what we know about how to perceive concrete things and to perform actions, and we use that knowledge to both describe and also think about abstract concepts. In this way, we bootstrap harder things to think and talk about—abstract concepts—off of easier things to think and talk about—concrete concepts.”
Uso da Metáfora sem Linguagem
Utilizamos todo o tipo de metáforas, mesmo quando não se trata de linguagem, mas apenas e só de compreender o real. No caso do tempo, que é um conceito extremamente abstracto, não existe nada palpável que lhe possa conferir forma. Ainda assim, temos tendência a medir o tempo em função do espaço (exemplo: linha de progressão de download). Uma linha maior dará indicação de maior duração, ou por exemplo um salto em comprimento, quanto maior, mais tempo terá levado. Por outro lado, o inverso não se confirma para nós, em termos metafóricos, ou seja, mais tempo não nos dá indicação clara de mais espaço.
“even when there’s no language around (just lines on screens), people use space to make judgments about time but not the reverse. This adds support to the idea that abstract concepts are generally understood in terms of more concrete ones, and not the reverse, even when there’s no language to prompt them to do so.”Ou seja, usamos o concreto para criar sentido no abstracto, mas não usamos o abstracto para dar sentido ao concreto. Outros exemplos, tais como por exemplo uma “pessoa calorosa” ou o sentimento de “exclusão social”, foram investigados em termos perceptivos. E no caso da descrição de pessoas, existe uma tendência para descrever de forma mais calorosa ( adjectivando com: generosa, alegre e sociável) outra pessoa, depois de lhe terem passado para a mão um café quente. Da mesma forma se pediu para pensarem em momentos em que se sentiram incluídos ou excluídos socialmente, e logo a seguir questionou-se sobre a temperatura do quarto em que estavam. Os que pensavam em momentos de exclusão, descreveram como mais frio que os que pensavam em momentos de inclusão “lonely feels cold”. Ou seja
Outro exemplo dado, é o Macbeth Effect. num estudo em que foi pedido a pessoas para pensarem em ações éticas e não éticas, tendo a seguir oferecido um objecto para levar, verificou-se que quem tinha pensado em ações éticas tendia a escolher o lápis, ao passo que as não-éticas tendiam a escolher um objecto de limpeza. Assim o efeito corresponde à ideia de que quando as pessoas pensam em ações pouco éticas que fizeram no passado, sentem uma certa necessidade de se “limpar”.
Todos estes exemplos de metáforas fora do domínio da linguagem acabam por demonstrar que “concepts like time, morality, and affection are tightly linked to the very concrete things that they’re metaphorically described in terms of—distance, cleanliness, and warmth.”
Contudo e apesar destes exemplos, a verdade é que a simulação corpórea não responde a todos os problemas, nomeadamente ao facto de sabermos quando devemos simular uma metáfora como real percepção/ação real ou quando simular como mera metáfora conducente a um sentido abstracto. Como acaba dizendo Bergen, “the more that understanding abstract language is like understanding concrete language, the more infrastructure we must have to keep them apart.” E isso está longe de estar explicado.
Conclusão
No final Bergen questiona a funcionalidade e utilidade da simulação, toma o lado oposto, e questiona de várias formas a sua possibilidade, acabando por concluir, que apesar de muitas dúvidas termos, a hipótese é muito mais sustentada que a do mentalese, deixando vários exemplos, recordando de novo a questão do japonês, que ao contrário das línguas europeias, que apesar de trazer o verbo de acção, no final das frases, leva a processos de simulação mental muito aproximados na interpretação de frases, quando comparados com os das línguas ocidentais. Ou seja, o mentalese “doesn’t explain why Japanese speakers already have expectations about the shape of a mentioned object before they even come to the verb.”
Um último ponto surge neste livro de relevância, e que no fundo está subjacente a toda esta discussão, e que tem que ver com a Comunicação. O que é, e como se serve de toda esta maquinaria.
“As speakers, the messages we intend to transmit are probably far from discrete packets of information. Instead, they are dynamic and continuous currents of perception and action, either performed and perceived or mentally simulated. As speakers, we have to jam all this messy, amorphous, nonspecific, continuous stuff through the narrow aperture afforded by discrete words and grammatical structures available to us in our language. This process of encoding is necessarily lossy: a few words can’t hope to capture the breadth and depth of the perceptual, motor, or affective experiences we want to convey. It’s also nondeterministic: we might use two different words to describe the same thought, sometimes even in the same sentence. And it’s fickle: we often just reuse words or grammar that we’ve just uttered and we tend to mimic the linguistic patterns of our interlocutor, instead of picking out the theoretically perfect words for a given message. So the information we want to convey is neither neatly delineated to begin with nor uniquely and perfectly packageable in words.”A grande questão com que Bergen acaba fechando, é a eterna questão da Comunicação, como é que com mundos internos tão complexos, que cada um de nós desenvolve dentro de si, e com experiências do mundo tão distintas, conseguimos nós chegar a comunicar uns com os outros com sucesso?
novembro 27, 2014
Seven Quotes
For some time I've stopped using Facebook, and been using Twitter to share some links that interest me, and that can serve others. But once again I realize the reason I was never a big fan of the tool, the limitation to 140 characters. In my daily readings I collect interesting quotes, but every time I try to share them via twitter, the lack of enough characters, makes it impossible.
