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dezembro 09, 2017

What Remains of Edith Finch (2017)

É uma experiência de sublimação. À medida que vamos jogando, vamos ficando a conhecer a família Finch, e quanto mais vamos sabendo mais nos vamos emocionando, como se aquela família pudesse de algum modo representar todas as famílias e nos pudesse dar um olhar para a realidade da vida, para aquilo que representa estar-se vivo. É história, é ficção, é um jogo mas podia ser um filme, ou melhor ainda, um livro, porque para quem gosta de literatura a casa dos Finch mais parece um paraíso na Terra (ainda que tivesse gostado de ver um melhor trabalho de curadoria dos livros em função das pessoas e partes da casa, nomeadamente evitando repetições).




Em termos de jogo, temos uma espécie de walking simulator munido de uma série de inventivos minijogos. À partida, os minijogos atirarmos-iam logo para sequências inconsequentes, ou mesmo irrelevantes, contudo em “…Finch” estes assumem um caráter de grande relevância, não apenas pelo engenho e imaginação, mas porque funcionam como mudança de ponto de vista, permitindo que a voz que narra se desdobre, alargando o nosso conhecimento daquela realidade e densificando a experiência. Podemos mesmo dizer que a partir do meio do jogo, começamos a sentir uma enorme vontade de encontrar esses pontos, na ânsia por descobrir como será a experiência, mas também por tudo aquilo que esses pontos representam na árvore genealógica foi Finch.

No campo da história, o primeiro impacto da nossa tentativa de compreender o que nos está a ser contado, é de incredulidade. Não é por acaso que Marty Silva, no IGN, classifica a mesma de realismo-mágico. Ultrapassada essa barreira, deixando-nos inebriar pela história, vamos seguindo o fio da mesma, aceitando o fantástico, mas ao mesmo tempo relacionando-o com a nossa realidade, compreendendo aquilo que se nos conta como exagero mas próximo, sentido e realista. Ou seja, temos uma universo profundamente trágico, mas ao mesmo tempo divertido, porque aceita a tragédia como parte daquilo que faz de nós seres-humanos.



Para que tudo isto funcione, ajuda imenso a arte visual e sonora. A narração é suportada por uma voz graciosa, que vai pautando o ritmo do jogo, por sua vez amplamente suportada por texto que surge diretamente no mundo virtual, intensificando aquilo que o jogo vai querendo dizer. Se em termos de design faz lembrar walking simulators como “Firewatch” (2016) ou “Gone Home” (2013), em termos de experiência estética, tanto no aspeto visual como pela personagem principal, aproxima-se bastante de “Life is Strange” (2015).

Ian Dallas já nos tinha dado antes o belíssimo “The Unfinished Swan” (2012), uma aventura surrealista movida por um game design de pura inventividade. Desta vez, provavelmente movido pela morte da sua mãe, Shirley Dallas (1948-2013), a quem dedica o jogo, seguiu uma abordagem de design mais simples, focando-se no contar de história, dotando-o de um discurso direto, assumido pelas vozes e textos, secundarizando em parte o game design, com o objetivo claro de ir mais ao fundo do sentir dos personagens do universo criado. Um criador para continuar a seguir.

Uma imagem que dá conta da qualidade da arte visual.

dezembro 01, 2016

"Virginia" (2016)

Uma experiência de grande envolvência, fundamentalmente graças à ilustração, cinematografia e música. Contudo acaba por falhar em termos do desenvolvimento narrativo e da interação, e se a mensagem se perde por entre a abstração e o surrealismo, a interação nunca chega verdadeiramente a surgir. Apesar disso, é mais um passo em frente no experimentalismo com a linguagem dos videojogos.





“Virginia” não se arroga por inovar ou experimentar o novo, já que assume a total inspiração em “Thirty Flights of Loving” (2012), contudo, ao transformar uma experiência reduzida de 15 minutos numa experiência com a duração de um filme regular, 100 minutos, vê-se na obrigação de experimentar novas abordagens, de experimentar e tentar fazer funcionar algo que era apenas mero conceito.

“Thirty Flights of Loving” e “Virginia”, socorrem-se de estruturas padrão do contar de histórias cinematográficas para desenvolver os seus modelos experimentais de jogo. Daí que o posicionamento de câmara surja sempre forçado e fortemente restringido. Por outro lado, o modo como ambos usam a montagem dá-lhes todo um sabor estético raramente presenciado noutros videojogos, capaz de intensificar bastante a sensorialidade de toda experiência. Também, ambos trabalham as suas mensagens com recurso a um surrealismo com fortes pontos de contactos com o realismo, aproximando-se totalmente de um discurso que tem sido cunhado nas últimas décadas por David Lynch.

Em termos visuais, “Virgina” é absolutamente espantoso, não só a montagem mas nomeadamente a arte gráfica, com uma palete de cores vibrante que contrasta com a modelação quase low-poly. É fácil entrar no mundo criado e deixar-se ficar aí, mesmo quando não entendemos o que o jogo nos está a querer dizer. O universo visual é tão intenso e doce que só pensamos em continuar, seguir em frente, na esperança de encontrar a chave que descodifique tudo aquilo em que nos vamos deixando envolver. Confesso que no final pouco percebi do que ali vivi, mas a sensação de ter experienciado um mundo particular, distinto e belo não me permite sentir qualquer arrependimento do tempo investido.

Por fim, e sobre a interação. Apesar de ser um grande defensor dos walking simulators, considero que a linha do walking simulator é aqui ultrapassada, aproximando o objeto muito mais de uma animação interativa. A razão baseia-se no facto de não existir verdadeira agência, ou seja, não são dadas opções ao interator, e não falo de diálogos ou história, mas de espaço, de estratégia, ou até de jogo. Tudo o que se pode fazer é apenas carregar em Play e Pausa. Tudo o que apresenta propriedades interativas, são na verdade propriedades reativas à espera de serem meramente ativadas pelo jogador. Nunca o interator é chamado a refletir sobre que faz e/ou porque faz. Deste modo, não temos jogo, não temos história interativa, nem sequer temos mundo interativo, temos antes animação interativa, um artefacto de animação que nos permite, a tempos, atuar sobre os cenários da animação.

setembro 26, 2016

“Thirty Flights of Loving” (2012)

É de 2012, mas só agora o consegui jogar, percebendo a enorme lacuna que tinha na minha cultura de videojogos. “Thirty Flights of Loving” é uma obra de puro experimentalismo narrativo que merece estar nas listas de melhores jogos de qualquer apreciador da arte dos videojogos.



Em termos de universo temático, diria que “Thirty Flights of Loving” se fundamenta numa estética “Pulp Fiction” à lá David Lynch. A cor, a violência, a intensidade e velocidade, misturada com os flashbacks, e os elementos anti-estrutura, garantem uma experiência de videojogo completamente distinta, original. Não conseguindo compreender tudo, mas inferindo muito, graças a uma cultura feita de assaltos cinematográficos, vamos evoluindo no jogo, envolvendo-nos, e desejando cada vez mais.

