janeiro 30, 2015

A ideologia de Miyazaki

Trago o pequeno ensaio-audiovisual "Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014), criado por Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran, estudantes de cinema da UC Santa Cruz, que discute a ideologia subjacente aos filmes de Miyazaki, nomeadamente o modo como ele consegue gerar interesse tanto no oriente como no ocidente. Um dos aspectos mais interessantes aqui debatido, é a forma como o género sai retratado nas suas obras, ocupando imensos papeis principais, e alguns de grande força. A justificação de Miyazaki para tal não podia ser mais simples e directa, deve-se ao facto de no estúdio, aparentemente, trabalharem mais mulheres que homens.





O trabalho de Miyazaki é uma referência no mundo da animação, do cinema, e da cultura. O modo como ele consegue imprimir uma marca autoral nas suas obras, faz com que se demarque totalmente do universo Disney-Pixar, que por seu lado se fixa mais em valores universais. Ou seja, Miyazaki não se coíbe de expressar o que sente, ou como reflecte sobre o mundo em que vive, apresentando as suas ideias, distintas e que nos obrigam a reflectir. Já a Disney-Pixar preocupa-se mais em reforçar aquilo que nós como sociedade já conhecemos e aceitamos. Poderíamos dizer que aquilo que separa estas formas de fazer cinema está na capacidade, ou risco, de gerar confrontação intelectual.

Em termos experienciais posso dizer que quando acabo de ver um filme Pixar/Disney sinto gratificação, a viagem foi agradável, muitas vezes pelo deslumbre com a excelência nos campos técnico e estético. Mas não fico a pensar no que vi, foi bom, mas terminado parto para a próxima ideia. Quando termino um filme de Miyazaki demoro a sair do filme, o meu pensamento parece que fica ali enredado, é como se aquelas formas particulares de modelar o mundo me tentassem modelar as minhas próprias ideias, criando um debate entre aquilo que eu era, e aquilo que passo a ser.

"Hayao Miyazaki - Nature, Culture, & Character" (2014) de Zackery Ramos-Taylor e Gacinta Moran

janeiro 25, 2015

A estética emocional do ponto-de-vista

Confusion Through Sand” (2014) é uma animação magistral. Financiada no Kickstarter, chegou em ante-estreia ao Festival SXSW, e estreou este mês no canal PBS. “Confusion Through Sand” é um trabalho que começa por nos impactar pelo ponto de vista, em constante mudança de perspectiva, apesar de realizado em desenho em papel, e pelo storytelling audiovisual, com a sua capacidade para nos transportar para o cenário representado, e nos colocar literalmente dentro da cabeça do seu personagem.




Vejam o filme e depois vejam o making-of (abaixo), vale a pena para perceberem como foi conseguido o trabalho do ponto-de-vista, que nos impressiona tanto. Em poucos segundos o filme agarra-nos, e não mais nos deixa até que surgem os créditos finais, tal é o ritmo imposto, não apenas visual mas sonoro e narrativo.

Em certa medida sinto que esta forma de trabalhar a apresentação da acção, como se tivéssemos uma câmara em cima do personagem, colada a ele, com tremuras, imitando a atenção de um soldado em cenário de guerra, ou seja com movimentos rápidos, sacadas e saltos, é central para nos transportar para o interior do soldado. Em certa medida esta animação faz-me pensar, em termos de linguagem audiovisual, que mais eficaz do que a câmara subjectiva, ou em primeira-pessoa, é a câmara que imita os personagens, aliás algo que se tem vindo a tornar norma, se pensarmos que nos anos recentes os planos estáticos praticamente desapareceram, temos quase sempre câmara ao ombro em movimento constante. Por outro lado a câmara subjectiva nunca funcionou muito bem, como continua a não funcionar nos videojogos. Aqui temos uma câmara como se fosse um personagem, mas temos o nosso personagem sempre em cena, empatizamos com ele, mas empatizamos através de uma mímica visual que parece servir de intensificador da expressividade desse personagem.

Confusion Through Sand” (2014) de Danny Madden (Ornana)

Nos momentos de maior tensão, ajuda imenso o minimalismo visual, e a ocupação do ecrã pelo indefinido, que gera confusão em nós, e impacto na tensão, isto é algo que a animação faz muito bem, porque o seu material plástico se presta muito bem a tal. Ainda assim mesmo aqui, o facto do ponto-de-vista nunca parar e entrar em círculo, imita mais uma vez muito bem o que se está a passar com a visão do nosso personagem, e nós que só vemos através da câmara, vemos o que ele vê, e como ele vê, que é pouco ou nada, com a confusão a enfatizar toda a tensão do momento.