Thus I've decided to take up some of these quotes and leave them in a post here on the blog.
Creativity
“Creativity is just connecting things. When you ask creative people how they did something, they feel a little guilty because they didn’t really do it, they just saw something. It seemed obvious to them after a while.”
― Steve Jobs, Wired 1996
Ideas and Design
“You know, one of the things that really hurt Apple was after I left, John Sculley got a very serious disease. It’s the disease of thinking that a really great idea is 90 per cent of the work. And if you just tell all these other people “Here’s this great idea,” then of course they can go off and make it happen. And the problem with that is that there’s just a tremendous amount of craftsmanship in between a great idea and a great product... Designing a product is keeping five thousand things in your brain and fitting them all together in new and different ways to get what you want. And every day you discover something new that is a new problem or a new opportunity to fit these things together a little different. And it’s that process that is the magic.”
― Steve Jobs, PBS, 1996
Consciousness
“If a vivid red rose comes into view, my experience of it is built up over a third of a second, as an initially brutal neuronal competition leads to the shaping of brain activity around my attention toward the rose. An ultrafast, harmonious neuronal rhythm spreads outward from the thalamus and merges my collective neural information of the rose, which is stored in specialist areas throughout my cortex. This high-frequency, long-range, unified mental chunk will also broadcast itself into the prefrontal parietal network, where the experience will come to life.
But if I were faced with a more novel or complex task, my consciousness would show its true potential. My prefrontal parietal network activity would reflect an engaged working memory, a focused attention, and a ravenous search for patterns in order to conquer whatever mental obstacle was in my way. Meanwhile, my specialist regions of cortex for example, areas that store knowledge about objects at the front of the temporal lobes - would take turns to support my consciousness by providing the specific contents to my experiences.”
― Daniel Bor, “The Ravenous Brain”, 2012
Art Communication
“Every art communicates because it expresses. It enables us to share vividly and deeply in meanings… For communication is not announcing things… Communication is the process of creating participation, of making common what had been isolated and singular… the conveyance of meaning gives body and definiteness to the experience of the one who utters as well as to that of those who listen.”
― John Dewey, "Art as Experience", 1934
Storytelling
“The reader should be carried forward, not merely or chiefly by the mechanical impulse of curiosity, or by a restless desire to arrive at the final solution; but by the pleasurable activity of mind excited by the attractions of the journey itself.”
― Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria, 1906
Writing Papers
“When you conclude a paper, you should always close a door and open a window.”
― Benjamin K. Bergen, "Louder Than Words", 2012
Life Value
“The mark of the immature man is that he wants to die nobly for a cause, while the mark of the mature man is that he wants to live humbly for one.”
― J.D. Salinger, "The Catcher in the Rye", 1951
Thus I've decided to take up some of these quotes and leave them in a post here on the blog.
Creativity
“Creativity is just connecting things. When you ask creative people how they did something, they feel a little guilty because they didn’t really do it, they just saw something. It seemed obvious to them after a while.”
― Steve Jobs, Wired 1996
Ideas and Design
“You know, one of the things that really hurt Apple was after I left, John Sculley got a very serious disease. It’s the disease of thinking that a really great idea is 90 per cent of the work. And if you just tell all these other people “Here’s this great idea,” then of course they can go off and make it happen. And the problem with that is that there’s just a tremendous amount of craftsmanship in between a great idea and a great product... Designing a product is keeping five thousand things in your brain and fitting them all together in new and different ways to get what you want. And every day you discover something new that is a new problem or a new opportunity to fit these things together a little different. And it’s that process that is the magic.”
― Steve Jobs, PBS, 1996
Consciousness
“If a vivid red rose comes into view, my experience of it is built up over a third of a second, as an initially brutal neuronal competition leads to the shaping of brain activity around my attention toward the rose. An ultrafast, harmonious neuronal rhythm spreads outward from the thalamus and merges my collective neural information of the rose, which is stored in specialist areas throughout my cortex. This high-frequency, long-range, unified mental chunk will also broadcast itself into the prefrontal parietal network, where the experience will come to life.