Thirty Flights of Loving” não é especialmente criativo no âmbito interativo, focando-se mais numa lógica simples de “walking simulator”, mas o que não inova em interação transcende em narração, dando conta de um transbordo de engenho criativo de Brendon Chung. Chung que em entrevistas descreveu o seu processo criativo como instintivo e acidental, sem uma mensagem de partida, antes criando a partir da matéria prima dos jogos, fazendo e experimentando.

A beleza de “Thirty Flights of Loving” assenta exatamente na sua capacidade para nos fazer correr atrás. Ao nos dar acesso a pedaços de história, vai-nos atiçando a imaginação, elevando a motivação para interagir, avançar, progredir, em busca do entendimento do que se passa naquele universo. Ou seja, a arte resta no design do que é dado a experienciar, na sua capacidade para atrair e cativar, sugerindo. O enredo apresentado é aparentemente simples, ficando o detalhe dos personagens envolvidos sujeito a maior complexidade que por sua vez garante densidade e profundidade à obra, apesar de se resumir a uma experiência de 15 minutos.

setembro 06, 2016

“Firewatch" (2016), o anti-catártico

Firewatch” não é o jogo que tinha idealizado, mas talvez por isso mesmo me tenha surpreendido tão intensamente. “Firewatch” demonstra, como tem vindo a demonstrar uma boa parte dos videojogos narrativos recentes, que o meio dos videojogos tem ainda muito caminho a desbravar no campo do storytelling, e que vai bem, muito bem até.





Comecei por adorar o prelúdio em que se mistura ficção interativa com walking simulator, ou seja em que nos é dado a conhecer o personagem, nomeadamente a construção de uma relação, e sua vida no passado, por meio de diálogos textuais, intercalados com o presente e a nossa chegada à floresta. É algo simples, minimal, mas muito bem ritmado, com uma abordagem e perspectiva imensamente adultas, ao nível do melhor que se faz em literatura. Acredito que exatamente por ser tão conseguido, me tenha gerado tanta surpresa o que veio depois a ser o jogo em si, com uma mudança de tom tão distinta, mas que acaba justificando-se plenamente, e que espero conseguir explicar neste texto sem detalhar a história.

Assim, em face de uma perda dramática apresentada no prelúdio, somos apresentados a um ambiente de solidão, no meio de uma vasta floresta, mas dominado por um tom humorístico, por vezes negro, num sentido de clara fuga à realidade. Na verdade é a isso mesmo que o jogo almeja, ou melhor, é essa uma das razões que usa para explicar porque existem pessoas capazes de se desligarem das suas vidas por 3 meses, e isolarem-se no meio de uma floresta no alto de uma torre, sem cortinas, televisão, telemóveis, nem mesmo chuveiros.

Nós somos Henry, e passaremos 3 meses isolados numa torre de vigia de incêndios, apenas em contacto via rádio portátil, ou walkie-talkie, com Delilah, a colega da torre mais próxima. Ao longo desse tempo acabaremos por conhecer melhor ambos, e construir entre estes uma relação. Tal como no prelúdio, a gestão narrativa é muito conseguida, fazendo-nos acreditar na existência de ambos os personagens, desejando-lhes o melhor.

Neste sentido “Firewatch” acaba abrindo mais uma forma de explorar os walking simulators, ou seja, se “Gone Home” (2013) contava a sua história por meio do ambiente, “Firewatch” conta a sua história por meio de diálogos em off, que apesar de se aproximar do narrador em off, muito bem explorado em “The Stanley Parable” (2014), funciona diferentemente porque permite acesso a todo um manancial de técnicas da ficção interativa para nos induzir um sentido participatório mais intenso, e é aqui que acaba por residir a essência de todo jogo.

Ou seja, tendo em conta toda a história, percebemos que o objetivo de ir para o meio da floresta por tantos meses é a solidão, mas é também uma forma de lidar com um drama interno, acreditando que por meio da introspeção se realizará uma espécie de cura. Contudo sabemos bem que a cura não surge do isolamento, isso é uma ilusão que a depressão desenvolve em nós, já que o isolamento só afunda ainda mais, ainda que seja requerido em certos momentos para lidar connosco mesmos. Neste sentido, “Firewatch” praticamente obriga-nos a lidar com o outro, ainda que apenas por via rádio, mas obriga-nos a despertar para o real que nos circunda, impedindo a entrada no mundo da divagação e alheamento. E por isso o diálogo em off, e o tom menos sério do mesmo, e até mesmo a ação detetivesca e conspiratória, assumem tão grande relevância, sendo subtilmente tão nevrálgicos.

Admito que inicialmente não percebi isto. Inicialmente não gostei de me obrigarem ao diálogo, menos ainda da conspiração à lá "área 51", por estarem a brincar com os “meus” sentimentos, eu pretendia explorar toda aquela natureza bela, senti-la no isolamento do som da natureza, mas o jogo impediu-me, como quem impede o bêbedo de aceder a mais álcool. Poderia parecer uma ultra-interpretação esta leitura que faço, mas se olharmos ao twist narrativo final, para quem já jogou, se pensar no que se passou com Ned e porquê, verá como funciona em total contraponto com a aquilo que se permite a Henry, para evitar que Henry se transforme em Ned. Este twist, apresentado em muitas análises como anti-catártico, é-o porque a isso se objetiva em termos emocionais, ou seja, busca-se a construção de um conhecimento sobre o personagem que implica reflexão e não o mero murro emocional, aristotélico, diria mesmo que “Firewatch” consegue desta forma ser um dos jogos mais brechtianos que tivemos até agora em termos emocionais.

Em síntese, “Firewatch” apresenta uma das melhores histórias jogáveis dos últimos anos, não pelo fantástico que é a sua apresentação, mas antes o contrário, pela forma sublime com faz passar a essência da sua mensagem, fugindo totalmente ao in-your-face hollywoodiano, obrigando-nos a pensar não apenas no que é dito e mostrado, mas por tudo o que isso nos obriga a sentir e refletir, construindo à posteriori um sentido do todo.

dezembro 29, 2015

“The Beginner's Guide” (2015)

Numa primeira impressão surge-nos como uma espécie de pequena história entre dois amigos, um criativo com vergonha de falar do seu trabalho, e um seu amigo que se dedica a demonstrar o trabalho por si. Os vários projectos vão sendo demonstrados, e no final percebemos que a relação entre ambos não é tão próxima ou tão íntima como o segundo nos quer fazer crer, mas o interessante surge quando percebemos a razão do conflito e o ligamos com a história do verdadeiro autor do jogo, David Wreden, é aí que percebemos que “The Beginner's Guide” pode ser bastante mais do que uma mera história de ficção na forma de jogo.