Todo este trabalho fez-me agora recordar o magnífico plano sequência da série "True Detective". Interessante como aí me liguei mais aos problemas logísticos, e menos estéticos. Talvez porque sendo uma câmara real, filmado em tão pouco tempo, apesar de seguir os personagens e forçar a tal perspectiva mimica de que falo aqui acima, sente-se menos que aqui. Aí a câmara parece mais limitar-se a seguir os personagens, falta-lhe raio de acção, falta manobra, para nos transportar para dentro de Matthew McConaughey. Ainda assim é um claro movimento da linguagem audiovisual neste sentido da mimica, menos do que no sentido do cinema clássico, como dei a entender nesse texto que fiz.

É muito bom ver como a linguagem vai evoluindo, e como continuamos a conseguir surpreender-nos com uma arte que tem mais de um século.

Making-of

janeiro 23, 2015

O estranho mundo do esquecimento

Belíssima animação de Stephen McNally, como trabalho do Mestrado em Animação pelo Royal College of Art, consegue-nos capturar por meio de uma ilustração distante dos cânones mas altamente evocativa, conjuntamente com uma mensagem de fundo e uma musicalidade que trabalham para tornar o evocativo numa atmosfera densa que se agarra a nós. São apenas dois minutos que se vêem, re-vêem, e voltam a ver. Uma delícia.



O tema adapta-se na perfeição, ou melhor a plástica escolhida funciona em total sintonia com aquilo que se quer expressar, a ideia de esquecimento, dos fiapos de recordações que se vão decompondo na nossa cabeça, e da qual parecem emergir sombras de pessoas, tal como neste filme, indefinidas, esguias, pouco dadas ao realismo em alta-definição, com faces que se desvanecem com o tempo que parece não conseguir sustentar os registos de toda essa informação.

"Forgot" (2013) de Stephen McNally

janeiro 14, 2015

O alto custo do barato

Adam Westbrook publicou hoje mais um dos seus interessantíssimos ensaios audiovisuais no Delve, no qual nos fala de “Bananas, Sardines and Shark” (2015), ou antes sobre os impactos dos produtos baratos. Em apenas 7 minutos Westbrook dá conta das teias económicas que conseguiram mover meio mundo, precipitando a morte de milhares de pessoas, para manter o preço das bananas baixo. O foco do documento não é, de todo, as bananas mas a globalização e os seus atropelos aos direitos humanos, com uma mensagem final bastante forte que nos deve levar a reflectir sobre o consumo que fazemos todos os dias.



Mais uma vez Westbrook questiona-me sobre o valor do audiovisual para transmitir ideias, a sua capacidade para sintetizar conceitos, torná-los facilmente digeríveis e assim fazer com que cheguem a um muito maior número de pessoas. Claro que para tornar isto num artefacto envolvente, apenas nos é dado a saber um mínimo de elementos chave capazes de criar um raciocínio causal. E é nisso que Westbrook é muito bom, na escolha dos elementos chave, na construção da linha narrativa, e no processo de storytelling dando a informação apenas nos momentos correctos, mantendo-nos agarrados, surpreendendo-nos, e assim conseguindo fazer passar a sua mensagem.

Se quisermos perceber realmente o que se passou na Guatemala, ou como é que a CIA chegou aqui, teremos de aprofundar o assunto, e aí claramente que o meio do livro tem um alcance muito mais amplo. Aliás, Westbrook dá conta dos livros (http://delve.tv/bananas-sardines-sharks-video-essay-consumerism/) que usou para produzir este filme, tendo um deles servido para intitular o seu ensaio, “The Shark and the Sardines” de Juan Jose Arevalo.

"Bananas, Sardines and Sharks" (2015) de Adam Westbrook
"Before our favourite smartphones, tablets, taxi apps and online stores there was the humble banana. This remarkable true story of a Cold War coup warns us that no matter how cheap and convenient our stuff is, there is always a price to pay."

Causalidade de uma guerra

A propósito da I Grande Guerra, discutida no texto anterior, fui rever um ensaio audiovisual de Adam Westbrook do Delve, "Cause and Effect: the unexpected origins of terrible things" (2014). Fantástico, não apenas a brilhante capacidade de contar histórias de Westbrook, mas a perspectiva histórica apresentada por este a propósito do rastilho que terá dado origem à I Grande Guerra.