But if I were faced with a more novel or complex task, my consciousness would show its true potential. My prefrontal parietal network activity would reflect an engaged working memory, a focused attention, and a ravenous search for patterns in order to conquer whatever mental obstacle was in my way. Meanwhile, my specialist regions of cortex for example, areas that store knowledge about objects at the front of the temporal lobes - would take turns to support my consciousness by providing the specific contents to my experiences.”
― Daniel Bor, “The Ravenous Brain”, 2012
“Every art communicates because it expresses. It enables us to share vividly and deeply in meanings… For communication is not announcing things… Communication is the process of creating participation, of making common what had been isolated and singular… the conveyance of meaning gives body and definiteness to the experience of the one who utters as well as to that of those who listen.”
― John Dewey, "Art as Experience", 1934
Storytelling
“The reader should be carried forward, not merely or chiefly by the mechanical impulse of curiosity, or by a restless desire to arrive at the final solution; but by the pleasurable activity of mind excited by the attractions of the journey itself.”
― Samuel Taylor Coleridge, Biographia Literaria, 1906
Writing Papers
“When you conclude a paper, you should always close a door and open a window.”
― Benjamin K. Bergen, "Louder Than Words", 2012
Life Value
“The mark of the immature man is that he wants to die nobly for a cause, while the mark of the mature man is that he wants to live humbly for one.”
― J.D. Salinger, "The Catcher in the Rye", 1951
novembro 21, 2014
A Montanha Mágica
A magia da palavra, é daqui que brota o poder alienante a que sucumbimos ao longo das mais de 30 horas de leitura (832p) da obra-prima de Thomas Mann. "A Montanha Mágica" (1924) comumente citado como um dos mais relevantes romances do século XX, é mais do que isso, é um legado humanista.
O tom elevado convive com um discurso conceptualmente trabalhado ao detalhe. Sente-se que Mann escreve com delicadeza, que escreve e reescreve para que da complexidade não surta ambiguidade, fá-lo sem contudo deixar de usar uma linguagem acessível, raramente adjectivando ou floreando, raramente rebuscando o vocabulário. Desta forma Mann consegue construir por meio de uma enorme simplicidade linguística, um estilo profundamente elaborado muito graças ao trabalho que exerce na construção gramatical, por meio de frases longas, cheias de descrições e significados que nos agarram, e nos obrigam a manter a concentração na leitura, sem espaço para distracções.
Apesar da beleza da forma, que como Mann diz pela boca de Castorp é apenas “afectação”, é natural que um trabalho desta magnitude tenha de ser suportado por conteúdo, o tal sentido utilitário da leitura, e nesse sentido foi com muito interesse que li o pequeno apontamento do extremista Naphta a propósito da Educação e da Escola, nomeadamente por este ser um texto com 100 anos, e distar tão pouco de muito daquilo que vamos continuando a ouvir ainda hoje:
Para fechar, dizer apenas que tudo isto está apenas acessível a nós, falantes de português, porque a tradução de Gilda Lopes Encarnação, de 2009, é absolutamente magistral, levando o jornal Público a intitular uma entrevista realizada com a tradutora, “Como se Thomas Mann escrevesse em português”. Com um mestrado e um doutoramento em Literatura Alemã, e vários anos como professora de português em território germanófono, levou um ano e meio a realizar esta tradução, que não posso deixar de recomendar vivamente.
“serei um amante de música, o que não quer dizer ainda que a preze de forma especial – como prezo e venero a palavra, o suporte do espírito, o instrumento, o arado fulgurante do progresso… a música… a música é o semiarticulado, o dúbio, o irresponsável, o indiferente...Mann leva-nos até ao cimo de uma montanha, onde nos entretém junto de hóspedes de um sanatório para tuberculosos. A pureza da natureza é confrontada com a morte pela doença, e daqui emerge um espaço-tempo propício à discussão dos elementos que fazem de nós homens e mulheres. A discussão assume um tom elevado, elaborado, mas não é por aí que a obra se torna difícil, podendo surgir talvez alguma dificuldade apenas pelo lado das referências filosóficas, culturais, sociais e políticas.
...a música é de um valor inestimável como meio supremo de arrebatamento, como força que nos faz avançar e voar mais alto quando o espírito já se acha preparado para a acolher. Mas a literatura deve tê-la precedido.”