(O texto que se segue apresenta ligeiros spoilers).

Tendo em conta esse contexto, podemos qualificar “The Beginner's Guide” como uma espécie de grito catártico, provável fruto do impacto do sucesso inusitado do seu jogo anterior, “The Stanley Parable”. Ou seja, Wreden terá passado os últimos dois anos a experimentar conceitos de game design em busca do graal que lhe iria permitir ir além do seu sucesso anterior, servindo “The Beginner's Guide” como diário/roteiro criativo desses dois anos de esforços. Para nos contar a sua história Wreden socorre-se do género walking simulator que lhe permite revelar o processo criativo de modo expositivo e linear, fazendo uso da sua componente interativa para demonstrar alguns elementos dos conceitos que foi explorando. Se a história passa, nem sempre a escolha do walking simulator ajuda a dar conta das várias mecânicas (veja-se o caso da máquina criativa).

Tendo o foco na análise dos processos criativos assim como na crítica do design de videojogos, “The Beginner's Guide” torna-se num videojogo obrigatório para qualquer criador ou estudioso de videojogos, já como experiência de jogo para o comum jogador dificilmente consegue fazer passar a ideia, desde logo porque este conta com o facto de conhecermos a obra anterior do autor, mas mais do que isso, porque os conceitos explorados e a meta-análise envolvida dificilmente ecoará nas cabeças dos jogadores, o que toca no questão central explorada pelo jogo em termos criativos.

Ou seja, “The Beginner's Guide” questiona quão longe pode ir um criador em termos criativos tendo em conta a capacidade do jogador para entender o que pretende dizer. Uma discussão que bate de frente com um dos mais antigos tópicos da arte, a intenção artística, nomeadamente se uma obra precisa de “trabalhar” para se aproximar dos seus receptores, ou se são os receptores que precisam de “trabalhar” para chegarem ao que o autor tem para dizer. Falamos aqui da essência do que deve ser a arte, deve ela ser fundamentalmente expressiva ou ter uma função comunicativa?

Um dos exemplos discutidos acontece numa prisão, quando o jogador se enclausura numa cela, este teria de aguardar 1 hora de tempo real até que a cela se voltasse a abrir para poder sair. Assim seria possível ao criador expressar bem o conceito de se estar preso, o problema é que o pedido pode não encontrar receptividade no jogador, a comunicação pode não acontecer, e desse modo este simplesmente desistir do jogo, provocando o dilema criativo. Diga-se que seria algo bem menos “doloroso” do que ver um filme de 8 horas, no qual se vê, ao longo de todo esse tempo, apenas uma pessoa a dormir num sofá (“Sleep”, 1963 de Andy Warhol). Este exemplo da arte cinematográfica, é um exemplo que dá conta da experimentação artística, capaz de pôr a prova a intenção do artista e o modo como choca com os standards aceites pelos espectadores, habituados a exigir e a conseguir, filmes narrativos de 1h30.

A farsa por detrás de “The Beginner's Guide” dá bem conta deste tópico, através da relação entre o criador e o amigo (que no fundo representa o público), nomeadamente quando o amigo começa a alterar estas mecânicas, para as poder demonstrar rapidamente — no caso da prisão, em vez de ficarmos uma hora ali presos, ele altera o jogo para nos permitir saltar essa parte. Quando o criador descobre que andam a alterar os seus jogos para os mostrar, fica decepcionado, chegando ao ponto de desistir da criação de videojogos. Sendo este o clímax, assim como a essência da mensagem, com a intenção autorial a afundar-se face à não aceitação do público.

Dito tudo isto, é um jogo para quem cria, qualquer tipo de arte, e está habituado a refletir sobre o processo, ou para quem se interesse pelos processos criativos, mas é um jogo difícil para o jogador comum, porque apesar de até poder chegar à compreensão do que se discute, dificilmente sentirá o dilema, já que o assunto é apenas debatido, nunca chegando a ser verdadeiramente representado, isto é não existe nenhuma parte do jogo em que sejamos levados a experienciar o processo criativo, ou a intenção artística, desse modo o jogo trabalha sobre o pressuposto de que o seu público já compreende os seus fundamentos.

The Beginner's Guide” acaba sendo um magistral sucessor, em termos conceptuais, de "The Stanley Parable", pois se este questionava o sentido das ações do jogador num jogo, este questiona o sentido das ações do criador de um jogo.

dezembro 27, 2015

"SOMA" (2015)

"SOMA" junta-se a um lote de videojogos que marcam o ano de 2015 como um dos mais relevantes dos últimos anos em termos de videojogos narrativos, nomeadamente no que toca a quantidade, diversidade e maturidade. "SOMA" apresenta uma história de ficção-científica de nível literário, não se limitando para tal a templates narrativos, apresentando toda uma nova abordagem ao contar de histórias jogáveis. Deste modo qualquer análise da obra para estar completa precisa de se dividir entre a crítica ao texto e a análise do design.






Design da Narrativa e Jogo

"SOMA" começa por identificar-se com uma das grandes tendências atuais dos jogos narrativos, os walking simulators ("Dear Esther", “Everybody’s Gone to the Rapture”), jogos de pura navegação virtual, evoluindo depois para o environment storytelling (ex. "Gone Home", “The Vanishing of Ethan Carter”), jogos que requerem manipulação, acabando por se aproximar depois do género survival/stealth sem armas, que era uma marca que já vinha dos jogos anteriores da Frictional (ex. "Amnesia: The Dark Descent"). Assim temos um design que trabalha o espaço narrativo por via do ambiente (cenário, luz e som) e pistas (logs, fotos, videos e audios), incluindo a sua manipulação (puzzles), e o tempo narrativo por via do survival (tarefas com janelas temporais) e do stealth (a fuga de inimigos).

Esta mescla de géneros surge da tentativa do diretor Thomas Grip, em fazer avançar o contar de histórias nos videojogos, tendo para tal criado um método de design de narrativa, que intitulou de 4-Layers. Nessa sua definição começa por definir os extremos — “Heavy Rain”, quase ausente de jogabilidade, e “Bioshock” quase só focado nos tiros — apontando a sequência final de “Brothers: A Tale of Two Sons” e a da girafa em “The Last of Us” como exemplos da perfeição do entrosamento entre narrativa e jogo. Grip diz que essas sequências serviram como inspiração para criar todo o método 4-Layers, já usado em “The Vanishing of Ethan Carter” e "SOMA", considerando eu depois de ter jogado ambos, que ele é verdadeiramente eficaz em SOMA". Este método busca desenhar o jogo em camadas, por forma a evitar a focagem na história pela história. Vejamos cada camada, e como elas atuaa em "SOMA".