Não conheço o suficiente sobre esta guerra, não sei se a perspectiva aqui apresentada é original e quão correcta poderá ser, apesar disso Westbrook apresenta o encadeado de livros que utilizou para construir esta teorização sobre a causa da guerra, e mais do que isso fá-lo de uma forma totalmente convincente. Pode apenas ser mais uma teoria da conspiração, mas não deixa de ser altamente credível, assim como profundamente perturbadora.

"Cause/Effect" (2014) por Adam Westbrook
"The causes of World War One have been written about countless times, and you probably know the story. But is there another way of looking at it? Here's an alternative history to a catastrophe 100 years ago."

janeiro 11, 2015

“Valiant Hearts", dramas da I Grande Guerra

Valiant Hearts - The Great War” terminado, senti um forte arrepio com o adeus "sonoro" de Emile, tocou-me e emocionou-me, um verdadeiro “coração valente”… Não é um jogo que exija de nós, usa e abusa de mecânicas mais do que conhecidas, mas fá-lo porque está convicto de que aquilo que importa é contar a história que tem para contar, e fá-lo muitíssimo bem.





Valiant Hearts” é um dos pequenos videojogos desenvolvidos pelo pequeno estúdio da Ubisoft em Montpellier. Grafismo 2d e jogabilidade 2d, mas com grande qualidade gráfica, grande qualidade musical, e grande qualidade no storytelling. Entramos no jogo com a sensação de que é apenas um pequeno jogo com pouco para mostrar, puzzles de acção visual em sidescroller com variação de profundidade de campo, parece ter tão pouco para nos impressionar, mas à medida que vamos entrando no jogo, vamos percebendo que a sua essência não está nos puzzles, nem nos “quick time events”, mas está na história rica de drama, está nas personagens ricas de humanidade.

Valiant Hearts” vem de encontro a algo que escrevi há já muitos anos, quando queremos contar uma grande história, quando queremos agarrar o jogador emocionalmente pela narrativa, a componente de jogo tem de se pautar pelo uso de mecânicas de alguma forma standard, que não obriguem o jogador a grandes processos de racionalização da sua interacção. Ora é exactamente isto que temos aqui.

Trailer "Valiant Hearts - The Great War" (2014)

Acima de tudo “Valiant Hearts” é um magnífico videojogo sobre a I Grande Guerra, vale por tudo aquilo que tem para dizer, mostra a guerra sem terror, mas não esquece o drama que é fortemente enriquecido por um dossier de imagens e histórias reais que podemos ir coleccionando através de pistas obtidas no jogo.

janeiro 10, 2015

IGN: Marvel Cinematic Universe

Esta semana escrevi um texto para o IGN sobre O Futuro da Marvel em Hollywood, no qual abordo o modo como a Marvel invadiu Hollywood assim como o modo como esta espera dominar o meio. Tendo começado por pequenos passos a estratégia cresceu e prepara-se agora para a invasão final com aquilo que ficou designado de Marvel Cinematic Universe.


No artigo falo apenas da estratégia cinematográfica, mas esta não se fica por aqui, ela pretende ocupar toda a paisagem audiovisual, tendo para o efeito sido desenvolvido várias séries de televisão que começaram em 2013 e deverão continuar nos próximos anos, tais como Marvel's Agents of S.H.I.E.L.D. Na imagem abaixo pode-se ver uma tentativa de friso cronológico de todo este emaranhado de histórias que a Marvel está a importar do universo BD para o audiovisual.


O artigo pode ser lido online: O Futuro da Marvel em Hollywood. A Fantasia Transmedia (9.1.2015).

janeiro 06, 2015

“Auteur in Space“ (2015)

Mais um brilhante ensaio audiovisual, "Auteur in Space" (2015) de Kogonada, foi publicado pelo BFI na rede. Desta vez Kogonada desmonta o filme “Solaris” (1972) não nos seus aspectos formais, apesar de também, mas em tudo aquilo que Tarkovski quis dizer com tudo aquilo que quis fazer (sublime a ligação a 2001 de Kubrick). Kogonada leva-nos por uma viagem rápida, de 5 minutos apenas, através dos conceitos emanados de Stanislaw Lem, o autor do livro homónimo, e tratados por Tarkovsky, ao som do atmosférico “Mychkine” do Tarkovsky Quartet.