O tom elevado convive com um discurso conceptualmente trabalhado ao detalhe. Sente-se que Mann escreve com delicadeza, que escreve e reescreve para que da complexidade não surta ambiguidade, fá-lo sem contudo deixar de usar uma linguagem acessível, raramente adjectivando ou floreando, raramente rebuscando o vocabulário. Desta forma Mann consegue construir por meio de uma enorme simplicidade linguística, um estilo profundamente elaborado muito graças ao trabalho que exerce na construção gramatical, por meio de frases longas, cheias de descrições e significados que nos agarram, e nos obrigam a manter a concentração na leitura, sem espaço para distracções.
“E nós, sombras tímidas à beira do caminho, acanhadas na nossa segurança de sombras, sem desejo algum de nos alongarmos em patranhas e façanhas, viemos aqui dar guiadas pelo espírito da história, para que possamos avistar uma vez mais, antes de perdê-lo completamente de vista, um daqueles camaradas cinzentos que correm, se precipitam e avançam ao som do rufar dos tambores, que irrompem em bandos da floresta, um soldado que conhecemos bem, nosso companheiro de viagem de longos anos, o simpático pecador cuja voz tantas vezes escutámos.”Em termos utilitaristas poderíamos dizer que se aprende muito lendo, e mais ainda lendo obras como “A Montanha Mágica”, mas aquilo que se aprende em obras deste calibre não está ao nível da ingestão de simples factos, ou descrições de eventos, acontecimentos, ou a desconstrucção de teorias e conceitos. O que se aprende com Mann, e nomeadamente com a viagem através desta Montanha, ao longo de 7 anos, tempo cronológico da diegese, é a ver o mundo de uma forma distinta. Aprendemos a aceitar a realidade de uma forma que não está ao alcance da experiência directa que possamos ter no nosso dia-a-dia. Porque mesmo ficcionando, Mann se viu obrigado a situar a acção num ambiente de reclusão, afastado da azáfama do dia-a-dia, das obrigações, deveres, trabalhos, relógios e calendários. Ali, a vida a corre num tempo completamente paralelo, imune às vicissitudes do nosso real.
“O que designamos por tédio é, portanto, uma abreviação doentia do tempo decorrente da monotonia: a uniformidade constante produz a redução atroz e assustadora dos longos períodos de tempo.”Deste modo Mann consegue recriar uma comunidade profundamente dedicada à dialéctica, capaz de colocar em debate qualquer assunto, na sua estrutura em abstracto, mantendo na maior parte do tempo, uma enorme consciência do ponto de vista do outro, possibilitando a tolerância e assim fazendo avançar o debate. Inevitável recordar aqui um discurso de David Foster Wallace, que vale a pena ler e ouvir.
Apesar da beleza da forma, que como Mann diz pela boca de Castorp é apenas “afectação”, é natural que um trabalho desta magnitude tenha de ser suportado por conteúdo, o tal sentido utilitário da leitura, e nesse sentido foi com muito interesse que li o pequeno apontamento do extremista Naphta a propósito da Educação e da Escola, nomeadamente por este ser um texto com 100 anos, e distar tão pouco de muito daquilo que vamos continuando a ouvir ainda hoje:
“Sim, não nos apercebíamos de como o povo se ria a bom rir dos nossos títulos de doutor e de todo o nosso mandarinato educativo, da escola primária oficial, esse instrumento da ditadura burguesa manejado na ilusão de que a cultura popular seria uma forma diluída da cultura erudita. O povo sabia muito bem onde ir buscar a cultura e a educação de que necessitava na luta contra a burguesia apodrecida, sabia que não era nas casas oficiais de correcção que as encontraria, para além de que não era segredo para ninguém que o nosso modelo de escola, desenvolvido a partir da escola monástica da Idade Média, era um modelo obsoleto e anacrónico e que ninguém no mundo devia já a sua formação à escola… o ensino livre, aberto a todos, baseado em conferências públicas, exposições, cinema e outras coisas afins estava muito acima do tradicional ensino escolar.”Não vou aqui entrar na discussão em detalhe do muito que se discute na obra, porque isso foi já tão amplamente dissecado em termos académicos, que eu, não sendo sequer da área literatura, muito dificilmente poderia aqui acrescentar algo. Desde congressos inteiros dedicados à discussão da obra de Mann, às centenas de papers que se podem encontrar no Google Scholar, é possível encontrar quase todos os assuntos, conceitos ou estilos discutidos em detalhe.
Para fechar, dizer apenas que tudo isto está apenas acessível a nós, falantes de português, porque a tradução de Gilda Lopes Encarnação, de 2009, é absolutamente magistral, levando o jornal Público a intitular uma entrevista realizada com a tradutora, “Como se Thomas Mann escrevesse em português”. Com um mestrado e um doutoramento em Literatura Alemã, e vários anos como professora de português em território germanófono, levou um ano e meio a realizar esta tradução, que não posso deixar de recomendar vivamente.