"Layer 1: Gameplay". No caso de "SOMA", isto é conseguido por via de puzzles espaciais não demasiadamente complexos (encaixar ferramentas e dados entre máquinas, abrir portas), assim como por via da fuga em labirintos, ou os puzzles pressionados pelo tempo e medo. Cada uma destas mecânicas é desenhada em consonância com a história, não se centrando sobre si, mas antes procurando dar resposta a questões narrativas, o que vem de encontro ao segundo layer.

"Layer 2: Narrative Goal". Aqui Grip defende que a narrativa, tal como acontece no cinema, não pode estar apenas cingida ao arco principal que liga o início ao final, mas precisa obrigatoriamente de gerar eventos narrativos que suportem o interesse do recetor ao longo de todo o jogo. A essência deste interesse assenta no dito acima, as questões narrativas, ou seja o mistério e o suspense, capaz de motivar o receptor para a narrativa, impossibilitando assim que este se foque nas tarefas ou ações de modo isolado. Em SOMA a narrativa vai-se desvelando, mas muito devagar, vamos acedendo aos computadores e dados, falando com as pessoas, para ir percebendo o que se passa ali, mas mais importante para perceber o que se espera de nós. Cada área, e cada nível, comporta em si mesmo um trecho narrativo que por si captura o nosso interesse, sem estarmos agarrados ao objetivo final da história. A ideia é focalizar a atenção nesses objetivos narrativos intermédios e assim evitar que o jogador se foque na mecânica das suas ações, focando-se na busca de respostas.

"Layer 3: Narrative Background". Se o “objetivo narrativo” pretendia mudar o modo do jogador de “fazer coisas para avançar na história”, para, “fazer coisas por causa da história”, com o background narrativo procura-se levar o jogador a “fazer coisas para fazer a história aparecer”. Ou seja, o log que leio ou o audio que ouço em "SOMA", não são longos nem obrigatórios, para evitar que se transformem em tarefas, aquilo que tenho de fazer para chegar ao nível seguinte (isto é puro design de narrativa, já que se quisermos ler os textos originais, podemos ir à secção Files no site e ver como são longos, perceber que textos daquela dimensão no interior do jogo deturpariam a jogabilidade). Assim os textos são antes objetos que fazem a história emergir, tais como fotos que vamos encontrando, ou diálogos que decorrem enquanto fazemos outra coisa, tudo isto são momentos entremeados no jogo que vão construindo a história, mas vão acima de tudo dotando a mesma de uma base contextual.

"Layer 4: Mental Modeling". Nesta camada Grip entra adentro do cerne da relação entre narrativa e interação, a partir do conceito base do design de qualquer interação, o modelo mental. Ou seja, falamos de construir um objeto de interação que vá de encontro ao modo como o jogador vê o mundo, porque o jogador não se baseia exclusivamente no que vê ou ouve no jogo, mas antes se socorre de modos de ver o mundo que já detém, ou seja modos que determinam a sua intuição para compreender o que lhe está a ser mostrado. Claro que o jogador usa o feedback do jogo para se orientar, mas não está todo o tempo a processar tudo o que aparece no ecrã, antes carrega todo o modelo de jogo na sua mente e age por intuição, recorrendo à racionalização apenas quando o jogo não opera como esperado. Deste modo o jogador está continuamente a jogar cognitivamente, a imaginar e a lançar hipóteses sobre o que vai acontecer a seguir, tentando antecipar as necessidades, o que não é muito diferente do que acontece no cinema ou literatura. Isto é extremamente importante na navegação (ex. seguir o caminho debaixo de água em "SOMA"), assim como na manipulação (ex. o modo como abrimos portas, ou gavetas, ou usamos as ferramentas), assim como claro na participação na narrativa, em que assumimos diferentes modelos mentais, que geram expectativas consoante o género narrativo (ex. terror, comédia, aventura, etc.).

Quero aproveitar este 4-Layers e o caso do "SOMA", para trazer de novo a questão que me coloquei quando acabei “Witcher 3”, por comparação a “The Last of Us”. Será que poder escolher o desenlace de uma história, impacta de forma diferente a minha experiência narrativa? Se à medida que avanço em "SOMA", vou criando o mundo história, compreendendo as suas razões e fazendo destas os meus objetivos e motivações, quer dizer que passo a incluir-me nesse! Assim apesar de não poder alterar as ações da história, sinto que elas têm valor, porque se encaixam e incrementam o significado daquilo que já sei sobre aquele mundo. Não estou simplesmente a abrir e a fechar portas, a descobrir chaves e puzzles, mas estou a dar sentido à história, a procurar compreender o que está por detrás daquela porta, como se encaixa o que está ali com aquilo que já sei. Como diz Grip,
"The mental model and the narrative lie on the same level, they are the accumulation of all the lower level stuff. And if we can get them to work together, then what we have is the purest form of playable story where all your gameplay choices are made inside the narrative space." [source]
Repare-se que apesar de "SOMA" ser linear, não permitir alterar a história, ele oferece decisões ao jogador, algumas limite, como deixar viver ou morrer. E nesse caso mesmo sabendo que isso não alterará em nada o trajeto do jogo, o modo como está encapsulado, o modo como nos é feito acreditar o que vale ou não vale essa "vida", faz com que a nossa tomada de decisão seja difícil. Isto demonstra que o valor das decisões não se prende com as consequências no jogo, mas antes com o valor que atribuímos às mesmas. De certo modo é isto que se passa no final de “The Last of Us, mesmo não nos sendo permitido tomar a decisão de agir ou não agir na sala hospitalar, a perplexidade com que agimos dá conta da importância dessa ação, e mesmo quando somos obrigados a fazer o que o jogo requer para simplesmente avançar na história, não deixamos de continuar a questionar-nos sobre esse momento e o modo como nos marca.

Voltando ao 4-Layers, Grip cataloga a tomada de decisões por parte do jogador sobre a narrativa, como uma variante do “objetivo narrativo”. Ou seja, aqueles momentos em que o jogo, a nossa ação, está umbilicalmente conectada à história, em que jogamos motivados por razões narrativas, e não de jogo. No fundo, o que Grip está aqui a dizer é que mais do que colocar decisões na mão do jogador, é preciso fazer o jogador acreditar que as suas ações fazem parte da narrativa, e não são apenas um adereço para fazer funcionar o jogo. Mais uma vez recordando “The Last of Us”, o crafting de armas não surge como jogo de construção de armas, mas antes como necessidade de fazer frente aos mortos-vivos que vivem naquele mundo-história, ou seja, ajo motivado pela história, e não apenas porque quero avançar.

Fica a faltar ainda a discussão sobre o sistema de stealth que não inclui armas, o qual se torna responsável pela gestão do desafio e medo ao longo de todo o jogo, no fundo uma das grandes motivações para corrermos de um lado para o outro, por vezes sem tempo para pensar, apenas agir visceralmente. Mas voltarei a esse tema num texto próprio, já que levanta todo um conjunto de questões sobre os jogos exploratórios e os walking simulators.