“is art that triumphs here, that speaks to the mystery of existence”

.

janeiro 05, 2015

Livros que li em 2014

Em Maio dei aqui conta de uma alteração de hábitos que passava por jogar mais e ver menos cinema. A partir de Agosto voltei a introduzir alterações nos hábitos, tendo passado a ler mais, dedicando ainda menos tempo ao cinema, e roubando o tempo que entretanto tinha dedicado aos videojogos. Os livros lidos dividem-se em três grandes categorias - banda desenhada, não-ficção e literatura - para cada uma das categorias identifico as três melhores obras que li este ano. Alguns analisei aqui no blog, outros apenas no GoodReads.

Banda Desenhada 2014

1. Blankets (2003) de Craig Thompson [Análise]
2. Portugal (2012) de Cyril Pedrosa [Análise]
3. Arrival (2006) de Shaun Tan [Análise]

Não-ficção 2014

1. The Talent Code (2009) de Daniel Coyle [Análise]
2. To Save Everything, Click Here... (2013) de Evgeny Morozov [Análise]
3. The Design of Everyday Things Revised and Expanded (2013) de [Análise]


Literatura 2014

1. A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann [Análise]
2. Stoner (1965) [Análise]
3. The Martian (2014) de Andy Weir [Análise]

janeiro 03, 2015

“Cem Anos de Solidão” (1967)

Demorei 20 anos a sair de Macondo, depois de aí ter entrado em 1995, voltei lá por mais três vezes, tendo só agora, no início de 2015, terminado a viagem. De cada vez que tentava voltar à leitura aquilo que me afastava era o seu lado mágico-fantástico, o exagero de feitos e capacidades, que me retiravam da crença. No final da leitura, e depois de me ter obrigado a ler até meio, momento em que o discurso começou a ganhar solidez e a crença voltou a surgir, o discurso não só faz sentido como assume a essência da singularidade do discurso de Gabriel Garcia Márquez.


Cem Anos de Solidão” é uma obra-prima porque não poderão ler algo igual em mais lado nenhum. Márquez criou um trabalho singular e poderosamente criativo, através de uma escrita absolutamente vertiginosa pelo ritmo que imprime, suportado por uma torrente constante de personagens, eventos e factos, na sua maioria fantásticos mas sempre a tentar puxar à verosimilidade. Aliás é esse ritmo e volume de informação que torna o livro difícil, porque não é humanamente possível reter tudo o que vai acontecendo, a não ser que nos detenhamos de papel e lápis, mas é esse ritmo que impregna a forma do discurso e contribui para a construção do sentir daquilo que Márquez pretende expressar.
"Melquíades não tinha ordenado os factos no tempo convencional dos homens, mas concentrou um século de episódios quotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante"
“Cem Anos de Solidão” acaba por emergir da paisagem literária por ser capaz de retratar de forma lancinante o âmago da experiência de vida latina, ou seja um sentir caótico orgânico interminável e irrepetível. É tudo isto que Marquez consegue dar-nos a sentir sem nunca ter de o dizer, apenas relatando o que vê, através da sua peculiar forma de ver. Aliás essa é uma das enormes conquistas deste livro, conseguir dar-nos a experienciar tanto do interior dos personagens, sem nunca os colocar a falar, sem nunca nos mostrar o seu interior, toda a descrição é realizada sobre acções externas sobre o mundo, mas porque é feita em termos mágico-fantásticos permitem-nos um acesso muito mais profundo ao interior de cada um dos personagens. Acaba sendo paradoxal, um livro que trabalha sempre o mundo externo e no entanto praticamente impossível de adaptar ao cinema, isto porque o mundo descrito - as acções, pessoas, eventos, factos - apresentados não são nunca o real comum, mas um real próprio criado por Márquez, como se ele fosse dotado de uma capacidade especial de ver o mundo.

Enquanto português, e sendo latino, consigo aceder a um vislumbre das metáforas históricas que trespassam todo o livro, tal como a maioria dos restantes latinos, contudo acredito que o livro seja capaz de ir além em camadas de leitura para quem conheça de perto a história da Colômbia. Nesse sentido, é um livro que ganhará bastante com novas leituras, e com leituras mais informadas sobre a Colômbia, assim como sobre a vida de Gabriel Garcia Márquez que não deixa de estar também sempre presente.
"Até então, não lhe ocorrera pensar que a literatura era o melhor brinquedo que se tinha inventado para gozar com as pessoas"