A História

Não é possível falar da história sem desvelar detalhes da mesma (spoilers), já que como explico acima, o modo como a narrativa foi desenhada obriga a que não se conheça nada da história, essencialmente porque é o querer conhecer o que se passa e do que nos falam, que nos vai motivando a jogar, ao mesmo tempo que mantém todo o mundo de jogo crível. Por isso se ainda não jogaram, não leiam o resto deste texto.


---------- SPOILERS ----------------------

De forma genérica, temos uma história que roda à volta de questões existenciais, nomeadamente a identidade, que nos leva numa viagem filosófica de 10 horas em busca do propósito da vida, tendo por base a dualidade mente/corpo de Descartes. Em concreto, o planeta tornou-se inabitável e como solução propôs-se uma forma de digitalizar as consciências humanas, colocá-las dentro de uma arca e enviá-la para o espaço, uma espécie de Arca de Descartes. A linha de história é nova, embora a premissa tenha sido já muito discutida, nomeadamente nos trabalhos de Philip K. Dick. O que torna a história no jogo interessante é o fato de nos colocar de frente ao processo, e seus efeitos, de nos fazer passar por decisões sobre esse processo.



Ora, diferentemente do tempo em que Descartes escreveu os seus trabalhos, hoje sabemos que a consciência não é algo autónomo, sabemos que ela é apenas aquilo que o corpo permite que seja, nomeadamente a configuração física das ligações neuronais, mas também a configuração dos marcadores somáticos em todo o nosso corpo (desde os sentidos às vísceras). Sabendo isto, poderíamos atirar borda fora toda a história, contudo isso não é tão simples, já que aquilo que alimentou a teorização de Descartes continua presente, a ideia de que no interior de nós mesmos existe algo, existe um “Eu”, e esse "Eu" é tão profundamente obsessivo no que toca à sua emancipação, que por mais que "lhe" digamos que não existe individualmente "ele" continua a querer fazer-nos acreditar que existe. Diria quase, e aqui seguindo à letra Descartes, que o "génio maligno" existe, é o nosso próprio "Eu", sempre insatisfeito, sempre produzindo a volição que nos mantém insaciáveis, vivos. Por isso todo o tema de "SOMA" continua tão atrativo, em termos de teorização e discussão filosófica, mesmo se do meu lado a paciência para Freud, Lacan ou Jung se tenha esgotado há muito!

Tirando esta problemática, uma outra surgiu-me com mais força durante o jogo, e que cheguei a colocar como o grande problema de todo o mundo história, o Wau, a personagem que se desenvolveu a partir da IA e tomou conta de todas as instalações submarinas. O Wau surge desde o início como uma espécie de praga, que toma conta de todas as máquinas, robôs, inclusive criando monstros. Isto colocou-me o problema da credibilidade, porque parecia ser apenas um motivo para criar as dinâmicas de survival que os autores precisavam para o tipo de jogo idealizado, não tendo qualquer base científica. Contudo, isto viria a desvelar-se no final do jogo, de um modo perfeitamente científico e filosófico (os monstros são os corpos abandonados/suicidados, mantidos vivos por Wau, na sua tentativa por manter vivos os humanos a qualquer custo), com a discussão a evoluir para a relação entre máquinas e humanos, entre a moral que regula as suas relações, e a capacidade de uma máquina poder entender a imperfeição de que são feitos os humanos.

Para terminar, que este texto já vai longo, embora pudesse continuar a falar sobre o mesmo, tal a riqueza especulativa despoletada pelo jogo, quero ainda deixar uma lista dos momentos altos da minha experiência no jogo, que em certa medida dão conta da intensidade e diversidade da mesmas:



Momentos marcantes da minha experiência de "SOMA"

  • Catherine, a sua escrita e contexto de jogo, enquanto companheira única num território árido de vida, é capaz de fazer sentir o desejo de buscar ansiosamente a conexão da Omnitool apenas para poder conversar com ela.
  • A opressão das sequências debaixo de água.
  • As passagens para dentro e para fora de água, o realismo da espera da compressão e descompressão, e o stress envolvido, de não querer sair, e por vezes ter medo de entrar.
  • Toda a envolvência audiovisual, nomeadamente sonora.
  • Quando me vejo ao espelho pela primeira vez, e percebo que já não sou humano.
  • Quando mudo de corpo e sou chamado a decidir desligar o meu “outro”.
  • Quando encontro o último ser humano vivo.
  • Quando lanço a arca e fico para trás.
  • Quando acordo dentro da arca, já depois do genérico.

dezembro 05, 2015

Os metavideojogos

Mais um trabalho brilhante de William Pugh, co-criador de “The Stanley Parable” (2013) (sobre o qual teci algumas reflexões para a Eurogamer). Ainda não tive oportunidade de jogar “The Beginner’s Guide” (2015) do segundo co-criador de “The Stanley Parable”, Davey Wreden, mas se for pelo menos tão bom como este, quer dizer que os videojogos estão de parabéns pela maturidade que conseguiram atingir, que tão bem se espelha na criatividade por detrás de toda esta metacomunicação.




O título, Dr. Langeskov, The Tiger and The Terribly Cursed Emerald: A Whirlwind Heist é uma clara homenagem a “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (1964) de Kubrick, procurando de certo modo emular a satirização de um momento de tensão, não com a relevância do lançamento de uma guerra nuclear, mas não menos emocionante para todos aqueles que jogam e criam videojogos.

A jogabilidade está reduzida à típica “walking simulation” envolvida, mais uma vez, por uma voz em off que “dialoga” connosco, recorrendo a um texto belissimamente bem escrito, capaz de criar uma das experiências mais cómicas dos videojogos.

Não avançarei muito mais, correndo o risco de revelar em excesso, o jogo tem apenas 20 minutos, mas é gratuito, podendo ser jogado o Steam.

novembro 15, 2015

“Everybody’s Gone to the Rapture”

De novo se levantam questões sobre as fronteiras entre jogo, simulação e narrativa. Tenho sempre defendido este tipo de jogos, que agora se vão denominando de “walking simulations” - “Dear Esther”, “Gone Home”, ou o mais recente “The Vanishing of Ethan Carter” - mas desta vez ao iniciar a escrita dei comigo a construir uma nova taxonomia de análise dos videojogos... O trabalho avançou mas perdi-me na imensidade de possibilidades, e por isso resolvi parar e deixar para um próximo texto, aqui vou apenas concentrar-me em "...Rapture", e deixar as considerações sobre jogo ou não-jogo para outra altura.




Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) é um espaço-história que podemos explorar na primeira-pessoa. O espaço situa-se numa pequena aldeia britânica, nos anos 1980, abandonada à pressa a julgar pelo estado da cidade. À medida que avançamos na exploração vamos encontrando espaços em que luzes dão vida a encenações de grupos de pessoas que conversam entre si, como se estivéssemos a assistir a uma cena passada há não muito tempo. A aldeia é relativamente extensa, dada a reduzida velocidade a que nos deslocamos, mas para nos ajudar na escolha da ordem das casas e locais a visitar, existe uma luz forte que deambula por toda a aldeia que parece querer servir-nos de guia. Podemos encontrar mais diálogos ou monólogos em rádios e telefones perdidos, assim como em certos momentos temos de ativar umas luzes mais fortes que surgem e que nos abrem para mais uma cena de personagens de luz, mais extensa, ou pelo menos narrativamente mais significativa e que nos permite progredir na compreensão do que se terá passado ali.

O cerne de “Everybody’s Gone to the Rapture” é a narrativa, que se desenrola por meio de um enredo duplo, por um lado a descoberta do que terá acontecido na aldeia, por outro as vidas e relações entre os habitantes dessa aldeia. Ou seja, ao longo da progressão na experiência vamos descobrindo o que terá acontecido recentemente ali, assim como vamos ganhando conhecimento sobre as personagens que ali habitavam. No final, os dois enredos enlaçam-se para dar um sentido uno a toda a experiência, despoletando toda uma enorme recompensa pelo investimento realizado na compreensão do universo. Esta técnica do duplo enredo é bem conhecida do cinema, e serve por um lado para manter o espectador mais atento já que temos duas linhas de eventos a surgir em simultâneo, e por outro lado, quando o sentido se fecha na união de ambas as linhas de progressão, o espetador sente uma recompensa maior por dar sentido ao todo. Neste caso, posso apenas dizer que tal acontece, mas não posso entrar no detalhe correndo o risco de destruir essa possibilidade.

Pouco depois de estar em “…Rapture” torna-se inevitável recordar o início de “Village of the Damned” (1960), mas aqui a simulação é ainda mais forte na construção do sentimento de abandono do espaço, a falta de vida sente-se, com a nossa navegação em primeira-pessoa a funcionar na enfatização de todo esse abandono. Em sentido contrário, a performance das personagens que vamos encontrando espalhadas pela vila estão cheias de vida, com diálogos que nos chegam quase apenas por meio de voz, já que a linguagem corporal só por vezes nos é mostrada pelas luzes que constituem os corpos, ainda assim dando conta da idade e personalidade de cada um dos seus habitantes, do quão reais todas elas terão sido.

Everybody’s Gone to the Rapture” é um jogo sobre o fim do mundo, mas muito diferente daquilo a que estamos habituados a assistir, aliás esse era o objetivo de Pinchbeck:
“We talked about it, and we said, well, what is the important thing about the end of the world? It’s not about cities being consumed in fire. Take the movie 2012 – the whole of California vanishes and you don’t feel a thing, it’s just ridiculous. The apocalypse is about people, and the connections between them. What’s really touching is parents waiting for their kids to come home - and what they’re worried about is that the buses aren’t running, not that the world is ending. It’s the little moments that get you.” [fonte]
É isso que vemos, ouvimos e sentimos. O cenário escolhido toca-nos pela beleza, infelizmente não tanto como parece tocar os jogadores britânicos, que revelam sentir um enorme impacto nostálgico ao visitar os vários espaços no jogo. Mas a visualização daquele mundo é suportada por brilhantes dramatizações audio, que só poderiam ter sido conseguidas por atores de rádio, que conseguem fazer-nos sentir mesmo sem ver. Se tudo isto trabalha muito bem na construção do conhecimento dos eventos, toda a banda sonora adicionada ao jogo é imensamente poderosa, trabalhando com música coral que enfatiza o sentimento e conduz as sensações que vamos sentindo na progressão do jogo. Posso dizer que existe algum exagero no recurso musical, já que quase tudo é conduzido por este, o que claramente dá conta das fragilidades narrativas do objeto, muito por lhe faltarem personagens que possamos chegar a conhecer e empatizar completamente.

Trailer de “Everybody’s Gone to the Rapture” (2015) de The Chinese Room

Mas é o no final que tudo se dá, e é poderosamente gratificante, ainda que possamos sentir alguma lógica “new age” em toda a conceptualização da vida e universo, mas a forma como se constrói toda a sequência final é feita de modo gerar arrepios emocionais nos mais sensíveis. Quando tudo começa a fazer sentido dentro de nós, quando as duas linhas de enredo se cruzam e se tornam numa só, quando percebemos o que representa tudo aquilo que experienciámos até ali, dá-se a catarse cognoscente que acompanhada pela banda sonora e imagens finais nos deixa ali colados aos créditos finais, sem vontade de arredar até que o último nome passe...

novembro 14, 2015

“The Vanishing of Ethan Carter”

Um claro sucessor de “Dear Esther” (2012) e “Gone Home” (2013) em termos narrativos, porque se socorre da primeira-pessoa para nos conduzir na exploração de um mundo aberto carregado de indícios que nos permitiem ir ganhando acesso ao sentido da história. Menos críptico que “Dear…”, mais dinâmico que “Gone…”, dotado de uma arte visual verdadeiramente sumptuosa “Vanishing…” procura avançar na arte da mescla entre jogo e história.





The Vanishing of Ethan Carter” tal como “Dear” e "Gone” é um jogo independente mas feito por pessoas que já trabalharam em jogos triple-A, o que não é difícil de perceber dada a qualidade da produção final de qualquer um destes três jogos. Neste caso a The Astronauts é uma empresa polaca dirigida por Adrian Chmielarz, Andrzej Poznanski e Michal Kosieradzki, fundadores da People Can Fly, entretanto comprada e transformada em Epic Poland. A equipa trabalhou antes em jogos como “Bulletstorm” (2011) e “Gears of War: Judgment” (2012), à qual  se juntou para o desenho da narrativa, Tom Bissel e Rob Auten os guionistas de “Gears of War: Judgment”, tendo Bissell trabalhado também em “Batman: Arkham Origins” (2013) e juntamente com Neil Druckmann em “Uncharted 4: A Thief's End” (2016).

Ao contrário de “Dear…” e “Gone…”, “Vanishing…” não se limita a contar-nos a história por meio de textos espalhados nas mais diversas formas no mundo, encontrando uma forma particularmente engenhosa de injetar vida nos eventos do passado através da visualização de memórias psíquicas (espécie flashbacks audiovisuais interativos), às quais só conseguimos aceder depois de dar sentido ao puzzle de elementos que vamos encontrando espalhados pelo mundo. Por sua vez estas memórias depois de ativadas são ainda trabalhadas em termos de reorganização das memórias para as podermos descodificar completamente.

Desta descrição facilmente se pode depreender todo o trabalho envolvido na criação da mescla entre storytelling e jogo, algo que está no centro das preocupações de Adrian Chmielarz, aliás esta mescla em várias camadas não surge por acaso, foi antes perfeitamente delineada enquanto modelo de aplicação narrativa aos videojogos, criado por Chmielarz e Thomas Grip da Frictional Games, sob a designação "4-Layers", tendo sido implementado neste jogo pela primeira vez, e sido seguido também no caso do jogo "SOMA" (2015) da Frictional Games.

No final do jogo deparamo-nos com um twist pouco comum, embora não completamente original, ainda assim suficientemente forte para nos impactar emocionalmente e desejar ir atrás de mais informação, nomeadamente jogar e descobrir alguns elementos ainda espalhados pelo mundo, ou ler a prequela lançada em banda desenhada umas semanas antes do jogo. A nossa compreensão da história ganha novas abordagens, enriquece o sentido, assim como tudo ganha maior coesão.

"Prequel mini-comic The Vanishing of Ethan Carter” (2015) [Ler]

Por outro lado, e em termos negativos diga-se, posso dizer que não gostei da introdução de elementos esotéricos que acabam por funcionar como artificialização do desconhecido, gerando uma camada extra de obstáculos no acesso à descoberta do que se terá passado. Não sendo algo muito interessante, é-o ainda menos quando no final o twist narrativo acontece, e percebemos o que realmente está em questão.

março 15, 2013

"Proteus", viagens irrepetíveis

Proteus (2013) é uma experiência interactiva de grande qualidade estética. Criado por duas pessoas, Ed Key na programação e arte e David Kanaga na música. Apesar de desenhado a 8bits apenas, rapidamente esquecemos a baixa resolução e nos deixamos escapar e imergir totalmente pelo mundo de Proteus. O mais interessante acaba por surgir a partir do seu lado procedimental, ou seja do facto de não se tratar de um mundo pré-desenhado, mas antes de um algoritmo. O mundo e a paisagem sonora em que entramos são geradas a cada re-início de jogo, e nesse sentido, cada jogo é sempre uma experiência única e irrepetível.


Podemos avançar a ideia de que Proteus nao é um jogo por falta de objectivos claros, mas isso é aquilo que se percebe apenas à superfície, porque na verdade Proteus apresenta um início e um fim, assim como uma progressão perfeitamente delineada. A chegada ao final, é no fundo o objectivo último, e depende da nossa acção sobre o mundo para acontecer. Cada experiência completa leva-nos a atravessar as quatro estações, fazendo-nos sentir o frio e o calor de cada uma. A experiência é visualmente muito conseguida principalmente na selecção de cores, é aquilo que nos faz esquecer os 8 bits, de tão harmoniosas e em sintonia com o espírito de cada estação. No entanto acredito que a componente musical acaba por ser aquilo que contribui com maior singularidade para o jogo. Os nossos movimentos, aproximações e distanciamentos de determinados elementos e locais cria faixas musicais próprias, que podemos fazer variar com a nossa acção no espaço. Por vezes damos por nós a parar, ou a voltar atrás, apenas para poder apreciar o som que se produziu à nossa volta.






Em termos das quatro estacões, posso dizer que não me entusiasmou particularmente, aqui mais por defeito profissional. Passei vários anos a estudar o desenvolvimento emocional em ambientes virtuais, e o que posso dizer, é que isto apesar de ser limitado em termos de palete emocional, o problema não é propriamente dos designers, mas antes da opção tomada para o desenho de Proteus. Como tenho discutido ao longo do meu trabalho e venho avançando nessas conclusões com doutorandos, a estimulação de emoções a partir de ambientes é bastante limitada. Temos aqui as quatro estações, sentimos que percorremos uma palete diversa de emoções, mas se pararmos para pensar sobre o que se passou, não conseguimos ir além da contemplação, bem-estar, tranquilidade, surpresa e curiosidade. Tudo o resto, tudo aquilo que verdadeiramente nos marca, as emoções combinadas, estruturadas e complexas não estão ao alcance de um mero ambiente. Para chegarmos a este tipo de emoções precisamos de personagens, precisamos de empatia. Sem estes não temos como nos ligar ao artefacto, e senti-lo, porque este é no fundo um artefacto desprovido de vida.

Sei bem que o jogo tem o poder de nos encantar, e de nos fazer escapar do nosso mundo durante os 45 minutos que por lá passamos, mas terminados, ficamos sem saber porquê, nem o que fica. Comparando com Dear Esther que também era mais ambiente do que personagens, tínhamos uma narrativa que nos conduzia, e tínhamos personagens, tínhamos inclusive um narrador que nos guiava, a quem nos "colávamos". Aliás o mesmo se passava em Myst, outro jogo que nos fazia deambular por um mundo deserto, apesar dos puzzles, a força estava nos dois irmãos e o seu pai, na narrativa que se desvelava a cada nova etapa. Em Proteus, cada etapa corresponde a um novo universo visual e sonoro, e ficamos verdadeiramente desejosos de continuar a experienciá-lo, mas no final, é só isso mesmo, nada mais nos resta.

Diria que Proteus funcionaria muito bem como instalação, uma peça de arte digital num museu, com a qual pudéssemos interagir e escapar do espaço circundante, saborear novas planícies, novos horizontes sonoros. É uma obra experimental que se apodera de uma das melhores características dos ambientes tridimensionais, a interacção através da navegação em conjunto com a música adaptativa.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

novembro 26, 2012

Simulação de emergência narrativa

The Snowfield é um videojogo experimental sobre conceitos de narrativa emergente desenvolvido sob o tema da I Grande Guerra Mundial. Foi criado por dez estudantes de Singapura e dos EUA no programa de Verão de desenvolvimento de jogos do MIT GAMBIT Game Lab em 2011. Está agora disponível online para experienciar, depois de ter sido um dos finalistas dos IGF 2012 deste ano.

In The Snowfield you are a lone soldier wandering the aftermath of a great battle. It is the dead of winter and you won't last long in the cold. But you are not alone.
A ideia de partida do director do projecto Matthew Weise (coordenador da equipa e não estudante) passava por criar um jogo com narrativa forte, sem ter de recorrer a muita IA nem à produção de muito conteúdo. Nesse sentido seguiu duas ideias centrais: a) criar narrativa pela emoção; b) escolher a estrutura da narrativa a partir dos testes com os utilizadores. Assim para a primeira ideia, Weise diz-nos [1] que,
One of the myths about narrative we wanted to discredit was the idea that plot structures or archetypes are what make players care about game stories—in other words, what makes players react emotionally. Traditionally, game developers assume narrative creates emotion. We believed emotion creates narrative, and that emotional touchstones are what cause players to perceive a set of system outputs as a story.

Apesar de eu acreditar nesta ideia de que a emoção cria narrativa, parece-me vago e incompleto para se poder chegar a um produto capaz de oferecer a experiência narrativa como a conhecemos. Aliás é o próprio Weise que o reconhece no final do seu post-mortem dizendo, 
The Snowfield was a successful emotional experience, a successful mood and atmosphere piece, and a successful virtual evocation of World War I, it was not a successful illustration of my theories on narrative. [1]

Apesar disso julgo que a ideia de procurar os momentos de ruptura emocional a partir dos testes com os utilizadores pode ser muito interessante. A demonstrá-lo fica o objectivo inicial da mecânica principal, e no que se viria a transformar depois.
"The Snowfield's" freezing-to-death mechanic. Originally, freezing was just a gating mechanic, to prevent players to reaching the edge of the map without resorting to invisible walls, but when testers responded so emotionally to it (nearly all of them said it made them feel “cold and alone” in the heat of July) we decided to embrace that simple emotion and build the game around it. This was an outgrowth of our “emotion creates narrative” philosophy, as something that guided development as well as in-game player narrative. [1]

Apesar do jogo não ter conseguido atingir o esperado pelo director, o jogo consegue desenvolver uma experiência única. Faz lembrar Dear Esther, apesar de não ter o seu poder de envolvimento. Mas tenhamos em atenção que falamos de um jogo feito em apenas oito semanas. Sinto que de algum modo Weise conseguiu aproximar-se da ideia central de criar um espaço de simulação sem arco narrativo, mas com poder suficiente para evocar narrativa a partir dos estímulos emocionais que o jogo despoleta em nós.


Link para jogar online.


[1] O excertos de Matthew Wiese foram retirados do Postmortem na Game Developer, Game Career Guide, Fall 2012

julho 22, 2012

"Dear Esther", essência dos videojogos

Dear Esther (2012) representa a consagração da especificidade expressiva dos videojogos. É verdade que tem sido atacado por muitos dizendo que este não se trata de um videojogo, que em vez de fazerem um jogo deveriam ter feito uma curta-metragem, mas sobre isso só posso dizer que é totalmente errado. Dear Esther (DE) é uma experiência de entretenimento apenas possível graças à linguagem dos videojogos. 


Começando pelo básico do que nos é dado a ver em DE, se transformado em cinema não daria para mais do que um filme de cinco minutos, ora o que aqui temos é traduzido numa experiência com cerca de 90 minutos, o equivalente a uma longa-metragem. Deste modo é preciso perceber o que acontece nestes 90 minutos, quais são as especificidades desta experiência que leva a manter-nos totalmente imersos e engajados ao longo de 90 minutos.


O que temos em DE está além da mera passagem de mensagem, assim como está além da mera execução de tarefas e ultrapassagem de obstáculos. DE assenta fundamentalmente num processo de criação de uma experiência emocional estética. Sendo que aquilo que DE nos faz experienciar seria impossível com qualquer outro medium. Construímos uma relação com o espaço, na interacção com esse espaço por meio da navegação, mais do que com a história que nos é narrada.


Aliás, reflectindo à posteriori sinto a narração em DE como a letra de uma música. É relevante, mas serve mais de complemento do que de essência. A essência está na experiência sensorial que se constrói na base das notas musicais, na sua sucessão e ritmo. Em DE é igual, o que sentimos é construído na base da experiência da interacção com o espaço, na navegação através da sucessão de espaços, nas suas formas e padrões. 


É muito interessante ver as pessoas revoltarem-se contra DE dizendo que não se trata de um jogo, quando este usa um dos elementos fundamentais dos videojogos, o labirinto. Em termos formais de design existirão assim tantas diferenças entre DE e Pac-Man? É verdade que não existem inimigos, e a experiência de morte é aqui muito menos premente, mas o objectivo é o mesmo, passar pelos sítios predeterminados para poder continuar a avançar. Nesse mesmo sentido o design da navegação de DE não difere do design de Doom, Zelda ou Myst, onde o que se pretende é criar no jogador uma vontade de saber como será o mundo/nível seguinte.


Não é por acaso que no mundo dos videojogos a arquitectura tem enorme relevância, porque a experiência é grandemente fruto da navegação no espaço. Jenkins disse mesmo que em vez de contadores de histórias, os game designers deviam ser apelidados de “arquitectos de narrativa” porque os “game designers não contam simplesmente histórias; eles desenham mundos e esculpem espaços”[1]. O que nos move na interacção com estas obras não são tanto os eventos e as causas, mas a exploração espacial. Como nos dizia Murray [2],
“The new digital environments are characterized by their power to represent navigable space. Linear media such as books and films can portray space, either by verbal description or image, but only digital environments can present space that we can move through.”
O que está em questão é o tratamento dado a esse espaço, que pode ser meramente descritivo ou assumir um carácter dramático, como assume em DE. Deste modo o que acontece em DE não difere daquilo que acontece em Em Busca do Tempo Perdido de Proust ou mesmo em O Senhor dos Anéis de Tolkien, porque o aqui temos é uma descrição total e em detalhe do espaço da história. O espaço é a história, e DE apresenta um dos espaços mais detalhados até agora vistos. É difícil olhar em nosso redor em DE e não pensar na sua beleza, na sua subtileza e comparar isto com a “madalena" de Proust. A beleza está no detalhe, está no processo, está no caminho, está no que vem a seguir. A condição de eficiência de uma narrativa literária é conseguir manter o leitor interessado ao ponto de se manter num constante questionamento sobre o que vai acontecer a seguir. Nos videojogos a narrativa espacial assume o questionamento sobre o espaço que vamos encontrar a seguir, como será, o que teremos de fazer, por onde iremos passar, que forma terá, aonde nos levará.


Dito tudo isto, acredito em DE como o objecto que demonstra todo o amadurecimento da arte dos videojogos, no sentido em que deixou de ter complexos, em que se assumiu e se concebeu num objecto integralmente dedicado à sua força expressiva – a navegação no espaço. DE é o que Myst deveria ter sido, porque todos aqueles enigmas e puzzles contribuem muito pouco para a essência da expressividade, identidade e dramaticidade narrativa. A sua presença ali é mais uma imposição da linguagem tradicional de jogo, do que da nova linguagem dos videojogos.


A linguagem criada pelos videojogos está claramente enraizada na ideia de jogo, mas também na ideia de história, no entanto a sua essência resulta num novo todo, não numa mera soma de ambas.


[1] Henry Jenkins, “Game Design as Narrative Architecture” in Noah Wardrip-Fruin and Pat Harrigan (eds.) First Person: New Media as Story, Performance, Game MIT Press, 2004,  
[2] Janet Murray, “From Additive to Expressive Form", in Hamlet on the Holodek: The Future of Narrative in Cyberspace, MIT Press 1998,